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O poder simbólico do direito: uma introdução ao estudo do direito pela obra de Pierre Bourdieu

André Emmanuel Batista Barreto Campello1

Resumo

O presente texto buscou analisar e tecer reflexões acerca do fenômeno jurídico, dentro da perspectiva do poder simbólico traçada por PIERRE BOURDIEU, vislumbrando-se o Direito como uma forma de manifestação do poder simbólico, ao se constatar que as limitações às diversas formas de interpretação jurídica, representam, por si só, forma de controle social.

Palavras chave: Direito. Introdução. Crítica. Poder Simbólico. Pierre Bourdieu.

1 INTRODUÇÃO

Neste ensaio pretende-se iniciar a caminhada na construção de uma introdução ao problema do fenômeno jurídico, à luz da perspectiva dada por PIERRE BOURDIEU, vislumbrando o direito como uma forma de manifestação do poder simbólico, ao se constatar que as limitações às diversas formas de interpretação jurídica, representam, por si só, forma de controle social.

Em um primeiro momento analisa-se o direito como uma forma de controle social, verificando a sua natureza e como este se realiza por meio do poder simbólico.

Portanto, neste capítulo será estudado o Direito enquanto fenômeno social que tem por escopo o controle comportamental de uma coletividade com o escopo da manutenção do status quo.

A seguir, no capítulo seguinte pretendeu-se, à luz dos ensinamentos de Pierre Bourdieu, tecer reflexões acerca do monopólio do Estado da jurisdição e, portanto, da interpretação definitiva do direito, apontando suas razões e consequ?ências.

Ao final, na conclusão, busca-se consolidar o tema, sem esgotá-lo apresentando as perspectivas para novos caminhos.

2 O DIREITO COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL

2.1 O Direito é um fenômeno social

Não se pode conceber um Direito sem sociedade, ou mesmo uma sociedade sem normatização que venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar a condutas dos indivíduos e grupos que lhes integram.

Seria possível até afirmar que, para que exista sociedade, faz-se necessário a existência de Direito, sendo este, portanto, uma necessidade daquela:

A sociedade sem o Direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O Direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o direito representa um grande esforço, para adaptar o mundo exterior às suas necessidades da vida.2

Evidente que não se fala aqui de que qualquer sociedade, para existir, terá necessariamente possuir uma codificação (fenômeno tipicamente ocidental) para reger a sua vida social, mas tal coletividade deverá estar regida por conjunto de normas que lhe conceda estabilidade e que permita o desenvolvimento de atividades econômicas e relativa segurança para os indivíduos e para as relações surgidas entre estes, a fim de evitar que a força (individual), por si só, seja o único elemento que defina o resultado das querelas da sociedade.

Neste sentido, algumas palavras de IHERING: “[…] Dessa forma, a preponderância do poder inclina-se paras o lado do direito, e a sociedade pode ser designada, por consequ?ência, como o mecanismo de auto-regulação da força conforme o direito.”3

Presume-se que os indivíduos, de uma dada sociedade, ao edificarem o Direito que irá reger as suas relações sociais e limitar a satisfação das suas necessidades, aceitam como legítimo tanto o poder que cria as normas, quanto válidas (e também) aceitáveis o conteúdos destas, pois, do contrário existiria, no mínimo, um contexto de subversão política, já que, estaria, em questionamento, a própria obediência ao estatuto social criado pelo poder político constituído.

Neste ponto, adequa-se, perfeitamente, a percepção de BOURDIEU acerca do poder simbólico e a noção de que ele pressupõe que os dominados se submetem espontaneamente ao controle porque possuem alguma crença neste comando:

[…] como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.4

Pelo que foi apresentado, para a continuação deste ensaio, necessária a formulação de questões acerca de alguns aspectos:

(1) Se o Direito é um fenômeno social, como poderia este controlar a própria sociedade que o engedrou?

(2) Qual o fundamento de legitimidade para que o Direito possa se impor sobre uma determinada sociedade?

(3) Como o Estado consegue impor um Direito sobre uma sociedade?

Em verdade, uma introdução ao estudo do Direito deve partir precisamente daquilo que o Direito é: um instrumento de controle do comportamento dos indivíduos de uma sociedade a fim de manutenção de uma determinada estrutura social e rede de relações entre indivíduos, analisando-se a ciência do Direito e os significados deste fenômeno social.

2.2 O primeiro ponto de análise deve ser a compreensão da construção da “Ciência do Direito”

Ora, a construção de uma ciência jurídica, teria, por óbvio, uma faceta simbólica manifesta: a de apresentar ao espectador uma aparência de lógica, de autonomia, de sistema fechado, que serviria para isolar (para fins de estudo?) o fenômeno jurídico dos demais eventos sociais, ou das demais disciplinas, de modo que se pudesse construir e compreender o Direito, pelos seus próprios princípios, nos seus próprios termos. Bourdieu assim enfrenta o tema:

A ciência jurídica tal como concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna.5

Portanto, construir uma teoria pura, para o fenômeno jurídico, seria algo “natural”, dentro desta lógica da absoluta autonomia da ciência jurídica, tendo em vista que, se o direito constitui um sistema que se auto-explica, deveria conter categorias lógicas próprias. Bourdieu tece interessante crítica sobre a construção de uma teoria pura para o Direito:


A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento.6

A respeito do tema, deve ser lida também uma interessante crítica de Maman à construção kelseniana:

Muito mais para explicar, do que para compreender o fenômeno jurídico, constroem-se modelos teóricos que são pura ficção científica. Veja-se Kelsen e sua pretensa neutralidade axiológica e epistemológica. A neutralidade axiológica já não era colocada bem mesmo no Círculo de Viena. E a compreensão da realidade jurídica em termos de força material organizada está no neokantismo. A norma fundamental como pressuposto jurídico leva ao positivismo, que não é senão o represamento da decisão. Assim, toda a construção de Kelsen é uma construção dogmática que deve ser interpretada silogisticamente, segundo uma lógica superada […]. Kelsen lisonjeia o comodismo dos aplicadores do direito, com a lei, numa interpretação racional, abstrata, pré-moldada, podemos resolver todos os problemas. Abre caminho para a cibernética e a solução do computador.7

Esta concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando-se com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que almeja apenas treinar/instruir “técnicos jurídicos”.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam submetidos àquelas normas.

Bourdieu explica que esta construção de um discurso homogêneo para a “ciência jurídica” advém inclusive de formação jurídica também homogênea que os operadores do direito adquirem: uma tecnologia que lhes permitirá, pela vias do direito, trabalhar com os conflitos sociais:

A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.8

As normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos movimentos destes agentes sociais. Ao isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo.

Portanto, o direito procura construir uma simbologia própria, para pela utilização delas por operadores do direito “aptos” e “treinados” para tanto, ou seja, controlar e manter dentro das expectativas do aceitável, os potenciais conflitos sociais que possam emergir das diversas interações entre os agentes socais.

O direito cria um discurso, baseado na forma, a fim limitar não apenas a atuação de agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas, mas para tanto, para conseguir manter a eficácia destas regras (ou princípios), faz-se necessária a adesão daqueles que irão suportar o seu peso, e isto se concretiza pela perda do discernimento (dos destinatários das normas) que estão sob prescrições arbitrárias e que não estão aptos a questioná-las ou delas discordar:

É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais cerca quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento.9

2.3 Pelo distanciamento dos seus destinatários o Direito busca exercer o controle social

Como se daria este distanciamento? De modo brilhante, eis a percepção de Bourdieu:

A maior parte dos processos lingu?ísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em um sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado [são] próprios para exprimirem a generalidade e atemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético […]10

Ou seja, na construção das normas jurídicas, pretende-se apresentar aos seus destinatários um aspecto de impessoalidade e abstração, que, em verdade, apenas existiriam na edificação do discurso cristalizado na lei e que serviriam para, diante do leito/súdito da norma transmitir-lhe a crença de que a sua natureza (ou a sua finalidade) coincidiriam com a forma como foi redigida.

Neste sentido, Ferraz Jr.:

[…] o jurista da era moderna, ao construir os sistemas normativos, passa a servir aos seguintes propósitos, que são também seus princípios: a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível. Por meio de leis, fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental, que deve ser captada como tal. As leis têm um caráter formal e genérico, que garante a liberdade dos cidadãos no sentido de disponibilidade. Nesses termos, a teoria jurídica estabelece uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria bordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítimas da utilidade privada. Sobretudo, esboça-se uma teoria da regulação genérica e abstrata do comportamento por normas gerais que fundam a possibilidade da convivência dos cidadãos.11

A melhor forma de observar este distanciamento, pela forma como se redige as disposições normativas, é vislumbrar que o próprio ordenamento, pelo art. 11 da lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, prescreve a forma da redação legislativa:


Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I – Para a obtenção de clareza:

  1. usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando;
  2. usar frases curtas e concisas;
  3. construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis;
  4. buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;
  5. usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico;

II – Para a obtenção de precisão:

  1. articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;
  2. expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico;
  3. evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto;
  4. escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais;
  5. usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que a primeira referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu significado;
  6. grafar por extenso quaisquer referências a números e percentuais, exceto data, número de lei e nos casos em que houver prejuízo para a compreensão do texto;
  7. indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes;

III – Para a obtenção de ordem lógica:

  1. reunir sob as categorias de agregação – subseção, seção, capítulo, título e livro – apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;
  2. restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
  3. expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;
  4. promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens

Pelo discurso, pretende-se construir um mise-en-scène, desviando a atenção do leitor/súdito da norma para o verdadeiro desiderato do comando, gerando neste a crença na impessoalidade e neutralidade da norma jurídica:

Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização […] que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto há séculos.12

Logo, para exercer o controle da sociedade, não basta apenas deter o monopólio da produção do direito, necessário também que haja uma limitação ao ato de interpretar as normas jurídicas.

Se o discurso cristalizado no direito positivo busca o controle da sociedade, necessário analisar-se, a seguir, quem detém o monopólio sobre a atuação de dizer o Direito, de dar a última palavra acerca da relação entre os fatos e as normas: o atuar do Estado-Juiz.

3 OS LIMITES PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

3.1 O direito positivado, cristalizado em normas escritas, que estão corporificadas nas espécies legislativas, podem, sem dúvidas, subverter o próprio sistema.

Como poderia isto acontecer?

A construção do direito passa necessariamente da atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural como a nossa a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Evidentemente que existe um risco (decorrente de insegurança) se o conteúdo das normas jurídicas forem criados livremente pelos seus próprios intérpretes.

Reside aí a insegurança jurídica, que não pode ser tolerada, sob pena de que, pela ausência de um dos pilares que justificam a sua existência, venha o Direito perder a sua legitimidade em face dos seus súditos.

Por esta razão, para limitar a pluralidade de interpretações, o Direito limita: (a) o espaço em que este debate se realizará; (b) os atores legitimados para validamente realizar a interpretação das normas; e (c) a sua duração, concedendo ao Estado-Juiz a última palavra sobre o tema debatido.

3.2 BOURDIEU, de forma brilhante, percebe que este debate jurídico realizado sobre a válida interpretação das normas jurídicas deve ocorrer em um campo próprio:

O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflicto directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as lei escritas e não escritas do campo- mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei […].13

E mais:


A constituição do campo jurídico é um princípio de constituição da realidade […]. Entrar no jogo, conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia violência física e às formas elementares de violência simbólica.14

3.3 Ao adentrar neste campo jurídico, os litigantes renunciam à possibilidade de solução própria individual do litígio, conferindo o poder de encontrar a interpretação adequada, ao caso concreto, para o Estado-Juiz, aceitando, portanto, as “regras do jogo”, para que possam ter acesso, de forma legítima, ao bem da vida que está sob disputa, mas, em regra, deverão as partes atuarem por meio de profissionais habilitados para tanto:

O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele (pelo recurso da força ou a um árbitro não oficial ou pela procura direta de uma solução amigável), ao estado de clientes de profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que garante o domínio dos meios vê recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo.15

3.4 O Direito não admite a eternização do debate e da disputa jurídica acerca dos bens da vida, pelo fato que, se assim ocorresse, a insegurança iria permear as relações humanas, tendo em vista que os conflitos não encontrariam fim, já que seria possível, aos litigantes, sempre reiterar (ou renovar) seus pontos de vista.

Para tanto, ao Estado-Juiz, é concedido o poder de pôr termo às disputas, apresentando a interpretação definitiva do fato, à luz do Direito:

Confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo tempo cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto solenemente enunciado de uma “autoridade” socialmente mandatada, o pliro representa uma encenação paradigmática da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem impor-se ao reconhecimento e, deste modo realizar-se, está em jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de divisão […], portanto, de distribuição legítima.16

Ou seja, o monopólio da jurisdictio, de interpretar o mundo, está contido nas mãos do Estado, que em regra não delega a particulares os seus atos de jurisdição, como fica bem evidente no tipo “Exercício ilegal das próprias razões” (art. 350, do Código Penal), em que a parte, julga e age, em busca da concretização do direito que entende ser seu.

Note-se que nesta figura, o bem jurídico a ser tutelado por esta norma é a “administração da justiça”:

Tutela-se a administração da justiça. As figuras típicas constantes do artigo 350 ofendem o normal desenvolvimento da atividade judiciária, comprometendo a eficiência e o respeito devido às suas funções.17

No momento em que um particular acusa outro, em um jornal, por exemplo, de este cometer uma conduta criminosa, ele, ao externar sua interpretação dos fatos, está, em tese, praticando o crime de calúnia (art. 138, do Código Penal); se o Estado-Juiz, ao publicar uma sentença condenatória criminal no Diário Oficial (art. 393, do Código de Processo Penal), afirmando que determinado indivíduo praticou um crime, estará decidindo e, pela sua prestação jurisdicional, aplicando uma sanção ao criminoso.

Neste sentido Bourdieu aprofunda o tema:

O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negociações a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publicamente o que elas são na verdade, em última instância, pertence à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim do insulto lançado por um simples particular que, enquanto discurso privado – idios logos – , que só compromete o seu autor, não tem qualquer eficácia simbólica; ele representa a forma por excelência da palavraautorizada, palavra pública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes enunciados performativos, enquanto juízos de atribuição formulados publicamente por agentes que actuam como mandatários autorizados de uma colectividade e constituídos assim em modelos de todos os actos de categorização […], são actos mágicos que são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem.18

E conclui que o Direito seria o poder simbólico por excelência, já que ele diz o que são as coisas, controlando a sociedade, moldando os rumos da história:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas. O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este.19

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente ensaio tem por meta a construção de uma visão introdutória ao direito que vislumbre que o controle social realizado pelo direito tem como alicerce o poder simbólico deste instrumento de comando das condutas humanas. Inicialmente, buscou-se esmiuçar como este poder simbólico se constrói, partido da edificação de uma ciência do Direito, alijada de discursos não-jurídicos, passando pela criação de um quadro técnico apto a lidar com esta tecnologia jurídica e refletindo sobre a forma como é construído a sintática dos comandos legais, a fim de apresentar uma aparente neutralidade/abstração, com o escopo de impor ao leitor/destinatário das normas jurídicas uma falsa percepção sobre os seus desideratos.

Em um segundo momento pretendeu-se tecer uma reflexão de como os conteúdos do Direito são controlados pelo próprio estado, ao limitar o campo de debates, os atores deste debate e a duração do debate, com a apresentação, de uma “certeza” pelo Estado-Juiz.


De fato, como diz Bourdieu, o Direito é o poder simbólico por excelência, pelo fato de que as normas jurídicas são símbolos que controlam a conduta humana e que os membros de uma coletividade, seus súditos, a ele se submetem espontaneamente, cumprindo suas obrigações, seus deveres (e respeitando os direitos subjetivos alheios), sem questionamentos, sem subversão.

A adesão se baseia na crença, quase mítica (ou religiosa), sobre a natureza do conteúdo da norma, que é “verdadeira”, ou que “está correta”. Note-se que não há um debate com a Lei, pois esta não se apresenta para explicar, mas para mandar, comandar o seu leitor/destinatário.

Se existe algum debate, ele ocorre durante a aplicação da norma, sobretudo em uma relação processual, perante o Estado-Juiz, momento em que as partes, (em regra) representadas, deverão deduzir suas pretensões perante o magistrado, para este apresentar a interpretação definitiva do fato, perante o direito.

Note-se que em todos estes eventos, o destinatário da norma é alijado do debate, pois suas percepções pré-jurídicas (ou, até, não-jurídicas) não são ouvidas, seus valores, suas crenças pessoais, seu sentimento de “justiça”, são olimpicamente ignorados, posto que irrelevantes para o Direito.

Portanto, neste ensaio, pretendeu-se construir uma introdução ao direito partindo do pressuposto de que os símbolos jurídicos, e suas análises, são imprescindíveis para adequada compreensão do fenômeno jurídico e das relações humanas dele decorrentes.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FERRAZ JR.. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

IHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Vol. 1. Tradução de José Antônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Rio, 1979.

MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2003.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.


Notas

1 Procurador da Fazenda Nacional. Ocupou os cargos de Advogado da União/PU/AGU. Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região. Conciliador Federal – Seção Judiciária do Maranhão. Professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís. Ex-professor substituto de Direito da UFMA.

2 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9. ed., Rio de Janeiro. Forense, 1994, p.298.

3 IHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. V. 1, tradução de José Antônio Faria Correa, Rio de Janeiro. Ed. Rio, 1979, p.160.

4 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed, Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007, p.14-15.

5 BOURDIEU, Op.cit., p.209

6 Ibidem.

7 MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. 2. ed. São Paulo. Quartier Latin, 2003. p. 45.

8 BOURDIEU, Op. cit., p.242.

9 BOURDIEU, Op.cit., p.243.

10 BOURDIEU, Op.cit., p.215-216.

11 FERRAZ JR.. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo. Atlas, 2008. p. 44-45.

12 BOURDIEU, Op.cit., p.216.

13 BOURDIEU, Op.cit., p.229.

14 Ibidem.

15 BOURDIEU, Op.cit., p. 233.

16 BOURDIEU, Op.cit., p.236.

17 PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 4: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 734.

18 BOURDIEU, Op.cit., p. 236-237.

19 BOURDIEU, Op.cit., p. 237.




A Prisão da Hermenêutica no Ensino do Direito Tributário: Em busca de novas possibilidades para o seu ensino e sua aplicação

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional, já exerceu os cargos de Advogado da União/PU/AGU, Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região, bem como a função de Conciliador Federal – Seção Judiciária do Maranhão. É professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís e ex-professor substituto de Direito da UFMA.
Especialista em Docência e Pesquisa no Ensino Superior.

RESUMO: Trata-se de artigo que tem por finalidade questionar as limitações interpretativas e integrativas do Direito Tributário, previstas nos arts. 107 a 112 do Código Tributário Nacional, demonstrando como a interferência destas normas cerceia, de modo injustificado, a aplicação e as possibilidades deste ramo do Direito, interferindo, inclusive, no ensino do Direito Tributário.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Tributário. Hermenêutica. Limites. Ensino. Crítica

SUMÁRIO: Introdução; 1 Erro e ilusão no Direito; 2 O Direito como forma de controle social; 3 Os limites para a interpretação do Direito; 4 O Problema da Criação do Conhecimento no Ensino do Direito; 5 A Prisão da Hermenêutica no Direito Tributário e o seu Ensino; 6 Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O fenômeno jurídico é uma instigante manifestação da experiência humana, não apenas porque serve de repositório dos valores da sociedade que o edifica, mas também porque, ao ser erigido, ganha uma autonomia que o torna uma entidade distinta, quase que como o seu fiscal.

Desta forma, o Direito carrega consigo uma força simbólica tão intensa que faz com que se permita até se auto-explicar, a servir de própria referência interpretativa.

O presente texto é uma crítica a esta construção tautológica do fenômeno jurídico: uma crítica específica aos limites interpretativos do Código Tributário Nacional.

A Lei nº 5.172/66, o nosso Código Tributário Nacional, criou um micro-sistema interpretativo-integrativo das normas tributárias, por força do art. 107 do CTN, cerceando a liberdade do operador do Direito, impedindo que outros métodos (ou perspectivas) interpretativos, pudessem arejar o abafado (e quase hermético) universo deste ramo do direito.

Neste texto, sobretudo, buscou-se tratar das possibilidades, ou seja, romper um paradigma que há mais de 40 anos impede que o direito tributário brasileiro possa vir a caminhar para outras rotas, em busca de outros fundamentos, que possam inspirar o aplicador do Direito quando vier a manejar as normas tributárias. Pretendeu-se vislumbrar possibilidades quando da aplicação do Direito, sobretudo quanto às possibilidades no ensino jurídico, quando a criatividade e as alternativas surgidas em sala de aula, poderão gerar frutos nos discentes, no momento que estiverem atuando como operadores do Direito.

Inicia-se o texto tratando do erro e da ilusão no estudo do Direito, sob a perspectiva de Edgar Morin, a fim de se deduzir, ao final, que não se pode aceitar uma racionalização cega quando da explicação dos fenômenos jurídicos.

A seguir passa-se a estudar a natureza simbólica do Direito: analisa-se o direito como uma forma de controle social, verificando a sua natureza e como este se realiza por meio do poder simbólico, vislumbrando o Direito enquanto fenômeno social que tem por escopo o controle comportamental de uma coletividade em busca da manutenção do status quo.

E, à luz dos ensinamentos de Bourdieu, faz-se reflexões acerca do monopólio do Estado da jurisdição e, portanto, da interpretação definitiva do direito, apontando suas razões e consequ?ências.

Em seguida, será apresentada a crítica à teoria do conhecimento científico dominante, na perspectiva de Santos, com a finalidade de, a partir dos elementos desta crítica, demonstrar que não é possível em sala de aula se construir um válido conhecimento científico sem que haja uma atuação ativa do discente.

Por fim, pretende-se revelar que a tautológica construção do Código Tributário Nacional nada mais representa que uma simbólica forma de cercear a liberdade hermenêutica, edificada em um outro contexto histórico, para finalidades que se perderam no tempo e que, sob égide da Charta Magna de 1998, não seria mais possível se tolerar esta restrição, então decorreria a possibilidade de que, tanto o operador do Direito, quanto o professor, possa vir a superar estas limitações apresentadas pelo CTN.

1 ERRO E ILUSÃO NO DIREITO

Estudar o fenômeno jurídico é uma atividade que exige, daquele que pretende realizá-la, não apenas o conhecimento do direito-que-aí-está, mas a possibilidade de compreender o Direito além dos seus próprios limites.

No campo das aparências, o Direito, por diversas vezes, busca se apresentar como um universo fechado, com sua tecnologia lingu?istica própria e que contém os elementos necessários (e suficientes) para fornecer sua própria compreensão. Isto é, tratar-se-ia de um espaço do conhecimento humano em que suas conclusões e “verdades” seriam retiradas das relações lógica entre os seus próprios elementos: uma estranha tautologia científica.

Para ilustrar tal situação, poderia-se imaginar uma hipotética sala de aula em que um aluno, chamado Sócrates, iria formular uma pergunta a um professor que estaria ministrando aula de, por exemplo, Direito Tributário: – O que seria uma “lei”?

Em uma resposta bastante direta, o professor poderia afirmar que se trata de uma espécie legislativa prevista no art. 59 da Constituição Federal, podendo se apresentar como lei ordinária ou lei complementar (art. 68 da Constituição), mas que, em ambos os casos, introduziriam normas no nosso ordenamento que obrigariam as condutas dos sujeitos de direito (art. 5º, II, da Constituição).

Tal resposta, evidentemente, parte de um pressuposto, a de que o conceito de “lei” pode ser extraído apenas da Constituição Federal. Verifica-se que se trata de uma resposta dogmática, que se fundaria apenas na lógica lingu?ística, semântica, isto é, na tecnologia do próprio Direito.

Note-se que a primeira resposta apresentada não é uma verdade absoluta, mas um discurso retórico, no sentido que se pretende, pelos argumentos apresentados, convencer o discente Sócrates que as conclusões são verdadeiras, à luz do direito-que-aí-está.

Importante atentar para as palavras de Santos (1989, p.96-97) sobre a verdade científica, cuja natureza não coincide com a idéia de revelação, mas com persuasão:

[…] a verdade é a retórica da verdade. Se a verdade é o resultado, provisório e momentâneo, da negociação de sentido que tem lugar na comunidade científica, a verdade é intersubjetiva e, uma vez que essa intersubjetividade é discursiva, o discurso retórico é o campo privilegiado da negociação de sentido. A verdade é, pois, o efeito de convencimento dos vários discursos de verdade em presença. A verdade de um discurso de verdade não é algo que lhe pertença inerentemente, acontece-lhe no decurso do discurso em luta com outros discursos num auditório de participantes competentes e razoáveis […]

Retornado à hipotética sala de aula: apresentada tal explicação pelo professor, poderia o aluno Sócrates solicitar a palavra e a permissão para formular novas perguntas. Verificando o professor que haveria tempo e que ele não estaria “atrasado” com o “conteúdo da disciplina”, a permissão seria concedida.


Tal aluno, empolgado, então se “liberta” e indaga: “então “lei” é só o que a Constituição afirma que é “lei”? Pode existir outra espécie legislativa que tenha a mesma força de “lei”, mas que não seja “lei”? Medida Provisória (art. 62 CF) tem “força de lei”, mas não é “lei”, como isto é possível? “Lei” obriga, mas “decreto” não obriga? Qual a essência da distinção entre “lei” e “decreto”? O que é que a “lei” tem, em sua essência, que permite a esta espécie legislativa criar obrigações para os indivíduos? Existe alguma essência no conceito de “lei” que não seja jurídico? A coerção e imperatividade da “lei” advém do Direito ou do Poder? O Poder interfere no Direito ou o comanda?”

Perplexidade: tais reflexões, que são todas pertinentes com o tema, inicialmente, são uma mera decorrência da busca de concatenação entre os conceitos jurídico-constitucionais, mas, a seguir, evoluem para questionamentos que transcendem o próprio Direito.

Sob uma visão dogmática, algumas destas perguntas não possuem resposta no campo do Direito, já que apresentam problemas que buscam respostas em outros ramos do conhecimento. As respostas que poderiam ser oferecidas ao aluno Sócrates seriam aquelas que apenas poderiam ser obtidas pela utilização lógica da tecnologia jurídica.

Evidentemente que tal perspectiva não é aceitável, pois o fenômeno jurídico não pode ser resumido ao direito-que-aí-está. O Direito não é suficiente para se auto-explicar, pois não seria possível construir uma Ciência do Direito fundada, tão-somente, nos elementos dados pela própria tecnologia jurídica, sob pena de nada desvendar, nada responder.

Poder-se-ia, portanto, concluir que aplicar a racionalidade ao estudo do fenômeno jurídico nos levaria a admitir, necessariamente, que as respostas aos questionamentos jurídicos não poderiam se adstringir apenas à tecnologia lingu?ística do Direito, ou seja, não pode se admitir que o estudo jurídico seja hermético, fechado sobre si próprio.

Com perspicácia, Morin (2000, p.23) analisa este problema e dele extrai o princípio da incerteza racional, ao fazer uma distinção entre racionalidade construtiva e a racionalização:

A racionalidade é a melhor proteção contra o erro e a ilusão. Por uma lado existe a racionalidade construtiva que elabora teorias coerentes, verificando o caráter lógico da organização teórica, a compatibilidade entre as idéias que compõem a teoria, a concordância entre suas asserções e os dados empíricos aos quais se aplica: tal racionalidade deve permanecer aberta ao que contesta para evitar que se feche em doutrina e se converta em racionalização [que, por sua vez] se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta.

Por esta razão, não poderia o conhecimento científico arvorar-se como um reflexo puro e simples da realidade. O método científico moderno não se basta para produzir a explicação da realidade: “A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia.” (SANTOS, 1989, p.83)

A incerteza, deve ser considerada como algo intrínseco ao conhecimento humano e, portanto, à própria ciência. Note-se que tal incerteza é intrínseca ao fenômeno jurídico, tendo em vista que este é edificado sobre a linguagem, sobre o ato comunicativo, e que, essencialmente, não se pode construir para a Ciência do Direito um método de estudo do seu objeto que o admita como inalterável, imutável, estático.

Inegavelmente, o Direito somente conteria esta incerteza, porque na verdade ele poderia ser compreendido como símbolo, sobre o qual seria admitida a aplicação da hermenêutica, tema que será objeto de estudo no próximo capítulo.

2 O DIREITO COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL

2.1 O direito é um fenômeno social: não se pode conceber um Direito sem sociedade, ou uma sociedade sem normatização, que venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar a condutas dos indivíduos e dos grupos que lhes integram. Seria possível até afirmar que, para que exista sociedade, faz-se necessário a existência do Direito, sendo este, portanto, uma necessidade daquela:

A sociedade sem o Direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O Direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o direito representa um grande esforço, para adaptar o mundo exterior às suas necessidades da vida.(NADER, 1994, p.298)

Evidente que não se fala aqui de que qualquer sociedade, para existir, terá necessariamente que possuir uma codificação (fenômeno tipicamente ocidental) para reger a sua vida social, mas tal coletividade deverá estar regida por um conjunto de normas que lhe conceda estabilidade e que permita o desenvolvimento de atividades econômicas e relativa segurança tanto aos indivíduos, quanto às relações surgidas entre estes, a fim de evitar que a força (individual), por si só, seja o único elemento que possa definir o resultado das querelas da sociedade.

Presume-se que os indivíduos, de uma dada sociedade, ao edificarem o Direito que irá reger as suas relações sociais e limitar a satisfação das suas necessidades, aceitam como legítimo tanto o poder que cria as normas, quanto válidas (e também aceitáveis) os conteúdos destas, pois, do contrário existiria, no mínimo, um contexto de subversão política, já que, estaria, em questionamento, a própria obediência ao estatuto social criado pelo poder político constituído.

De certa forma, o Direito estrutura-se segundo a forma como uma sociedade se enxerga, trazendo consigo uma forte característica simbólica, em outras palavras, a forma como a sociedade edifica seu direito, cristalizando normas e positivando princípios, que, na verdade fazem com que este espelho seja um reflexo daquilo que ela é, ou daquilo que ela busca esconder de si mesma:

[…] Ou seja, as sociedades são a imagem que têm de si vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico. São os espelhos que, ao criar sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida em sociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu próprio terror. […] A ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão entre os mais importantes espelhos das sociedades contemporâneas. O que eles reflectem é o que as sociedades são, Por detrás ou para além deles, não há nada. (SANTOS, 2000, p. 45-46)

Pelo que foi apresentado, para a continuação deste ensaio, se faz necessária a formulação de questões acerca de alguns aspectos: a) Se o Direito é um fenômeno social, como poderia este controlar a própria sociedade que o engedrou? b) Qual o fundamento de legitimidade para que o Direito possa se impor sobre uma determinada sociedade? c) Como o Estado consegue impor um Direito sobre uma sociedade?


2.2 O primeiro ponto de análise deve ser a compreensão da construção da “Ciência do Direito”

Ora, a construção de uma ciência jurídica, teria, por óbvio, uma faceta simbólica manifesta: a de apresentar ao espectador uma aparência de lógica, de autonomia, de sistema fechado, que serviria para isolar (para fins de estudo?) o fenômeno jurídico dos demais eventos sociais, ou das demais disciplinas, de modo que se pudesse construir e compreender o Direito, pelos seus próprios princípios, nos seus próprios termos. Bourdieu (2007, p.209) assim enfrenta o tema:

A ciência jurídica tal como concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna.

Portanto, construir uma teoria pura, para o fenômeno jurídico, seria algo “natural”, dentro desta lógica da absoluta autonomia da ciência jurídica, tendo em vista que, se o direito constitui um sistema que se auto-explica, deveria conter categorias lógicas próprias. Bourdieu (2007, p. 209) tece interessante crítica sobre a construção de uma teoria pura para o Direito:

A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento.

A respeito do tema, deve ser lida também uma interessante crítica de Maman (2003, p.45) a esta construção kelseniana:

Muito mais para explicar, do que para compreender o fenômeno jurídico, constroem-se modelos teóricos que são pura ficção científica. Veja-se Kelsen e sua pretensa neutralidade axiológica e epistemológica. A neutralidade axiológica já não era colocada bem mesmo no Círculo de Viena. E a compreensão da realidade jurídica em termos de força material organizada está no neokantismo. A norma fundamental como pressuposto jurídico leva ao positivismo, que não é senão o represamento da decisão. Assim, toda a construção de Kelsen é uma construção dogmática que deve ser interpretada silogisticamente, segundo uma lógica superada […].

Kelsen lisonjeia o comodismo dos aplicadores do direito, com a lei, numa interpretação racional, abstrata, pré-moldada, podemos resolver todos os problemas. Abre caminho para a cibernética e a solução do computador.

Esta concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que almeja apenas treinar/instruir “técnicos jurídicos”.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam submetidos àquelas normas.

Bourdieu (2007, p.242) explica que esta construção de um discurso homogêneo para a “ciência jurídica” advém inclusive de formação jurídica também homogênea que os operadores do direito adquirem: uma tecnologia que lhes permitirá, pela vias do direito, trabalhar com os conflitos sociais:

A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.

As normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos seus movimentos. Ao isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo.

2.3 Portanto, o Direito procura construir uma simbologia própria para, pela sua utilização por operadores do direito “aptos” e “treinados”, que seja possível controlar e manter, dentro das expectativas do aceitável, os potenciais conflitos sociais que possam emergir das diversas interações entre os agentes sociais.

O Direito cria um discurso, baseado na forma, a fim limitar não apenas a atuação de agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas, mas para tanto, para conseguir manter a eficácia destas regras (ou princípios), faz-se necessária a adesão daqueles que irão suportar o seu peso, e isto se concretiza pela perda do discernimento (dos destinatários das normas), do seu potencial para a questioná-las ou delas discordar, por não estarem “tecnicamente aptos”:

É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais cerca quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento.(BOURDIEU, 2007, p.243)

SANTOS, de forma brilhante, cria uma imagem, uma metáfora, muito forte para demonstrar as consequ?ências este distanciamento entre o Direito e a sociedade que o engedrou: o Direito seria uma espelho da sociedade, refletindo suas estruturas, seus valores, seus ideais, entretanto, tal espelho ganha “vida”, ou seja, a imagem passa a ser uma estátua viva, autônoma em face da coletividade que ela representa. Seria como se o Davi, de Michelangelo, ou a sua Pietá, passassem a exigir que a beleza humana fosse aferida pelos seus parâmetros, pela sua irreal estética:

[…] os espelhos sociais, porque são eles próprios processos sociais, têm vida própria e as contingências dessa vida podem alterar profundamente a sua funcionalidade enquanto espelhos. […] Quanto maior é o uso de um dado espelho e quanto mais importante é esse uso, maior é probabilidade de que ele adquira vida própria. Quando isto acontece, em vez de a sociedade se ver reflectida no espelho, é o espelho a pretender que a sociedade a reflicta. De objecto do olhar, passa a ser, ele próprio, olhar. Um olhar imperial e imperscrutável, porque se, por uma lado, a sociedade deixa de ser reconhecer nele, por outro não entende sequer o que o espelho pretende reconhecer nela. É como se o espelho passasse de objetcto trivial a enigmático super-sujeito, de espelho passasse a estátua. Perante a estátua, a sociedade pode, quando muito, imaginar-se como foi ou, pelo contrário, como nunca foi. Deixa, no entanto, de ver nela uma imagem credível do que imagina ser quando olha. A actualidade do olhar deixa de corresponder à actualidade da imagem.

Quando isto acontece, a sociedade entra numa crise que podemos designar crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira do terror de ver refletida nenhuma imagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado.. Entre os muitos espelhos das sociedades modernas, dois deles, pela importância que adquiriram, parecem ter passado de espelhos a estátuas: a ciência e o direito.(SANTOS, 2000, p. 45-46)


2.4 Pelo distanciamento dos seus destinatários o Direito busca exercer o controle social. Como se daria este distanciamento? De modo brilhante, eis a percepção de Bourdieu (2007, p. 215-216):

[…] A maior parte dos processos lingu?ísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em um sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado [são] próprios para exprimirem a generalidade e atemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético […]

Ou seja, na construção das normas jurídicas, pretende-se apresentar aos seus destinatários um aspecto de impessoalidade e abstração, que, em verdade, apenas existiriam na edificação do discurso cristalizado na lei e que serviriam para, diante do leitor/súdito da norma, transmitir-lhe a crença de que a sua natureza (ou a sua finalidade) coincidiria com a forma como foi redigida. Neste sentido, FERRAZ JR. (2008, p. 45-46):

[…] o jurista da era moderna, ao construir os sistemas normativos, passa a servir aos seguintes propósitos, que são também seus princípios: a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível. Por meio de leis, fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental, que deve ser captada como tal. As lei tem um caráter formal e genérico, que garante a liberdade dos cidadãos no sentido de disponibilidade. Nesses termos, a teoria jurídica estabelece uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria bordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítimas da utilidade privada. Sobretudo, esboça-se uma teoria da regulação genérica e abstrata do comportamento por normas gerais que fundam a possibilidade da convivência dos cidadãos.

Pelo discurso, pretende-se construir um mise en scène, desviando a atenção do leitor/súdito da norma do verdadeiro desiderato do comando, gerando neste a crença na impessoalidade e neutralidade da norma jurídica:

Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização […] que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto há séculos. (BOURDIEU, 2007, p.216)

Logo, para exercer o controle da sociedade, não basta apenas deter o monopólio da produção do direito, sendo necessário também que haja uma limitação ao ato de interpretar as normas jurídicas.

Se o discurso cristalizado no direito positivo busca o controle da sociedade, necessário analisar, a seguir, quem detém o monopólio sobre a atuação de dizer o Direito, de dar a última palavra acerca da relação entre os fatos e as normas: o atuar do Estado-Juiz.

3 OS LIMITES PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

3.1 O direito positivado, cristalizado em normas escritas, que estão corporificadas nas espécies legislativas, podem, sem dúvidas, subverter o próprio sistema. Como poderia isto acontecer?

A construção do direito passa necessariamente da atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural como a nossa a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Evidentemente que existe um risco (decorrente de insegurança) se o conteúdo das normas jurídicas forem criados livremente pelos seus próprios intérpretes. Aí reside a insegurança jurídica, que não pode ser tolerada, sob pena de que, pela ausência de um dos pilares que justificam a sua existência, venha o Direito perder a sua legitimidade em face dos seus súditos.

Por esta razão, para limitar a pluralidade de interpretações, o Direito limita: (a) o espaço em que este debate se realizará; (b) os atores legitimados para validamente realizar a interpretação das normas; e (c) a sua duração, concedendo ao Estado-Juiz a última palavra sobre o tema debatido.

3.2 Bourdieu (2007, p. 229), de forma brilhante, percebe que este debate jurídico realizado sobre a válida interpretação das normas jurídicas deve ocorrer em um campo próprio:

O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflicto directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as lei escritas e não escritas do campo- mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei […].

E mais:

A constituição do campo jurídico é um princípio de constituição da realidade […]. Entrar no jogo, conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia violência física e às formas elementares de violência simbólica. (BOURDIEU, 2007, p. 233)

3.3 Ao adentrar neste campo jurídico, os litigantes renunciam à possibilidade de solução própria individual do litígio, conferindo o poder de encontrar a interpretação adequada, ao caso concreto, para o Estado-Juiz, aceitando, portanto, as “regras do jogo”, para que possam ter acesso, de forma legítima, ao bem da vida que está sob disputa, mas, em regra, deverão as partes atuar por meio de profissionais habilitados para tanto:


O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele (pelo recurso da força ou a um árbitro não oficial ou pela procura directa de uma solução amigável), ao estado de clientes de profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que garante o domínio dos meios vê recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo. (BOURDIEU, 2007, p. 233)

3.4 O Direito não admite a eternização do debate e da disputa jurídica acerca dos bens da vida, pelo fato que, se assim ocorresse, a insegurança permearia as relações humanas, tendo em vista que os conflitos não encontrariam fim, já que seria possível, aos litigantes, sempre reiterar (ou renovar) seus pontos de vista. Para tanto, ao Estado-Juiz, é concedido o poder de pôr termo às disputas, apresentando a interpretação definitiva do fato, à luz do Direito:

Confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo tempo cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto solenemente enunciado de uma “autoridade” socialmente mandatada, o pliro representa uma encenação paradigmática da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem impor-se ao reconhecimento e, deste modo realizar-se, está em jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de divisão […], portanto, de distribuição legítima. (BOURDIEU, 2007, p. 236)

Ou seja, o monopólio da jurisdictio, de interpretar o mundo, está contido nas mãos do Estado, que em regra não delega a particulares os seus atos de jurisdição, como fica bem evidente no tipo “Exercício ilegal das próprias razões” (art. 350, do Código Penal), em que a parte, julga e age, em busca da concretização do direito que entende ser seu. Neste sentido Bourdieu (207, p. 236-237) aprofunda o tema:

O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negociações a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publicamente o que elas são na verdade, em última instância, pertence à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim do insulto lançado por um simples particular que, enquanto discurso privado – idios logos – , que só compromete o seu autor, não tem qualquer eficácia simbólica; ele representa a forma por excelência da palavra autorizada, palavra pública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes enunciados performativos, enquanto juízos de atribuição formulados publicamente por agentes que actuam como mandatários autorizados de uma colectividade e constituídos assim em modelos de todos os actos de categorização […], são actos mágicos que são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem.

E conclui afirmando que o Direito seria o poder simbólico por excelência (LYRA FILHO, 2006, p.8), já que controla a sociedade, moldando os rumos da história:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas.

O direito é a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este. (BOURDIEU, 2007, p.237)

Se o direito busca criar os próprios limites para o exercício da limitação da interpretação do fenômeno jurídico, a fim de controlar a insegurança que poderia surgir no próprio sistema, reprimindo a atuação dos particulares, delegando a palavra final para o Estado-Juiz, estas características ficam mais evidentes quando a própria lei limita o próprio intérprete, como ocorre com o art. 111 do CTN:

Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II – outorga de isenção;

III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

Por este dispositivo, quando da aplicação de determinados tipos de normas tributárias, o operador do Direito estaria adstrito, tão-somente, a um único e específico tipo de interpretação. Entretanto, em verdade, tal norma jurídica, que como se nota, não estabelece nenhuma sanção, atuaria como um símbolo que contaminaria todo o Direito Tributário, cerceando a liberdade interpretativa e cristalizando este ramo do Direito, inclusive no que se refere ao ensino jurídico.

4 O PROBLEMA DA CRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NO ENSINO DO DIREITO

4.1 Desde o século XVI, após o Renascimento, a civilização ocidental viveu à sombra de um paradigma que alcançou seu auge no Iluminismo e no século XIX, mas, no nosso atual contexto histórico, as suas construções científicas nada mais são que “uma pré-história longínqua”, pois chegamos à pós-modernidade, que traz consigo a idéia de superação de um modelo cognoscitivo.

Nas palavras de SANTOS (2005, p.21-22):

Os modelos de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. […] Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

Daí se conclui que, no paradigma científico dominante, o que não é mensurável não seria (cientificamente) relevante, tendo em vista que, para se conhecer a realidade, faz-se necessário reduzir a complexidade a modelos simples, a fim de detectar os elementos essenciais de cada objeto, definindo as suas principais características, com o espeque de dividi-los e classificá-los.


4.2 Ora, edificado este paradigma pela ciência moderna, Santos identifica e demonstra que o mesmo está em crise, vislumbrando-se a ascensão de um novo paradigma científico: “A crise do paradigma [científico] dominante é o resultado interactivo de uma pluralidade de condições [dentre elas] o aprofundamento do conhecimento que permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda [a própria ciência].” (SANTOS, 2005, p.41)

Em verdade, vive-se uma “perda de confiança epistemológica”, isto é, duvida-se se a ciência clássica, seus métodos e a própria capacidade de explicar a realidade, como foram edificadas, desde o século XVI, ainda fornecem respostas válidas para trazer explicações para o mundo em que se vivia.

O conhecimento científico buscou, pelo seu discurso e pela sua construção teórica, arvorar-se como espelho da realidade, isto é, a própria ciência nada mais seria que um reflexo da realidade, já que a descreveria e a explicaria, por meio da sua linguagem.

4.3 Se o Direito não é uma realidade objetiva, não se pode conceber que a transmissão do conhecimento jurídico, dentro de um ambiente de sala de aula se dê por meios que suprimam a criatividade interpretativa do aluno.

Ao contrário, na sala de aula, em um ambiente em que se pretenda transmitir o conhecimento jurídico, não basta apenas expor o direito positivo (direito-que-aí-está), deve-se construir o Direito, deve-se edificar o seu conteúdo.

Portanto, a aquisição do conhecimento jurídico é uma atividade realizada pelo sujeito, logo a sua subjetividade e a qualidade das relações existentes em um ambiente de sala de aula são dados relevantes para tanto.

A construção do direito passa necessariamente pela atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural (como a nossa) a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Surgem então os extremos da dogmática jurídica, que desembocam na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que pode ser considerada como uma das grandes obras que influenciou o pensamento jurídico do século XX, pela qual se pretendia construir uma teoria do direito que não pode ser “contaminada” por elementos que não fossem jurídicos:

O esforço notável de Hans Kelsen de constituir uma ciência do direito livre de toda ideologia, de toda intervenção de considerações extra-jurídicas, e que se concretizou pela elaboração de sua teoria pura do direito (Reine Rechtslehre), foi talvez o fato que suscitou mais controvérsias entre os teóricos do direito do último meio século. As teses apresentadas por esse mestre inconteste do pensamento jurídico, com a clareza e a força de convencimento que caracterizam todos os seus escritos, colocaram em questão tantas idéias comumente admitidas, atingiram tantas consequ?ências paradoxais — das quais a mais escandalosa diz respeito à concepção tradicional da interpretação jurídica, bem como ao papel do juiz na aplicação do direito –, que nenhum teórico do direito poderia nem as ignorar nem abster-se de posicionar-se a seu respeito.

A ciência do direito, como conhecimento de um sistema de normas jurídicas, não pode constituir-se, segundo nosso autor, senão excluindo tudo o que é estranho ao direito propriamente dito. O direito, sendo um sistema de normas coercitivas válido em um Estado determinado, pode ser distinguido nitidamente, por um lado, das ciências que estudam os fatos de toda espécie, o que é e não o que deve ser (o Sein oposto ao Sollen), e, por outro, de todo sistema de normas diverso — de moral ou de direito natural — com o qual gostaríamos de confundi-lo ou ao qual gostaríamos de subordiná-lo. Uma ciência do direito não é possível, segundo Hans Kelsen, a não ser que seu objeto seja fixado sem interferências estranhas ao direito positivo. Eis porque a teoria pura do direito se apresenta como a “teoria do positivismo jurídico”.(PERELMAN, 2008)

Tal concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando-se com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que busca apenas formar “técnicos jurídicos”, como já exposto.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam sendo submetidos às normas. Ora, as normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos movimentos destes agentes sociais.

Ao pretender isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir, para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo. A essência desta separação entre direito e agente social se encontra na concepção de que o estado seria algo abstrato, distante da sociedade: “O conceito de Estado, enquanto entidade abstracta, separada quer do governante quer do governado, é o resultado de um longo percurso conceptual que remonta à recepção do direito romano nos séculos XII e XIII.”(SANTOS, 2000, p.162)

Ora, se o Estado, fonte “única” e “central” da produção normativa, de criação do Direito, encontra-se isolado da sociedade que por ele é submetida, por óbvio, as normas jurídicas que dele provêm também estariam distantes desta sociedade e seriam suficientes para reger a vida civil do civites, do cidadão. Esta é a perspectiva dogmática. Seria ela válida? Óbvio que não. Eis um exemplo manifesto:

O Código Civil (Lei nº 10.406/2002) tem por pretensão reger as relações civis no âmbito do território brasileiro. Pelo nosso código, apesar de vigorar o princípio da socialidade, nele ainda se encontra a idéia de que o condomínio é uma exceção a regra de que a propriedade não pode ser compartilhada, logo, o caminho natural, de qualquer condomínio, seria a sua dissolução (art. 1320 e 1321 do Código Civil/2002).

Tal lógica possui substrato na concepção capitalista de propriedade, mas, talvez, não possua sentido em uma sociedade quilombola, ou em uma sociedade indígena, em que as normas jurídicas dominicais do nosso Código Civil não possam ser aplicadas pelo fato de que não encontrariam o devido substrato social para sua incidência, sob pena de destruição da própria vida comunitária e da própria autonomia cultural dos agentes sociais.

Fica evidente que, para a construção de um conhecimento jurídico válido para a realidade em que vivemos, é necessário que o discente seja agente do processo educacional, porque ele também é agente na construção do fenômeno jurídico.

Neste mesmo sentido, Freire (1996, p.47):

Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua própria produção ou para a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento


Portanto, o papel para construção de um novo ensino jurídico seria a pesquisa (em substituição à aula), já que, nas palavras de Demo (2006, p.6), ela seria “a base da educação escolar”, pois ela possibilitaria interpretações próprias, com a utilização da vivência do aluno, com a reconstrução do conhecimento, que é um processo complexo, a partir do senso comum, com a real compreensão do que se vislumbra.

Pela pesquisa, seria possível fornecer ao discente técnicas para reconstruir o conhecimento jurídico, possibilitando que o aluno passe a ser agente na construção do próprio fenômeno, ou seja, operador do direito e não apenas um mero técnico, que conhece as normas, mas não constrói os seus conteúdos.

5 A PRISÃO DA HERMENÊUTICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO E O SEU ENSINO

5.1 O Código Tributário Nacional (CTN), inegavelmente, é o melhor diploma legislativo fiscal que o Brasil já possuiu. A Lei nº 5.172/66, criada para regulamentar os dispositivos inseridos pela Emenda constitucional nº 18/65, à Constituição de 1946, deu precisos contornos ao Sistema Tributário Nacional.

Fundado na idéia de que o tributo seria uma relação obrigacional pecuniária, instituída por lei, que vincularia o indivíduo e o Estado, o CTN buscou assegurar deveres e direitos recíprocos para as partes, afastando do sujeito passivo tributário a absoluta sujeição patrimonial, já que este teria direitos que poderiam ser opostos perante o detentor do poder de tributar.

Entretanto, desde a criação do CTN, já se vão mais de 40 anos. É natural que ocorra o fenômeno do ancilosamento normativo, isto é, as normas jurídicas começam a caducar, tendo em vista a transformação do substrato social que ampara tais normas, surgindo lacunas ontológicas no sistema. De fato, desde a década de 1960, o Brasil transformou-se muito.

O CTN, criado pelo governo militar de Castello Branco (1964-1967), sob a Constituição de 1946, pretendia apresentar conceitos nucleares para as relações tributárias, em um país ainda eminentemente agrário, em que as relações empresariais eram regidas pelos atos de comércio do Código Comercial de 1850 e pelas relações civis, pelo liberal Código de 1916.

O Brasil de 2009 quase que não consegue imaginar a década de 1960, pois além de ter sofrido uma profunda alteração social, a partir da década de 1970, com o fenômeno da urbanização massiva, as relações empresariais e civis também evoluíram, com a tecnologia das comunicações (a partir da década de 1980), permitindo a consumação de milhões de contratos, pelo uso da informática.

Sem dúvidas, a principal mudança introduzida pelo CTN foi a de possibilitar que surgisse uma espécie de arquétipo tributário, isto é, que os tributos possuíssem uma uniformidade em todo território nacional, sendo regidos por institutos que seriam sempre similares por todo o país.

A fim de robustecer esta identidade, esta padronização, para todos os entes federativos, o CTN criou o que poderia se denominado de micro-sistema hermenêutico para as normas tributárias (arts. 107 a 112 do CTN) fazendo com que estas somente pudessem vir a serem interpretadas à luz do que o próprio Código estabelecesse.

5.2 Como já exposto, o Código Tributário Nacional (CTN), Lei nº 5.172, de 1966, inseriu, no ordenamento jurídico brasileiro, uma norma que buscava limitar a atuação dos operadores do direito no momento em que estavam a analisar o alcance das normas previstas na legislação tributária: o art. 111 do CTN.

Tal dispositivo legal busca restringir a atividade interpretativa do operador do direito, sobretudo em temas que envolvam causas de suspensão (moratória, depósitos do montante integral etc, como previsto no art. 151 do CTN) e exclusão do crédito tributário (isenção e anistia, nos termos do art. 175 do CTN).

Havia uma justificativa para criação desta norma, já que o Código Tributário Nacional (CTN), no seu nascedouro, teve por meta atuar como uma meta-lei, transcendendo às legislações estaduais e municipais, conferindo um padrão geral (um standard) para criação dos tributos (e da legislação tributária em geral).

O art. 111 do CTN, portanto, dentro deste contexto, buscava impedir que os órgãos administrativos e judiciários, por meio de normas interpretativas, viessem a quebrar este padrão, instituindo, por meio de meras interpretações, benefícios fiscais que não estavam expressamente previstos em lei. Em suma, buscava-se limitar a liberdade interpretativa do operador do Direito, seja o Estado-Juiz, seja a autoridade tributária, com a finalidade, sobretudo, de se evitar possível lesão aos cofres públicos (pela perda de recitas), bem como agressão à isonomia (com a concessão de benefícios fiscais particulares).

Entretanto, o que deveria ser uma limitação pontual, pela própria natureza simbólica do direito, tornou-se quase que uma proibição genérica que passou a cercear a liberdade interpretativa no âmbito de todo Direito Tributário, engessando, por mais de quatro décadas, a liberdade do Estado-Juiz de dizer o direito no caso concreto, inclusive construindo regra jurídica mais equânime para cada situação.

Agravando-se tal situação, esta limitação interpretativa, associada à limitação de integração da legislação tributária, prevista no art. 108 do CTN, fez com que, no ensino do direito tributário, fossem criadas amarras que impedem uma evolução interpretativa da legislação, reproduzindo-se, portanto, a mesma forma de se estudar e de se compreender o Direito Tributário, desde a década de 1960.

É nesse contexto, que surge a crítica à manutenção desta ilusória e simbólica limitação, que serve, mais do que tudo, para a reprodução de um status quo fiscal baseado, portanto, em apenas uma interpretação literal da lei tributária.

Pode-se afirmar que o art. 111 do CTN se apresenta para a estrutura do Direito tributário quase como o Código de Napoleão de 1804, que impedia a livre interpretação dos seus dispositivos, a fim de evitar uma destruição do sentido original da própria lei.

Em verdade, tal dispositivo, sem dúvidas, se apresenta como um símbolo que enclausurou todo o direito tributário, seja quando da interpretação do CTN e da legislação infraconstitucional, seja porque tais regras interpretativas afastam, no campo da aplicação das normas constitucionais (princípios e regras) do Sistema Tributário Nacional, os demais princípios norteadores da nossa Cartha Magna.

Em verdade, pode-se afirmar que este micro-sistema hermenêutico tributário aprisionou inclusive o próprio estudo e ensino do Direito tributário: se a interpretação e a integração do direito tributário somente podem ser realizadas sob a égide dos dispositivos presentes entre os arts. 107 e 112 do CTN, porque permitir novos olhares sobre este ramo do Direito?

Muito interessante seria se, por exemplo, o CTN pudesse ser interpretado à luz da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) que representa o alicerce sobre o qual se ampara toda a República Federativa do Brasil.

Como poderiam ser as conclusões que surgiriam deste tipo de interpretação? Em um exercício de imaginação, admissível concluir que seria possível: a) a dispensa do pagamento de tributo, pela aplicação da equ?idade, quando tal cobrança acarretasse em impossibilidade de se assegurar vida digna ao indivíduo (estaria, portanto, revogado o §2º, do art. 108, do CTN); b) ao Estado-Juiz pudesse ampliar a extensão das normas referentes à causa de exclusão do crédito tributário (isenção e anistia), por meio de aplicação de regras interpretativas, ou, até mesmo, por equ?idade, quando viessem conferir vida digna ao indivíduo, obtida por meio da valorização do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF); e c) ao Estado-Juiz se libertar das amarras hermenêuticas que o prendem, em face da livre convicção motivada das suas decisões (art. 93, X, CF), sendo possível que, por exemplo, pudessem vir a ser construídos, caso a caso, meios de transação do crédito tributário, por conciliação judicial, para colocar fim aos litígios existentes, sempre que, nesta conciliação, estivesse presente a necessidade se assegurar a possibilidade de o indivíduo explorar de modo lícito sua atividade econômica, retirando sustento para a sua vida (e da sua família). Em outras palavras, as possibilidades são tantas, tão vastas, que não seria possível elencar todas, mas, seguramente, o Direito tributário que iria emergir seria algo absolutamente diferente, vivo, adaptado à realidade brasileira do Século XXI, no qual o Estado-Juiz poderia construir uma novo tipo de relação entre o ente tributante e o sujeito passivo da relação tributária.


6 CONCLUSÃO

O ato de educar, inegavelmente, é um processo lingu?ístico, no qual, a construção do conhecimento é uma atividade coletiva, já que nesta relação humana finalística faz-se necessário que haja uma interação e que nesta, tanto o docente, quanto o discente atuem como protagonistas.

O atuar como protagonista pressupõe que o discente terá de efetivamente interferir e, sobretudo, participar na construção do conhecimento que, em sala de aula, pretendeu ser transmitido.

Fica evidente que a experiência do discente, mesmo que fundada apenas em (um difuso) senso comum, deverá ser fonte da criação/transformação do conhecimento que, em sala de aula, é apresentado. Se se admitir que a experiência do aluno, mesmo que fundada apenas no senso comum, serve de ponto de partida para que o discente possa edificar novos conhecimentos, deve-se considerar que esta experiência deve servir, inclusive, como fonte autorizada para a realização da hermenêutica do próprio conhecimento científico.

Ora, se a interpretação é da essência do Direito, já que o direito é símbolo, construída sob formas lingu?ísticas, como demonstrado, não é possível que se admita limites à interpretação, mesmo que derivados de vedação legal, logo, nem o operador do Direito, nem o estudante estão tolhidos de enxergar o ordenamento jurídico pátrio se valendo da regra matriz do ordenamento jurídico brasileiro, a proteção da dignidade humana (art. 1º, III, da CF).

Portanto, não se pode tolerar, durante o processo educativo, da validade ou da aplicabilidade das normas de interpretação e integração da legislação tributária, previstas nos arts. 107 a 112 do CTN, sob pena de transformar o Direito Tributário em um estéril campo de atuação dos alunos (e futuros juristas), com a reprodução de uma ideologia de um outro contexto histórico da sociedade brasileira.

Necessária a transformação dos critérios de interpretação e de integração da legislação tributária (arts. 111 e 108, CTN), para permitir que o Estado-Juiz, quando da aplicação do Direito ao caso concreto, tenha a liberdade para moldar a estrutura tributária aos fundamentos da República, sobretudo o da dignidade humana e da valorização social do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, CF).

Se, como exposto, o Direito é um espelho da sociedade, cuja imagem tende a se transformar em estátua, quando este corpo social não detecta pontos de contato entre a sua realidade e as normas deste ordenamento, manter esta vedação à livre interpretação e integração do CTN representaria transformar o melhor diploma fiscal do Brasil em um imenso Colosso de Rodes, à espera de um terremoto que viesse a espalhar deus destroços: seria impelir o CTN a caducar, a perder contato com a realidade brasileira que necessita dele.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2003.

FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LYRA FILHO, Robert. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2006.

MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. Sâo Paulo: Quartier Latin, 2003.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya, revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho, São Paulo: Cortez, UNESCO, 2000.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

PERELMAN, Chaim. A teoria pura do direito e a argumentação. Disponível em: <http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/c1perelm.html>. Acesso em: 18 dez.2008.

PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v.4.

SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

_______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000, v.1.

________. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2005.


Artigo: A nova lei da AGU e a Constituição Federal

Artigo dos PFNs Heráclio M. de Camargo Neto e José Roberto M. Couto, publicado hoje no Valor Econômico, esclarece que a discussão sobre a nova lei da AGU vai muito além da questão corporativa.


A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas

André Emmanuel Batista Barreto Campello1

“[…] fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso.
As leis concernentes à escravidão (que não são muitas)
serão pois classificadas à parte, e formarão nosso Código Negro.”.

Augusto Teixeira de Freitas, na sua Consolidação das Leis Civis, de 1858.

RESUMO:

Trata-se de estudo que busca realizar uma análise da escravidão enquanto fenômeno jurídico durante o Império do Brasil, analisando-se o ordenamento jurídico brasileiro do referido período, em busca do regime jurídico do escravo e dos fundamentos legais da escravidão.

Palavras-chave: Escravidão. História do Direito. Brasil Império. Direito Constitucional. Direito Civil. Direito Penal.

1 INTRODUÇÃO

O fascínio de se realizar um estudo sobre história do direito reside no fato de que ao se adentrar na legislação de um ordenamento jurídico que não mais vigora, em verdade, se depara com a alma de uma sociedade que não mais existe.

Seria como reanimar, com um sopro, um ser que não mais vive, vendo como ele se move, quais são seus objetivos, seus valores, seus traumas, em suma, tentando enxergar o cotidiano do reanimado, pois, com o estudo das formas jurídicas, é possível compreender como uma sociedade tutela seus principais valores e como pretende defender e efetivar os direitos assegurados, que estão cristalizados nas normas jurídicas.

Sem dúvidas este ato de reconstrução da dinâmica jurídica é uma atividade artificial, já que os integrantes daquela sociedade, sobre a qual incidiam aquele ordenamento jurídico estudado, não se encontram presentes, logo, para o estudo do direito deve-se buscar a doutrina, a opinio iuris, de contemporâneos que pudessem nos explicar a dinâmica daquele Direito.

Portanto, ao se realizar um estudo sobre o direito que regia uma outra sociedade, que não mais existe, deve-se buscar interpretar a legislação, não com os nossos olhares, mas pelos padrões de compreensão daqueles que viveram sob aquele ordenamento.

Neste presente artigo pretende-se vislumbrar os marcos jurídicos do instituto da escravidão vigentes durante o Império do Brasil.

É manifesto que os aspectos sociológicos e econômicos da escravidão são em demasia abordados na farta bibliografia nacional sobre o tema, entretanto, por mais estranho que possa parecer, não é usual encontrar artigos que venham a trazer análise do ordenamento jurídico brasileiro vigente no século XIX, que amparava tal instituto.

A escravidão, muitas vezes, é enxergada apenas como um fenômeno fático, percebido sob nuances sociológicas ou econômicas, que simplesmente existia no Brasil do século XIX e que foi extinto por meio da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888.

Entretanto, a questão não é tão simples assim: a escravidão era amparada por uma legislação, que, inclusive a constitucionalizava, apesar de não se referir a ela diretamente (MORAES, 1966, p.372).

Neste artigo pretende-se apresentar ao leitor os marcos jurídicos e a sua dinâmica, a fim de ser possível conhecer o regime jurídico da escravidão, bem como analisar como a natureza jurídica do escravo, tanto no âmbito civil, quanto no âmbito penal.

O primeiro passo, sem dúvida é desvendar o mistério de como a Constituição de 1824 conseguiu conciliar a contradição existente na manutenção da escravidão e a sua natureza liberal, que inclusive trazia um grande rol de direitos fundamentais.

2 A ESCRAVIDÃO COMO INSTITUTO DO DIREITO VIGENTE NO IMPÉRIO DO BRASIL

2.1 A Escravidão: fundamentos constitucionais do instituto.

O fenômeno constitucionalista brasileiro não adveio de uma revolução, pois a Independência não significou uma ruptura com o passado brasileiro.

A independência do Reino do Brasil Unido a Portugal e Algarves (desde a chegada da família real portuguesa e da transferência da Corte para o Rio de Janeiro) não significou um rompimento das estruturas sociais e econômicas vigentes no período histórico anterior, mas uma manutenção destas, conferindo-se poderes políticos à aristocracia rural brasileira.

Pela sua perspectiva de manutenção do status quo, não haveria como a futura constituição do Império do Brasil eliminar subitamente o instituto jurídico da escravidão que servia de fundamento jurídico do sistema produtivo brasileiro.

Apesar disto, na Assembléia Constituinte de 1823 foi apresentada, por José Bonifácio, representação contra a escravatura, nos seguintes termos:

[…] sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso, e uma marinha florescente. Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade, e justiça; e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força, e poder entre as nações. (DOLHNIKOFF, 2005, p.51)

A escravidão não estava prevista, expressamente, em nenhum dos dispositivos da Constituição Imperial, de 1824, o que não poderia ser diferente, já que, pela sua inspiração liberal, não poderia tal Charta Magna, explicitamente trair a sua própria finalidade, como preconizado pela teoria constitucionalista, o resguardo das liberdades individuais.

Dispor sobre a escravidão em uma Constituição liberal seria uma contraditio in terminis, entretanto, o legislador constituinte encontrou uma saída: implicitamente, fez referência aos cidadãos brasileiros libertos, ou seja, que emergiram da capitis diminutio maxima, passando a gozar de seu status libertatis, mas sem alcançar o mesmo status civitatis dos cidadãos brasileiros ingênuos.

Tal conclusão pode ser ratificada pela leitura do art. 6º, §1º, da Constituição de 1824, que classificava os cidadãos brasileiros em duas categorias, os ingênuos e os libertos:

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.


Para perfeitamente definir estes termos jurídicos contidos na Charta imperial, importantíssima a leitura das lições do Conselheiro Joaquim Ribas (1982, p. 280):

Em relação ao direito de liberdade, dividem-se os homens em – livres e escravos, e aquelles se subdividem em – ingênuos e libertos. Chama-se ingênuo o que nasce livre; liberto o que tendo nascido escravo, veio a conseguir a liberdade.

Pode-se concluir que, se a própria Charta Magna imperial atribuía a condição de cidadãos apenas àqueles indivíduos que se apresentavam como ingênuos ou libertos era porque este diploma admitia, ao menos tacitamente, a existência de, no território do Império (art. 2º), haver a possibilidade de existência de outros indivíduos que não poderiam ser cidadãos, por não possuírem este status libertatis, ou seja, porque eram escravos.

A Constituição imperial não declarou a existência da escravidão, mas dela poderia se inferir a existência e a legitimidade deste instituto, pelo ordenamento jurídico brasileiro.

2.2 O estatuto constitucional do liberto

O art. 94, §2º, da Charta imperial reduz o liberto à condição de cidadão de segunda classe: apesar de os libertos serem cidadãos e, portanto, gozarem de liberdade, não poderiam ser eleitores (em um contexto do voto censitário), portanto, também estaria vedado o seu acesso a cargos públicos cujo requisito fosse a condição de eleitor:

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléia Parochial. Exceptuam-se.
I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
II. Os Libertos.

Deve-se frisar que há uma aparente antinomia entre o dispositivo em comento e o art. 179, XIV, da Charta imperial, já que se o liberto era um cidadão brasileiro, não poderia haver vedação dos cidadãos ao cargos públicos, nem criação de restrições, senão com fundamento nos talentos e virtudes de cada um: “XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.”.

Evidente que, à luz da Charta imperial, talentos e virtudes não seriam suficientes para suprir a perda do status libertatis (em algum momento da sua existência), que impossibilitaria que ex-escravos viessem a ocupar cargos públicos.

O Conselheiro Joaquim Ribas assim comenta o status do liberto, demonstrando que ele poderia retornar ao estado de escravo (RIBAS, 1982, p. 280):

Entre os Romanos esta distinção [entre ingênuos e libertos] influía poderosamente na condição do liberto para tornal-a inferior à do ingênuo. Entre nós esta influencia hoje só se entende à esphera do direito político; pois a possibilidade de ser o liberto reconduzido ao estado de escravidão, por ingratidão, nos casos definidos pela Ord. L. 4, Tit. 63 §7 e seguintes, cessou pela disposição do art. 4 §9 da lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871.

Observe-se que o liberto, em verdade, no ordenamento jurídico brasileiro, vivia sob um estado de constante insegurança jurídica, já que existia uma real possibilidade jurídica de perda do seu status libertatis em face da possibilidade de se invocar a ingratidão por supostos atos praticados pelo alforriado em detrimento do seu antigo dominus.

Esta possibilidade de revogação do status libertatis é objeto do raciocínio do Conselheiro Joaquim Ribas, que a justificava aplicando-lhe o regime jurídico da doação, com fundamento no disposto no § 7º, Título 63, do Livro IV, das Ordenações Filipinas:

Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, commetter contra quem o forrou, alguma ingratidão pessoal em sua presença, ou em sua absencia, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá este patrono revogar a liberdade, que deu a este liberto, e reduzil-o à servidão, em que antes estava. E bem si por cada huma das outras causas de ingratidão, porque o doador pôde revogar a doação feita ao donatário, como dissemos acima.

As consequ?ências práticas deste odioso dispositivo podem ser assim compreendidas:

A prática da alforria permitia a um indivíduo constituir uma clientela de homens obrigatoriamente dedicados. Mercê da alforria, o político escravista podia aumentar o número de votos que controlava nas eleições primárias ou paroquiais. Nisto reside a explicação da circunstância, repetidamente lamentada por Joaquim Nabuco, de que nas eleições os libertos votavam nos candidatos antiabolicionistas. Por medo de serem acusados de ingratos, os libertos denunciavam as conspirações escravas. O liberto se vinculava ao patrono até mesmo pelo sobrenome. Escravos, como se sabe, não tinham sobrenome, e por isto ao se alforriarem adotavam o do patrono. A Lei Rio-Branco (Lei n.º 2.040), de 1871, ao revogar o dispositivo das Ordenações que facultava a revogação da alforria, conferiu a todos os libertos a mais completa independência jurídica, mas nem por isso suprimiu a restrição aos seus direitos políticos. (FREITAS, 1988, p. 55-56)

Como exposto, a previsão legal de reversão da alforria concedida foi revogada, expressamente, pelo §9º, art. 4.º, da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871, a denominada “lei do ventre livre”, que derrogava os dispositivos das ordenações Filipinas que admitiam esta possibilidade: “§9.º Fica derrogada a Ord.. liv. 4.º, tit.63, na parte que revoga as alforrias por ingratidão.”

É importante frisar que este odioso dispositivo, que permitia a reversão no status do liberto, somente foi revogado aproximadamente transcorrido meio século após a outorga da Charta imperial, pela Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871.

2.3 A herança legislativa portuguesa e a compra e venda de escravos

Quando se busca investigar as estruturas legislativas do ordenamento jurídico brasileiro, vigentes no Império do Brasil, não se pode deixar de falar que o país não herdou apenas a estrutura econômico-social vigente durante a colônia, mas também a legislação metropolitana portuguesa, recepcionada pela Lei de 20 de outubro de 1823:

Art. 1.º As Ordenações, Leis, Regimentos, Avaras, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelíssima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brazil, em quanto reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negócios do interior deste Império, emquanto se não organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas.

Na falta de um Código, os atos da vida civil deveriam ser regidos pelo Livro IV, das Ordenações Filipinas, que tratava especificamente deste tema, mas que não possuía ponto de contato com a sociedade brasileira do século XIX, já que este diploma legislativo havia sido criado antes da União Ibérica, isto é, já datando mais de 200 quando da independência do Brasil.


O Conselheiro Joaquim Ribas assim comenta e critica a aplicação das Ordenações Filipinas à sociedade brasileira (RIBAS, 1982, p. 76):

O ultimo [trabalho legislativo português], que ainda até hoje se acha em vigor, foi começado no reinado de Fellippe II de Hespanha e I de Portugal, e concluída no seguinte, sendo sancionado e publicado pelo Alv. De 11 de Janeiro de 1603. Em consequ?ência, porém, da elevação da casa de Bragança ao throno de Portugal, entende-se necessário revalidar estas Ordenações, e para este fim expediu D. João IV a lei de 29 de Janeiro de 1643, que revogou todas as legislações anteriores a ella, [salvo algumas exceções] (…). Dos cinco livros das Ordenações Philipinas quase que só o 4º é destinado à theoria do direito civil. Mas os seus preceitos, além de nimiamente [sic.] deficientes, e formulados sem ordem, não estão ao par das necessidades da sociedade actual e dos progressos da sciencia jurídica.

Não obstante estas críticas, os negócios jurídicos civis em geral, bem como os contratos, deveriam ser regulados por este diploma legislativo que apresentava inclusive as regras para regência do contrato de compra e venda de escravos, nos termos do Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas:

Qualquer pessoa, que comprar algum scravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se delle, o poderá engeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro de seis meses o dia, que o escravo lhe for entregue.

É de se ressaltar que, nos parágrafos do Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas, havia a regulamentação, bem como de eventuais vícios redibitórios, além de outros que pudessem contaminar o referido negócio jurídico:

Se o scravo tiver commettido algum delicto, pelo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda e não declarar, poderá o comprador engeital-o dentro de seis meses, contados da maneira, que acima dissemos. E o mesmo será, se o scravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

Em suma, no próprio negócio jurídico de compra e venda, já se pode constatar que, aos escravos, poderiam ser aplicadas sanções, tendo em vista o peculiar regime jurídico dos cativos, distinto daquele relacionado aos homens livres. Esta diversidade de regimes sancionatórios será analisada mais adiante.

3 DEBATES ACERCA DA LEGALIDADE DA ESCRAVIDÃO

3.1 Questionamentos sobre a legitimidade da escravidão

Evaristo de Moraes, em brilhante obra, questiona a legalidade da própria manutenção da escravidão e de escravos, à luz nas normas vigentes durante o Império do Brasil.

O mencionado autor, para espanto, cita um trecho da fala do senador Ribeiro da Luz, em discurso proferido no dia 07 de julho de 1883, tecendo reflexões sobre a validade e eficácia da Lei de 07 de novembro de 1831 (mais adiante analisada):

Não sei qual foi a lei que autorizou a escravidão. O que nos diz a história pátria é que, havendo índios escravos entre nós, para libertá-los, foram introduzidos os africanos, que passaram a substituí-los no cativeiro. Conheço muitas leis, que fazem referência à escravidão, e estabelecem, disposições especiais a respeito do escravo; mas não sei de nenhuma que autorize expressamente a escravidão no Brasil. Foi o tempo e depois as lei, que se referiam à escravidão, que a legalizaram. (MORAES, 1966, p. 156-157)

A regra é a liberdade, já que a escravidão não se presume:

Sendo a escravidão, como fato anormal contrário à lei natural, somente tolerada pela lei civil, por força de razões puramente econômicas, nunca e e em caso algum se presume, mas deve pelo contrário, se provada sempre: Inst. Just. pr. de libert. 1.º e 5.º; Ord. I, 4º tit 42; alv. 30 de junho de 1609. (MARQUES apud MOARES, 1966, p. 165)

Esta conclusão decorre de um exercício de lógica: se a Constituição política, que deveria servir de fundamento para a defesa de direitos fundamentais, não declara (ao menos expressamente) a existência da escravidão, não tolerando a violação do direito à liberdade (art. 179, I e VII, da Charta de 1824, por exemplo), não haveria razão para, de forma tácita, inferir que este abominável instituto civil viesse a prosperar no nosso solo. Evidente que não era desta forma que se interpretava a Charta imperial.

Prova disto é que o Supremo Tribunal de Justiça (cuja existência e competências se encontravam previstas no art. 163 da Carta imperial), julgou em sentido contrário a este preceito clássico de direito romano e canônico, entendendo que a liberdade não pode se presumir se houver agressão ao direito de propriedade do dominus sobre o escravo. Tal decisão é assim comentada pelo jurista Cândido Mendes de Almeida:

As causas de liberdade pelo nosso antigo Direito sempre forão reputadas causas pias (…), e por conseguinte gozando de todo o favor. Entretanto uma decisão do Supremo Tribunal de 5 de Julho de 1832 publicada no Diário do Rio de Janeiro de 23 de Agosto do mesmo ano declarou, que não se podia conceder nestes casos liberdade aos escravos em prejuízo dos direitos de propriedade, i. e., contra o princípio aqui firmado. Em vista do que diz o §4º [do título 11, do Livro 4, das Ordenações Filipinas] em se principio toda a legislação Romana e Canônica em pró da liberdade dos captivos deve ser aceita e executada; nem seria possível que em uma epocha de liberdade a legislação outr’ora executada com tanto favor em pró dos escravos, se tornasse sem nenhum motivo ou lei de repugnante dureza. (MENDES, 1870, p.790)

Ressalte-se que o direito romano e o canônico eram considerados como fontes do direito civil brasileiro, consoante aplicação das Ordenações Filipinas (RIBAS, 1982, p.107), com aplicação subsidiária, nos termos do título LXIX, do Livro III, das Ordenações e sob as limitações conferidas pela lei da boa razão, a Lei de 18 de agosto de 1769. (RIBAS, 1982, p.110)

Entretanto, no Império do Brasil, os fundamentos da sua economia justificavam a existência da situação fática da escravidão (SENTO-SÉ, 2000, p.37-39), pois, pelos diplomas legais existentes, a vigência das normas referentes a sua manutenção passaram a ser, cada vez com mais intensidade, questionadas pela sociedade. Uma situação fática irreformável legitimava a vigência de diplomas não recepcionados.

3.2 A tese da ilegalidade da escravidão

Não obstante este debate acerca da legitimidade da escravidão, uma forte tese começou a surgir no Brasil imperial: a escravidão era uma conduta ilegal e que, em verdade, os senhores dos escravos estavam realizado dupla conduta típica, contrabando (art. 177 do Código Criminal) e reduzir pessoa livre à escravidão (art. 179 do Código Criminal).


A idéia era simples, o Império do Brasil firmou com o Reino da Inglaterra tratado internacional, em 26 de novembro de 1826, por este instrumento: “[…] o Brasil proibia o tráfico dentro de três anos improrrogáveis. Seriam então punidos como piratas quantos neles se envolvessem. Conferiu-se à Inglaterra o tão cobiçado direito de visita e busca.” (TAUNAY, 1941, p. 264)

Este tratado foi ratificado em 13 de março de 1827, devendo passar a viger a partir de 1830.(VIANNA, 1967, p. 148)

Pela Portaria de 21 de maio de 1831, expedida pelo Ministro da Justiça Manoel José de Souza Franco, durante a Regência, ficou expressamente vedado o contrabando de escravos:

Constando ao Governo de S. M. Imperial que alguns negociantes, assim nacionais como estrangeiros, especulam com desonra da humanidade o vergonhoso contrabando de introduzir escravos da Costa da África nos portos do Brasil, em despeito da extinção de semelhante comércio, manda a Regência Provisória, em nome do Imperador, pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, que a Câmara Municipal desta cidade faça expedir uma circular a todos os juízes de paz das freguesias do seu território, recomendando-lhes toda a vigilâncias policial ao dito respeito; e que no caso de serem introduzidos por contrabando alguns escravos novos no território de cada uma das ditas freguesias, procedam imediatamente ao respectivo corpo de delito e constando por este que tal ou tal escravo boçal foi introduzido aí por contrabando, façam dele sequ?estro, e o remetam com o mesmo corpo de delito ao juiz criminal do território para ele proceder nos termos de direito, em ordem a lhe ser restituída a sua liberdade, e punidos os usurpadores dela, segundo o art. 179 do Código, dando de tudo conta imediatamente à mesma Secretaria.(MORAES, 1966, p. 366)

Tal portaria teve muito pouca repercussão, além, de baixíssima efetividade. Cumpre ressaltar que as portarias eram consideradas fontes do direito que buscavam regular os casos nela tratados, sem prejudicar terceiros, nem revogar ou alterar a legislação vigente (RIBAS, 1982, p.83 e MORAES, 1966, p.154), por esta razão adveio a Lei de 07 de novembro de 1831.

O Art. 1º de tal diploma estabelecia: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres.”.

De duas alternativas, uma das teses deve prevalecer:
Primo, se for considerado o argumento de que eventual ato de traficar escravos da Costa da África é importação de mercadoria – compreendendo o escravo como mercadoria, tendo em vista a sua possível natureza de res –, vislumbra-se que a importação destes é proibida desde 13 de março de 1827, portanto, o importador comete o crime público de contrabando:

Art. 177. Importar, ou exportar gêneros, ou mercadorias prohibidas; ou não pagar os direitos dos que são permittidos, na sua importação, ou exportação.
Penas – perda das mercadorias ou gêneros, e de multa igual à metade do valor delles.

No caso concreto o senhor que viesse a importar tais escravos poderia figurar, no mínimo, como cúmplices, na forma do art. 6º, 1.º, do Código Criminal do Império:

Os que receberem, occultarem ou comprarem cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o foram, ou devenddo sabel-o em razão da qualidade, ou condição das pessoas, de quem receberam, ou compraram. (fls. 143)

Secundo, entretanto, é manifesto que o legislador, pela Lei de 07 de novembro de 1831, em verdade, assegurou que escravos introduzidos após a vigência deste dispositivo seriam considerados como homens livres.

Em tese, não poderia mais existir escravos que tivessem sido importados para o Brasil, a partir da publicação deste diploma legal. Esta é a única conclusão que se pode chegar.

Qualquer indivíduo que reduzisse estes homens à condição de escravo estaria cometendo o crime particular, contra a liberdade individual, de reduzir à escravidão pessoa livre, (como previsto no art. 4º desta mencionada lei):

Art. 179. Reduzir à escravidão pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade.
Pena – de prisão por três a nove annos, e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor, que o do captiveiro injusto, e mais uma terça parte.

Comentando o tema, o brilhante deputado pernambucano Joaquim Nabuco:

Com efeito, a grande maioria desses homens, sobretudo no Sul, ou são africanos, importados depois de 1831, ou descendentes destes. Ora, em 1831 a lei de 7 de novembro declarou no seu artigo 1.º: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres.”. Como se sabe, essa lei nunca foi posta em execução, porque o Governo brasileiro não podia lutar com os traficantes; mas nem por isso deixa ela de ser a carta de liberdade de todos os importados de pois de sua data. Que antes de 1831, pela facilidade de aquisição de africanos, a mortalidade dos nossos escravos, ou da Costa ou crioulos, era enorme, é um fato notório. “É sabido dizia Eusébio de Queirós em 1852 na Câmara dos Deputados, que a maior parte desses infelizes [os escravos importados] são ceifados logo nos primeiros anos, pelo estado desgraçado que os reduzem os maus tratos da viagem, pela mudança de clima, de alimentos e todos os hábitos que constituem a vida”. Desses africanos, porém, – quase todos eram capturados na mocidade – introduzidos antes de 1831, bem poucos restarão hoje, isto é, depois de cinqu?enta anos de escravidão na América a juntar aos anos que vieram da África; e, mesmo sem a terrível mortalidade, de que deu testemunho Eusébio entre os recém-chegados, pode-se afirmar que quase todos os africanos vivos foram introduzidos criminosamente no país (NABUCO, 1977, p. 115-116, grifo nosso).

Nas palavras do advogado Busch Varela (apud MORAES, 1966, p. 159-160), em discurso proferido no dia 09 de março de 1884, em conferência realizada no Rio de Janeiro:

Como já observei, a lei de 1831 não criva uma disposição transitória; não se limitava a abolir o tráfico; foi além – declarou livres todos os escravos, importados de então em diante. Tal disposição é, de sua natureza, irrevogável; a liberdade, uma vez adquirida, nunca mais se pode perder. Os importados depois de 1831 adquiriram-na, por disposição expressa de lei, nunca foram escravos no Brasil; foram vítimas de atroz e condenada pirataria; ninguém dirá que o roubo é meio de adquirir propriedade e de transmiti-la legitimamente.

A conclusão que chega Evaristo de Moraes é peremptória:


Uma e única: muitos senhores de escravos, orgulhosos latifundiários brasileiros, se não eram ladrões, eram, pelo menos, receptadores de grande número de liberdades humanas; boa porção das suas fortunas tinha raízes na prática do crime previsto no art. 179 do Código Criminal do Império, pois resultava da escravidão direta dos africanos contrabandeados e da indireta dos africanos livres, misturados no eito com os outros (MORAES, 1966, p. 165).

Ora, se a partir de 1831, qualquer escravo que, após o advento desta lei fosse importado e viesse a ser desembarcado no Brasil seria considerado como homem livre, logo, pode-se concluir que somente poderiam ser considerados cativos, em território brasileiro, os filhos de mãe e pais escravos que já houvesse chegado ao território nacional, anteriormente a este diploma legislativo.

4 A NATUREZA JURÍDICA DO ESCRAVO

Pode-se afirmar, que falar da natureza jurídica de algo é inserir o objeto estudado dentro das categorias lógicas do direito vigente naquele contexto histórico, isto é, é afirmar que aquilo que está sendo estudado tem características que tornam possível, para fins de classificação, afirmar que ele se encontra dentro de um específico conjunto com propriedades similares.

O debate sobre a natureza jurídica do escravo versa necessariamente sobre a controvérsia se aquele ser humano, à luz do direito, deveria ser regido pelo regime jurídico das coisas ou das pessoas.

4.1 O status do escravo na legislação brasileira: persona e res

Para o Conselheiro Joaquim Ribas, o escravo não era tão-somente uma res, era considerado também como personae, ou seja, os direitos do senhor sobre seu escravo (dominica potestas) não eram apenas exercidos a título de dominus, mas também como potestas:

A dominica potestas dos Romanos, constando de dous elementos – o dominium e a potestas, impunha ao escravo duplo subjeição ao senhor, e o considerava ao mesmo tempo como cousa e como pessoa. Esta instituição não despessoalizava, pois, inteiramente o escravo, nem poderia elle sel-o, pois que a sua incapacidade era subjeita a restrições. À proporção, porém, que o direito estricto se foi aproximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza,e a liberdade como faculdade natural. Entre nós também os direitos do senhor sobre o escravo constituem domínio e poder, em relação ao domínio o escravo é cousa, em relação ao poder é pessoa (RIBAS, 1982, p. 281-282).

Tal raciocínio pode ser explicado pela compreensão dos institutos de direito romano que eram aplicados subsidiariamente para sistematizar a escravidão brasileira: o escravo era res e personae ao mesmo tempo, desde que se compreenda este último termo não como sujeito de direito, mas como ser humano:

No direito romano o termo personae era usado como equivalente a homo e não como titular de direito. Por isso os escravos eram considerados ao mesmo tempo personae, e res. Isto não significa que o escravo pudesse ser titular de direito, pois Ulpiano esclarece muito bem a sua posição perante o direito civil – “Quod attinet ad IUS CIVILE SERVI pro nullis habentur.” O escravo não era sujeito de direito, pois era considerado uma coisa, ou melhor, um animal humano. O dominus exercia sobre o servus o direito de propriedade e para sancionar esse direito fazia uso da reivindicatio, isto é, da mesma ação de que se servia em se tratando de um objeto móvel. (NÓBREGA, 1955, p. 120 e p. 130)

Para exemplificar, pode-se analisar um caso concreto, descrito no Parecer nº. 05, de 20 de março de 1858, da lavra do Conselho de Estado do Império, que discutia as questões apontadas, analisando a extensão do direito de propriedade do dominus sobre o servus.

A questão levada ao Conselho de Estado iniciava-se com o fato de que Porfírio Fernandes Siqueira, residente na província do Rio Grande do Sul, hipotecou três escravos seus a Francisco Manuel dos Passos.

A hipoteca, assim como hoje, era considerada direito real, nos termos das Ordenações Filipinas, Livro II , f. 52, §5º e livro 4º, f. 3º. O art. 13, do regulamento de 14 de novembro de 1846 previa os efeitos legais da hipoteca: “[…] são efeitos legais o registro das hipotecas, tornar nula a favor do credor hipotecário, qualquer alienação dos bens hipotecados por título, quer gratuito, quer oneroso.”

Posteriormente, com a finalidade de retirar o gravame que incidia sobre seus escravos, com manifesta má-fé, Porfírio Fernandes Siqueira levou-os à República Oriental do Uruguai, cuja legislação considerava livre os escravos que ali se encontrassem.

Francisco Manuel dos Passos, diante deste prejuízo, com a perda da garantia real do seu crédito, formulou requerimento ao Presidente da Província requerendo que este, junto a legação imperial em Montevidéu, reclamasse a extradição dos escravos brasileiros hipotecados, com fundamento no art. 6º do tratado de extradição firmado entre a República Oriental do Uruguai e o Império do Brasil, que possuía o seguinte conteúdo:

O governo da República Oriental do Uruguai reconhece o princípio da devolução dos escravos pertencentes a súditos brasileiros que, contra a vontade dos seus senhores, forem, por qualquer maneira, para o território da dita república e aí se acharem.

Na fundamentação da decisão ao requerimento formulado por Francisco Manuel dos Passos (de 15 de dezembro de 1857, da lavra do Presidente da Província do Rio Grande do Sul), encontra-se a perfeita descrição do status do servus perante a legislação brasileira:

O governo [da República] oriental, concedendo a devolução, como exceção da lei que aboliu a escravatura em todo o território da república, limitou-a aos casos em que os escravos passarem a esse território contra a vontade de seus senhores. O Governo Imperial, aceitando essa limitação, garantiu a liberdade aos que se acharem no caso contrário. Por isso, em toda questão de devolução, é mister ter em vista não somente os direitos do governo oriental e do senhor do escravo, mas também a posição deste para com aquele. O escravo ignora as transações de que é objeto, não entra, nem pode entrar, no exame delas: obedece a seu senhor. Se este o traz para o Estado Oriental, quaisquer que sejam as obrigações contraídas, haja ou não hipotecas, por aquele simples fato, o escravo adquire a sua liberdade, é livre nesta república, é liberto no Brasil. Ambos os governos estão obrigados a manter-lhe o direito que lhe concederam, nem um pode reclamar a sua devolução, nem o outro pode concedê-la. […]. Finalmente, devem ser considerados libertos os escravos, que estando como contratados, ou em serviço autorizado por seus senhores no território indicado – voltarem à província do Rio Grande do Sul, porquanto, pelo princípio geral acima exposto, o fato de permanecer ou ter permanecido, por consentimento do seu senhor, em um país onde está abolida a escravidão, dá imediatamente ao escravo a condição de liberto […] (O Conselho de Estado, 2005, p. 32-33).

Tais conclusões foram remetidas ao Conselho de Estado do Império, que as ratificou e acrescentou:

Se esses escravos voltassem ao Império, então poderia o reclamante fazer valer seus direitos hipotecários contra uma liberdade conferida com fraude manifesta e, ainda assim, o êxito seria duvidoso. (O Conselho de Estado, 2005, p. 34)

O Imperador aprovou o parecer em 29 de março de 1859.

4.2 Capacidade jurídica minorada e responsabilidade

Portanto, manifesto que o escravo possuía, ao lado da sua condição de personae, a natureza de coisa, tendo em vista que sobre ele, inclusive poderiam recair inclusive direitos reais de garantia. Nas palavras de COSTA: “Nas formas jurídicas do século XIX, o escravo é tido como ser ausente. É ausente por não ser sujeito ou ser quase-sujeito” (COSTA, 2009, p. 204).

O ordenamento jurídico brasileiro, como exposto, também considerava o escravo como pessoa, mas diferindo destas perspectivas clássicas, o servus poderia ser paciente ou agente de condutas que desencadeariam o surgimento de consequ?ências jurídicas (ou seja, não haveria atribuição das consequ?ências jurídicas para o dominus).

As consequ?ências jurídicas oriundas da prática de atos jurídicos incidiriam tão-somente sobre a sua pessoa (escravo), que poderia vir a integrar um dos pólos de uma relação jurídica.

Cumpre ressaltar que, apesar da aparente ilogicidade desta argumentação, está a se tentar explicar um determinado fenômeno jurídico valendo-se da teoria do fato jurídico contemporânea.

Para o direito brasileiro do século XIX era possível que o escravo fosse res e personae2, pelo simples fato de que, pela aplicação subsidiária do direito romano, não haveria óbices para que o escravo pudesse vir a ser objeto de sanção penal, pois desde a antiguidade o mesmo respondia por eventuais condutas criminosas por ele perpetradas, tendo o dominus direito de vida e de morte sobre o servus. (NÓBREGA, 1955, p. 138)

É de se observar que, para o Estado Imperial, qualquer aplicação da sanção capital deveria restar submetida ao devido processo legal (art. 179, XI, da Charta da 1824).

Inclusive o escravo deveria figurar como parte, como preceitua o art. 332 do Código de Processo Criminal do Império, de 1932 (que atribui ao Júri a competência para “imposição da pena de morte”). Ou seja, pela legislação imperial, o servus poderia inserir-se em relação processual.

Entretanto, não poderia figurar como testemunha no processo criminal, consoante a Lei de 29 de novembro de 1832, o Código de Processo Criminal do Império:

Art. 89. Não podem ser testemunhas o ascendente, descendente, marido, ou mulher, parente até o segundo gráo, o escravo, e o menor de quatorze annos; mas o Juiz poderá informar-se delles sobre o objecto da queixa, ou denuncia, e reduzir a termo a informação, que será assignada pelos informantes, a quem se não deferirá juramento. Esta informação terá o credito, que o Juiz entender que lhe deve dar, em attenção ás circumstancias.

Para o direito romano clássico, o servus não poderia integrar validamente relação processual:

Nas Novelas de Teodósio encontramos um texto segundo o qual a incapacidade do escravo para participar de um processo se explicava pelo fato de não ser ele persona. O Escravo, esclarece Sohm, é um homem, que não é pessoa jurídica, mas uma coisa; não podia participar de qualquer relação jurídica; não tinha bens ativos (propriedade) nem passivos (contrair dívidas); não participava de qualquer relação de direito de família. Um processo contra um escravo seria completamente inócuo (NÓBREGA, 1955, p. 138).

Portanto, pelo exposto acima, pode-se concluir que: (a) para o direito imperial, o servus, apesar de não ser cidadão brasileiro, poderia se inserir em algumas relações jurídicas. Conclui-se que, para a legislação brasileira, o escravo era um sujeito de direito cuja capacidade jurídica estava minorada, pois se inexistisse esta capacidade e o direito brasileiro adotasse plenamente a doutrina romanística, não poderia o escravo integrar validamente nenhuma relação processual; e(b) para o direito brasileiro, os atos praticados pelo escravo não necessariamente repercutem sobre o seu dominus. Ou seja, o senhor não se torna responsável pelos fatos praticados pelo escravo (inaplicabilidade da teoria pelo fato da coisa), nem a título de culpa, até porque a pena não pode passar da pessoa do condenado (art. 179, XX, da Charta imperial). Ou seja, como o escravo poderia ser sujeito ativo de crime, sofrendo as consequ?ências de condenação criminal, a pena não poderia repercutir sobre a pessoa do dominus, que não concorreu para o resultado delituoso.

A conclusão não poderia ser diferente, para o direto imperial, o escravo poderia ser sujeito de relação jurídica penal, sobretudo na condição de agente.


4.3 A capacidade do escravo para figurar nas relações jurídicas civis

O escravo, paulatinamente, ao longo do século XIX, foi adquirindo legitimação para a prática de atos da vida civil:

A ab-rogação da penalidade consistente em açoites – penalidade excepcional e de extensão arbitrária – não teve, somente, o efeito que lhe atribuíram alguns escravistas, entre os quais Lourenço da Albuquerque e Ratisbona, não influiu, apenas, por haver suprimido o receio de atrozes sofrimentos físicos. Mais importante foi o reflexo moral da lei n.º 3.310, de 15 de outubro de 1886. Ela acresceu a série de atos legislativos que, desde 1871, vinham conferindo personalidade ao escravo; aumentou o grau da sua elevação na escala para a cidadania; colocou-o, quanto à repressão penal, quase na mesma plana das pessoas livres; numa palavra, forrou o escravo do opróbio, sempre, e por toda parte, ligado aos castigos corporais.” (MORAES, 1966, p. 244)

Pela Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871, pelo seu art. 4.º, o escravo estava autorizado a constituir um pecúlio com finalidade de obter sua alforria:

Art. 4.º É permittido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo pecúlio.

Observe-se que até efeitos sucessórios eram descritos, bem como o reconhecimento de relação conjugal, no §1.º, deste mesmo art. 4.º:

§ 1.º Por morte do escravo, metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmittirá aos seus herdeiros, na fôrma da lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio será adjudicado ao fundo de emancipação de que trata o art. 3.º.

Na lúcida visão do Conselheiro Joaquim Ribas (RIBAS, 1982, p. 282):

À proporção, porém, que o direito estricto se foi approximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza, e a liberdade como faculdade natural.

O escravo, inclusive estava autorizado ao contratar, em prol da sua liberdade, nos termos do art. 4.º, §1.º, da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). Tal diploma legal foi exaustivamente criticado, por contemporâneos, pela sua limitada e lenta efetivação:

Em matéria de emancipação, temos uma lei falha e manca, triste e arrastadamente executada, e mais nada. Nas arcas do Tesouro existem 4.000 contos do fundo de emancipação por qualquer pretexto fiscal. Quatro mil homens ainda escravos por qualquer relaxação administrativa. Até hoje, três anos depois da lei, nem a mínima, providência sobre a educação dos ingênuos e dos emancipados (REBOUÇAS apud MORAES, 1966, p. 24).

Estudada a capacidade civil do escravo, deve-se vislumbrar como o ordenamento jurídico brasileiro do século XIX dispunha sobre a responsabilidade penal dos escravos.

5 O DIREITO PENAL MATERIAL E PROCESSUAL E O ESCRAVO

5.1 A responsabilidade penal do escravo

O Código Criminal do Império do Brasil, a Lei de 16 de dezembro de 1830, estabelecia o conceito de criminoso, nos seus arts. 3º e 4º:

Art. 3.º Não haverá criminoso, ou delinqu?ente, sem má fé, isto é, sem conhecimento do mal, e intenção de o praticar.
Art. 4.º São criminosos, como autores, os que commetterem, constragerem, ou mandarem alguém commetter crimes.

Os escravos não se enquadram em nenhum dos casos de inimputabilidade previsto no art. 10 do referido Código Criminal:

Art. 10. Também não se julgarão criminosos: 1.º Os menores de quatorze annos.
2.º Os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lúcidos intervallos, e nelles commtterem o crime.
3.º Os que commetterem crimes violentados por força, ou por medo irresistíveis.
4.º Os que commetterem crimes casualmente no exercício, ou pratica de qualquer acto licito, feito com a tenção ordinária.

Portanto, por óbvio, os escravos, apesar sua capitis dimininutio maxima, estavam submetidos ao Código Penal, podendo figurar como “criminosos” das condutas previstas neste diploma legal: “Em geral, o Direito penal considera o escravo como pessoa, quando julga apto para servir de agente ou paciente de qualquer delicto” (RIBAS, 1982, p. 282).

Uma outra questão que merece análise é a da possibilidade de o escravo vir a ser vítima do crime homicídio praticado pelo seu senhor: juridicamente falando, o dominus que perpetrasse conduta que viesse a resultar na morte do escravo poderia ser processado pelo delito previsto no arts. 192 ou 193 do Código Criminal do Império ou estaria ele no exercício de uma faculdade sua, derivada do seu poder de propriedade sobre o seu servus?

Para responder tal questionamento, deve-se vislumbrar que o art. 14, item 6º do Código Criminal do Império admitia a possibilidade de o dominus praticar conduta lesiva que viesse a resultar dano a seu escravo, desde que de forma moderada, sob a forma de castigo, salvo se agredisse as leis em vigor no Império: tratava-se de uma hipótese de “crime justificável”, segundo a legislação penal da época, mas não seriam admitidas denúncias do escravo contra o senhor, nos termos do art. 75, § 2º, do Código de Processo Criminal do Império de 1932, já que “a vontade do cativo não pode colidir com a vontade do seu proprietário” (COSTA, 2009, p. 205).

Note-se que, segundo o Código Criminal do Império, o senhor não poderia matar o escravo, como sanção privada pelos atos cometidos por este. Como castigo moderado não se inclui a morte do servus. (RIBAS, 1982, p.282)

Cometendo este ilícito, o Estado estaria autorizado a realizar a persecução penal em face do senhor que houvesse provocado o resultado morte no seu escravo, pelos castigos aplicados.


Neste sentido, a denúncia oferecida pelo promotor adjunto (art. 74 do Código de Processo Criminal do Império: Lei de 29 de novembro de 1832), perante o Juiz Substituto do 3º Distrito Criminal da Comarca de São Luís do Maranhão, em face de D. Anna Rosa Vianna Ribeiro, Baronesa de Grajaú (esposa do presidente da Província do Maranhão Dr. Carlos Fernando Ribeiro, em 1884), pelo homicídio do seu escravo Inocêncio, em face de castigos imoderados por ela perpetrados:

Desta sorte indigitada a denunciada, como autora das sevícias e maus tratos encontrados e reconhecidos no cadáver do seu escravo Inocêncio, visto que este durante o tempo em que foi possuído por ela, jamais esteve em outro poder e debaixo de outras vistas, torna-se a mesma denunciada, D. Anna Rosa Vianna Ribeiro criminosa; e, por isso, e em cumprimento da lei, dá o abaixo assinado a presente denúncia, para o fim de ser ela punida com as penas decretadas no art. 193 do Código Criminal, oferecendo por testemunhas aos adiante nomeados, os quais serão citados para deporem no dia e hora que V. S.ª designar, e bem assim a denunciada para se ver processar, sob pena de revelia, fazendo-se as requisições necessárias (ALMEIDA, 2005, P. 65-70).

Ressalte-se que a pena de galés, ou seja, prestação de trabalhos públicos forçados, com os pés acorrentados era inaplicável às mulheres, nos termos do art. 45, 1º, do Código Criminal do Império, devendo ocorrer a sua conversão em prisão, com a realização de serviços compatíveis com o sexo feminino, pelo mesmo período de tempo fixado na sentença.

No caso em comento, foi proferida sentença de impronúncia (em 23.01.1877), nos termos do art. 145 do Código de Processo Criminal do Império, a qual, sendo objeto de recurso, foi reformada (no dia 13.12.1877), determinando o juízo ad quem (Tribunal da Relação) a pronúncia da ré, que foi levada a júri popular, sendo absolvida em 22.02.1877.

Após apelação (art. 301 do Código de Processo Criminal do Império), foi julgado improcedente o recurso (em 22.05.1877), e, não havendo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art. 305 do Código de Processo Criminal do Império), o feito transitou em julgado.

5.2 As penas aplicadas aos escravos

Os regimes das penas aplicadas aos escravos, manifestamente, diferiam das sanções aplicadas aos homens livres.

5.2.1 A pena de açoitação

A priori, é de se ressaltar que a Charta imperial, no seu art. 179, XIX, abolia as penas cruéis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[…]
XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.

Entretanto, o art. 60 do Código Criminal do Império do Brasil, estabelecia:

Art. 60. Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será conmdemnado na de açoute, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar. O número de açoutes será fixado por sentença; e o escravo não poder´pa levar por di mais de cincoenta.

Ademais, nas Ordenações Filipinas, Livro V, título LX, §2º, recepcionadas, verifica-se a previsão da pena de açoitação para o delito de furto, aplicável tanto a homens livres quanto a escravos.

Aos escravos, segundo o disposto nas Ordenações, seriam aplicadas a penas açoitação nos seguintes termos: “Porém, se for escravo, quer seja Christão, quer infiel, e furtar valia de quatrocentos reis para baixo, será açoutado publicamente com baraço e pregão.”.

Para solucionar tal antinomia, a doutrina jurídica do período realizava a harmonização destes dispositivos alegando que o art. 179 da Constituição imperial assegurava direitos fundamentais e liberdades públicas tão-somente aos “Cidadãos Brazileiros”, ora, se o escravo perdeu seus status libertatis (ocorrendo a capitis diminutio maxima), não poderia ser um Cidadão, portanto, inaplicável tal proteção a estes indivíduos. (MORAES, 1966, p. 175).

Portanto, revogada estava à pena de açoitação, prevista nas Ordenações Filipinas, somente para os cidadãos e não para os escravos.

Tal pena era assim executada, nas palavras do Conselheiro Otoni:

Era castigo crudelíssimo: – atava-se o paciente solidamente a um esteio (poste vertical de madeira) e, despidas as nádegas, eram flageladas até ao sangue, às vezes até à destruição de uma parte do músculo. Se não havia o esteio, era o infeliz deitado de bruços e amarrado em uma escada de mão; aí tinha lugar o suplício (apud MORAES, 1966, p. 177).

Cumpre esclarecer que o regime de pena de açoitação, poderia ser judicial ou doméstico. O regime judicial, como referido no art. 60 do Código Criminal, possuía seus limites no arbítrio do órgão jurisdicional (art. 60 do Código Criminal): “o legislador penal da monarquia não limitava o número total dos açoites; deixava ao arbítrio do julgador. Apenas limitava a dose diária” (MORAES, 1966, p. 176).

No que se refere à pena de açoitação, os fundamentos para o exercício deste poder punitivo no âmbito doméstico podem ser encontrados no art. 14, § 6º, do Código Criminal do Império, que estabelecia, dentre as causas de “crimes justificáveis”, a aplicação de castigo moderado que os senhores venham a aplicar a seus escravos. Quando o dominus exercia este seu poder, o critério para fixação do quantum desta sanção decorria do seu livre arbítrio, mas “a maneira material da execução do suplício era, em uma e outra hipótese, os mesmos.” (MORAES, 1966, p. 177).

Tal pena aplicada aos escravos foi revogada pela Lei nº. 3.310, de 15 de outubro de 1886.

5.2.2 A pena de morte

5.2.2.1 A pena de morte e o direito penal imperial

Antes do advento do Código Criminal do Império, vigorava no Brasil, como fonte do direito penal, o Livro V, das Ordenações Filipinas, que previa a existência da pena capital.

Apesar de inúmeros debates, de manifestações inclusive contrárias, Bernardo Pereira de Vasconcelos, autor do anteprojeto do Código Criminal de 1932, manteve a pena de morte tanto para crimes comuns, quanto para crimes políticos, sob o fundamento de que, tal sanção subsistiria para poucos delitos e que o anseio de segurança pública deveria prosperar, já que a inocência, em verdade, era sempre a vítima do crime (RIBEIRO, 2005, p. 27).


Ademais, consoante argumentos do relator, a Constituição Imperial admitia implicitamente a possibilidade de existência da pena capital, como se depreende da leitura do art. 27 desta Charta Magna:

Art. 27. Nenhum Senador, ou Deputado, durante a sua deputação, póde ser preso por Autoridade alguma, salvo por ordem da sua respectiva Camara, menos em flagrante delicto de pena capital.

Como exposto, o Código Criminal do Império trazia, dentre as espécies de pena, a de morte (art. 38), a qual era executada na forca, após o trânsito em julgado do feito, no dia seguinte após a intimação, mas nunca antes de domingo, dia santo ou de festa nacional (art. 39).

Para o cumprimento da pena capital, o réu era conduzido pelas “ruas mais públicas” até a forca, acompanhado pelo Juiz Criminal, pelo escrivão e pela força policial necessária (art. 40).

A presidência dos atos de execução desta pena era feita pelo juiz Criminal, com a lavratura de certidão de todos os atos pelo Escrivão, a qual será juntada aos autos do processo (art. 41).

O corpo do réu poderia ser entregue à família (ou amigos), se requisitado ao juiz, mas não haveria enterro com pompa, sob pena de prisão daqueles que descumprissem este comando (art. 42).

Mulheres grávidas não poderiam ser enforcadas, nem julgadas enquanto perdurasse este estado, somente após transcurso 40 dias do parto (art. 43).

Nos processo criminais em que fosse determinada a condenação nesta pena, poderia haver o perdão pelo exercício do Poder Moderador (art. 66 do Código Criminal c/c art. 101, §8º, da Constituição Imperial), ou, no caso de “crimes particulares” (“sem accusação por parte da Justiça” – art. 67). A pretensão executiva era imprescritível (art. 65).

5.2.2.2 A pena de morte e a Lei n.º 04, de 10 de junho de 1855

Em relação às penas de morte aplicadas aos escravos, necessário o estudo da execrada, desde sua época, Lei n.º 04, de 10 de junho de 1855. Tratava-se de lex specialis que previa tipificação especial e pena capital para algumas condutas delituosas dos escravos, além de rito processual específico para julgar estes crimes, quando figurassem como réus tais agentes.

Anteriormente à Lei nº. 04, de 10 de junho de 1835, foi instituído o Decreto de 11 de abril de 1829 (anterior, portanto ao Código Criminal do Império, de 1830), pelo qual “todo réu escravo, condenado à pena máxima por assassínio do seu senhor devia ser executado, imediatamente, sem direito ao recurso de graça, interposto ao Poder Moderador.”.

Inicialmente, deve-se frisar que tal Decreto, além de agredir ao disposto no art. 101, §8º, da Constituição do Império, por ofensa explícita às competências constitucionais do Poder Moderador imperial, criava-se uma inconstitucional exceção à Lei de 06 de setembro de 1826, que atribuía ao próprio Imperador (no exercício das suas atribuições) ressalvas ao seu poder de moderar ou perdoar as penas aplicadas.

O Decreto de 11 de abril de 1829, sem dúvidas é o embrião da cruel Lei nº. 04, de 10 de junho de 1835, tendo em vista a manifesta ratio legis, isto é, acirrar o terror, pela célere aplicação da sanção capital para réus escravos.

Iniciando o estudo da Lei nº 04, de 10 de junho de 1835, seu art. 1º estabelecia:

Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas que matarem por qualquer maneira que seja, que propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendência ou ascendentes, que em, sua companhia morarem, a administrador, feitor e as suas mulheres que com elês viverem. Se o ferimento, ou ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.

Observe-se que, por este dispositivo, buscava-se criar uma norma protetiva do status quo escravista, não apenas para a proteção do senhor e da sua família, mas também dos indivíduos (e respectivo grupo familiar) incumbidos do gerenciamento desta mão-de-obra escrava.

Pela leitura de um trecho de Parecer da Seção de Justiça do Conselho de Estado, de 09 de setembro de 1854, cujo relator fora o Visconde do Uruguai, consegue-se captar a ratio legis do referido diploma: “[…] É uma lei inteiramente excepcional, ad terrorem, feita para produzir terror, que, ao menos agora, não produz.”, na verdade, a Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835, foi uma consequ?ência da revolta dos negros Malés na cidade de Salvador:

Em 24 de janeiro de 1835 irrompia em Salvador, uma insurreição armada, que passaria à história como Revolta dos Malês ou a Grande Insurreição. Esta revolta faz parte de um grande ciclo de rebeliões ocorridas na Bahia desde o início do século XIX, e que se estenderia até o ano de 1844. […].
Os primeiros tiros partiram da casa de Manuel Calafate, onde os revoltosos atacados, revidaram e passaram à ofensiva dirigindo-se então para a Rua da Ajuda “onde tentaram arrombar a cadeia a fim de libertar Pacífico Licutan”, não conseguindo lograr êxito. O grupo marcha para o Largo do Teatro, onde trava combate com a polícia derrotando-a pela segunda vez. Essa vitória tinha aberto “caminho para atingirem o Forte de São Pedro. No entanto, com as forças que dispunham era impossível tomar o Forte de artilharia”. Buscam, então, outras alternativas. “Os escravos vindos do Largo do Teatro tentaram estabelecer junção com outra coluna que vinha da Vitória, sob o comando dos dirigentes do Clube da Barra. Esses, por sua vez, já haviam conseguido unir-se ao grupo do Convento das Mercês. Os escravos da Vitória operaram a junção planejada, abriram caminho para a Mouraria onde travaram combate com a polícia, sendo que neste combate perderam dois homens. Rumam, então, para a Ajuda; daí estabelecem uma mudança de rumo na sua marcha: desceram para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos Coqueiros.3

Até então, os crimes praticados pelos escravos eram processados de acordo com o legislação procedimental comum (a Lei de 29 de novembro de 1832, isto é, o Código de Processo Criminal), mas com o surto de pânico que assolou a sociedade escravista brasileira, em face de tal revolta, inclusive, com reflexos na Corte e na Província do Rio de Janeiro (FREITAS; SOUZA, 1988, p. 63-65), surgiu uma legislação que de modo sumário e extremamente agressivo, cominava penas capitais, quando da prática de insurreições escravas, a fim de responder aos anseios de manutenção da paz e do status quo.

Tal afirmação pode ser corroborada com o fato de que o art. 2º, da Lei n.º 04, de 10 de junho de 1835, também aplicava os seus rigores quando ocorresse o crime de insurreição, restando revogadas as penas cominadas, no Código Criminal, para este delito (art. 5º, da Lei de 10 de junho de 1835):

Art. 2º. Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1.º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Jury do Termo (caso não esteja em exercíciio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados (grifos nossos).


Como exposto, fica manifesto que a intenção do legislador é a proteção ao bem jurídico “sistema de produção escravista”, com a previsão que a pena capital será aplicada aos escravos que cometerem o delito de insurreição (art. 113 do Código Criminal):

Art. 113 Julgar-se-ha commettido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da fôrça. Penas – aos cabeças – de morte no grão Maximo; de galés perpétuas no médio; e por quinze annos no minimo; – aos mais – açoutes.

Observe-se que o delito de Insurreição (que era um crime público, contra a segurança interna do Império, e publica tranqu?ilidade) poderia contar com a participação de homens livres (arts. 114 e 115 do Código Criminal), mas, a tais agentes, não se estendia a pena prevista no art. 1º da Lei nº 04, de 10 de junho de 1835, em face de que estes detinham seu status libertatis pleno.

Ratificando o que foi exposto, faze-se necessário ler-se os dispositivos deste diploma legislativo, que prescrevem procedimento penal específico (e absurdo) para estas condutas delituosas:

Art. 2º. Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1.º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Jury do Termo (caso não esteja em exercíciio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados.
Art. 3.º Os Juizes de Paz terão jurisdicção cumulativa em todo o Município para processarem taes delictos até a pronuncia com as diligencias legaes posteriores, e prisão dos delinqu?entes, e concluído seja o processo, o enviarão ao Juiz de Direito para este apresenta-lo no Jury, logo que esteja reunido e seguir-se os mais termos.
Art. 4.º Em taes delictos a imposição da pena de morte será vencida por dous terços do número de votos; e para as outras pela maioria; e a sentença, se for condemnatoria, se executará sem recurso algum.

Por tal procedimento, cria-se um rito sumaríssimo para julgar os delitos praticados pelos escravos, presos preventivamente, sendo a imposição da pena de morte uma consequ?ência automática, que somente não ocorrerá se vencida por 2/3 (dois terços) dos votos dos membros do Júri.

Observe-se que se a sentença for condenatória ela será irrecorrível, ou seja, a contrariu sensu, somente se favorável ao réu (isto é, se absolutória), é que será admitida a interposição de recurso.

Entretanto, esta previsão legal de sentença capital irrecorrível, contrariava, o disposto no art. 101, §8º, da Constituição do Império (que foi regulamentado pelo art. 1º da Lei de 11 de setembro de 1826): “nenhuma sentença de pena capital podia ser, então, executada, sem que, previamente, fosse presente ao imperador, para, se assim o entendesse, perdoar ou minorar, a pena”.

Como exposto, das sentenças condenatórias, com fundamento nos dispositivos da Lei n.º 04, de 10 de junho de 1835, não caberia recurso algum.

Entretan


AGU deve ser vista como órgão de defesa do Estado

Em artigo publicado hoje, 7/12, no Conjur, presidente do SINPROFAZ reitera as missões institucionais da AGU e da PGFN, temas em pauta no 12º Encontro Nacional da Carreira de PFN.


Exclusividade de atribuições da Advocacia Pública reiterada por tribunal

A exclusividade do exercício da Advocacia Pública por concursados foi reafirmada em decisão unânime do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).


Projeto de lei tenta esvaziar espaço público da AGU

Este é o título do artigo publicado ontem, 28/11, na revista eletrônica Consultor Jurídico. Assinado por diretores do Sindicato, o texto relaciona o PLP 205 às revelações da Operação Porto Seguro.


PFN lança livro sobre Teoria do Direito e do Processo

Lançamento será na Livraria Cultura do shopping Casa Park, em Brasília, a partir das 19h em 04 de dezembro. O autor é o PFN Sebastião Gilberto Mota Tavares.


AGU apresenta plano de desistência de recursos no STJ

A exemplo da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, a Advocacia-Geral da União também elaborou um projeto de desistência de recursos no Superior Tribunal de Justiça. A intenção é reduzir o número de litígios. Atualmente, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é o maior demandante no STJ, segundo estatística da própria corte….


AGU diz ter economizado e arrecadado R$ 2,1 trilhões

A Advocacia-Geral da União divulgou, em outubro, relatório no qual diz ter arrecadado e economizado aos cofres públicos R$ 2,1 trilhões entre 2010 e 2012. A cifra é metade do PIB do Brasil registrado em 2011 (R$ 4,1 trilhões, segundo o IBGE). O documento aponta números de arrecadação e economia na seguinte ordem: Administração Direta…


SINPROFAZ atua contra usurpação de funções da Advocacia Pública

Sindicato e Forvm ingressaram como amicus curiae em ADI da Anape com propósito de defender a exclusividade do exercício de atividades restritas aos advogados públicos.


Projeto de Lei Orgânica contraria perfil da AGU

Por Simone Fagá e Ruy Telles de Borborema Neto

A Advocacia-Geral da União foi criada pela Constituição Federal de 1998 sem precedentes na História brasileira, para desempenhar uma função essencial à Justiça caracterizada pela tutela do direito no âmbito da Administração Pública Federal. Entretanto, a escassa produção teórica sobre o tema e a pouca experiência prática, aliada à incipiente identidade institucional, tornaram a AGU, desde a sua instalação em 1993, refém de diversas e frequentemente contraditórias visões sobre o modelo de advocacia pública que se pretende ver consolidado.

Não é exagero afirmar que cada advogado-geral da União tentou conferir à Instituição não apenas nova feição, como era de se esperar, mas sim tentou lhe imprimir novo caráter, algumas vezes desvinculado das balizas constitucionais.

Nunca, todavia, uma visão suscitou tanta controvérsia como o que se apresenta no projeto de nova Lei Orgânica da AGU (Projeto de Lei Complementar 205/2012), encaminhado ao Congresso Nacional em 4 de setembro desde ano.

O assunto, à primeira vista, pode parecer meramente corporativista, tendo em vista os seus reflexos sobre as carreiras da advocacia pública federal. Todavia, interessa, e muito, ao cidadão brasileiro, na medida em que impacta diretamente na atuação da Instituição que representa a União judicial e extrajudicialmente, bem como realiza as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

A AGU tem vocação constitucional como instituição, ou seja, órgão do Estado brasileiro que exerce função complementar em relação às funções essenciais do Estado. Em verdade, a AGU não desempenha apenas função essencial à Justiça, mas sim ao funcionamento dos três Poderes. Cabe ao advogado público federal conferir estabilidade jurídica às ações e iniciativas da União, aconselhando o Poder Executivo a agir em conformidade com as leis do país e defendendo os atos da União perante o Poder Judiciário. Por isso, a necessidade de se buscar um modelo de advocacia pública federal assentado nas normas e valores constitucionais que definem o Estado Democrático de Direito.

O projeto de lei orgânica em questão, ao trazer particulares de fora dos quadros da AGU para exercer as funções constitucionais asseguradas aos advogados públicos federais concursados, compromete a segurança de uma atuação imparcial, especialmente no consultivo. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, no “VI Encontro Nacional dos Advogados Públicos Federais (Enafe)”, realizado em outubro deste ano, alertou para esse risco de aparelhamento institucional: “É pressuposto que o administrador não possa ter nenhuma influência sobre quem emitiu parecer jurídico. Porque, é claro que se ele tem alguma influência sobre quem emitiu o parecer, ele buscou calço em quem não estava em condições lhe oferecer calço nenhum. Quem está em cargo de comissão no serviço público, mas não é estável, quem está designado para aquela função, evidentemente não tem as condições jurídicas indispensáveis para manifestar-se com isenção e equilíbrio. Isso explica porque certos maus administradores querem cercar-se de cargos em comissão para dar parecer.”

A atual lei orgânica (Lei Complementar 73/1993) de fato não prevê qualquer impedimento para a ocupação dos cargos comissionados existentes. Entretanto, era de se esperar que uma nova proposta de Lei Orgânica da Advocacia Pública Federal apresentasse um avanço institucional no sentido da exclusividade para o exercício da função de advogado público federal aos membros concursados, pois se trata de uma exigência que decorre do artigo 131 da Constituição Federal, que estabelece a aprovação em concurso público como requisito para ingresso nos quadros da Advocacia-Geral da União.

Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal sempre se posicionou firmemente contra a usurpação das atribuições privativas de advogados públicos federais, tendo assentado que o único cargo em comissão que pode ser ocupado por pessoas estranhas à carreira é o do próprio advogado-geral da União e seu substituto (Ações Diretas de Inconstitucionalidade 159, 881, 1.679, 2.581 e 2.682).

Na nova lei orgânica, há também dispositivo que compromete a autonomia do advogado público federal, tolhendo-o naquilo que há de mais precioso e necessário no exercício profissional da advocacia pública — a expressão do livre pensamento — tornando a hierarquia técnica e a sujeição funcional dos membros a regra que, se desobedecida, passa a caracterizar erro grosseiro e infração disciplinar.

Se a cidadania é fundamento do Estado brasileiro, é também fundamento da AGU. Se o Estado brasileiro constitui-se em Estado Democrático de Direito, a AGU não pode ser senão a advocacia do Estado Democrático de Direito. Essa é a AGU que a Constituição idealizou. Essa é a AGU da luta dos advogados públicos federais. Essa é a AGU defendida pela União dos Advogados Públicos Federais do Brasil.


Simone Fagá é diretora-geral da União dos Advogados Públicos Federias do Brasil (Unafe).

Ruy Telles de Borborema Neto é membro do Conselho Fiscal da União dos Advogados Públicos Federias do Brasil (Unafe).

Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2012


CFOAB acata sugestões da Comissão Nacional da Advocacia Pública

Lançamento de consulta sobre condições de trabalho dos advogados públicos e adoção de diretriz única em defesa da Advocacia Pública foram confirmados pelo presidente da Ordem.


PFN lança livro em Vitória nesta terça, 30/10

O Tombamento à Luz da Constituição Federal de 1988, de autoria da PFN Adriana Zandonade, será lançado no Auditório da Faculdade de Direito de Vitória, às 19h.


Combate à sonegação passa pela reestruturação da PGFN

Por Allan Titonelli Nunes

A corrupção tem propiciado um intenso debate da sociedade e da imprensa a respeito do desvio de conduta existente nas relações institucionais e privadas da administração pública do país. O julgamento do mensalão e as eleições municipais estão catalisando a difusão desse tema.

Essa realidade também esteve no centro da discussão quando da apuração de outros escândalos, como o caso da fraude ao INSS capitaneado pela Jorgina de Freitas; o processo de impeachment do ex-presidente Collor, decorrente da acusação de fraudes na reforma da casa da dinda e desvio de dinheiro de campanha; a fraude na construção do TRT de São Paulo, que culminou na cassação do senador Luiz Estevão, conhecido, também, como “caso Lalau”, entre tanto outros.

Em cada acontecimento dessa natureza devemos extrair dos fatos maneiras de coibir as condutas irregulares, evitando, assim, o desvio das verbas públicas.

A corrupção, entretanto, não é o maior problema relacionado ao desvio de conduta, precipuamente se comparado com os dados relativos à sonegação. Segundo estudos da Fiesp o custo médio anual da corrupção no Brasil pode ser calculado entre R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões, representando aproximadamente de 1,5% a 2,6 % do PIB.[1] A sonegação, de outro lado, segundo estudos do IBPT, determina a evasão de R$ 200 bilhões, cujos dados levam em conta apenas as pessoas jurídicas, destacando, ainda, que o faturamento anual não declarado por essas empresas chega a R$ 1,32 trilhão.[2]

Os dados deixam claro que a sonegação é uma corrupção qualificada, resultando, respectivamente, no desvio ou não ingresso de receitas aos cofres públicos.

Natural que para o alcance dos objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado será necessária a arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização daqueles. Portanto, ambas as práticas, corrupção e sonegação, acabam por comprometer as políticas públicas a serem executadas pelo Estado.

Logo, é fundamental que o Estado adote medidas para evitar esses desvios. Considerando a maior repercussão econômica da sonegação, e a brevidade da análise, passa-se a analisar a sonegação em consonância com os deveres institucionais do Estado para promover seu controle.

A sonegação acaba afetando a isonomia e provocando graves desigualdades sociais, assim, para enfrentarmos esses problemas e construirmos um país mais igualitário, diminuindo a desigualdade social existente, é primordial que todos contribuam, respeitando, evidentemente, a capacidade contributiva. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações espontaneamente.

Dessa forma, é importante que o Estado seja dotado de órgãos de arrecadação bem estruturados para exercer esse controle. Nesse pormenor, o Ordenamento Jurídico Brasileiro incumbiu à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a arrecadação dos tributos e demais receitas, não pagas e inscritas em dívida ativa da União.

A cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa da União garantirá a isonomia entre o devedor e o cidadão que paga seus tributos, evitando, também, a concorrência desleal e todas as suas consequências nefastas, como o desemprego.

Um órgão de recuperação bem aparelhado propiciará evitar a sonegação, garantindo, consequentemente, maior disponibilidade de caixa para a execução das políticas públicas.

Todavia, essa lógica está distante da realidade do órgão, o qual carece de uma carreira efetiva de apoio, estrutura física, técnica e instrumental adequada para o exercício das atividades dos procuradores da Fazenda Nacional, falta de provimento de todo o quadro efetivo de procuradores, sistemas informatizados não integrados, entre outros problemas.

Face a precariedade de recursos, surpreendentemente, o órgão tem apresentado resultados relevantes, resultado da atuação dedicada dos seus procuradores e da criatividade na utilização dos recursos que lhe são destinados.

Levando em conta apenas os dados relativos ao ano de 2011 a PGFN evitou a perda de R$ 277.562.496.807,83(duzentos e setenta e sete bilhões, quinhentos e sessenta e dois milhões, quatrocentos e noventa e seis mil oitocentos e sete reais e oitenta e três centavos) para os cofres da União e arrecadou o montante de R$ 25.482.287.233,73 (vinte e cinco bilhões, quatrocentos e oitenta e dois milhões, duzentos e oitenta e sete mil duzentos e trinta e três reais e setenta e três centavos), ao erário federal.[3]

Considerando-se o valor total arrecadado e a despesa realizada pela PGFN em 2011, temos que, para cada R$ 1 (um real) alocado neste órgão, suas atividades retornaram à sociedade e ao Estado, aproximadamente, R$ 53,93 (cinquenta e três reais e noventa e três centavos). Se acrescermos ao total arrecadado os valores das vitórias judiciais e extrajudiciais da PGFN, que refletem a manutenção do caixa da União, teremos um retorno de R$ 642,52(seiscentos e quarenta e dois reais e cinquenta e dois centavos) para cada R$ 1 (um real) de despesa.[4]

Pode-se somar aos dados aqui apresentados o alto índice de vitórias da PGFN nas causas em que há contestação, aqui tomado em sentido lato, chegando a 88% das ações, comprovando a alta especialização e dedicação dos procuradores da Fazenda Nacional.[5]

Relevante também registrar que a carga de trabalho e condições impostas aos integrantes da PGFN são bem inferiores àquelas existentes no Poder Judiciário, paradigma em relação aos órgãos/instituições envolvidas com a prestação jurisdicional, o qual conta com cerca de 19 servidores para auxiliar o trabalho de cada juiz federal, enquanto os procuradores da Fazenda Nacional não possuem nem 1 servidor para apoiar as suas atividades. Isso sem registrar que cada procurador da Fazenda Nacional é responsável por uma média de 7.000 processos judiciais, carga 30% maior que a dos Magistrados Federais, sem contar as inúmeras atividades administrativas atinentes aos procuradores da Fazenda Nacional.[6]

Esses números demonstram que a realidade existente na PGFN não é condizente com a condição estratégica do órgão, bem como o fato de que a União não tem combatido a sonegação de forma efetiva.

Nesse pormenor, temos que a preservação da função estratégica da atividade de fiscalização e arrecadação da União é garantida desde a criação do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf) através do Decreto-Lei 1.437/75, o qual tem como escopo financiar o reaparelhamento e reequipamento das atividades de fiscalização e arrecadação da União, conforme preconiza o artigo 6° da legislação citada.

Todavia, a União, a despeito do que determina a Lei 7.711/88, a qual vincula as receitas do fundo, na subconta da PGFN, para reestruturação do órgão, tem contingenciado esses valores para os fins mais diversos possíveis, entre eles a realização do superávit primário.[7]

A falta de respeito à lei e à eliminação dos problemas enfrentados pelo órgão demonstram que a sonegação não é o principal objetivo de combate por parte do governo. Para o bem de nosso Estado Democrático de Direito, da eficiência administrativa, da estruturação do planejamento estratégico do Estado, do combate à sonegação e à concorrência desleal é essencial que essa realidade mude.

[1]Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/competitividade/downloads/custo%20economico%20da%20corrupcao%20-%20final.pdf> Acesso em 23.10.2012.

[2]Disponível em: <http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/13649/175.pdf> Acesso em 23.10.2012.

[3]Disponível em: <http://www.pgfn.gov.br/noticias/PGFN%20Em%20Numeros%20-%202011.pdf> Acesso em 23.10.2012.

[4]Ibid.

[5]Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=12782&Itemid=6> Acesso em 23.10.2012.

[6]GADELHA, Marco Antônio. Os Números da PGFN. 2. ed. Sinprofaz. Brasília: 2011. Disponível em: <http://www.sinprofaz.org.br/publicacao.php?id=110927181741-1a3209da4c42460ab1808cb468ad34f6&arquivo=/s/images/stories/pdfs/numeros_pgfn_2011.pdf&titpub=Os%20N%C3%BAmeros%20da%20PGFN%20-%202011&> Acesso em 23.10.2012.

[7]NUNES, Allan Titonelli. NETO, Heráclio Mendes de Camargo. País deve aplicar receita da PGFN no próprio órgão. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 23 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-ago-23/pais-investir-receita-pgfn-proprio-orgao> Acesso em 23.10.2012.


Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz).

Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2012


O PIS e a COFINS das instituições financeiras: perspectivas e expectativas do julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 400.479 e 609.096

A inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo do PIS/COFINS já está pacificada no STF, mas a discussão quanto ao alcance da incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras e companhias seguradoras não está sepultada.

Em homenagem aos professores Sacha Calmon e Misabel Derzi, ícones do direito tributário brasileiro.


Certo, nos autos do referido Recurso Extraordinário n. 609.096[1], sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski[2], o STF reconheceu a repercussão geral da discussão sobre a incidência do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras.[3]

Cuide-se que o Tribunal, em sessão plenária de 19.8.2009, iniciou o julgamento do mencionado Recurso Extraordinário n. 400.479[4], sob a relatoria do ministro Cezar Peluso – recentemente aposentado -, no qual se discute a incidência da COFINS sobre as receitas financeiras operacionais das companhias seguradoras.

Nesse referido RE 400.479, após o extenso voto do relator ministro Cezar Peluso, o ministro Marco Aurélio, em antecipação aos votos dos demais ministros, pediu vista dos autos para melhor exame. Em 4.5.2012, Sua Excelência – o ministro Marco Aurélio – devolveu os citados autos para julgamento. Está-se no aguardo de sua reinclusão na pauta do Plenário da Suprema Corte.

Esses aludidos julgamentos são a continuação das discussões acerca da validade constitucional do alargamento da base de cálculo da COFINS instituída pelo § 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98.

Com efeito, o STF iniciou a apreciação desse tema (COFINS BASE DE CÁLCULO) em 12.12.2002, nos autos do Recurso Extraordinário n. 346.084, sob a relatoria originária do ministro Ilmar Galvão, mas que teve como redator do acórdão o ministro Marco Aurélio.

Nesse RE 346.084[5], a Corte decidiu que não poderia o legislador autorizar a incidência do PIS/COFINS sobre “a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvidas e da classificação contábil adotada”.

No citado julgamento que decretou a inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo da COFINS, estabelecida no referido § 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98, o redator do acórdão ministro Marco Aurélio[6] entendeu que somente poderia incidir a mencionada contribuição, àquela época, antes do advento da Emenda Constitucional n. 20/98, sobre a receita bruta ou faturamento:

o que decorra quer da venda de mercadorias, quer da venda de serviços ou de mercadorias e serviços, não se considerando receita diversa.

Sucede, no entanto, que o ministro Cezar Peluso[7], conquanto acompanhasse o redator na decretação de inconstitucionalidade, entendeu que o faturamento é a receita decorrente das atividades empresariais típicas da pessoa jurídica.

No referido julgamento desse recordado RE 346.084 houve um pequeno debate entre os ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio sobre a eventual incidência da COFINS sobre as receitas financeiras de instituições que prestam serviços financeiros.[8]

Nesse mencionado debate deixou-se aberta a porta para a discussão acerca da incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras e das companhias seguradoras.

Pois bem, se o tema da inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo do PIS/COFINS já restou pacificado no seio do Tribunal, a discussão quanto ao alcance da incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras e companhias seguradoras não está sepultada, tendo em vista as mudanças de composição da Corte e o fato de que as variações de composição têm significado variações de jurisprudência.[9]

Esse dado necessita de reflexões: a mudança de composição da Corte deve implicar na mudança de orientação jurisprudencial? A jurisprudência é do Tribunal ou é da maioria dominante naquele período? E na hipótese de súmula vinculante, se houver uma mudança de composição que não autorize o seu cancelamento? E se a maioria dominante não pretender se subordinar à súmula vinculante?

À luz do texto constitucional, a jurisprudência é da Corte e não da composição momentânea, por isso que as súmulas vinculantes necessitam de pelo menos 2/3 dos ministros aderindo a sua aprovação, depois de reiteradas decisões sobre o tema. Ou seja, a súmula vinculante deve nascer madura e ponderada e deve ter a chancela de pelo menos 8 ministros da Corte (Art. 103-A, CF).

Nada obstante, o Regimento Interno do STF permite que um único julgamento de um RE com repercussão geral viabilize a edição de uma súmula vinculante (art. 354-E, RISTF). O que deve prevalecer a Constituição Federal ou o Regimento Interno do STF?

Por esse ângulo, na hipótese de mudança de composição e que eventualmente 7 ministros discordem da vigência e aplicabilidade de alguma súmula vinculante, em homenagem à segurança e à confiabilidade do Tribunal, esses 7 ministros deverão se curvar ao mandamento dominante da súmula. Com isso, pretendeu o constituinte criar condições de estabilidade institucional na jurisprudência do STF.

Mas e se os 7 ministros se mantiverem rebeldes à súmula vinculante? Qual a saída institucional? Nos termos do art. 52, II, CF, o Senado Federal deverá processar e julgar os ministros do STF por crime de responsabilidade.

Com efeito, nos termos da Lei n. 1.079, de 10.4.1950, art. 39, itens 4 e 5, são crimes de responsabilidade dos ministros do STF, além de outros, ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo e proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções.

Ora, se os ministros não respeitarem a súmula do próprio Tribunal estarão incorrendo nos aludidos crimes de responsabilidade.

Mas se o Tribunal, via mandado de segurança ou qualquer outro expediente, trancar ou infirmar o processo e o julgamento do Senado Federal em face de crime de responsabilidade de algum de seus membros?

Nessa hipótese, a saída institucional é dramática: Forças Armadas para garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem (art. 142, CF).


Pessoalmente, tenho plena convicção de que os ministros que têm assento nas cátedras do STF são pessoas responsáveis e absolutamente conscientes das graves responsabilidades que o cargo lhes impõe, de modo que essas alusões são meras especulações acadêmicas. Nada disso que cogitamos se tornará realidade. Espero.

Com efeito, a história brasileira tem revelado que os ministros do STF têm demonstrado um agudo faro de sobrevivência institucional, de modo que não é da tradição da Corte agredir frontalmente os demais poderes nem extrapolar das suas atribuições constitucionais.[10]

Retorno ao tema do PIS/COFINS das instituições financeiras.

Nessa perspectiva, a discussão sobre a incidência do PIS/COFINS sobre as receitas financeiras das instituições financeiras, ante as variações de composição do Tribunal, pode revelar surpresas.

Mas quais são os principais fundamentos normativos e argumentos jurídicos levantados pelos contribuintes? Quais são os da Fazenda Nacional?

Os contribuintes alegam, em síntese, que as receitas financeiras não são sujeitas à incidência do PIS e da COFINS, por não serem receitas de serviços, pelo fato de que não decorrem da venda de mercadorias ou da prestação de serviços que sejam remuneradas por um “preço”, pois este – o preço decorrente de uma venda – viabiliza o faturamento ou a receita bruta.[11]

A Fazenda Nacional defende posição diametralmente contrária: as receitas financeiras das instituições financeiras são as suas receitas operacionais típicas e sobre elas devem incidir o PIS e a COFINS.[12]

Tenha-se que o acórdão recorrido nos autos do multicitado RE 609.096, oriundo do egrégio Tribunal Federal da 4ª Região, sob a lavra do eminente juiz federal convocado Leandro Paulsen, acolheu a pretensão do contribuinte e decidiu que as receitas financeiras não se enquadram no conceito de faturamento.[13]

No voto que o juiz Leandro Paulsen prolatou por ocasião desse citado julgamento, há a seguinte passagem favorável às pretensões dos contribuintes:

Também esclarecedor é o art. 2º da mesma LC 116 ao dispor no sentido de que o imposto sobre serviços não incide sobre o ‘valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, o valor dos depósitos bancários, o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras’.

É que, embora sob a denominação de não-incidência, não se trata de prestação de serviços, de modo que não pode ser tributado a título de ISS, tampouco a receita correspondente poderia ser considerada como receita de prestação de serviços.

Esse será o tema central da controvérsia: se a intermediação financeira é prestação de serviços e se as receitas decorrentes dessa intermediação financeira são as operacionais das instituições financeiras, sujeitas, portanto, à incidência do PIS e da COFINS. [14]

Malgrado o brilhantismo daqueles que entendem que as receitas financeiras das instituições financeiras e das companhias seguradoras não devem sofrer a incidência do PIS e da COFINS, entendo que razão não lhes assiste.

Com efeito, o que o STF decidiu, quando decretou a inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo da COFINS (art. 3º, § 1º, Lei 9.718/98), foi que as receitas não-operacionais estariam fora da incidência desse aludido tributo. Logo, em sentido contrário, as receitas operacionais sofreriam a incidência normativa dessa contribuição social.

Também não colhe o argumento de que as intermediações financeiras prestadas pelas instituições financeiras não seriam prestações de serviços, pelo fato de que estariam excluídas da incidência do ISSQN.

Ora a exclusão reforça o caráter de serviço dessa atividade das instituições financeiras, pois somente se exclui o que se estava dentro. Do contrário, ante a imunidade tributária dos templos religiosos diremos que eles não são prédios? Ou que a imunidade dos livros lhes afasta o caráter de mercadorias?

Em suma, com esteio nos precedentes do STF e estribado no texto constitucional, podemos defender que todas as receitas operacionais das atividades empresariais típicas, regulares e habituais da pessoa jurídica se sujeitam ao recolhimento do PIS/COFINS, especialmente as instituições financeiras possuidoras de indiscutível poderio econômico e patrimonial superior ao de vários outros contribuintes.

De modo que, sem embargo dos judiciosos argumentos contrários, acredito que o STF decidirá pela incidência desses mencionados tributos sobre as receitas operacionais das instituições financeiras e das companhias seguradoras. Aguardemos.


Notas

[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 609.096. Plenário. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Recorrentes: Ministério Público Federal e União Federal (Fazenda Nacional). Recorrido: Banco Santander do Brasil S/A.

[2] LEWANDOWSKI, Ricardo. Recurso Extraordinário n. 609.096. Voto. Acórdão. Folhas 131 e 132. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2011: “Com efeito, o tema apresenta relevância do ponto de vista jurídico, uma vez que a definição sobre o enquadramento das receitas financeiras das instituições financeiras no conceito de faturamento para fins de incidência da COFINS e da contribuição para o PIS norteará o julgamento de inúmeros processos similares, que tramitam neste e nos demais tribunais brasileiros. Ademais, a discussão também apresenta repercussão econômica porquanto a solução da questão em exame poderá ensejar relevante impacto financeiro no orçamento das referidas instituições, bem como no da Seguridade Social e no do PIS. Além disso, a matéria em debate guarda similitude com a questão tratada no RE 400.479-AgR-ED/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, submetido ao julgamento do Plenário desta Corte em 18/8/2009, mas suspenso, na mesma data, em razão do pedido de vista do Min. Marco Aurélio.”

[3] Recurso Extraordinário n. 609.096. Preliminar de repercussão geral. Julgado em 3.3.2011. Acórdão publicado em 2.5.2011. Ementa: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. COFINS E CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS. INCIDÊNCIA. RECEITAS FINANCEIRAS DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. CONCEITO DE FATURAMENTO. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

[4] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 400.479. Plenário. Relator ministro Cezar Peluso. Recorrente: Axa Seguros Brasil S/A. Recorrida: União Federal (Fazenda Nacional).


[5] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 346.084. Plenário. Redator ministro Marco Aurélio. Recorrente: Divesa Distribuidora Curitibana de Veículos S/A. Recorrida: União Federal (Fazenda Nacional). Julgamento em 9.11.2005. Acórdão publicado em 1º.9.2006. EMENTA: CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE – ARTIGO 3º, § 1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998 – EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO – INSTITUTOS – EXPRESSÕES E VOCÁBULOS – SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PIS – RECEITA BRUTA – NOÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada.

[6] AURÉLIO, Marco. Recurso Extraordinário n. 346.084. Voto. Acórdão. Folhas 1.266 e 1.267. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2006.

[7] PELUSO, Cezar. Recurso Extraordinário n. 346.084. Voto. Acórdão. Folhas 1.210 e 1.255. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2006.

[8] Recurso Extraordinário n. 346.084. Debate entre os ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio. Acórdão. Folhas 1.254 e 1.255. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2006. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – “Sr. Presidente, gostaria de enfatizar meu ponto de vista, para que não fique nenhuma dúvida ao propósito. Quando me referi ao conceito construído no RE 150.755, sob a expressão ‘receita bruta de venda e mercadorias e prestação de serviço’, quis significar que tal conceito está ligado à ideia de produto do exercício de atividades empresariais típicas, ou seja, que nessa expressão se inclui todo incremento patrimonial resultante do exercício de atividades empresariais típicas. Se determinadas instituições prestam tipo de serviço cuja remuneração entra na classe das receitas chamadas financeiras, isso não desnatura a remuneração de atividade própria do campo empresarial, de modo que tal produto entra no conceito de ‘receita bruta igual a faturamento’.” O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – “Mas, ministro, seria interessante, em primeiro lugar, esperar a chegada de um conflito de interesses, envolvendo uma dúvida quanto ao conceito que, por ora, não passa pela nossa cabeça.” O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – “Mas passa pela cabeça de outros. Já não temos poucas causas, Sr. Ministro, para julgar. Quanto mais claro seja o pensamento da Corte, melhor para a Corte e para a sociedade”. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – “Não pretendo, neste julgamento, resolver todos os problemas que possam surgir, mesmo porque a atividade do homem é muito grande sobre a base de incidência desses tributos. E, de qualquer forma, estamos julgando um processo subjetivo e não objetivo e a única controvérsia é está: o alcance do vocábulo ‘faturamento’. E, a respeito desse alcance, temos já, na Corte, reiterados pronunciamentos”. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – “É o que estou fazendo: esclarecendo meu pensamento sobre o alcance desse conceito”. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – “Senão, em vez de julgarmos as demandas que estão em Mesa, provocaremos até o surgimento de outras demandas, cogitando de situações diversas”.

[9] Quando houve o início do julgamento do citado RE 346.084, em 12.12.2002, o Tribunal estava sob a presidência do ministro Marco Aurélio e tinha em sua composição os seguintes ministros: Moreira Alves, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Gilmar Mendes. Quando o julgamento do RE 346.084 se encerrou, em 9.11.2005, a Corte era presidida pelo ministro Nelson Jobim e tinha em sua composição os seguintes ministos: Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. No início do julgamento do RE 400.479, em 19.8.2009, o Tribunal era presidido pelo ministro Gilmar Mendes e tinha a seguinte composição: Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Até o final deste de 2012 ocorrerá a aposentadoria do ministro presidente Ayres Britto e segundo notícias veiculadas nos órgãos de imprensa também solicitará aposentadoria o ministro decano Celso de Mello. Atualmente, além desses dois ministros citados, a Corte é composta pelos ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa (futuro presidente), Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber. Nessa toada, o Tribunal, em 2012, terminará o ano desfalcado de 3 ministros, em face da aposentadoria do ministro Peluso e da iminente aposentadoria do ministro Ayres Britto e da cogitada aposentadoria do ministro Celso de Mello. Para a vaga decorrente da aposentadoria do ministro Peluso a escolha do ministro Teori Albino Zavascki homenageou a Constituição. Aguardemos as próximas nomeações para o STF. Espera-se que a Presidenta da República mantenha essa linha de escolha: jurista, com pelo menos 35 anos de experiência profissional (e não apenas de vida, pois o STF não é lugar de “menino” ou de “principiantes”), de notável saber jurídico e de reputação ilibada. Há brasileiros com essas qualidades. Que Sua Excelência mantenha-se iluminada pela razão e pelo bom senso na hora de indicar o homem ou a mulher para a cátedra suprema da magistratura brasileira. O Supremo é o coroamento de uma carreira brilhante, de quem tem grandes e inquestionáveis contribuições jurídicas. Magistratura é coisa séria e deve ser apenas para pessoas honradas e altamente preparadas.

[10] Confira-se: ALVES JR., Luís Carlos Martins. Memória Jurisprudencial – Ministro Evandro Lins. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2009 (www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoinstitucionalmemoria).

[11] Constam nos autos dos citados RREE 400.479 e 609.096 pareceres confeccionados, em defesa dos interesses dos contribuintes, por juristas excepcionais e admiráveis: José Souto Maior Borges, Paulo de Barros Carvalho, Celso Antonio Bandeira de Mello, Alcides Jorge Costa, Marco Aurélio Greco, Tércio Sampaio Ferraz Jr., José Arthur Lima Gonçalves e Humberto Ávila.

[12] ALVES JR., Luís Carlos Martins. Direito Constitucional Fazendário. Brasília: Escola da AGU, 2011 (www.agu.gov.br/publicações/livroseletronicos).

[13] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação em Mandado de Segurança n. 2005.71.00.019507-0/RS. 2ª Turma. Relator Juiz convocado Leandro Paulsen. Julgamento em 7.8.2007. EMENTA: “TRIBUTÁRIO. PIS E COFINS. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. Apenas durante a vigência temporária do art. 72 do ADCT é que se viabilizou a cobrança de PIS das instituições financeiras sobre a receita operacional bruta. De janeiro de 2000 em diante, não há mais tal suporte constitucional específico a admitir outra tributação que não a comum. O STF declarou a inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º, da L. 9.718/98, por entender que a ampliação da base de cálculo da COFINS por lei ordinária violou a redação original do art. 195, I, da Constituição Federal, ainda vigente ao ser editada a mencionada norma legal. Tomado o faturamento como produto da venda de mercadorias ou da prestação de serviços, tem-se que os bancos, por certo, auferem valores que se enquadram em tal conceito, porquanto são, também, prestadores de serviços. É ilustrativa a referência, feita em apelação, à posição n. 15 da lista anexa à LC 116, em que arrolados diversos serviços bancários, como a administração de fundos, abertura de contas, fornecimento ou emissão de atestados, acesso, movimentação, atendimento e consulta a contas em geral etc. Mas as receitas financeiras não se enquadram no conceito de faturamento.”

[14] Tenha-se que a 2ª Turma do STF, no julgamento dos RREE 346.983 e 525.874, que versava acerca da contribuição ao PIS das instituições financeiras, decidiu pela validade jurídica da Medida Provisória n. 517/94. Eis as ementas dos acórdãos dos referidos feitos: TRIBUTO. Contribuição para o PIS. Medida Provisória nº 517/94. Fundo Social de Emergência. Matéria estranha à MP. Receita bruta. Conceito Inalterado. Constitucionalidade reconhecida. Recurso provido. A Medida Provisória nº 517/94 não dispõe sobre Fundo Social de Emergência, mas sobre exclusões e deduções na base de cálculo do PIS. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recursos Extraordinários ns. 346.983 e 525.874. 2ª Turma. Relator ministro Cezar Peluso. Julgados em 16.3.2010. Acórdãos publicados em 14.5.2010).


Cejuris divulga produção acadêmica de PFNs

Procuradores da Fazenda são autores de livros sobre temas de interesse da carreira e da comunidade jurídica.


A dispensa da certidão negativa de débitos e a insustentabilidade da recuperação judicial das empresas

Alexandre Carnevali da Silva
Procurador da Fazenda Nacional

Muito se fala sobre sustentabilidade. Sustentabilidade é a palavra de ordem nas questões de meio ambiente e economia. No meio ambiente a palavra ganha força por conta da necessidade de manutenção de um meio ambiente saudável, e na economia a palavra ganha força por conta da necessidade de sobrevivência da atividade econômica em longo prazo. Nesse campo, as teorias econômicas evoluíram para considerar o lucro não mais como o objetivo único e de curto prazo, mas sim como elemento sustentador da saúde da empresa, junto com outras posturas para sua manutenção no mercado, afinal, uma empresa é parte e, ao mesmo tempo, interage com toda a sociedade.

O leitor pode, com as singelas assertivas acima, concordar que uma empresa deve pensar na sustentabilidade do seu negócio, e que soluções rápidas podem não ser soluções “sustentáveis”.

Pois bem, é nessa linha que pretendemos desenvolver a idéia de que dispensar uma sociedade da apresentação da certidão de regularidade fiscal, afeta a “sustentabilidade” do processo da recuperação judicial, e por conseqüência, a sustentabilidade da própria empresa.

De longa data se afirma que uma empresa que pretende a recuperação judicial não tem condições de apresentar a certidão aqui tratada, justamente por que está em dificuldades, e por estar em dificuldades, não tem como quitar seus tributos. Há um erro nesse raciocínio porque a certidão de regularidade fiscal pode ser obtida com o mero parcelamento dos tributos atrasados, e não apenas com a quitação integral dos mesmos. É a conhecida certidão positiva com efeitos de negativa.

Na esfera federal basta a quitação inicial de 1/60 avos dos tributos (isto é, o pagamento da primeira parcela, pois o parcelamento federal ordinário pode ser obtido em até sessenta vezes) e o interessado obtêm o documento pretendido pelo artigo 57 da lei de Recuperação Judicial.

E por qual razão falamos em sustentabilidade no início desse singelo texto? Porque de nada serve um plano de recuperação judicial se a cobrança tributária literalmente “pipocar” logo em seguida em face da empresa, uma vez que os tributos continuarão exigíveis e darão ensejo ao prosseguimento das execuções fiscais.

Nesse sentido foi a mens legis ao definir, como pressuposto da concessão da recuperação judicial a apresentação da certidão de regularidade fiscal. Não se trata da mera sanha arrecadatória do fisco. A questão se resume em não proceder a um complexo trabalho de recuperação judicial fadado ao fracasso final, por conta de inúmeras execuções fiscais que com a mais cristalina certeza, bombardearão a sociedade recém recuperada.

A dívida tributária permanecerá, e o processo de execução fiscal, continuará. Proceder a uma recuperação judicial sem atentar para esse dois fatos é proceder a uma recuperação de curto prazo, sem sustentabilidade alguma, o que põe por terra justificativas como “a sobrevivência da empresa”, a “manutenção dos empregos”, e outras que necessariamente precisam estar calcadas na já citada sustentabilidade do negócio.

Como dito mais acima, se apenas fosse possível obter a certidão de regularidade fiscal com o pagamento integral dos tributos, sua dispensa realmente faria sentido. Porém, há de se registrar que o mero parcelamento dos tributos permite a obtenção do documento. E é justamente o parcelamento das dívidas civis, gerais, que de certa forma a empresa busca no seu processo de recuperação judicial.

Registre-se, mais uma vez que na esfera federal é possível o parcelamento comum em até sessenta vezes, o que representa cinco anos para quitação da dívida. Registram-se também os programas pretéritos do governo federal aonde dívidas podiam ser parceladas em até quinze anos, como o REFIS II (lei 10.684/03) e o REFIS IV (lei 11.941/09). Nessas situações o sujeito também obtém a certidão positiva com efeitos de negativa. Há quem diga que o prazo do parcelamento pode ser exíguo, para o implemento da recuperação, mas observe o leitor que estamos a falar de um prazo ordinário de sessenta meses, ou cinco anos, para a quitação.

De fato a redação dos artigos 57 da lei 11.101/2005 e 191-A do Código Tributário Nacional, numa rápida leitura, aponta para a quitação total dos tributos, mas observe o leitor que esses mesmos artigos trazem à tona o artigo 151 do mesmo código, que trata da suspensão da exigibilidade com base no parcelamento.

Muitos artigos jurídicos elencam situações aonde a empresa que solicita a recuperação já é, naturalmente, devedora do fisco, e o fisco é sempre o primeiro a ser preterido num momento de crise pois as empresas buscam satisfazer seus fornecedores em primeiro lugar, e exigir a quitação dos tributos seria o mesmo que as condenar à falência, invertendo a ordem de prioridades. Dizem outros que a exigência da certidão é uma exigência política do fisco, absolutamente injustificável. O curioso é que ninguém fecha a equação “do que fazer” logo após a recuperação, com as execuções fiscais remanescentes.

É fato indiscutível que, se a empresa nada parcelar, as execuções fiscais cedo ou tarde prosseguirão, e todo o complexo trabalho elaborado pelo Poder Judiciário na recuperação, resultará num nada social. Ou no ínício da recuperação, como quer a legislação, ou eventualmente no seu decorrer (o que já é contrário à lei), o parcelamento das dívidas tributárias deverá acontecer, e não pura e simplesmente fingir-se que a dívida tributária não existe.

O ato de se analisar demonstrações contábeis e financeiras permite conhecer a situação econômica das empresas, possibilitando a tomada de decisões acertadas, e previsão das tendências futuras – nesse sentido, temos que a dívida fiscal de uma empresa não pode ser ignorada, e a dispensa da certidão de regularidade fiscal é perigoso vetor de problemas futuros, pois não permite a tomada da decisão financeira mais acertada.


A idéia da recuperação judicial não pode ser a de “ganhar tempo”. Deve ser a recuperação real, propriamente dita. Cabe ao Juízo de Direito a enorme tarefa de separar o “joio do trigo”, separar as empresas que de fato têm condições de se recuperar daquelas que pretendem apenas “ganhar um tempo”.

O legislador ao exigir a apresentação da certidão de regularidade fiscal (que, repita-se, pode ser obtida com o parcelamento) intuiu a necessidade da sustentabilidade da medida, pois as dívidas tributárias permanecerão. Empregos e fornecedores, empresa e produtos acabarão por deixar de existir, cedo ou tarde, se não houver a pretendida sustentabilidade econômica.

Ainda que em um caso concreto seja a certidão dispensada, o que é contrário a norma legal, ao menos um juízo de valor deverá existir em se aquilatar o volume da dívida tributária. A informação do passivo fiscal deverá ser colacionada pela Fazenda Pública, e como dito acima, em algum momento deverá ser exigida a certidão de regularidade fiscal. Afinal, custa acreditar na recuperação de uma empresa que, v.g., apresente uma dívida tributária cinco ou seis vezes maior do que o patrimônio total disponível.

Para melhor provar a assertiva, notadamente em casos aonde a recuperação pressupõe também a venda de ativos da empresa, trazemos ao leitor alguns aspectos discutidos no bojo do Agravo de Instrumento Nº 0017542-89.2012.4.03.0000/SP (2012.03.00.017542-0/SP), que considerou ineficaz a alienação de um imóvel. Referido bem estava penhorado em uma execução fiscal, e no processamento da recuperação judicial da empresa devedora, ele foi alienado. Como na recuperação judicial não havia qualquer plano para pagamento dos tributos, foi declarada a ineficácia da venda do bem. Observe o leitor a sensibilização da questão tributária no processo da recuperação, e como uma decisão da esfera judiciária federal impactou no mesmo.

Vale ressaltar ainda que uma decisão que afaste a aplicação do art. 57 da Lei 11.101/05, como quer boa parte dos artigos sobre o tema, parte de premissas totalmente equivocadas, segundo as quais a apresentação de CND inviabilizaria o plano de recuperação judicial e que as Fazendas Públicas não sofreriam nenhum prejuízo, porquanto o deferimento da recuperação não suspenderia as execuções fiscais, conforme art. 6º, §7 do mesmo diploma legal.

Os Juízos Estaduais, conforme verificado na prática diária, determinam que as execuções fiscais devem continuar, mas desde que não inviabilizem o plano de recuperação. Esse é justamente o ponto nevrálgico que surge, no mesmo sentido da decisão acima relatada: o que fazer com a dívida fiscal nas recuperações judiciais onde o plano de recuperação prevê a alienação de todo patrimônio da empresa?

Trata-se de verdadeiro aporismo, porquanto as execuções fiscais não são suspensas, porém perdem completamente a efetividade, pois não haverá patrimônio a ser constrito e leiloado. Destarte, a interpretação dada por alguns à Lei 11.101/05 retira completamente a efetividade da busca forçada do crédito tributário, numa verdadeira revogação de conteúdo.

O leitor deve, contudo, perceber que as Fazendas Públicas não participam do plano de recuperação judicial por uma questão de lógica: falta-lhes interesse, já que o art. 57 da Lei 11.101/05 exige a apresentação de certidão negativa de débito, ou comprovação da suspensão da exigibilidade débito.

Quando a Lei 11.101/05 prescreveu que as execuções fiscais não se suspendem pelo deferimento do processamento da recuperação judicial, ela tratou das novas inscrições em dívida ativa, porquanto as dívidas anteriores necessariamente deveriam estar quitadas ou com a exigibilidade suspensa, pela prova da juntada da certidão.

Dessa forma, uma recuperação judicial nesses moldes relatados, além de causar prejuízo ao erário, não soluciona a continuidade da empresa em face das execuções fiscais remanescentes, e pode constituir-se em falência de fato, às avessas, sem considerar a ordem correta dos créditos devidos.

Ressaltamos por fim que não há “milagre” no mundo dos negócios. Muitos milagres no mundo dos negócios ocorrem por favoritismo, às vezes de cunho duvidoso, outros tantos de grandes apostas de alto risco negocial; e mais uma vez, insistimos, se não resta possível o parcelamento em longos cinco anos do passivo fiscal, a recuperação real e efetiva de um negócio ganha contornos de milagre.

Ainda que seja de fato dispensada a apresentação da certidão em debate para o iniciar da recuperação, algum plano para pagamento dos impostos haverá de existir, com a participação da Fazenda Pública, e no decorrer do processo da recuperação essa certidão comprobatória dos parcelamentos deverá ser colecionada aos autos, e mesmo que a lei não a exigisse, a pura e simples existência da dívida tributária já implicaria nessa postura.

A questão começa a se delinear como lógica. Há de se ter alguma sustentabilidade econômica e social na recuperação judicial das empresas.

Referências bibliográficas

1 – Sustentabilidade Financeira – Proposta de indicador de sustentabilidade financeira aplicável às micro e pequenas empresas, Miriane de Almeida Fernandes, disponível em http://www.faccamp.br/madm/Documentos/producao_discente/2011/02fevereiro/MirianeAlmeidaFernandes/sustentabilidade_financeira-proposta_de_indicador_de_sustentabilidade_financeira_aplicAvel_as_micro_e_pequenas.pdf, acesso em 07/09/2012

2 – A Gestão Ética, Competente e Consciente, tributo à memória de E.F. Schumacher, Messias M. de Castro e Lúcia Maria Alves de Oliveira – Prefácio de Rubens Ricupero – Mbooks, 2008.

3 – Manifestação sobre recuperação judicial e execução fiscal, Dr. Rafael Carlos Cruz de Oliveira, Procurador da Fazenda Nacional, exarada no bojo de execução fiscal de Grande Devedor, São Bernardo do Campo, 2011


Prescrição intercorrente no âmbito da execução fiscal

Por Guilherme Chagas Monteiro

A execução fiscal é o procedimento para cobrança de créditos já constituídos pelos órgãos lançadores, nos termos do artigo 142 do Código Tributário Nacional (Exemplo: Secretaria da Receita Federal do Brasil, INCRA, Fundo Gestor do FGTS, entre outros.) e rege-se pela Lei 6830/1980 (Lei de Execuções Fiscais — LEF) que trata especificamente da cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública.

“Com o lançamento eficaz, quer dizer, adequadamente notificado ao sujeito passivo, abre-se à Fazenda Pública o prazo de cinco anos para que ingresse em juízo com a ação de cobrança (ação de execução). Fluindo esse período de tempo sem que o titular do direito subjetivo deduza sua pretensão pelo instrumento processual próprio, dar-se-á o fato jurídico da prescrição. A contagem do prazo tem como ponto de partida a data da constituição definitiva do crédito, expressão que o legislador utiliza para referir-se ao ato de lançamento regularmente comunicado (pela notificação) do devedor.” (CARVALHO, Paulo de Barros, página 470)

Nestes termos, inadimplida a obrigação no âmbito administrativo e esgotados todos os prazos constitucionalmente estabelecidos para exercer sua defesa quanto à impugnação do crédito, faz-se necessário a remessa à Procuradoria da Fazenda Nacional para apuração e inscrição em Dívida Ativa do montante devido para consequente ajuizamento da execução fiscal.

Eis o título executivo que ensejará a propositura da execução fiscal.

Esta Dívida Ativa, nos termos do artigo 3º da LEF, regularmente inscrita, goza de presunção de certeza, liquidez e exigibilidade.

Portanto é pressuposto para o ajuizamento da execução fiscal que o crédito esteja previamente constituído pelo lançamento e que haja o título executivo pela inscrição do débito em dívida ativa (Certidão de Dívida Ativa — CDA).

Assim, visa a execução fiscal o recebimento do crédito tributário, com seus consectários legais, satisfazendo-se a obrigação tributária por meio de um pronunciamento judicial.

Constituído definitivamente o crédito pelo lançamento e inscrito em dívida ativa, tem então a Fazenda Pública cinco anos para o ajuizamento da execução fiscal nos termos do artigo 174 do Código Tributário Nacional.

Da Prescrição

O artigo 174 do CTN dispõe sobre o prazo de prescrição da cobrança do crédito tributário já constituído definitivamente pela autoridade administrativa nos ditames do artigo 142 também do CTN.

A prescrição é a perda do direito à ação para cobrança do crédito tributário, sendo caracterizada como hipótese de extinção do crédito tributário nos termos do artigo 156 inciso V do CTN.

Por exigir a constituição do crédito tributário, não se vislumbra a possibilidade de uma prescrição, quiçá intercorrente, no âmbito do processo administrativo tributário (Precedentes do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e do Conselho de Contribuintes).

Nestes termos existe a súmula 11 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Portaria 106/2009 que unificou o entendimento dos Conselhos) que reza: “Não se aplica a prescrição intercorrente no Processo Administrativo Fiscal” bem como existia a súmula do 1º Conselho de Contribuintes, 11 (DOU 1 de 26/06/2006) e a súmula 7 do 2º Conselho de Contribuintes (DOU 26/09/2007) bem como a súmula 4/2003 do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo.

O prazo prescricional para a Fazenda inicia-se somente com a notificação da decisão final do processo administrativo fiscal, ficando o prazo, até tal notificação, suspenso nos termos do artigo 151 do CTN.

O referido prazo de cinco anos do artigo 174 do CTN decorre de vontade do legislador.

Para que não se eternizasse o prazo para cobrança, sabiamente o legislador estabeleceu o prazo razoável de cinco anos aos débitos tributários, sendo que transcorrido esse prazo, haveria extinção do crédito tributário e por isso deve a Fazenda Pública estar atenta a tal prazo para que haja eficiência no recebimento do crédito.

Com a propositura da execução fiscal antes do término do prazo de cinco anos, a sociedade, através de seu representante legal, qual seja, o Procurador da Fazenda Nacional, tem mais uma chance de arrecadação do montante devido e não pago no prazo e forma devidos, o que trará, com a arrecadação tributária, inúmeros benefícios sociais com a alocação de tais recursos recuperados nos mais variados setores do país como a saúde, educação, infra-estrutura, projetos sociais e aparelhamento dos Poderes Públicos.

Proposta a execução fiscal, repita-se, dentro do prazo legal de cinco anos, deve a União (Credora/Exequente) dar andamento ao processo no sentido de localizar o devedor e seus bens.

Para evitar uma inércia da Fazenda Pública na recuperação do crédito público, o legislador estabeleceu mecanismos para que não se deixasse, uma vez proposta a execução fiscal, a Fazenda dar o regular e efetivo andamento processual e com isso criou-se a figura da “prescrição intercorrente”.

Da Prescrição Intercorrente

Esta é caracterizada pela inércia continuada e ininterrupta no curso do processo executivo. É fenômeno endoprocessual.

Ultrapassada a fase de propositura da ação fiscal com o despacho do juiz que ordena a citação (nos termos dos artigos 8º, parágrafo 2º da LEF e 174, parágrafo único, inciso I do CTN com a redação da Lei Complementar 118/2005), afastando a prescrição tributária em si, este interrompe a prescrição, iniciando, somente então, o suposto prazo quinquenal de uma provável prescrição intercorrente, caso haja inércia continuada e ininterrupta da Fazenda.


Diz-se que ocorre hipótese de prescrição intercorrente, se é que efetivamente existente, em situações nas quais há comprovada e inconteste inércia do Credor em promover diligências no sentido de obter a satisfação do crédito exequendo.

Daniel Monteiro Peixoto (página 11), utilizando-se da jurisprudência do STJ, delimita seis momentos para o cômputo do termo inicial para contagem da prescrição e prescrição intercorrente:

“Fala-se em contagem: i) ora da data da constituição definitiva do crédito; ii) ora da data do despacho da petição inicial da execução fiscal pelo juiz; iii) da data da citação da parte contrária; iv) da data da suspensão da execução ante a falta de localização do devedor para a citação, ou dos seus bens, para a penhora (artigo 40 da LEF); v) a partir de um ano após o despacho que determina a suspensão da execução (artigo 40, parágrafo 2º da LEF; e, vi) da data em que determinado o arquivamento dos autos, logo após o transcurso do prazo anterior.”

Tal figura deixa de existir quando a União se mostra ativa no andamento processual, tanto na propositura da ação executiva quanto na busca do executado e de bens que possam satisfazer a finalidade da execução fiscal.

Com o ajuizamento do executivo fiscal e com a realização de diligências (sem negligência) por parte da Fazenda Pública para localização do executado ou de seus bens, ou havendo causas de suspensão (artigo 151 do CTN) ou de interrupção (artigo 174, parágrafo único do CTN) do prazo prescricional não se poderia penalizar a administração com a prescrição intercorrente pelo fato de haver um impedimento na cobrança do crédito.

Nem se poderia falar em prescrição intercorrente por culpa inerente a mecanismos da justiça nos termos da súmula 106 do STJ que reza:

“Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência”.

É princípio jurídico dos mais elementares que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Nisto mesmo se funda a súmula 106 do STJ, que criou mecanismos para evitar que a parte diligente no processo seja prejudicada pela evasão empreendida pela parte que não age com lealdade.

Outrossim, o parágrafo 4º do artigo 40 da Lei 6830/1980 não estabelece em seu corpo de texto um motivo específico para reconhecer a prescrição, como prevê a súmula 106 do STJ

.

A Lei 11051/2004, norma de natureza processual, com aplicação imediata, inclusive aos processos já em curso, acrescentou o referido parágrafo 4º ao artigo 40 da Lei 6830/80, que passou a vigorar com a seguinte redação:

“Artigo 40 — O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

1º – Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.

2º – Decorrido o prazo máximo de um ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.

3º – Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.

4º – Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decreta-la de imediato. (Incluído pela Lei 11.051 de 2004).

5º – A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no parágrafo 4o deste artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda. (Incluído pela Lei 11.960 de 2009).

A referida lei 11051/2004, contudo, alterou, significativamente, a jurisprudência do STJ, pois, anteriormente a tal lei, decidia-se reiteradamente que a prescrição intercorrente não poderia ser reconhecida de ofício pelo juiz da execução fiscal uma vez que esta versa sobre direito de natureza patrimonial, e, portanto, sobre direitos disponíveis, nos termos dos artigos 166 do Código Civil bem como dos artigos 16, 128 e 219, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil, dependendo, então, de provocação da parte interessada.

A base legal para tanto partia do artigo 219, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil, que até a edição da Lei 11280/2006, consignava que: “Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato”, porém, a nova redação agora dispõe: “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”.

A partir da lei 11051/2004 em atenção ao princípio da economia processual, com a nova redação do parágrafo 4º do artigo 40, e com a alteração do artigo 219, parágrafo 5º, do Código e Processo Civil pela lei 11280/2006, passou-se a admitir a prescrição intercorrente de ofício, mas, somente após a prévia oitiva da Fazenda Pública.

O Ministro Teori Albino Zavascki em Recurso Especial, descreve bem a mudança de jurisprudência do STJ:

“TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO. DIREITO PATRIMONIAL. POSSIBILIDADE, A PARTIR DA LEI 11.051/2004”.

1. A jurisprudência do STJ sempre foi no sentido de que “o reconhecimento da prescrição nos processos executivos fiscais, por envolver direito patrimonial, não pode ser feita de ofício pelo juiz, ante a vedação prevista no artigo 219, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil” (RESP 655.174/PE, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 09.05.2005).


2. Ocorre que o atual parágrafo 4º do artigo 40 da LEF (Lei 6.830/80), acrescentado pela Lei 11.051, de 30.12.2004 (artigo 6º), viabiliza a decretação da prescrição intercorrente por iniciativa judicial, com a única condição de ser previamente ouvida a Fazenda Pública, permitindo-lhe arguir eventuais causas suspensivas ou interruptivas do prazo prescricional. Tratando-se de norma de natureza processual, tem aplicação imediata, alcançando inclusive os processos em curso, cabendo ao juiz da execução decidir a respeito da sua incidência à hipótese dos autos.

3. Recurso especial a que se dá provimento. (REsp 873.271/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Turma, julgado em 06.03.2007, DJ 22.03.2007 página 309)”

O STJ, porém, em 12/12/2005 – DJ 08.02.2006, editou a súmula 314, nestes termos:

“Em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, findo o qual se inicia o prazo da prescrição qüinqüenal intercorrente.”

Referida súmula não faz menção expressa ao despacho de arquivamento provisório após o prazo de um ano bem como à intimação da Fazenda da suspensão ou do próprio arquivamento provisório, dando a entender que transcorrido o prazo de um ano da suspensão, se iniciaria o prazo da prescrição intercorrente.

A Prescrição Intercorrente no âmbito da Execução Fiscal Federal — Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Adequando à evolução legislativa e jurisprudencial, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, por suas notas, atos declaratórios e pareceres, que vinculam a instituição, também evoluiu e hoje segue a jurisprudência majoritária dos Tribunais superiores, de acordo com a legalidade estrita.

Assim, nos termos da jurisprudência hoje firmada, a prescrição intercorrente, legalmente estabelecida, é de plena aplicação e reconhecimento por parte da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional nos casos assim detectados nas execuções fiscais federais quando, verificado retroativamente no tempo, constata-se sua incidência.

Bibliografia:

ALEXANDRE, Ricardo, Direito Tributário Esquematizado. 2ª edição. São Paulo, Editora Método, 2008.

CARVALHO, Aurora Tomazini de. Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, Artigo de Paulo César Conrado. Execução fiscal em matéria tributária: Decretabilidade ex officio da prescrição intercorrente. 2ª edição São Paulo, MP Editora, 2010.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ª edição. São Paulo, Editora Saraiva, 2005.

LEAL, Antônio Luis da Câmara. Da prescrição e da decadência. São Paulo, Editora Saraiva, 1939.

LOPES, Mário Luís Rocha. Processo Judicial Tributário – Execução Fiscal e Ações Tributárias. 4ª edição. Rio de Janeiro, Editora Lumen Júris, 2007.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Secretaria de Reforma do Judiciário. Estudos sobre Execuções Fiscais no Brasil. São Paulo, 2007.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 1ª edição. São Paulo, Editora Método, 2009.

PEIXOTO, Daniel Monteiro. Prescrição Intercorrente na Execução Fiscal: Vertentes do STJ e as Inovações da lei n. 11.051/2004 e da Lei Complementar n. 118/2005. Revista Dialética de Direito tributário nº. 125, São Paulo, Editora Dialética, 2006.


Guilherme Chagas Monteiro é procurador da Fazenda Nacional em Guarulhos (SP).

Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2012


PFNs participam do Congresso Internacional de Direito Tributário

12ª edição do evento realizado em Recife pelo Instituto Pernambucano de Estudos Tributários contou com a presença de Procuradores da Fazenda nas mesas de debates.


Manifesto da Advocacia Pública Federal em defesa do Estado

Forvm e Unafe se posicionam sobre proposta orçamentária do Governo Federal que aumenta em 25% o valor da remuneração dos cargos comissionados na Administração Pública Federal.


Advocacia de Estado: Cícero, Demóstenes e Macunaíma

Em artigo, diretoria do SINPROFAZ sintetiza os aspectos a serem combatidos no PLP nº 205/2012, os quais precisam ser enfrentados no Congresso Nacional. Para Sindicato, nova Lei Orgânica deveria resguardar atribuições constitucionais da AGU.


Advocacia de Estado e de governo na consultoria jurídica

Por Julio de Melo Ribeiro

Recentemente, intensificou-se, entre os membros da Advocacia-Geral da União, o debate acerca da exclusividade do exercício das funções de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo por advogados concursados. Discussão que mantém estreito vínculo com a polêmica da advocacia de Estado versus advocacia de governo. A par de alguns argumentos político-jurídicos suscitados pelos defensores de uma ou outra teses, algumas questões me parece importante destacar.

Dada a respeitabilidade tanto dos defensores da opinião de que a consultoria jurídica da administração pública é função privativa de advogados concursados quanto dos que defendem a tese oposta, tenho por necessária a seguinte premissa: a certeza de bons propósitos. Quem defende a mencionada exclusividade não o faz por interesses corporativistas, mas porque realmente acredita que advogados concursados estão menos sujeitos à corrupção e que isso é fundamental numa área tão sensível quanto historicamente problemática como a do controle de legalidade das políticas públicas (processos de licitação e acompanhamento de contratos e convênios aqui incluídos). Já os que se alinham no front oposto certamente não objetivam se locupletar dos possíveis desvios a que a consultoria privada dá ensejo, mas acreditam, de fato, que a liberdade de nomeação, pelos ministros de Estado, dos advogados incumbidos de lhes prestar assessor amento jurídico (ou dos chefes, pelo menos) é uma consequência imperiosa do regime democrático. Legitimidade democrática ou probidade na administração pública? Qual a escolha certa a fazer?

Esse é um falso dilema, ouso ajuizar. A tese de que os ministros de Estado devem ter ampla liberdade para escolher os advogados que o auxiliarão na implementação das políticas públicas democraticamente apresentadas ao eleitor, sob pena de se inviabilizar a concretização das escolhas populares, contém, a meu ver, um irremediável equívoco de premissa: a Advocacia-Geral da União não é órgão formulador de políticas públicas, sendo sua legitimidade fundada, não no voto popular, mas na Constituição.

A advocacia pública cumpre a importante função de formatar juridicamente as ações governamentais, exercendo o controle de juridicidade dos atos administrativos. Executa essa tarefa, no entanto, sem substituir o gestor público. Um advogado da União, na consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo, diz o que seja de direito, mas sem se dar o direito de questionar o mérito das escolhas políticas do governo. Ademais, mesmo nos casos em que a lei torna obrigatória a emissão prévia de um parecer jurídico, a decisão final, inclusive quanto à questão de direito, é do agente público legitimado pelas urnas. Pelo que a livre nomeação e exoneração de advogados por ministros de Estado não é um pressuposto do regime democrático. A não ser que se admita a intromissão do advogado na esfera de discricionariedade do governante, a Advocacia-Geral da União não precisa de “arejamento” político-partidário.

A legitimidade dos órgãos da advocacia pública, já se vê, não decola do voto popular, o mesmo se dando com o Ministério Público (órgão, inclusive, que está na origem histórica da Advocacia-Geral da União), a Defensoria Pública e o próprio Poder Judiciário. O compromisso de juízes, promotores de justiça, defensores e advogados públicos é com a Constituição, fonte do dever-poder desses agentes do Estado. Tais instituições retiram a legitimidade da Constituição, e exatamente por isso também não se afastam da ideia de democracia. É que a vontade permanente do povo, aquela expressada no momento constituinte do Estado brasileiro, foi a de criar um Poder (o Judiciário) e alguns aparelhos “essenciais à Justiça”, todos marcados pelo traço da independência técnica. Independência que, para esses órgãos, é tão fundamental quanto o voto popular o é para o Congresso Nacional. Independência, ainda uma vez, que viabiliza o p róprio Estado de Direito, na medida em que o desassombro institucional é que leva um juiz a declarar a inconstitucionalidade de uma lei votada por representantes eleitos pelo povo ou que conduz um advogado da União a emitir parecer jurídico contrário à vontade do governante legitimado nas urnas.

O fato é que o instituto jurídico do concurso público consiste num dos mais robustos pilares da independência técnica dos órgãos da advocacia pública. Em caso de conflito entre a vontade da lei e a do governante, o advogado, na atividade de consultoria e assessoramento jurídicos, deve sempre opinar pela prevalência da primeira, o que já demonstra a total incompatibilidade dessa função “essencial à Justiça” com a existência de cargos de livre nomeação e exoneração. Reforçando o juízo: a legitimidade democrática dos órgãos da advocacia pública se funda na Constituição e no exercício independente da tarefa de servir à ordem jurídica. Nesse cenário, a livre nomeação e exoneração de advogados por ministros de Estado, em vez de reverenciar o regime democrático, conspurca-o.

Enquanto isso, do outro lado da balança está o argumento de que advogados concursados estão menos sujeitos à corrupção. O juízo me parece adequado, pelo menos como regra geral. Explico: é claro que não se está a dizer que advogados públicos de carreira são melhores ou mais éticos do que os outros, nem que há uma presunção de má-fé dos políticos-nomeantes. Não é nada disso! O que se tem por indiscutível é que, exercendo um cargo de livre nomeação e exoneração, o compromisso maior do advogado passa a ser com as vontades do governante, quando a ordem jurídica é que deveria estar no topo das prioridades. Se, eventualmente, a vontade de quem governa for a de atropelar a Constituição e as leis (não falo aqui, por óbvio, do exercício da discricionariedade própria – e constitucionalmente legítima – dos gestores públicos), o advogado “comissionado”, que não se submeteu a concurso público e não tem a garantia da estabi lidade (como visto acima, instrumentos essenciais da independência técnica), está mais propenso a “fazer vista grossa” do que aquele que não põe o seu cargo em risco. É da natureza humana querer salvar o próprio pescoço (no caso, o emprego).

Ademais, se olharmos não muito longe na história do Brasil, o que veremos é um passado (em alguns lugares, ainda um presente) de patrimonialismo na administração pública. Historicamente, os cargos públicos foram distribuídos aos “amigos do rei” e nem sempre para a satisfação do interesse público. Logo, o salutar princípio constitucional do concurso público, mais do que concretização do anseio por igualdade, é, sim, tentativa de resposta a desvios de finalidade na atuação administrativa.

Todo o debate aqui analisado tem relação direta com a polêmica da advocacia de Estado versus advocacia de governo. Mais: a diferença entre advocacia de Estado e advocacia de governo está, exatamente, na forma pela qual são recrutados os advogados e no nível de independência deles. Nada a ver, portanto, com o objeto em si da atuação profissional. Os advogados públicos são chamados a defender uma ação permanente do Estado, uma política transitória do governo ou até a própria pessoa do governante, no regular exercício da função pública. Tudo pode consistir tanto numa advocacia de Estado quanto numa advocacia de governo.

Será advocacia de Estado se os advogados forem recrutados por modo impessoal e tiverem a independência suficiente para, em casos-limite, optar pelo respeito à Constituição e às leis. Será advocacia de governo se os advogados forem livremente nomeados e exonerados pelo governante, ficando deles inteiramente reféns. Faz parte da rotina de uma advocacia de Estado patrocinar as causas do governo (advocacia para o governo). O que a descaracteriza é o aparelhamento do órgão pelos governantes (advocacia pelo governo). Daí, mais uma vez, a importância fundamental do concurso público.

Como se vê, decidir pela exclusividade do exercício das funções de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo por advogados concursados, ao mesmo tempo em que não implica arredar um só milímetro do princípio democrático, importa no fortalecimento de um dos mais relevantes valores republicanos: o da probidade na administração da coisa (res) pública. Dito isso, fica fácil saber qual a escolha certa. É aquela feita pela Constituição brasileira de 1988: uma advocacia de Estado, e não de governo. Uma advocacia, às vezes, até para o governo, mas nunca pelo governo.

Julio de Melo Ribeiro é advogado da União e especialista em Direito Constitucional.


Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2012


PLP 205: Sinprofaz reitera suas críticas após repercussão na imprensa

Advogado-Geral da União, ministro Luís Adams, convocou entrevista coletiva nesta quarta, 12/9, para rebater críticas ao projeto.


Projeto sobre Lei Orgânica da AGU repercute na imprensa

PLP 205/12 foi trazido para o centro o debate em editoriais, reportagens e comentários jornalísticos. Risco de aparelhamento político da AGU chamou atenção da imprensa.


Curso de Formação de Estagiários na PRFN3

A coordenadora do Cejuris do SINPROFAZ já confirmou a programação de setembro do curso que ocorre desde agosto na unidade regional da PGFN. Há duas palestras marcadas para esta semana.


PLP 205/12: Nota oficial do SINPROFAZ

Em defesa de uma Advocacia de Estado, contra qualquer tentativa de aniquilamento institucional da Advocacia Pública Federal, o SINPROFAZ emite a presente nota.


PRFN3: prossegue nesta semana curso de formação para estagiários

A palestra ministrada em 16/08 foi exitosa, contando com a presença de 126 estudantes. Próxima aula será conduzida pela PFN Rita Dias Nolasco na quinta-feira, 23/08.


“A advocacia pública cresce com a democracia”

Por Marcos de Vasconcellos e Elton Bezerra Advogar para o Estado é diferente de advogar para o governo. Para Márcia Maria Barreta Fernandes Semer, presidente recentemente reeleita da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp), a diferença que, para leigos, pode parecer apenas de nomenclatura, deve ser resguardada com cuidado. A classe pode…


Curso de Formação na PRFN3 desperta interesse dos estagiários

Na sexta-feira, 10/08, foi proferida a segunda palestra do curso. Sucesso de público, evento promovido pelo Cejuris/SINPROFAZ reuniu 97 estudantes.


Falta de comprometimento da AGU afeta advocacia

É o que revela Allan Titonelli, presidente do SINPROFAZ, em artigo publicado nesta terça, 7/8, na revista eletrônica Consultor Jurídico.


Juiz não pode usar regra da PGFN para negar recurso

Por Marcos de Vasconcellos Juízes e desembargadores do Trabalho não podem usar regra administrativa para arquivar processos de execução fiscal. Isso porque os magistrados vinham aplicando a Portaria 815/2011 do Ministério da Fazenda para não julgar casos cujo valor é inferior a R$ 10 mil. De acordo com decisão do corregedor-Geral do Trabalho, ministro Barros…


Grande manifestação no Ministério do Planejamento dia 8 de agosto

Mobilização reunirá entidades que representam carreiras da Advocacia e Defensoria Públicas Federais, Auditoria do Fisco e do Trabalho, Delegados e Peritos da Polícia Federal e do Ciclo de Gestão e do Núcleo Financeiro, entre elas o Sinprofaz.


AGU é Função Essencial à Justiça, e deve ser composta por Membrosconcursados

Marcos Luiz da Silva – Presidente da Associação Nacional dos Advogados da União.

A Advocacia-Geral da União, instituição criada pelo Constituinte de 1988 para defender o Estado Brasileiro e o interesse público, passando a realizar algumas das atribuições que antes pertenciam ao Ministério Público Federal, poderá sofrer um duro golpe nos próximos dias. O Governo Federal se prepara para enviar ao Congresso Nacional um anteprojeto de Lei Orgânica para a instituição que a transforma em um “sistema”, pelo menos no nome, e ainda institui a possibilidade de que Advogados Privados não concursados passem a ostentar a condição de membros da instituição, com os mesmos direitos e prerrogativas que seriam concedidas a um Advogado da União concursado.

Segundo o anteprojeto, Advogados Privados nomeados para atuar em órgãos das Consultorias Jurídicas dos Ministérios, e que ocupam DAS na Esplanada, passariam a ser considerados MEMBROS DA AGU. Estes Advogados, portanto, durante o período em que permanecessem nos cargos, seriam considerados, para todos os efeitos, Advogados da União, como se tivessem se submetido ao dificílimo concurso público para essa importante carreira, considerada pelo texto constitucional função essencial à justiça.

Assim, caso o Ministro de uma determinada pasta queira ter a sua própria AGU, e os seus próprios Advogados da União, basta que nomeie para sua Consultoria Jurídica alguém com que tem afinidade político-ideológico, talvez membro do seu próprio partido político, e afinado com as suas ideias e propostas. Em resumo: a proposta abre as portas da AGU para o aparelhamento político-ideológico da instituição, que, como órgão essencial à preservação do Estado Democrático de Direito, deveria ser preservada e afastada de qualquer possibilidade de sofrer intervenção político-partidária em seus quadros.

Há ainda a possibilidade se que um parecer proferido por um Advogado da União seja substituído no processo administrativo, caso haja a discordância do seu superior. Nada mais ofensivo à independência técnica e a imunidade que é inerente à profissão do Advogado.

Esperava-se o contrário. A expectativa da imensa maioria dos Advogados da União era de que o anteprojeto traria muitos avanços, mas sem esses retrocessos. Em pleno ano de 2012, passados 22 (vinte e dois) anos da promulgação do texto constitucional em vigor, os Advogados da União alimentavam a expectativa de que viesse um texto mais progressista, e voltado para uma blindagem da instituição contra qualquer investida política, prevendo, por óbvio, que os cargos da instituição fossem privativos de membros da carreira. Isso já foi reconhecido em inúmeros julgados pelo Supremo Tribunal Federal em relação às Procuradorias Estaduais, cujas atribuições são privativas dos Procuradores de Estado concursados. A expectativa é que a AGU e o Governo Federal, visando atender o interesse público e da sociedade brasileira, buscassem esse caminho, o que, infelizmente, parece não ser o que vem ocorrendo.

A Sociedade Brasileira precisa ficar de olho. A AGU, e os Advogados da União, atuam em importantes políticas públicas promovidas pelo Governo Federal, como PAC, Copa do Mundo, Olimpíadas, mobilidade urbana, bolsa família, saúde, enfim, em praticamente toda e qualquer iniciativa administrativa da União. Esses profissionais reconhecidamente competentes são os responsáveis pela aferição de legalidade dos atos do Poder Público federal, e orientam os gestores públicos a como praticarem atos sem ferir a Constituição e as Leis do País. Participam de atos administrativos como licitações e contratos, acompanhando, com a seu tirocínio jurídico, todos os processos judiciais propostas contra a União, alguns bilionários e de forte impacto nas contas públicas.

Os Advogados da União estão atentos a essa proposta esdrúxula, e já lançaram campanha contra a “privatização” da AGU. É preciso que o Governo Federal recue nessa proposta, tão perniciosa à nossa instituição e ao Estado Brasileiro. Com isso, estará agindo com lucidez, e cumprindo o seu desiderato constitucional, que prega um Estado Democrático e Republicano, e não um Estado sujeito ao controle personalista e de interesses que não se coadunam com o interesse público.


“O tributo tem de ser distribuidor de riqueza”

Esta foi a chamada de capa da revista eletrônica Consultor Jurídico no último domingo, 29/07. A manchete refere-se à entrevista com o presidente do SINPROFAZ, Allan Titonelli.


Assista à participação do presidente do SINPROFAZ no programa Argumento

Representando o Forvm e o Sindicato, o presidente Allan Titonelli foi o entrevistado do programa Argumento veiculado esta semana na TV Justiça.


Cejuris abriga debate sobre Lei Orgânica da AGU

Entre os destaques da semana no espaço Cejuris, SINPROFAZ recomenda leitura de artigos sobre lei orgânica da AGU.


Zelo pela Advocacia Pública

Brasília – O Artigo “Zelo pela Advocacia Pública” é de autoria do secretário-geral do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho:

“A OAB é a entidade dos advogados privados e públicos. Nessa condição, tem atuado firmemente pela valorização de toda advocacia. São essenciais às lutas por honorários advocatícios, contra a obrigatoriedade de ponto, a favor da necessária reposição salarial e pelas prerrogativas da carreira.

Em recente julgado no Tribunal de Justiça do Maranhão, o presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavalcante Junior, fez pessoalmente a defesa oral do direito dos Procuradores do Estado à percepção dos honorários advocatícios, alcançando emblemático êxito. Além do apoio da seccional maranhense da entidade, por seu presidente Mário Macieira, a luta contou com a relevante participação da Associação dos Procuradores do Estado, por seu presidente Marcelo Terto. Não pode haver discriminação no exercício profissional, inexistindo razão para a negativa de repasse dos honorários ao advogado, seja privado ou público.

Outra importante conquista foi obtida no âmbito do Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Trata-se de ação ajuizada pela OAB de Minas Gerais, por seu presidente Luis Cláudio Chaves, contra a obrigatoriedade de ponto aos advogados públicos mineiros. A justiça decidiu revogar tal obrigação, considerando que o advogado não trabalha apenas em expedientes internos, tendo que se deslocar aos fóruns, realizar audiências e acompanhar diligências, incompatibilizando com a ideia de ponto. A diretoria do Conselho Federal esteve atenta ao tema e contribuiu de modo importante ao êxito da demanda.

A advocacia pública reivindica reposição de seu pagamento fixo mensal remuneratório. O Fórum da Advocacia Pública, integrada por Anpaf, Anpprev, Sinprofaz, Apaferj, Apbc e Anajur, coordenado por Allan Titonelle, presidente do Sinprofaz, contando com excelentes diretores, dentre os quais Rogério Filomeno, presidente da Anpaf, tem participado ativamente da campanha salarial, junto com outras relevantes entidades como a Unafe e a Anauni. A obtenção deste justo pleito das carreiras típicas de Estado conta com o apoio da OAB nacional, expressada em ato público realizado no Plenário do Conselho Federal da Ordem, no qual usou a palavra um diretor da OAB. Um passo importante será garantir, na Lei de Diretrizes Orçamentárias, a autorização para reajuste no Poder Executivo.

O projeto de novo Código de Processo Civil é outro importante momento de luta pela valorização do advogado público, como a responsabilização civil apenas nos casos de dolo ou fraude e a proibição de cominação de multa ao advogado público por descumprimento de ordem judicial pelo gestor, devendo sua responsabilização ser apurada pelo órgão de classe. O próximo passo é fazer previsão de que os honorários pertencem aos advogados públicos não se constituindo receita do Estado.

A OAB está atenta à pauta da advocacia pública, mercê da eficiente atuação de sua Comissão específica que cuida do tema, presidida pela Conselheira Federal Meire Mota Coelho, integrada por representantes das diversas entidades representativas dos advogados do setor. Basta lembrar, a firme reação da entidade contra a declaração de setores da magistratura que, de modo depreciativo, questionam a possibilidade de advogados perceberem honorários advocatícios, a partir do tacanho raciocínio de que Juiz deve perceber mais que advogado. Esqueceram o disposto no art. 7º. da lei federal 8.906, segundo o qual não há hierarquia entre advogados e juízes.

Com a lógica de defender o Estado e não governos, a advocacia pública cumpre a essencial função de proteger o patrimônio da sociedade. A independência funcional deve levar o advogado público a não ter compromisso com ilicitudes governamentais, devendo contribuir pela fiel aplicação do ordenamento jurídico e para o respeito dos direitos, portando-se como primeiro Juiz da administração pública.

Deve ser buscado um “Estado de Justiça”, no qual a defesa dos interesses públicos pode ser o reconhecimento pela própria administração de um direito privado assegurado pelo ordenamento. Todos os poderes, não apenas o Judiciário, possuem a função de realizar a Justiça, aplicando os valores constitucionais.

A melhor estruturação, qualificação e remuneração da advocacia pública é relevante não apenas tendo em vista assegurar a defesa dos interesses dos entes públicos, mas também para assegurar a independência técnica do advogado público, na condição de agente capaz de assegurar ao cidadão injustiçado a preservação de seu direito. As súmulas administrativas de procuradorias necessitam ser mais praticadas, com o intuito de evitar recursos judiciais meramente protelatórios, para ficar em apenas um exemplo.

A atuação independente do advogado público, seja no contencioso ou na consultoria, é garantia de boa gestão dos recursos arrecadados da sociedade e de respeito aos direitos do cidadão assegurados pelo ordenamento jurídico pátrio. O tratamento respeitoso e digno a esses profissionais é essencial, pois e assim, à maior eficiência do Estado brasileiro, respeitando os princípios da moralidade, legalidade e impessoalidade. Eis a razão pela qual a OAB vem tratando com a devida adequação e atenção as demandas da advocacia pública”.


Parceria entre Advocacia Pública e OAB se fortalece

Participação em audiências públicas, divulgação de notas e artigos, além do oferecimento de espaços físicos são demonstrações do apoio da Ordem às causas da Advocacia Pública.


Nova lei para a AGU trará benefícios para toda sociedade

Por Rogério Filomeno Machado

Há cerca de dez anos, os dirigentes da Advocacia-Geral da União (AGU) e os membros das carreiras jurídicas da instituição (advogados da União, procuradores federais, procuradores da Fazenda Nacional e procuradores do Banco Central) vêm discutindo e acenando para a necessidade de elaboração de uma nova Lei Orgânica para o órgão. Na gestão dos ministros Alvaro Ribeiro Costa e José Antonio Dias Toffoli, por exemplo, foram criados grupos internos, encarregados de estudar e de propor alterações na já vetusta Lei Complementar 73. Houve disponibilização, no site da instituição, de espaço para o envio de sugestões. As associações participaram. Houve debates, por vezes acalorados, sobre possíveis alterações. Contudo, infelizmente, nada saiu do papel.

A AGU do ano de 2012 é a mesma, sob o ponto de vista legal, daquela de 1993. Contudo, a instituição mudou, cresceu, ganhou credibilidade. Sabe-se que, no plano dos fatos, apresenta-se deveras distinta do momento em que promulgada sua defasada Lei Complementar. Hoje, anuncia-se a revisão da Lei Orgânica da AGU. A coragem para tornar concreto um antigo anseio (e uma providência administrativa necessária) já seria digna de elogios, vez que é disseminada, entre todas as carreiras, a insatisfação com suas atuais condições institucionais/normativas. Atualmente, os advogados públicos federais não gozam de qualquer prerrogativa. Sujeitam-se, por vezes, a arbitrárias decisões que os conduzem à pena de prisão civil. Não possuem segurança na atividade consultiva nem na contenciosa. Não gozam, sob qualquer aspecto, de tratamento isonômico com as demais funções essenciais à Justiça.

Ao tomarmos contato com o anteprojeto de nova Lei Orgânica da AGU (Projeto Adams), acabamos nos deparando com muitas das ideias discutidas ao longo dos anos, algumas delas fruto de consenso estabelecido, em histórico Pacto, entre as associações das carreiras jurídica da AGU. Há também novidades, a maioria delas salutares, outras poucas nem tanto. Contudo, devemos ter presente que o bom não é inimigo do ótimo. Nas condições (ou falta delas) atuais é que não é mais possível atuar. Enumeramos, abaixo, algumas das propostas que mais nos chamaram atenção:

  1. Criação de um sistema da Advocacia Pública da União. Em notável conquista institucional, o anteprojeto abarca todos os órgãos que exercem a advocacia pública no âmbito federal, incluídas, por exemplo, a Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça;
  2. O texto mostra-se afinado com a competência hoje mais destacada da instituição, qual seja, a viabilização jurídica das políticas públicas do Estado brasileiro;
  3. Há tímidos avanços na questão da exclusividade, hoje praticamente inexistente. No ponto, poderia ser mais audacioso o anteprojeto e ressalvar apenas o cargo de advogado-geral. Releva ilustrar que a jurisprudência do STF apresenta tendência no sentido de reforçar a exclusividade do exercício da advocacia pública por seus membros efetivos (ex: ADI 2.581).
  4. Cria-se a Secretaria-Geral de Contencioso Constitucional, que permitirá a padronização e racionalidade de atuação especialmente junto ao STF.
  5. Respeitando histórico acordo firmado entre as associações das carreiras jurídicas da AGU, o anteprojeto insere, como órgãos da instituição, a Procuradoria-Geral Federal e a Procuradoria-Geral do Banco Central e correlatamente estabelece, com precisão, as atribuições exclusivas dos advogados da União, procuradores federais, procuradores da Fazenda Nacional e procuradores do Banco Central.
  6. O texto estabelece direitos e uma série de prerrogativas, hoje completamente inexistentes, para o exercício das funções dos membros das carreiras jurídicas.
  7. Estabelece-se que as receitas de honorários advocatícios percebidos pela União e suas autarquias e fundações serão vinculadas à Advocacia-Geral da União. No ponto, mais adequada seria a determinação de que os honorários fossem destinados aos membros das carreiras jurídicas, pois, sabe-se, trata-se de verba (devida pela outra parte, não pelo Estado) que pertence aos advogados, públicos ou privados, como, aliás, demonstram dezenas de Procuradorias estaduais e municipais.

Enfim, por certo, tão logo seja o Projeto de Lei Complementar remetido ao Congresso Nacional, abrir-se-á a democrática possibilidade, ínsita ao sistema republicano, de melhorias em diversos dispositivos. Desde já, contudo, é possível observar que são previstos inúmeros avanços institucionais, de todo necessários para o adequado cumprimento do mister institucional conferido à advocacia pública federal. Não há dúvidas de que o texto proposto é infinitamente superior ao atual. E mais uma vez, diga-se: o bom não é inimigo do ótimo. Cabe, portanto, ao Poder Executivo finalmente dar este primeiro e decisivo passo. Após, caberá ao Parlamento o andamento ao projeto. Ao final, tem-se convicção, ganharão todos os Poderes e, especialmente, a população brasileira.


Rogério Filomeno Machado é procurador federal, presidente da Associação Nacional dos Procuradores Federais (Anpaf).

Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2012


SINPROFAZ convoca reunião com PFNs em Porto Alegre na quinta-feira, 19

Sindicato conclama os PFNs do Rio Grande do Sul a participarem de reunião nesta quinta para tratar da realidade crítica da Advocacia Pública Federal frente ao descaso do Poder Executivo.


Lei Orgânica da AGU não pode ser modificada sem debates

Por Luciane Moessa de Souza

Em alguns dos temas mais sensíveis para a advocacia pública federal, os dois anteprojetos em tramitação pouco avançam ou, no caso do anteprojeto Adams, chega-se a retroceder. É o caso dos seguintes temas: a) autonomia institucional (administrativa e financeira) da Advocacia-Geral da União; b) autonomia funcional ou independência técnica e inamovibilidade de seus membros; c) necessário fortalecimento da consultoria jurídica; d) necessário avanço em termos de democratização e profissionalização da gestão, aí incluídos o preenchimento de cargos de confiança, a lotação e a distribuição de trabalhos de acordo com critérios previamente definidos, relacionados ao perfil do cargo e de seus potenciais ocupantes.

É bom notar que todos estes aspectos são facetas de uma mesma moeda: a realização de um controle de juridicidade efetivo da atuação da Administração Pública, missão primordial da advocacia pública, quando compreendida enquanto advocacia de Estado, como peça essencial na engrenagem que está presente em um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Também merece menção, pelas inúmeras controvérsias envolvidas, o fato de os dois anteprojetos tratarem de forma inadequada da possibilidade de utilização de meios consensuais de solução de controvérsias na esfera pública, já que as diretrizes neles contidas pouco ou nada contribuem para o avanço de tais métodos de forma segura, eficiente e democrática.

Por fim, descreverei como dois temas controvertidos de grande importância para as carreiras da advocacia pública federal são tratados de forma absolutamente inadequada pelo anteprojeto Adams: a representação judicial e extrajudicial de agentes públicos e o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.

A autonomia institucional da Advocacia-Geral da União é assunto ignorado pelo anteprojeto Adams, ao passo que o anteprojeto Toffoli a prevê de forma bastante “tímida”, eis que sujeita aos termos de contrato de desempenho firmado com os três poderes. Cabe ressaltar que, no anteprojeto Adams, a inexistência de tal autonomia não se revela apenas na ausência de menção expressa à mesma, mas sobretudo na mal-vinda ingerência do Poder Executivo na nomeação de todos os cargos de cúpula da instituição, desde o procurador-geral federal, da União e do Banco Central, passando pelos procuradores-chefes de todas as autarquias e fundações federais até o consultor geral da União e os consultores jurídicos junto aos Ministérios — tudo nos mesmos moldes da escolha política do advogado-geral da União.

É de se reconhecer que o sistema constitucional em vigor concede a esta função o mesmo tratamento instável que caracteriza todos os cargos de ministro de Estado, já que não se assegura ao seu titular o exercício de qualquer mandato, a exemplo do que se dá com o procurador-geral da República. Todavia, se, para efeito de nomeação do advogado-geral, seria necessária uma mudança no texto constitucional, não se pode dizer o mesmo de tais funções e nada impede — muito pelo contrário, tudo recomenda — que a Lei Orgânica venha a prever critério diverso do meramente político para o preenchimento de tais cargos, bem como a existência de mandato, de modo a proteger os seus titulares de pressões políticas ilegítimas, que muitas vezes distorcem a atuação de seus ocupantes com o intuito puro e simples de permanecer no cargo.

Cabe sublinhar que o anteprojeto Adams se diferencia negativamente do elaborado durante a gestão Toffoli pelo fato de estipular que tais cargos de cúpula serão exercidos “preferencialmente” por membros da carreira, enquanto que o de Toffoli estabelece que tais cargos devem ser sempre exercidos por membros de carreira. Além disso, no anteprojeto Toffoli, a escolha dos ocupantes de tais cargos é de competência do AGU, devendo apenas serem ouvidos o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, para os cargos de procurador-geral da Fazenda Nacional e procurador-geral do Banco Central, respectivamente.

É evidente que não faz qualquer sentido falar em autonomia funcional ou independência técnica (como dispõe o anteprojeto Toffoli, de forma genérica, “nos termos de regulamentação do Conselho Superior da AGU”) dos membros da advocacia pública federal se nossos gestores ocuparem cargos de natureza política e não técnica. Ademais, a falta de respeito à independência técnica está evidente nos dois anteprojetos em todas as previsões de que os pareceres deverão ser aprovados por superiores hierárquicos (detentores singulares de cargos), sem jamais ser prevista a discussão de divergências por comitês de especialistas, que poderiam propiciar a uniformização do entendimento no âmbito de uma discussão de caráter técnico e aberta à participação dos interessados e detentores de argumentos relevantes.

A hierarquia entre membros da carreira, que deveria ser apenas administrativa, revela-se assim claramente técnica, com a cristalina sobreposição do critério político sobre o jurídico. No anteprojeto Toffoli, contudo, ao menos está prevista a inamovibilidade dos membros, ressalvadas as mesmas exceções constitucionalmente previstas para magistrados e membros do Ministério Público, colocando tais membros a salvo de retaliações pela via das remoções de ofício.

Aliás, é preciso notar que esta prevalência do poder político sobre o critério jurídico se expressa claramente quando não há regras prévias para distribuição dos trabalhos, como é comum na consultoria jurídica de cúpula. Este sistema permite claramente o direcionamento das atividades de acordo com a possibilidade de “influenciar” no conteúdo do parecer que será emitido. Se eventualmente algum imprevisto ocorrer e for proferido parecer que desagrade aos “superiores”, está prevista a excrescência do instituto da avocação (mantida pelos dois anteprojetos), sendo que o anteprojeto Adams “supera” qualquer precedente ao estabelecer que o parecer não aprovado deverá ser desentranhado dos autos do procedimento administrativo, de modo a prejudicar a um só tempo a transparência administrativa e a possibilidade de controle posterior da juridicidade da atuação administrativa, seja pelo controle externo, seja pelo controle social, seja pelo controle judicial.

Também é expressão clara desta renúncia à autonomia e ao reconhecimento da competência técnica da instituição para realizar controle interno de juridicidade o fato de que se mantém o sistema de pareceres jurídicos não vinculantes para a Administração Federal, a menos que o(a) presidente da República os aprove com esta finalidade. Atribui-se ao leigo, detentor de cargo político, a palavra final acerca de opinião de caráter técnico-jurídico, afrontando-se assim a lógica e os sustentáculos básicos de um Estado Democrático de Direito.

No que concerne ao controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, os anteprojetos Toffoli e Adams se diferenciam, pois o primeiro prevê que haja manifestação do advogado-geral da União (não vinculando a posição deste, portanto, à defesa do texto questionado nas ações diretas de inconstitucionalidade), ao passo que o anteprojeto Adams tem uma redação que constitui uma contradição lógica, já que fala ao mesmo tempo em defesa do ato normativo e defesa da supremacia da Constituição, tal qual se a própria razão da instituição do controle de constitucionalidade (qual seja, a possibilidade de serem editados atos normativos inconstitucionais) inexistisse.

No que toca à profissionalização e democratização da gestão, nenhum dos dois anteprojetos, sequer de longe, prevê a necessidade de estipular critérios claros e objetivos para lotação de membros da carreira e seus servidores, para o preenchimento de funções de confiança ou para a distribuição dos trabalhos. Tais critérios somente são lembrados no que concerne à promoção. Contudo, eles são necessários não apenas para proteção de interesses corporativos, mas sobretudo para a garantia de exercício das atribuições institucionais de forma eficiente e isonômica — interesse de toda a sociedade portanto. Ainda caberia aos anteprojetos avançar na previsão de hipóteses e formato de audiências e consultas públicas. Estas estão previstas apenas no anteprojeto Adams, porém da forma centralizada que caracteriza todo o anteprojeto, como atribuição exclusiva do advogado-geral da União. Vale registrar que o anteprojeto Adams também retrocede ao não prever a Ouvidoria-Geral da Advocacia-Geral da União, extensamente detalhada no anteprojeto Toffoli.

No que tange à utilização de meios consensuais de solução de controvérsias, assim como desistências e reconhecimentos de pedidos, os dois anteprojetos mantêm a excessiva centralização de atribuições e pecam por não estipularem claramente os critérios jurídicos para prática de tais atos e homologação de atos ou acordos celebrados. Se não é adequada a celebração de transações individualmente por cada advogado público, seria muito mais apropriada a criação de comitês temáticos aptos a analisarem e homologarem tais acordos do que a concentração no advogado-geral da União — o que certamente inviabiliza a expansão desta alternativa.

Outro equívoco comum aos dois anteprojetos consiste em manter as competências atinentes aos meios consensuais no âmbito da Consultoria-Geral da União, que não tem qualquer ingerência sobre os conflitos judicializados. Por último, resta evidente a inconstitucionalidade (por violação ao princípio federativo) do anteprojeto Adams ao prever que transações entre entes federais e estados, Distrito Federal e municípios sejam firmadas sem a participação simétrica de seus órgãos jurídicos, mas tão somente sob a supervisão da AGU. O assunto que mais mereceria tratamento neste aspecto — em quais conflitos deve ser adotado o caminho consensual — não foi abordado por nenhum dos anteprojetos.

Quanto à representação judicial e extrajudicial de agentes públicos, o anteprojeto Toffoli avança, estipulando critérios para que esta situação ocorra, quais sejam, a solicitação do agente, que a controvérsia se refira a atos praticados no exercício de suas funções e na defesa do interesse público, nos termos de ato do AGU. Melhor teria feito se previsse nos termos de ato do Conselho Superior da AGU. O anteprojeto Adams simplesmente permite tal ocorrência sem estipular qualquer requisito, deixando o assunto em aberto para a lei ordinária, violando claramente a reserva constitucional de matéria atinente às atribuições institucionais da AGU à lei complementar.

Por fim, quando se trata de exercício da advocacia fora das atribuições institucionais, enquanto o anteprojeto Toffoli contém retrocesso ao não possibilitar a advocacia pro bono, atualmente permitida por ato normativo do AGU, o anteprojeto Adams, apesar de acertar ao manter esta possibilidade, passa a permitir o exercício da advocacia “quando em licença sem vencimento”, sem sequer excepcionar os casos em que há conflito de interesses entre a parte e a Administração Pública federal, abrindo as portas tanto para o uso de informações privilegiadas, com claro risco de prejuízo ao interesse público, quanto para a concorrência desleal com os advogados privados.

Em suma, o anteprojeto Toffoli, marcado pela relativa participação que caracterizou sua elaboração, consagrou alguns avanços importantes para a advocacia pública, embora devesse ir muito além do que foi. Foi, porém, esquecido pelo atual advogado-geral da União, que, às margens tanto do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União quanto das associações que representam os membros das carreiras, elaborou um outro anteprojeto que, no que diz respeito aos temas essenciais aqui versados, apenas promoveu retrocessos.

Muitos outros temas estão presentes nos dois anteprojetos, como a descrição das atribuições da Corregedoria, as prerrogativas, deveres, vedações e impedimentos dos membros da carreira, o regime de responsabilidade, as atribuições do Conselho Superior, a incorporação da Procuradoria-Geral do Banco Central, os requisitos para aprovação no concurso, entre vários outros.

Não se trata certamente de norma que possa ser reformada de forma centralizada e arbitrária, mas sim deve ser propiciada a ampla discussão, embasada em argumentos pertinentes que permitam avançar rumo a uma advocacia de Estado efetivamente comprometida com a concretização de um Estado Democrático de Direito. Ainda não é tarde para exigirmos esta mudança de rumos.


Luciane Moessa de Souza é procuradora do Banco Central do Brasil, integrante da Associação dos Procuradores do Banco Central.

Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2012


Sinprofaz convoca reunião com PFNs do Rio de Janeiro na segunda (16)

O Sinprofaz conclama os Procuradores da Fazenda Nacional do Rio de Janeiro a participarem de reunião na próxima segunda-feira (16) para tratar da realidade crítica da Advocacia Pública Federal frente ao descaso do Poder Executivo.


Entidades da Advocacia Pública Federal se reúnem em São Paulo

Integrantes da Advocacia Pública Federal de São Paulo se reuniram na Escola da AGU para deliberar ações de protesto ante ao descaso do Governo aos pleitos emergenciais das carreiras.


OAB-SP articula medidas em apoio às causas da Advocacia Pública Federal

Presidente da OAB/SP, Marcos da Costa, recebeu delegados do SINPROFAZ e representantes de outras carreiras da AGU para discutir sobre o quadro insustentável da Advocacia Pública Federal.


Advocacia e Defensoria Públicas Federais farão reuniões nos Estados

A partir da próxima semana, Dirigentes da Advocacia e Defensoria Pública Federais, Forvm, Unafe e Anadef, farão agenda em vários estados do país com o objetivo de impulsionar mobilizações locais por melhores condições de trabalho e reajuste salarial.


Presidente do STF recebe representantes da Advocacia Pública para tratar da Proposta de Súmula 18

O presidente do STF recebeu o presidente do Sinprofaz e Forvm, Allan Titonelli, assim como dirigentes do Forvm, da Unafe, da Anape, da Anpm e o presidente da OAB-DF, para tratar da Proposta de Súmula Vinculante (PSV) nº 18.


Lei Orgânica Nacional da Advocacia Pública será discutida amanhã na CCJ

Amanhã, terça-feira, 10/07, às 14h30 a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados receberá representantes da Advocacia Pública para tratar da Lei Orgânica Nacional da Advocacia Pública.


União não pode contratar assessores de fora da AGU

Por Marcos de Vasconcellos Foi proibida a contratação de mais de 100 profissionais de fora da carreira da Advocacia-Geral da União para assessoria e consultoria jurídica, prevista em edital da Escola de Administração Fazendária (Esaf) de 2008. A decisão é do juiz federal da 20ª Vara do Distrito Federal, Alexandre Vidigal de Oliveira. Ele declarou…


Marcada audiência sobre Lei Orgânica Nacional da Advocacia Pública

Será na próxima terça-feira, 10 de julho, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados. Representantes do Forvm Nacional vão participar.