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SINPROFAZ presente no XIII Congresso Internacional de Direito Tributário de Pernambuco

Evento foi promovido pelo IPET- Instituto Pernambucano de Estudos Tributários entre os dias 2 a 4 de outubro.


Rádio gaúcha repercute dados do Sonegômetro

Programa “Destaque Econômico” chamou atenção para o fato de o valor da sonegação no país ser equivalente ao PIB da maioria dos estados brasileiros.


MP 615/2013 pode levar ao aumento da sonegação

MP 615/2013 pode levar ao aumento da sonegação

Por Allan Titonelli Nunes

A Medida Provisória 615/2013 foi encaminhada pela Presidente da República ao Congresso Nacional em 17 de maio de 2013. A proposta original tratava basicamente sobre subvenções aos produtores de cana de açúcar da Região Nordeste, introdução de novas formas de pagamento dentro do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e emissão de títulos da dívida pública mobiliária federal em favor da Conta de Desenvolvimento Energético.

No transcurso do processo legislativo foram apresentadas diversas emendas, que incorporaram outros temas em sua redação originária, entre elas, o parcelamento para bancos e seguradoras de dívidas do Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins); reabertura do prazo de adesão ao chamado Refis da Crise; direito à exploração do serviço de táxi a ser transferido, por herança, aos familiares do titular, durante o período de validade da concessão e porte de arma para agentes penitenciários fora de serviço.

Muito embora tenha sido comum no trâmite do processo legislativo das medidas provisórias a apresentação de emendas incluindo temas diversos ao objeto da respectiva proposta essa conduta viola a legislação de regência. O artigo 4º, § 4º da Resolução 1/2002 do Congresso Nacional, que regulamenta a apreciação das medidas provisórias, veda taxativamente a apresentação de emendas sobre matérias estranhas às mesmas, determinando o indeferimento liminar pelo Presidente da Comissão Mista que apreciar a proposta.

Essa praxe legislativa de incluir dispositivos alheios às matérias em tramitação tem sido combatida ao longo da história, cujos exemplos mais evidentes eram os orçamentos públicos, com a inclusão das chamadas “caldas” ou “rabilongos” orçamentários, e que a Constituição Federal de 1988 passou a vedar expressamente em seu artigo 165, § 8º, constitucionalizando o princípio da exclusividade orçamentária.

Não obstante essa constatação o presente artigo analisará perfunctoriamente, dada a brevidade da análise, alguns dispositivos do respectivo projeto, precipuamente aqueles que tratam de novos tipos de parcelamentos ou reabertura de outros.

Nesse pormenor, relevante sublinhar que o artigo 17 da Medida Provisória 615/2013 reabriu os prazos descritos no § 12 do artigo 1º e no artigo 7º da Lei 11.941, de 27 de maio de 2009, bem como aquele previsto no § 18 do artigo 65 da Lei 12.249, de 11 de junho de 2010, até 31 de dezembro de 2013. Dessa forma, o prazo para adesão aos parcelamentos excepcionais descritos nas respectivas leis foram reaberto até o final do corrente ano.

Observa-se que a medida provisória traçou novas restrições e condições aos respectivos parcelamentos, entre elas a proibição de que débitos já parcelados nos termos dos artigos 1º a 13 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, e nos termos do artigo 65 da Lei 12.249, de 11 de junho de 2010, possam ser objeto de novo parcelamento.

O § 2º, do artigo 17 da Medida Provisória 615/2013 traçou as regras inerentes aos recolhimentos mensais, cujo valor será o maior entre aqueles apurados de acordo com o disposto no inciso I e II.

Soma-se às condições impostas na presente norma todas aquelas existentes nas leis citadas, entre elas a limitação de inclusão de dívidas tributarias vencidas até 30 de novembro de 2008 e prazo de 180 meses para o parcelamento dos débitos. Enfim, constata-se que a proposta objetiva dar nova oportunidade àqueles que não refinanciaram suas dívidas à época.

De outro giro, os artigos 39 e 40 da Medida Provisória n° 615/2013 criaram novas hipóteses de parcelamento. As duas modalidades de parcelamento contemplam matérias que estão sendo discutidas judicialmente.

O artigo 39 permite o parcelamento ou pagamento com desconto dos débitos relativos à contribuição para o PIS e à Cofins, de que trata o Capítulo I da Lei 9.718, de 27 de novembro de 1998, devidos por instituições financeiras e companhias seguradoras, vencidos até 31 de dezembro de 2012.

Esse parcelamento poderá incluir os débitos relativos às instituições financeiras e às seguradoras que discutem judicialmente o conceito de faturamento e sua incidência, para efeitos de hipótese imponível do PIS/COFINS, cuja matéria foi reconhecida a repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal através do RE 609.096-RG e RE 400.4479-AgR, respectivamente.

Já o artigo 40 possibilita o parcelamento ou pagamento com desconto dos débitos referentes ao Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) decorrentes da aplicação do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, vencidos até 31 de dezembro de 2012.

O dispositivo possibilitará que os débitos oriundos da incidência do Imposto de Renda e da CSLL sobre empresas coligadas e controladas situadas no exterior, que não tenham sido albergadas pelos efeitos do julgamento da ADI 2.588 e dos REs 611.586 e 541.090, sejam parcelados ou pagos com desconto.

A olhos vistos a presente medida provisória sufraga a política fiscal implementada pelo Governo Federal, que nos últimos dez anos tem se utilizado da concessão de benefícios fiscais para intervir na economia, com a finalidade de estimular o crescimento econômico.

Tal prática tem gerado diversas críticas à política econômica e fiscal implementada pelo Brasil. Vide as recentes críticas feitas pela revista britânica The Economist ao Ministro Guido Mantega. Diante da brevidade da análise e do conteúdo final da Medida Provisória 615/2013, aprovado pelo Congresso Nacional em 11 de setembro de 2013 e encaminhado à sanção ou veto à Presidência da República, com diversas matérias referentes à concessão de parcelamentos e subvenções, interessante fazer uma análise do impacto que os parcelamentos cíclicos editados pela União podem causar no mercado.

Nesse aspecto relevante destacar que mesmo tendo sido concedido mais de seis parcelamentos excepcionais nos últimos dez anos muitos contribuintes não conseguiram se organizar para regularizar a situação fiscal perante a União.

Esses parcelamentos cíclicos acabam projetando “planejamentos tributários” em que os devedores podem de tempos em tempos regularizar sua situação fiscal protraindo o pagamento dos débitos no tempo, o que contribui para o aumento da sonegação. Para ilustrar a conclusão basta tomarmos como referência o último parcelamento excepcional editado pelo Governo Federal, o Refis da Crise, onde se um devedor tivesse adotado a prática deliberada de deixar de pagar tributo, aplicando o seu valor em renda fixa ou outro investimento similar, e tivesse optado pelo referido parcelamento adotando o pagamento à vista, com desconto de multa, juros e encargos, teria ainda tido lucro com tal operação[1].

Somado ao exposto, quando há uma carga tributária alta e uma probabilidade baixa de detectar a sonegação, condições hoje existentes no Brasil, é economicamente racional para pessoas físicas e jurídicas sonegar.

Em reforço à crítica destaca-se recente estudo publicado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), nominado como “Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação”[2], o qual constatou que, levando em conta a média dos indicadores de sonegação dos tributos que têm maior relevância para a arrecadação (ICMS, IR e Contribuições Previdenciárias), poder-se-ia estimar uma sonegação de 28,4% da arrecadação, a qual equivale a 10,0% do PIB, representando o valor de R$ 415,1 bilhões caso levado em conta o PIB do ano de 2011. Demonstrando, assim, que a alta carga tributária e elevada sonegação alimentam um círculo vicioso.

Logo, tais parcelamentos deveriam ser excepcionais, e não reiteradamente utilizados, sob pena de interferirem negativamente na economia nacional, fazendo aumentar a sonegação, o que conduz à concorrência desleal e todos os seus reflexos negativos, entre eles o desemprego.

Considerando as incertezas em relação ao crescimento econômico do país e a necessidade de controle da inflação a Medida Provisória 615/2013 acabou se tornando um grande conjunto de medidas econômicas tendentes a atacar referidos problemas. Ao que se percebe foram incorporadas, no trâmite do processo legislativo, algumas propostas que já se encontravam em debate no Ministério da Fazenda.

Ante ao exposto, parece que a equipe econômica do Governo Federal aposta que tais medidas propiciarão ingresso de receitas que poderão suprir as despesas com as subvenções fiscais implementadas nos últimos anos. Todavia, o que não está sendo objeto de análise, é a repercussão no médio e longo prazo dessa política fiscal de parcelamentos cíclicos, que pode conduzir a um aumento da sonegação.

Não por outra razão que o Brasil tem despencado no nível de competitividade da economia, onde ocupa a 51º entre 60 nações analisadas pela escola de negócios IMD, bem como diminuído drasticamente o nível de investimentos privados no país.


Notas

[1] PLUTARCO, Hugo Mendes. Tributação, assimetria de informações e comportamento estratégico do contribuinte: uma abordagem juseconômica. 2012. 125 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2012.

[2] Disponível em: <http://www.sonegometro.com/artigos/sonegacao-no-brasil-uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao>; Acesso em: 20 ago. 2013.


Allan Titonelli Nunes é Procurador da Fazenda Nacional, ex-Presidente do Sinprofaz e do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal.

Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2013


Sonegômetro ultrapassa a marca de 300 bilhões de reais

Ferramenta que afere o quanto é sonegado no País atingiu a cifra no último sábado (21). Na quarta-feira (25), painel eletrônico com o placar da sonegação fiscal será montado em frente ao Congresso Nacional.


II Congresso de Direito Tributário da Ajufesp

Tributação e empreendedorismo é o tema norteador do evento que acontece nos dias 29 e 30 de agosto no auditório da AGU em São Paulo.


Posse da nova diretoria do SINPROFAZ será na OAB Federal

Solenidade ocorrerá na noite de 3 de julho. Porém, a diretoria eleita para gerir o Sindicato no biênio 2013 e 2015 iniciará o exercício já em 1º de julho, nos termos do Estatuto da entidade.


OAB apoia reestruturação dos órgãos de combate à sonegação

O presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado, declarou apoio à campanha do SINPROFAZ com o intuito do combate à sonegação.


Combate à sonegação foi tema de reunião do SINPROFAZ com secretário Jorge Gerdau

Presidente do SINPROFAZ fez apresentação do estudo que baliza o Sonegômetro ao presidente da Câmara de Políticas de Gestão da Presidência da República.


SINPROFAZ realiza ação do “Sonegômetro” em São Paulo

A ferramenta que o SINPROFAZ criou para mensurar a sonegação no Brasil em tempo real circulará pela capital paulista nos dias 24 e 25 de junho.


Lançamento: Processo de Mandado de Segurança

Este é o título de livro de autoria do PFN Ronaldo Campos e Silva. A obra será lançada em 4 de julho no Salão Nobre no Palácio do Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro.


Regime Diferenciado de Contratações Públicas: risco à vista!

RDC: RISCO À VISTA !

Rui Magalhães Piscitelli[1]

Como Administrativista e Membro da Associação Nacional dos Procuradores Federais, temos o dever de trazer à discussão, não só jurídica, mas de toda a sociedade, os grandes assuntos que vão afetar a vida de todos nós: administrados pelo Estado Brasileiro.

E o tema que muito tem me angustiado na atualidade é a ventilada possibilidade de inclusão, nas propostas dos licitantes pelo Regime Diferenciado de Contratações Públicas, o RDC, de um percentual em torno de 17 % (dezessete porcento), a título de redução dos riscos que o contratado privado venha a correr durante a execução do contrato administrativo decorrente da licitação que lhe foi adjudicada (licitação por ele ganha).

Primeiramente, queremos, aqui, enaltecer muitas das características do RDC, que, em relação à Lei nº 8.666, de 1993, fazem daquele egime diferenciado já um marco na diminuição dos prazos do processo licitatório, da própria execução do contrato administrativo, bem como do aumento da economicidade, esta traduzida na redução do valor das propostas dos licitantes.

E, para isso, a negociação ativa pela Comissão licitatória, a divulgação dos orçamentos somente após o final da licitação (exceto para os Órgãos de controle, a estes, acesso franqueado a qualquer momento) e a inversão das fases licitatórias (primeiro julgando-se as propostas, para, depois, habilitar-se somente o melhor classificado) são ingredientes importantes desse novo regime.

É acrescer que o introduzido regime de contratação integrada para as obras e serviços de engenharia , no qual o licitante, além do objeto principal, também apresentará o projeto básico, com o dever de a Administração somente apresentar o anteprojeto, resulta, como já salientei várias vezes, do desmonte que a máquina administrativa brasileira sofreu na década de 90 (ao invés de se readequar o serviço público à sua função constitucional precípua, qual seja, de regulação, esta a ser exercida com vigor, simplesmente desmontou-se tanto o aparato executor).

Bem verdade que, nos últimos anos, a Administração Pública brasileira vem se reestruturando (ao menos quantitativamente), com a substituição, mediante concursos públicos, dos terceirizados em postos de servidores, bem como com o fortalecimento de diversos setores regulatórios.

Mas, qualitativamente, ainda precisamos reestruturar a máquina pública, tanto com salários que permitam que os servidores sejam tratados com o mínimo de isonomia entre os Poderes da República (a fim de evitar que entrem em um concurso e, imediatamente, já migrem para outra carreira, ainda que com as mesmas atribuições, mas com salários muito maiores, notadamente no Poder Legislativo), quanto com treinamentos periódicos.

E aqui está o grande ponto: aliado ao desmonte da estrutura administrativa brasileira, a falta de treinamento levou a que fosse criado, no RDC, o regime de contratação integrada para obras e serviços de engenharia.

Consiste tal regime em que, além do objeto principal (no caso, a obra), também o licitante possa vender para a Administração o projeto básico, este um documento essencial para fixar a execução do próprio objeto principal. O projeto básico deve “visar à caracterização da obra ou serviço de engenharia, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares; assegurar a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento; e possibilitar a avaliação do custo da obra ou serviço e a definição dos métodos e do prazo de execução”, conforme contido inciso IV do art. 2º da Lei do RDC, a Lei nº 12.462, de 2011.

Pois bem, a grande justificativa para a criação de tal regime, aliado ao que já noticiamos acima, da falta de estrutura a que foi levada a Administração Pública, é a expertise da iniciativa privada para executar tal projeto básico. Afinal, essa é sua atividade diária, isso é o que vendem as empresas de engenharia estão acostumadas a fazer, e podem investir livremente na qualidade de seus serviços, sem as “amarras” impostas à Administração Pública, como, por exemplo, a fixação de tetos remuneratórios, a existência de orçamentos contingenciados, a necessidade de licitação, etc…

ENTÃO ESTÁ TUDO CERTO….

NÃO !!! E AÍ ESTÁ O GRANDE PROBLEMA…. RISCO À VISTA…

As próprias construtoras, agora, que passaram, no RDC, no regime de contratação integrada, a elaborar os projetos básicos (evitando, assim, erros, que eram atribuídos, por elas, à incapacidade da Administração Pública) , vem reclamando dos riscos na execução do contrato administrativo[2]…..

Mas, perguntamos: por acaso os contratos administrativos do regime de contratação integrada do RDC não reconhecem os aditivos para o reequilíbrio econômico-financeiro ? Sim, claro que a Lei do RDC reconhece,com previsão no inciso IV do seu art. 9º (além dos casos fortuitos e de força maior). E, antes disso, a própria Constituição, no inciso XXI do seru art. 37 assim já obrigava.

O Tribunal de Contas da União -TCU, aliás, preocupado com o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos no regime de contratação integrada do RDC, já recomendou que a Administração Pública elabore matrizes de risco, a fim de discriminar, o mais minuciosamente possível, as possibilidades que levam ao reequilíbrio econômico financeiro de ditos contratos. E isso para que as empresas contratadas não sejam prejudicadas na ocorrência de fatos que levem à perda da manutenção das suas propostas, o que não pode ocorrer, conforme mandamento constitucional posto no inciso XXI do seu art. 37.

E, mais, algumas entidades da Administração Pública, já têm obrigado os licitantes a contratarem seguro de riscos de engenharia para, ainda mais, minorar a possibilidade de que se materializem riscos que venham a levar à perda da equação econômico-financeira da proposta vencedora na licitação.

A propósito, vejam-se os recentes Acórdãos nº 1.310 e 1.465, de 2013, do Plenário do TCU.

MAS A QUESTÃO É GRAVE: AS CONSTRUTORAS QUEREM EMBUTIR NAS PROPOSTAS DA LICITAÇÃO OS RISCOS QUE VENHAM A OCORRER NA EXECUÇÃO DO CONTRATO ! RISCOS ESSES QUE PODEM NEM SE CONCRETIZAR NA PRÁTICA !

Isso mesmo, querem as grandes construtoras a permissão do Governo para incluir nas suas propostas de preço, no regime de contratação integrada do RDC, a média do percentual dos aditivos que eram feitos nos contratos administrativos antes da criação do RDC !

Ora, esqueceram-se as empresas construtoras que, justamente, o regime de contratação integrada foi criado para minorar os erros que eram atribuídos à Administração Pública na elaboração dos projetos básicos ? Afinal, agora, não são as próprias construtoras que elaboram o referido documento ? Mais, esquecem-se as próprias empresas que o contratante tem o dever constitucional e legal de aditivar os contratos na ocorrência de fatos que levem ao desequilíbrio econômico-financeiro de suas propostas vencedoras na licitação ? Ainda, não atentaram as construtoras que o TCU já vem zelando, com a recomendação de elaboração de matrizes de risco, para que as propostas dos licitantes fiquem preservadas ?

Claro que o medo das empresas de que a Administração Pública não reequilibre os contratos administrativos pode levar a superfaturamento de suas propostas; todavia, entendemos que, conforme acima exposto, tanto a Constituição, quanto a Lei do RDC, quanto a jurisprudência do TCU e a atuação dos demais Órgãos de controle, incluindo a Advocacia – Geral da União, já é muito mais do que suficiente para que os licitantes não saiam em prejuízo com a deterioração do equilíbrio econômico-financeiro de suas propostas vencedoras.

AGORA, EMBUTIR NAS PROPOSTAS UM PERCENTUAL FIXO DE RISCO QUE PODE NEM SE CONCRETIZAR NA EXECUÇÃO DO CONTRATO É SIMPLESMENTE PREJUDICAR A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, E, ASSIM, TODOS NÓS, CIDADÃOS BRASILEIROS.

O que está se gestando não é somente o aumento do chamado “Custo Brasil”, mas a própria desestruturação do princípio básico das licitações, qual seja, garantir a proposta mais vantajosa à Administração Pública !

Repito, a própria razão que levou à criação do regime de contratação integrada, no RDC, bem como a obrigação do ente público reequilibrar os contratos administrativos (prevista legal e constitucionalmente), além das recomendações do TCU de elaboração de matrizes de risco JÁ SÃO MAIS DO QUE SUFICIENTES PARA NÃO IMPUTAR RISCOS INDEVIDOS À INICIATIVA PRIVADA.

Agora, querer cobrar da sociedade brasileira riscos que podem não vir a ocorrer, aumentando o preço a ser pago pelo Estado nas licitações, ISSO É COISA QUE NÃO PODE OCORRER !

Por isso, digo: RISCO À VISTA !!!!


Notas

[1] Vice-Presidente Administrativo e Financeiro da Associação Nacional dos Procuradores Federais. Especialista em Processo Civil e Mestre em Direito Constitucional. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Administrativo.

[2] Disponível em: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2013/6/12/adicional-de-risco-nas-obras-publicas


Sonegômetro continua repercutindo na mídia

Uma semana após o lançamento, ferramenta ainda é destaque nos veículos de comunicação. E o site www.sonegometro.com registra inúmeras visitas desde o dia 5 de junho.


União recebe 30% dos débitos cobrados com protesto em cartório

Por Leandra Peres | Brasília Os resultados da cobrança de dívidas da União por meio de protesto em cartório têm sido animadores. Cerca de 30% dos débitos são quitados antes do protesto. Os valores arrecadados são baixos: apenas R$ 480 mil de R$ 1,6 milhão enviados para cobrança, mas mesmo assim a Procuradoria Geral da…


Sonegação pode atingir 23,9% da arrecadação

Por Thiago Resende | De Brasília A sonegação de tributos – impostos, taxas e contribuições – chega a 23,9% da arrecadação federal, estadual e municipal, segundo cálculo do relatório “Sonegação no Brasil – Uma estimativa do desvio da arrecadação” do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz). Isso representa 8,4% do Produto Interno Bruto…


Sonegômetro foi destaque da mídia nesta quarta (5)

Mesmo com pautas importantes disputando a atenção da mídia, Sonegômetro foi um dos temas mais comentados no dia de seu lançamento.


SINPROFAZ ultima procedimentos para realizar Diagnóstico da PGFN

Os resultados do estudo de lotação demonstram que as decisões da PGFN estão dissonantes das realidades locais. Diagnóstico do órgão vai aferir a situação de cada unidade.


SINPROFAZ lança Sonegômetro

A ferramenta mensura a sonegação fiscal no Brasil e destaca que a produtividade da PGFN é essencial no combate a esta prática.


Campanha do SINPROFAZ em pauta na Câmara Federal

Na manhã desta quarta-feira (22), o presidente do SINPROFAZ participou de debate na Câmara sobre os impactos dos tributos no preço final dos produtos ao consumidor.


PGFN confirma nomeação de 200 PFNs em julho

A luta pela convocação imediata de todos os PFNs tem sido uma das bandeiras do SINPROFAZ desde que o respectivo concurso entrou em suas fases finais.


Dilma veta reabertura de Refis e outros parcelamentos de dívidas

A presidente Dilma Roussef vetou a reabertura de programas de parcelamento de dívidas de contribuintes com o governo federal, suas autarquias e fundações. Esse foi um dos principais vetos feitos por ela ao sancionar a Lei 12.814, publicada pelo “Diário Oficial da União” desta sexta-feira. A lei resulta do projeto de conversão da Medida Provisória…


SINPROFAZ participa de audiência na Comissão de Trabalho da Câmara

Em debate sobre valorização das carreiras de Estado, presidente Allan Titonelli expôs problemas estruturais da AGU e da PGFN e alertou sobre riscos do PLP 205/12.


ASAcar, o programa automotivo do ASAclub

Foram muitas as negociações e estudos de mercado até a concepção do programa automotivo ASAcar.


Eleito tem disciplina de engenheiro e perfil conciliador

Por Sergio Leo e Marta Watanabe | De Brasília e São Paulo Engenheiro eletrônico, formado pela Universidade de Brasília (UnB), o baiano Roberto Azevêdo poderia estar hoje envolvido na construção das hidrelétricas amazônicas do governo Dilma Rousseff. Em 1982, trabalhava para uma consultora, Themag, no cálculo de potências das grandes barragens da época. É casado…


Receita fiscaliza câmaras arbitrais e exige sentenças

Por Alessandro Cristo O sucesso das arbitragens no país chamou a atenção do Fisco. A Receita Federal já notificou pelo menos duas câmaras arbitrais no Rio de Janeiro sobre procedimentos de fiscalização abertos para apurar valores recebidos por árbitros. Na montanha de documentos requerida estão todas as sentenças arbitrais proferidas entre 2008 e 2011, o…


Maior demanda da Justiça Federal está nos JEFs

Por Simone Anacleto

No último dia 4 de abril, foi aprovada, em segundo turno, pelo Plenário da Câmara dos Deputados a PEC 544/2002, que cria 4 novos Tribunais Regionais Federais no Paraná, Minas Gerais, Amazonas e Bahia, além dos 5 já existentes (Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco).

Para entrar em vigor, basta haver a promulgação pelo Congresso Nacional, mas, neste momento, conforme notícia veiculada pela Agência Brasil do último dia 17, o Senador Renan Calheiros suspendeu tal promulgação porque “a proposta está sob avaliação de técnicos do Poder Legislativo, uma vez que foi alegada a existência de ‘erro material’ na matéria. Calheiros não detalhou quais seriam esses erros e disse que caberá à Mesa Diretora do Congresso decidir sobre a questão…”

Na realidade, a aprovação da PEC 544 tem sido o cerne de várias polêmicas, sendo que seus defensores argumentam que os novos TRFs são necessários ante o aumento do número de processos a serem julgados e para aumentar a celeridade processual. Por outro lado, aqueles que têm tido a ousadia de discordar argumentam que os dados não comprovam esse suposto aumento do número de processos e que a criação dos novos TRFs não iria redundar em maior celeridade processual, sendo que o custo que acarretarão aos cofres públicos para serem efetivamente instalados — e sobre isso ninguém discute, embora haja dúvidas sobre o valor total desse custo — não trará efetivos benefícios para o país.

Ora, os números sobre a movimentação processual da Justiça Federal estão disponíveis no site www.cjf.jus.br, bastando examiná-los para se poder formular, com embasamento, uma opinião sobre a polêmica aqui retratada.

Em primeiro lugar, vale conferir a movimentação processual dos próprios TRFs. Chamo a atenção para o dado “processos distribuídos”, para destacar que a estatística evidencia que, de 1999 a 2012, anualmente, são distribuídos, entre todos os TRFs no país, em média, quase meio milhão de novos “processos” — na realidade, o mais exato seria referir novos “recursos”, que é o que, em sua maioria, são distribuídos perante os Tribunais, lembrando que, para cada processo efetivamente distribuído perante o 1º grau de jurisdição, pode haver vários recursos incidentais, como Agravos de Instrumentos, além do recurso oposto por qualquer das partes contra a sentença propriamente dita.

Certamente é um número alto. Mesmo assim, uma primeira constatação se impõe: ao contrário do que afirmam os defensores da criação dos novos TRFs, o número não vem crescendo. Pelo contrário, mesmo com o aumento da população brasileira, curiosamente, o número de processos ou recursos perante os TRFs tem se mantido estável nos últimos anos.

E por que será que isso está acontecendo?

Em primeiro lugar, parece-me importante destacar que a PEC 544 foi proposta ao Congresso Nacional no já longínquo ano de 2002. Ora, nesses 11 anos de tramitação, muitas coisas mudaram, e hoje já vivemos a era de uma nova Justiça Federal, a qual foi modificada por algumas alterações bem pontuais da legislação e que produziram resultados muito mais significativos do que os pretendidos pela PEC 544 (e praticamente sem dispêndio financeiro algum).

Refiro-me à criação dos Juizados Especiais Federais, à inovação dos processos eletrônicos e à introdução das súmulas vinculantes e das sistemáticas da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos.

Em primeiro lugar, relembre-se que os Juizados Especiais Federais foram criados pela Lei 10.259/2001 e implantados paulatinamente nos anos subsequentes. Neles são julgadas as infrações criminais “de menor potencial ofensivo” e as causas cíveis de valor até sessenta salários mínimos (excluídos expressamente, porém, dentre outros, mandados de segurança e execuções fiscais, não importando o valor). Por outro lado, os recursos das decisões adotadas nos Juizados Especiais não vão para os Tribunais Regionais Federais, e, sim, para as chamadas Turmas Recursais, num sistema inovador, pois tais turmas são compostas por magistrados federais de 1º grau.

É evidente que isso, por si, já teve o efeito de “desafogar” os Tribunais Regionais Federais.

Tome-se, agora, consultando o mesmo site antes mencionado (www.cjf.jus.br), a movimentação processual por seção judiciária, onde se pode constatar que o total de processos distribuídos na Justiça Federal de 1º grau, em todo o país, nos últimos 10 anos, tem se mantido acima dos dois milhões de processos por ano — observando-se, contudo, uma discreta redução a partir de 2006, o que, adiante, será melhor desenvolvido.

De qualquer sorte, fundamental ressaltar que tal estatística, como frisado no próprio site, engloba os valores dos Juizados Especiais Federais.

Então, imprescindível cotejar-se o quadro da movimentação processual por Seção Judiciária com o quadro da movimentação processual dos Juizados Especiais Federais.

E, ao fazê-lo, constata-se que, todos os anos, a partir de 2004, o número de processos distribuídos nos Juizados Especiais Federais (dos quais, reprise-se, não se geram recursos para os TRFs), foi maior do que o número de processos distribuídos na Justiça Federal Comum. Comparem-se, exemplificativamente, os dados de 2004: 1.533.647 processos nos JEFs e 1.109.677 na Justiça Federal Comum. A única exceção foi o ano de 2011, mas, mesmo assim, com uma discreta diferença entre as Justiças: 1.182.501 processos nos JEFs e 1.196.996 na Justiça Federal Comum.

A meu sentir, tais dados, por si, já evidenciam que, se há algum setor da Justiça Federal que pode precisar de maiores investimentos e/ou atenção esse é o dos Juizados Especiais Federais. Lá é que está, atualmente, a maior demanda por justiça formulada pelo cidadão brasileiro.

Além disso, também merece destaque a Lei 11.419/2006, que admitiu a tramitação eletrônica dos processos judiciais. Na medida em que essa tramitação eletrônica seja implantada em todo o país (por ora, quem está mais adiantado nesse sentido é o TRF da 4ª Região, onde a grande maioria dos processos já é eletrônica), não há dúvidas sobre o aumento da celeridade processual, nem do aumento da democratização do próprio acesso a todas as instâncias do Judiciário, sendo possível que, de qualquer parte, pela Internet, os advogados peticionem, inclusive, aos TRFs, o que afasta o possível argumento de que a criação de novos TRFs em outras localidades aproximaria a Justiça dos cidadãos.

Mas, afora tudo isso, é preciso compreender que a introdução das súmulas vinculantes pela Emenda Constitucional 45/2004 (que inseriu o artigo 103-A na Constituição Federal), bem como a introdução das sistemáticas da Repercussão Geral (Lei 11.418/2006, que introduziu os artigos 543-A e 543-B no CPC) e dos Recursos Repetitivos (Lei 11.672/2008, que introduziu o artigo 543-C no CPC), acarretaram uma verdadeira mudança de paradigma no sistema processual brasileiro, que, talvez, ainda não tenha sido bem percebida nem pela sociedade, nem mesmo por muitos setores jurídicos.

Muito resumidamente, explico que, com os mecanismos das súmulas vinculantes, da repercussão geral e dos recursos repetitivos, todas as grandes questões de massa, sejam atinentes à constitucionalidade de uma lei, sejam atinentes à legalidade, são, ao fim e ao cabo, dirimidas pelo STF e pelo STJ, produzindo efeitos, de uma só vez, para todas as ações semelhantes em tramitação no país.

Até a introdução desses mecanismos, apenas no controle concentrado de constitucionalidade (por ações diretas de inconstitucionalidade, por exemplo), havia essa possibilidade de uma única decisão do STF produzir efeitos imediatamente para todas as ações similares em tramitação no país — o chamado efeito vinculante.

No mais, as questões, mesmo as de massa, usualmente eram decididas uma a uma, às vezes num sentido, noutras vezes em sentido diametralmente oposto, levando-se em geral muitos e muitos anos até consolidar-se a jurisprudência num sentido dominante.

Já hoje, na medida em que uma questão considerada de Repercussão Geral ou Repetitiva chegue a um tribunal, tal como qualquer dos TRFs, são selecionados apenas alguns processos com recursos ao STF e/ou ao STJ para encaminhamento. Todos os demais semelhantes ficam sobrestados até o julgamento definitivo pelo STF ou pelo STJ.[1]

Talvez, aliás, isso explique a ligeira tendência que se observa, ao examinar as estatísticas da movimentação processual, de um discreto decréscimo do número de ações distribuídas nos últimos anos perante a Justiça Federal de 1º grau, o que, sem dúvida, acabará repercutindo nos TRFs. É que várias questões objeto de Repercussão Geral ou de Recurso Repetitivo já foram decididas. Na medida em que isso vai ocorrendo, deixam de ser propostas novas ações sobre tais matérias, pois a solução é de antemão conhecida e as partes envolvidas passam a se ajustar nos termos da jurisprudência consolidada.

Por outro lado, de se observar que o ano de 2012 foi atípico pelo menos no âmbito do STF, onde os esforços foram concentrados no sentido de se julgar o processo do mensalão. A partir do presente ano, com a retomada do ritmo normal do STF, milhares de feitos que estão sobrestados em todo o país, aguardando o julgamento por força da sistemática da Repercussão Geral, devem ser decididos.

Considerando que a imensa maioria das ações que tramitam na Justiça Federal envolvem questões de constitucionalidade e/ou legalidade e são ações de massa, pode-se concluir que está havendo uma verdadeira revolução paradigmática. E, arrisco-me a dizer, é bem provável que, num futuro próximo, haja um decréscimo considerável do número de processos distribuídos e, em consequência, em tramitação na Justiça Federal.

Isso significa que a própria Justiça Federal perderá sua importância?

Penso que não, pois sua importância está justamente na necessidade de especialização para bem resolver as questões de interesse da União, de suas autarquias, fundações e sociedades de economia mista.

Mas que a Justiça Federal, como um todo, está em franco processo de mutação, isso me parece evidente.

As grandes questões de constitucionalidade e/ou legalidade estão se sedimentando e à Justiça Federal restará analisar casos mais individualizados, tais como execuções fiscais, questões aduaneiras, crimes federais etc.[2]

E se se quer efetivamente celeridade processual, hoje, o que se tem de fazer é dar maiores e melhores condições aos Tribunais Superiores para que decidam as grandes questões já submetidas às sistemáticas da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos — o que passa muito ao largo da criação de novos Tribunais Regionais Federais.

Claro que há problemas pontuais que requerem atenção. Em interessante artigo publicado pela Revista Consultor Jurídico, intitulado PEC dos novos TRFs é inconveniente e inconstitucional, Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti narra a briga verdadeiramente paroquial entre os estados da Bahia e de Pernambuco, que acabou redundando no fato de que a Seção Judiciária da Bahia ficasse vinculada ao TRF da 1ª Região, ao invés do TRF da 5ª Região, o que seria mais lógico.

E aponta: “Os três estados com situação mais crítica em relação à geração de processos para o 2º Grau são: Bahia e Minas, na 1ª Região; e São Paulo, na 3ª Região. Destacando-se a Bahia para a 5ª Região, com ampliação do quadro de Juízes naquele TRF, com custo reduzido e com a agregação de Minas Gerais à 2ª Região — RJ (ou a criação de um único TRF para esses dois estados), com ampliação de quadro e com ampliação do quadro do TRF-3, ter-se-ia resolvido o problema. Poder-se-ia então destinar um décimo desses recursos para solucionar o maior problema de congestionamento da Justiça Federal, que são as estruturas dos Juizados Especiais Federais, sobretudo das turmas recursais”.

De qualquer sorte, tudo isso leva a um questionamento paralelo que é o seguinte: nesta nova era, onde a celeridade depende apenas, em grande parte dos casos, das decisões dos Tribunais Superiores, o que também acaba acarretando maior segurança jurídica, como fica o campo de trabalho para os milhares de bacharéis que, todos os anos, são formados pelas faculdades de direito preparados para o litígio judicial e veem diminuir o número de ações a serem propostas?

Será que não está na hora de haver uma profunda reformulação do sistema de ensino jurídico, pensando-se, antes, em formar advogados mais preparados para a consultoria empresarial, quiçá com conhecimentos de Direito Internacional, a fim de inserir o Brasil num mundo de competição empresarial em bases globais?

Mas, sem dúvida, essas são considerações que mereceriam todo um estudo à parte.

Por outro lado, parece-me muito oportuno, a partir das observações de Armando Castelar Pinheiro[3], referir que, quando se fala em reformar o Judiciário com vistas a torná-lo mais eficiente, geralmente, o que surge, em primeiro lugar, são as propostas de aumentar a disponibilidade dos recursos disponíveis, p.ex., aumentando o número de cargos de juízes. Mas isso não é, apenas, fazer mais da mesma maneira?

Como acima amplamente demonstrado, na realidade, há alguns anos, os legisladores e administradores brasileiros têm adotado soluções não só criativas, como eficazes, tanto no sentido de democratizar o acesso à Justiça (Juizados Especiais Federais e processos eletrônicos), como em torná-la mais célere, ao mesmo tempo em que se aumentou a segurança jurídica (por meio de súmulas vinculantes e dos mecanismos de Repercussão Geral e Recursos Repetitivos).

Ou seja, não se tem simplesmente feito mais do mesmo.

Pena que, agora, na contramão de todo esse movimento, tenha sido aprovada a PEC 544.

Considerando que é falaciosa toda a argumentação fundada no aumento do número de processos ou, mesmo, de aumento da celeridade processual por meio da criação de novos TRFs, a pergunta que fica é a seguinte: a quem interessa a criação desses TRFs? Seria àqueles que pretendem ver aumentado o número de cargos de desembargador federal porque almejam ocupar algum deles?

Em pleno século XXI, não está mais do que na hora de deixarmos de lado o velho ranço luso-tupiniquim de pensar apenas no interesse próprio sem medir as consequências disso para toda a sociedade?

Embora haja divergências sobre qual o custo efetivo para a instalação de 4 novos TRFs, não há dúvidas de que será um custo alto.

E, por tudo o que foi explanado acima (em síntese, relembre-se: o maior número de demandas nos JEFs, que não ensejam recursos para os TRFs, os processos eletrônicos e a mudança do paradigma processual, com as súmulas vinculantes, Repercussão Geral e Recursos Repetitivos, o que leva à suposição razoável, inclusive, de que num futuro próximo irá diminuir o número total de novas ações perante toda a Justiça Federal), absolutamente não faz sentido para a nação brasileira a criação desses novos 4 TRFs.


Notas

[1] Não existe uma estatística mais precisa do número de processos que, atualmente, já se encontra sobrestado nos tribunais por força da repercussão geral e/ou dos recursos repetitivos. No site do STF existe um quadro parcial, relativo a alguns tribunais, que atenderam à sua solicitação, prestando algumas informações, mas de acordo com o qual já se pode aferir que, no momento, já estão em milhares as ações paralisadas nos tribunais só por força da repercussão geral.

[2] A propósito, outro dado interessante a ser analisado, a partir do site www.cjf.jus.br, é que, em 2012, continuavam em tramitação na Justiça Federal Comum (após subtraídos os processos em tramitação nos JEFs) 4.589.016 processos, dos quais 3.369.681 são execuções fiscais.

[3] Cfr. o pensamento do autor no artigo: “Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto?”, in “Direito & economia”, org. Luciano Benetti Timm, 2.ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008, p. 19-47.


Simone Anacleto é procuradora da Fazenda Nacional e professora no Curso de Especialização em Direito Tributário da UFRGS

Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2013


AGU apresenta informações sobre reajuste nos planos de saúde

SINPROFAZ e demais entidades da advocacia pública federal participaram de reunião com membros da Secretaria-Geral de Administração da AGU no dia 19 de abril.


ALESP presta homenagem à AGU

Procuradores da Fazenda participaram de homenagem aos 20 anos da AGU realizada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.


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SINPROFAZ debate situação da PGFN com Secretaria de Assuntos Estratégicos

Presidente Allan Titonelli e advogado do Sindicato, Hugo Plutarco, foram recebidos pelo secretário-executivo do órgão.


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Advocacia de Estado: exclusiva dos servidores

Allan Titonelli Nunes

No debate sobre o projeto que altera a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (AGU), PLP n 205/12, que tramita no Congresso Nacional, muito tem se discutido sobre a exclusividade dos cargos em comissão no âmbito da AGU. Alguns defendem que a função não precisaria ser exclusiva dos servidores de carreira, posto que vinculada diretamente à necessidade do governo nomear pessoas de sua confiança, no caso advogados privados, tendo em vista que a atividade decorreria da legitimidade eleitoral para auxiliar na execução de suas políticas públicas.

Tal visão demonstra, de forma escancarada, a tentativa de transformar a Advocacia-Geral da União em um órgão político, em vez de se implementar o objetivo da Constituição Federal de construir uma Advocacia de Estado.

Vale lembrar que a Constituição de 1988, promulgada após duas décadas de ditadura, ao conceber as instituições responsáveis pelo funcionamento do Estado, erigiu a necessidade de respeito aos princípios Constitucionais administrativos (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e à regra do concurso público, normas fundamentais para preservar o Estado com organicidade perene. Por essa razão, recentemente, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ao dar explicações sobre a operação Porto Seguro, disse que a investigação da Polícia Federal não seguiu cor partidária, cumprindo sua função como polícia de Estado e não de um governo.

A intenção do Legislador Constituinte, ao incluir a advocacia pública entre as funções essenciais à Justiça, foi criar um órgão técnico capaz de prestar auxílio ao governante e, ao mesmo tempo, resguardar os interesses sociais.

Dessa forma, as políticas planejadas pelos agentes políticos, comumente referidas como políticas públicas, decorrem da legitimidade eleitoral adquirida. Todavia, em sua execução devem respeitar as restrições impostas pelo ordenamento jurídico. A atuação da advocacia pública federal na fase do planejamento, da formação e da execução da política pública propicia uma atuação mais estratégica do Estado, com a redução de demandas e desvios. É importante destacar que a atuação do consultor jurídico deve transcender a defesa míope do governo, ajudando a atender as atribuições que o Estado moderno requer. As políticas públicas devem ser viabilizadas em favor da sociedade, o que, em última análise, importa em resguardar o interesse público, pela defesa do bem comum. Cabe aos advogados públicos federais darem suporte à execução orçamentária de todas as políticas públicas, desde que as ações sejam constitucionais e legais.

Para a concretização dessas atribuições é necessário garantir uma Advocacia Pública independente. A escolha política continua sendo exclusiva do representante do povo, legitimamente eleito, o qual tem o direito de indicar sua equipe. Todavia, isso não exclui a participação de um profissional técnico, imparcial e altamente qualificado para moralizar a execução das políticas públicas, evitando seus desvios e o mais importante: sem estar sujeito às pressões políticas.

É inaceitável que pessoas externas ao órgão possam exercer atividade jurídica, que deveria ser exclusiva dos integrantes da AGU, servidores de carreira, aprovados em concurso público e atentos aos princípios da moralidade, eficiência e da impessoalidade, cuja expertise é comprovada em estudo, realizado em 2012, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo, Produtividade na Administração Pública Brasileira, comprova que os servidores públicos apresentaram melhores resultados que os trabalhadores do setor privado.

Permitir que profissionais sem vínculo e sem concurso sejam nomeados, sem outro critério, que não seja o político, para exercerem funções exclusivas dos advogados públicos contraria o interesse social e a Constituição, permitindo o corrompimento político de um órgão estritamente técnico. A falta de exclusividade nas atividades de consultoria permitirá o gerenciamento e orientação política da manifestação nas matérias que estejam sob análise, em detrimento da legalidade e constitucionalidade, atreladas ao anseio de Justiça, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Para o bem da sociedade, a exclusividade das atribuições da advocacia pública federal precisa ser preservada.

* Procurador da Fazenda Nacional, presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) e do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal


Sociedade Brasileira de Direito Tributário

Entidade promoverá estudo do Direito Tributário sob perspectiva aberta aos valores e princípios. Três PFNs integram diretoria.


Direito Constitucional Tributário no Império do Brasil

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional. Exerceu os cargos de Advogado da União/PU/AGU, Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região, tendo também exercido a função de Conciliador Federal (Seção Judiciária do Maranhão). É Professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís e ex-professor substituto de Direito da UFMA. Especialista em Docência e Pesquisa no Ensino Superior. Membro do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União.

SUMÁRIO: Introdução; 1 O Nascimento do Império do Brasil; 2 A Competência Tributária; 3 Limites ao Poder de Tributar; 5 Conclusão.

RESUMO: Direito Tributário Constitucional no Império do Brasil. Trata-se de artigo que tem por finalidade estudar o sistema tributário brasileiro vigente durante o Império do Brasil, sobretudo durante o entre os anos de 1822 e 1840, que marca o período das grandes definições fiscais imperiais, relacionadas sobremaneira com a fixação das competências tributárias nacionais, sem deixar de analisar problemas jurídicos surgidos relacionados com estas escolhas políticas. Por se pretender analisar a repartição do poder de tributar, almejou-se estudar o direito constitucional tributário então vigente, bem como as limitações ao poder de tributar opostas ao Estado imperial brasileiro. Por meio de tal análise buscou-se também vislumbrar a construção do Império do Brasil e suas turbulências, nestas primeiras décadas, relacionadas, sobretudo, com o tipo de Estado adequado para atender aos conflitos entre as pretensões provinciais e a Monarquia centralizadora.

PALAVRAS-CHAVE: História. Direito. Tributário. Constitucional. Brasil império.

INTRODUÇÃO

O direito, em qualquer sociedade, não pode ser compreendido como um fenômeno isolado no tempo e no espaço. Não pode ser vislumbrado como um amontoado de normas que não estão relacionadas com os valores, as visões de mundo e as expectativas de um grupo social (que o cria e que por ele é governado), em determinado momento da sua história (FERREIRA, 1975, p.31).

A percepção deste fenômeno fica mais evidente quando se estuda o direito contemporâneo, pois, de certo modo, vive-se sob a égide destas normas e se consegue compreender os institutos e o alcance deles, sendo possível vislumbrar-se a alteração da interpretação do Direito, e como as normas se relacionam para construir um sistema jurídico.

Os indivíduos que integram a nossa sociedade, por exemplo, sejam ou não operadores do Direito, percebem as normas jurídicas, isto é, tem uma mínima compreensão dos principais limites impostos pelo ordenamento às suas condutas, inferindo também os direitos que lhe são assegurados.

Em outras palavras, por se viver sob o império do direito, é possível senti-lo; consegue-se perceber a sua dinâmica.

Para o operador do Direito, ao se ler as grandes obras jurídicas, ao conversar com os demais colegas, ao trocar informações na faculdade, ao se defrontar com a jurisprudência dos Tribunais ou ao se atualizar com as informações colhidas na internet, fica manifesta a vivacidade do ordenamento jurídico que está em vigor.

Entretanto, quanto mais se recua no tempo, ao se estudar o direito do passado, algo começa a desaparecer: a percepção de “vida” das normas começa a se esvair.

Não se detecta, com mais facilidade como estas normas se organizavam, de como era construído o sistema jurídico, qual era o alcance e a sua aplicação.

Por exemplo, por constar nos livros dos grandes autores clássicos, como Pontes de Miranda (MIRANDA, 1966, p. 25) ou Aníbal Bruno (BRUNO, 2003, p. 106), compreende-se como era aplicado e compreendido o Código Penal, quando dos primeiros anos da sua origem. Ainda se é possível perceber como era a sua essência e a sua conexão com o direito penal atual, pois, além deste diploma legal está em vigor (apesar da reforma da sua parte geral e de inúmeros dispositivos da parte especial), houve uma constante aplicação, sem rupturas, desde a sua criação, com a interpretação das suas normas, tomando por base as inúmeras constituições vigentes, em cada um dos períodos históricos (Constituições de 1937, de 1946, de 1967/69 e de 1988).

Em outras palavras, um leitor que viesse a desejar fazer a leitura do Código Penal, na sua redação original, não estranharia o seu conteúdo, pois se trata de diploma legal que ainda guarda pontos de contato com o pensamento jurídico contemporâneo e com a própria sociedade brasileira, em alguns de seu aspectos, apesar de tal Código ser datado da década de 40, no século XX, já possuindo algumas de suas partes, quase 70 anos.

No direito tributário, vive-se uma experiência um pouco mais complicada.

O Código Tributário Nacional (Lei nº. 5.172/66), decorrente da Emenda constitucional nº 18/66, foi um diploma revolucionário na história do Brasil, por ter conseguido, de forma sucinta, clara e precisa, apresentar alicerces para a construção de uma teoria do tributo e das novas bases para a relação entre Fisco e contribuinte (MARTINS, 2005, p. 29-31).

Toda a teoria contemporânea do direito tributário, por óbvio, foi edificada sobre os alicerces lógicos do nosso Código Tributário de 1966.

Em outras palavras, o operador do direito, quando busca estudar o Direito Tributário, irá sempre tentar visualizar as normas jurídicas sob as categorias lógicas fornecidas pelo nosso Código Tributário: competência tributária, capacidade tributária, limitações ao poder de tributar (princípios e imunidades), conceito de tributo, elementos da norma tributária, espécies tributárias, legislação tributária, obrigação tributária, crédito tributário etc.

Em outras palavras, a legislação fiscal brasileira pré-Código Tributário, para alguns, pode até se parecer com leis de civilizações desaparecidas, como se fora o Código de Hamurabi, da Babilônia, pelo seu exotismo e estranha forma de se apresentar, não guardando, aparentemente, nenhum contato com o nosso direito atual.

De fato, ao se estudar o direito tributário do Império do Brasil, o operador do direito se defronta com obstáculos que devem ser transpostos, sendo que o primeiro deles é que alguns dos parâmetros interpretativos contemporâneos não se conectam às estruturas fiscais do Brasil imperial, isto é, a doutrina jurídica não cria pontos de enlace entre o direito tributário brasileiro atual e o que vigia no século XIX.

O segundo empecilho reside no fato de que estudar o direito vigente no Império do Brasil é estudar normas jurídicas que foram criadas para reger uma sociedade que possui significativas diferenças econômicas (e culturais) em relação ao Brasil contemporâneo, logo, as bases para compreensão não podem se fundamentar em valores vigentes atualmente.

As categorias lógico-jurídicas que regiam o direito brasileiro no Império do Brasil são, em demasia, distintas das que vigoram atualmente, a começar pela inexistência de um Código Civil, pela manutenção do odioso instituto jurídico da escravidão como alicerce do trabalho produtivo (pelo menos até 1860), e pelo fato de que o Império era um Estado unitário sui generis, sobretudo após o Ato Adicional de 1834, que reformou a Constituição de 1824.


Adverte-se que, assim como no estudo do direito romano (ALVES, 1995, p. 67-74.), não se pode vislumbrar o Império do Brasil como um conjunto monolítico de normas, inalteradas no tempo.

As necessidades fiscais do reinado de D. Pedro I, sem dúvidas, não se assemelham às da Regência, muito menos às existentes durante o longo reinado em que D. Pedro II governou a nação, no qual o Brasil se envolveu muito na política interna dos seus vizinhos do cone sul, culminando no conflito armado no Paraguai. (BALTHAZAR, 2005, p.93)

Para saciar estas necessidades fiscais, o Império criou tributos (e as províncias também) sobre novos fatos geradores, instituiu alíquotas adicionais sobre tributos já existentes, abusou da bitributação, mas, sobretudo, buscou taxar as principais atividades econômicas da sociedade brasileira: a exportação, a importação e o consumo de bens não-duráveis.

Mas o Império, apesar do seu desequilíbrio fiscal, deixou de tributar a renda e a propriedade territorial rural, se abstendo de impor taxação sobre a acumulação de riqueza da elite brasileira.

Estudar o direito do Império do Brasil é assaz interessante pelo fato de que nos fornece as perspectivas da sociedade brasileira que estava, após a independência, tentando construir uma nação continental, já sendo possível perceber o nascer de algumas das estruturas do Brasil contemporâneo.

No estudo que será realizado, por óbvio, tenta-se sistematizar o conhecimento à luz de algumas das categorias lógicas do direito tributário contemporâneo, para que o leitor possa compreender o direito vigente naquele período tentando-se adentrar na essência das normas tributárias.

Assim como nas obras de direito romano (CRETELLA JUNIOR, 1995, p. 19-20), faz-se uma tentativa de, didaticamente, apresentar aos operadores do direito as facetas de como era a estrutura e a aplicação do direito em uma sociedade que existiu há quase dois séculos.

Evidente que não se busca cair no erro do anacronismo, mas apenas utilizar as ferramentas dadas pela moderna ciência do estudo do Direito Tributário para entender a realidade passada, a fim de compreender as normas então vigentes, segundo os valores da sociedade brasileira do século XIX.

Este passo é necessário, pois, por óbvio, não seria possível ao autor, simplesmente, estudar o direito do passado, com os olhos do homem daquele contexto histórico, já que tanto o leitor deste trabalho quanto o seu autor integram a sociedade brasileira do início do século XXI, ou seja, pertencem ao presente.

Por esta razão, ao longo desta pequena obra, buscou-se estudar o Direito imperial do Brasil à luz das interpretações do Marquês de São Vicente, que talvez possa ser considerado o grande Constitucionalista do período imperial. A visão e a compreensão deste autor acerca do ordenamento jurídico serviu de ponto de partida para nossas reflexões.

Não obstante esta forma de fazer a leitura da legislação, não nos furtamos a tentar adequar os institutos tributários com a tecnologia lingüística do direto contemporâneo, sobretudo a fim de decifrar as disposições legais estabelecidas. Deve-se frisar que o estudo da legislação tributária imperial, com a utilização de alguns dos arquétipos construídos pala doutrina de direito tributário contemporâneo, não é algo estranho ao estudo de temas relacionados com a história do direito

.

Este mesmo método é utilizado pelos autores quando se busca a compreensão do direito romano (CORREIA e SCIASCIA, 1996, p. 32): realiza-se a divisão da matéria em uma parte geral e especial, analisando os institutos civilísticos romanos, sob os parâmetros dados pela codificação do direito civil moderno, apesar de o direito romano clássico (aproximadamente, de 140 a.C, com a criação da Lei Aebutia, até o término do reinado de Diocleciano, em 305 d.C.) não ter construído nenhum código ou instrumento legal similar, já que, neste período, surgiram duas ordens distintas: o ius civile (direito aplicável apenas aos cidadãos romanos) e o ius honorarium (criado pela atuação dos pretores peregrinos, com o advento da Lei Aebutia, os quais eram magistrados que dirimiam os conflitos entre gentios, ou entre estes e os romanos). (ALVES, 1995, p. 69-70)

Feitas estas considerações iniciais, convida-se o leitor a vislumbrar o nascimento do Império do Brasil, com a outorga da Constituição de 1824.

1 O NASCIMENTO DO IMPÉRIO DO BRASIL

1.1 A INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DE UMA NAÇÃO

O Império do Brasil não nasceu pronto e acabado: trata-se de um projeto político das elites das províncias do sul ao qual se associou a figura do Imperador D. Pedro I.

A proclamação da independência por sua majestade imperial, um ato derivado, sem dúvidas, da sua impetuosidade (LUSTOSA, 2006, p.152-153) não foi suficiente, por si só, para promover a adesão das demais capitanias (e futuras províncias) do então restante Reino do Brasil, sobretudo no norte da América lusitana.

Não existia uma nação brasileira, não existia um Estado brasileiro.

Em verdade, ao longo da história colonial, a metrópole lusitana buscou fazer com que os principais portos e zonas econômicas tivessem laços imediatos apenas com Portugal e não entre si. Pode-se afirmar que os principais pólos econômicos da colônia brasileira estariam mais interligados ao contexto de exploração econômica do Atlântico sul (Luanda, Guiné etc.), devido ao intercâmbio escravista, do que de regiões interioranas do Brasil (ALENCASTRO, 2000, p.9).

Nas palavras de MELLO (2004, p.18): “Como observava Horace Say, ao tempo da Independência, o Brasil era apenas “a designação genérica das possessões portuguesas na América do Sul”, não existindo “por assim dizer unidade brasileira”.

A inexistência de uma nação brasileira, de um país denominado de Brasil, fica mais claro ainda quando se vislumbra o surgimento da Confederação do Equador (1824), quando as capitanias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e do Ceará não compactuaram com o projeto político de criação do Império do Brasil, que faria com que estas passassem a se subordinar à Corte imperial, no Rio de Janeiro.

Entretanto, a Corte necessitava da Bahia, de Pernambuco e das demais capitanias do norte, tendo em vista que estas ricas regiões poderiam financiar tanto a independência da América portuguesa, quanto os projetos políticos de D. Pedro I e a guerra na província Cisplatina. (MELLO, 1999, p. 249-250)

1.2 A HERANÇA LEGISLATIVA COLONIAL

O Império do Brasil não herdou apenas a estrutura econômico-social vigente durante o seu período de vínculo para com Portugal colônia, mas também a legislação metropolitana portuguesa que foi recepcionada pela Lei de 20 de outubro de 1823:

Art. 1.º As Ordenações, Leis, Regimentos, Avaras, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelíssima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brazil, em quanto reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negócios do interior deste Império, emquanto se não organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas.

O Império do Brasil, no seu nascedouro, recepcionou a legislação portuguesa inclusive a legislação tributária da metrópole.


Por esta razão os mesmos defeitos que constavam no sistema de tributação da metrópole portuguesa, no que se refere a sua lei vigente no Brasil, também assolavam a estrutura tributária brasileira quando da ocorrência da independência do Brasil:

[…] a Independência não significava um rompimento com a estrutura patrimonialista, tendo em vista o interesse de determinados setores de manter o status quo. Desta forma, quanto aos tributos, herdou-se a frágil estrutura colonial, embora a mudança na excessiva carga tributária constasse como um dos objetivos do movimento patriótico. (BALTHAZAR, 2005, p.78)

D. Pedro I proclamou expressamente que uma das razões para independência era a necessidade de um novo regime de tributação, diferente do existente na metrópole, que não asfixiasse a vida econômica do Brasil:

[…] grande dose de verdade havia na afirmativa que o então príncipe regente constitucional fizera, dias antes do grito do Ipiranga, de que Portugal, em suas relações com a antiga colônia, queria “que os brasileiros pagassem até o ar que respiravam e a terra que pisavam. (ELLIS, 1995, p. 62)

O então Príncipe regente alardeava os seus desejos:

[…] os brasileiros teriam um sistema de impostos que respeitaria “os suores da agricultura, os trabalhos da indústria, os perigos da navegação e a liberdade do comércio”, sistema esse tão “claro e harmonioso” que facilitaria “o emprego e a circulação dos cabedais”, desvendando “o escuro labirinto das finanças”, que não permitia ao cidadão “lobrigar o rosto do emprego que se dava às rendas da Nação”. (ELLIS, 1995, p.62)

Evidente que tal promessa não foi cumprida, tendo em vista a impossibilidade de reforma profunda da legislação lusitana que havia sido recepcionada, pelos sucessivos déficits fiscais e pelos tratados internacionais que fixavam as alíquotas do imposto de importação em patamares insignificantes.

O brilhante Procurador da Fazenda Nacional Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, ao analisar a tributação no período joanino, expõe as razões dadas pelo príncipe regente (o futuro rei D. João VI) para a diminuição da alíquota do imposto de importação em face de mercadorias portuguesas (Decreto de 11 de junho de 1808):

Sendo conveniente ao bem público remover todos os embaraços que possam tolher o livre giro e a circulação do comércio: e tendo consideração ao estado de abatimento, em nome de que presente se acha o nacional, interrompido pelos conhecidos estorvos e atuais circunstâncias da Europa: desejando animá-lo e promovê-lo em benefício da causa pública, pelos proveitos, que lhe resultam de se aumentarem os cabedais da Nação por meio de um maior número de trocas e transações mercantis, e de se enriquecerem os meus fiéis vassalos que se dão a este ramo de prosperidade pública e que muito pretendo favorecer como uma das classes úteis ao Estado: e querendo outrossim aumentar a navegação que prospere a marinha mercantil, e com ela a de guerra, necessária para a defesa dos meus Estados e Domínios: sou servido ordenar que todas as fazendas e mercadorias que forem próprias dos meus vassalos, e por sua conta carregadas em embarcações nacionais, e entrarem nas Alfândegas do Brasil, pagarem por direito de entrada dezesseis por cento somente. (GODOY, 2008, p.31)

Tendo em vista este desequilíbrio estrutural na legislação fiscal, o Império do Brasil nasceu tendendo a não conseguir organizar seu orçamento, já que, além das inúmeras obrigações político-militares que teve de assumir, em face do rompimento com a metrópole lusitana, ainda recepcionou tratados internacionais que lhe impediam de tributar, de modo significativo, a importação de mercadorias, então a mais significativa atividade econômica do país.

1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1824: A CONSTRUÇÃO DE UM ESTADO UNITÁRIO

1.3.1 A DISSOLUÇÃO DA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DE 1823

Pelo Decreto de 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que havia sido convocada, pelo próprio soberano, pelo Decreto de 03 de junho de 1822.

Segundo o nosso Imperador, tal fato se deu porque este órgão (fundante do próprio Estado brasileiro) teria perjurado o solene juramento de defender a integridade do Império, sua independência e a dinastia de D. Pedro I. Tal ato extremo, segundo o soberano, deu-se para a salvação do Império, como consta no referido instrumento normativo.

Observe-se que Frei Caneca, na edição natalina do periódico Typhis Pernambucano, de 25 de dezembro de 1823, demonstra que as decisões políticas cristalizadas no título 1º, arts. 1, 2 e 3, da abortada Constituição de 1823, não agrediam o juramento feito pelos constituintes de defender a integridade do Império, sua independência e a dinastia de D. Pedro I. (CANECA, 2001, p.309)

Pela Proclamação de 13 de novembro de 1823, S. Majestade Imperial comunicou ao povo brasileiro, que a Assembléia Constituinte de 1823 foi dissolvida e, em seguida, pelo Manifesto de 16 de novembro de 1823, explicitou as razões da prática de tal ato: o “fel da desconfiança”, que elaboravam planos ocultos para semear a discórdia no Brasil, ameaçando o futuro e a própria existência da Nação.

Em 17 de novembro do mesmo ano (de 1823), também por meio de Decreto, o Defensor Perpétuo do Brasil ratificou mandou proceder à realização de eleições para composição de nova Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que como se sabe, nunca promulgou nova Constituição.

Coube ao Conselho de Estado, sobretudo pelo trabalho de José Joaquim Carneiro de Campos (o futuro Marquês de Caravelas, integrante da futura regência trina provisória, constituída em 07 de abril de 1831), influenciado pelo pensamento de Benjamin Constant, preparar um anteprojeto de Constituição, sobre os escombros dos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1823.

Este anteprojeto foi apresentado à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, que, ao declarar que o seu texto era imelhorável, apresentou respectiva proposta de juramento (em 08 de janeiro de 1824), para coincidir com o Dia do Fico.

O Imperador rejeitou a proposta e fixou o juramento da Constituição para 25 de março daquele ano (1824). (MELLO, 2004, p.169)

Ao povo brasileiro, por meio da Carta de Lei de 25 de março de 1824, o Imperador do Brasil apresentou o teor da Constituição do Império do Brasil que deveria ser jurada por ele e pelos representantes das Câmaras (advindas de diversas províncias), em local e data já fixados: no dia 25.03.1824, na Câmara do Rio de Janeiro, como consta no Decreto de 13 de março de 1824.


É interessante observar que o Imperador buscou legitimidade para a outorga da sua carta política não em uma Assembléia Constituinte (ou Legislativa), mas nas Câmaras municipais, a começar, pela Câmara do Rio de Janeiro, o que era de se estranhar, já que tais órgãos não eram representantes do povo, mas do próprio Rei, tendo em vista a sua natureza jurídica oriunda da legislação metropolitana portuguesa:

No direito português, o poder das Câmaras, como o das antigas Cortes, não advinha da nação mas do Rei, pois uma e outras „não são representantes dos povos; representam sim pelos povos. A Câmara do Rio, […], tomava-se pelo Senado romano e decidia pelo Brasil, como havia feito em 1822 o Conselho de Procuradores, que tampouco tivera competência para aclamar d. Pedro fosse Defensor perpétuo, fosse Imperador. [grifos do autor] (MELLO, 2004, p.170)

Portanto, por ato do Defensor Perpétuo do Brasil, foi outorgada a Constituição de 1824.

1.3.2 O ESTADO UNITÁRIO

A natureza jurídica do Império do Brasil era a de um Estado Unitário (LOPES, 2002, p.313), resultante de uma proclamada: “associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se opponha á sua Independencia. (art. 1, da Constituição de 1824)”.

As províncias eram órgãos administrativos decorrentes da desconcentração do órgão central, sendo, portanto, uma extensão deste, que tinham por atribuição a gestão das regiões do Império, na forma da Lei (arts. 165 e 166 da Constituição de 1824)

Tais Províncias, por serem órgãos responsáveis pela gestão de parcela do território da Nação, poderiam ser alteradas, isto é, a sua amplitude territorial poderia ser modificada sem consulta aos habitantes destas regiões: “art. 2. O seu territorio é dividido em Provincias na forma em que actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado.”.

Como exemplo, menciona-se o Decreto de 07 de julho de 1824, da lavra de Sua Majestade Imperial, que, após parecer do Conselho de Estado (art. 137 da Constituição de 1824), “desligou” da província de Pernambuco a comarca do Rio de São Francisco.

A Constituição que em cada Província seria assegurado aos cidadãos o direito de intervir nos seus negócios, tendo em vista os interesses peculiares destas regiões.

Tal direito deveria ser exercitado pelos Conselhos Gerais de cada Província (art. 71 e 72 da Constituição de 1824), cujas resoluções deveriam ser submetidas ao Poder Executivo (art. 77 da Constituição de 1824), não podendo estes órgãos deliberativos dispor sobre: assuntos de interesse geral; ajustes interprovinciais; criação de imposições (tributos); ou execução das leis (art. 83 da Constituição de 1824).

1.4 A REFORMA DA CONSTITUIÇÃO DE 1824: O ATO ADICIONAL DE 1834

1.4.1 O PROCEDIMENTO DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO DE 1824

A Constituição de 1824 estabelecia que durante determinado período (04 anos) ela seria imutável (MORAES, 2003, p.39), podendo a partir daí ser reformada (art. 174 da Constituição de 1824): “Se passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se conhecer, que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem na Camara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte delles”.

Apesar desta imutabilidade transitória, a Constituição de 1824 poderia ser classificada como uma constituição semi-rígida (ou semi-flexível): isto é, parte do seu texto poderia ser alterado pelo procedimento das leis ordinárias. (MORAES, 2003, p.39)

A Constituição declarava que existiam determinados temas contidos no seu corpo que eram materialmente constitucionais: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos” (art. 178, 1ª parte, da Constituição de 1824).

Tais normas que dispunham sobre tais temas representavam o núcleo constitucional desta Charta e só poderiam ser alteradas sob o rito previsto nos seus arts. 175, 176 e 177.

Todas as demais matérias eram consideradas apenas formalmente constitucionais e, portanto, não se submetiam a este rito especial de reforma: “Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinarias.” (art. 178, 2ª parte, da Constituição de 1824).

1.4.2 A ABDICAÇÃO DE D. PEDRO I

Por uma ironia do destino, o reinado do Defensor Perpétuo do Brasil D. Pedro I se encerrou com a sua abdicação, em favor de seu filho, às 10 horas, de 07 de abril de 1831, praticado no Senado brasileiro, onde se encontravam presentes 26 senadores e 30 deputados.

Além de ter ocorrido durante as férias parlamentares (art. 18 da Constituição de 1824) (VIANNA, 1967, p.104), a abdicação trazia um problema em si: não existia previsão de a Assembléia Geral eleger um Regente para esta situação (art. 15, II, da Constituição de 1824), pois a Charta política apenas elencava tal possibilidade em caso de falecimento do soberano, se não fosse possível a coroação

do seu sucessor (art. 47, IV c/c arts. 121 e 122, da Constituição de 1824).

Ou seja, a sucessão deveria se dar apenas na forma do art. 117 da Charta imperial, o que se apresentava como outro problema.

O Regente deveria ser o parente mais próximo do soberano com mais de 25 anos e, se não houvesse, deveria ser instituída uma Regência provisória composta por dois Ministros (Estado e Justiça) e dois dos mais antigos membros do Conselho de Estado, sob a presidência da Imperatriz viúva (e, na sua ausência, pelo mais antigo membro do Conselho de Estado). Esta Regência provisória se manteria até a escolha da Regência permanente pela Assembléia Geral, na forma do art. 123 da Constituição de 1824.

Entretanto, os fatos do turbulento dia de 07 de abril de 1831 atropelaram as disposições constitucionais, já que a Imperatriz havia falecido (em 11.12.1826), não existiam outros herdeiros maiores de 25 anos e o Imperador, que deveria ter sido o Defensor Perpétuo do Brasil, havia subitamente abdicado: “A regulamentação constitucional, como se vê, pressupunha situações normais, enquanto o que acontecera naquele tumultuado 7 de abril fora anormalíssimo, excepcional, reclamando, desta sorte, tratamento diferente”. (PORTO, 1981, p.10)

No mesmo ato de abdicação foi constituída provisoriamente uma Regência Trina, composta pelos seguintes membros: Brigadeiro Francisco de Lima e Silva, José Joaquim Carneiro de Campos (o Marques de Caravelas) e pelo Senador Nicolau Pereira do Santos Vergueiro.

Iniciava-se o período regencial no Brasil e com ele aguçaram-se os debates sobre a reforma constitucional.


1.4.3 O ADVENTO DO ATO ADICIONAL DE 1834

Com o advento da era regencial, a pressão por maior autonomia provincial se intensificou, culminando na edição de uma verdadeira tentativa de revolução constitucional: o Ato Adicional de 1834.

O Ato Adicional de 1834 que instituiu a Regência Una, foi o resultado de um processo de negociação que se iniciara em 1831 e que concedeu autonomia às Províncias, estabelecendo a existência nelas de dois centros de poder: a Assembléia Legislativa – que substituiu os Conselhos Gerais, e a presidência provincial. (DOLHNIKOFF, 2005, p. 93 e 97)

Nas palavras do Padre FEIJÓ, Regente do Brasil, vislumbrava-se os limites da autonomia político-legislativa concedida às províncias:

Somente os negócios gerais, quais os direitos e obrigações dos cidadãos, os códigos criminal e de processo, o emprego das forças e do dinheiro foram excluídos da ação das assembléias provinciais. Hoje as províncias têm em seu meio a potência necessária para promover todos os melhoramentos materiais e morais. A seus filhos está encarregada a espinhosa tarefas, mas honrosa, de fazer desenvolver os recursos necessários a seu bem ser. (apud DOLHNIKOFF, 2005, p. 100)

Ou seja, a Constituição do Império foi alterada de tal forma que já se nota o despontar do embrião da futura federação brasileira.

O Ato Adicional de 1834, a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, foi votado observando os ritos previstos para a reforma da Constituição (DOLHNIKOFF, 2005, p. 97), bem como ao disposto na Lei de 12 de outubro de 1832, que determina que os eleitores, ao elegerem os membros da Câmara dos Deputados, para legislatura seguinte, lhes concederiam poderes para a reforma de inúmeros dispositivos da Constituição Imperial.

Devido a problemas gerados pela aplicação de normas jurídicas contidas no Ato Adicional de 1834, foi editado uma Lei Interpretativa deste diploma, Lei nº 105, de 12 de maio de 1840, restringindo os excessos desta experiência semi-federalista ocorrida durante o período regencial (DOLHNIKOFF, 2005, p. 125), inclusive com a possibilidade revogação de leis provinciais, por ato praticado pelo Poder Legislativo Geral (art. 8º), se afrontarem as interpretações autênticas conferidas por este diploma legal; bem como a faculdade de o presidente da província negar sanção a projeto de lei local que venha contrariar a Constituição do Império (art. 7º da Lei Interpretativa combinado com o art. 16 do Ato Adicional de 1834). (VIANNA, 1967, p.111)

Evidente que a história legislativa imperial não se encerra neste momento, mas a partir daqui o leitor já possui subsídios para a compreensão dos temas que serão a seguir estudados.

Nos capítulos seguintes pretende-se adentrar no estudo do Direito Tributário no Império do Brasil.

2 A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

2.1 A CONSTITUIÇÃO E O PODER DE TRIBUTAR

A partir da ascensão da doutrina constitucionalista (MORAES, 2003, p.35), no século XVIII, o poder de tributar, assim como qualquer espécie de poder, tem a sua origem no Povo, que se apresenta como o seu titular.

O Povo, por meio de seus representantes, reunido em assembléia constituinte, poderá instituir um Estado, por meio de uma Constituição:

A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais ser exercidas. Ela regula procedimentos de vencimento d conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal. Ela cria as bases e normaliza traços fundamentais da ordem total jurídica. Em tudo, ela é “o plano estrutural fundamental, orientado por determinados princípios de sentido, para a configuração jurídica de uma coletividade.” (HESSE, 1998, p.37)

Pelo fenômeno do constitucionalismo, o Povo, por meio da Constituição por ele proclamada, edificaria o Estado, delegaria poderes às entidades políticas do Estado, repartiria atribuições entre os órgãos estatais, criaria limites e os respectivos instrumentos para assegurar as liberdades individuais.

Dentro da perspectiva da delegação de poderes e a sua repartição entre os órgãos estatais, pode-se vislumbrar um dos fundamentos do Direito Tributário: o exercício da competência tributária.

2.2 O PODER DE TRIBUTAR E A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA NA CHARTA MAGNA DE 1824

O Direito Tributário, como nós conhecemos, também só pode ser compreendido a partir dos eventos das revoluções burguesas do século XVIII que ensejaram o surgimento do fenômeno do constitucionalismo.

Pode-se afirmar, sem muitos receios, que um dos marcos, do direito tributário, foi a revolta popular contra a Lei do Selo de 22 de março de 1765, que impunha a obrigatoriedade de obtenção de selo público em todos os contratos, jornais e cartazes, mediante pagamento de taxa nas colônias americanas da Inglaterra. A Declaração dos colonos, oferecida ao rei Jorge III, se inspirou na idéia de que o Parlamento inglês não poderia impor uma tributação à sociedade (da colônia), pelo simples fato de que neste órgão legislativo não existiam representantes populares das colônias americanas, as quais sofreriam a imposição fiscal: not tributation without representation. A lei foi revogada em 1766.

Mais adiante, como o Parlamento metropolitano inglês pretendia instituir tributação adicional sobre o chá que seria exportado desta colônia para a metrópole, a comunidade de Boston reputou por injusta e abusiva a incidência deste tributo, o qual prejudicaria o seu comércio, bem como a vida econômica daquela sociedade: estava armado o palco para a deflagração da revolta, que culminou com o Massacre de Boston, em 5 de maio de 1770. (KERNAL, 2008, p. 77-79).

O tributo passou a ser compreendido como uma exceção a dois direitos fundamentais, o de livre obrigar-se e o de propriedade: ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude lei (art. 179, I, da Constituição de 1824) e é assegurado a todos o direito de possui patrimônio (art. 179, XXII, da Constituição de 1824).

Ou seja, o indivíduo só estaria obrigado a pagar algo, contra a sua vontade, transferindo parte do seu patrimônio, se a lei (em sentido formal) assim o declarasse.


A Charta Magna de 1824 incorporava estes princípios, ao estabelecer, em seu art. 36, I, que era da competência privativa da Câmara dos Deputados, cujos representantes eram eleitos (para mandato provisório) pelo voto dos cidadãos habilitados (art. 35 e 90 da Constituição de 1824), a instauração do processo legislativo sobre impostos:

Os impostos e o recrutamento são dois gravames que pesam muito sobre os povos, são dois graves sacrifícios do trabalho ou propriedade, do sangue e da liberdade, são dois assuntos em que a nação demanda toda a poupança, meditação e garantias.

[…]

Se a Câmara rejeita a medida, a rejeição é peremptória, pois que o Senado não pode propô-la; se adota, os termos da adoção vêm já acompanhados do juízo expressado, das circunstâncias dos debates, de uma influência moral ou predomínio importante, que gera impressão sobre a opinião pública e que deve ser bem considerado pelo Senado, que antes disso não é chamado a manifestar suas idéias. Acresce que , por uma conseqüência lógica e rigorosa, o senado não pode mesmo emendar tais projetos no fim de aumentar por forma alguma o sacrifício do imposto […], ou de substituir a contribuição por outra mais onerosa, pois que seria exercer uma iniciativa nessa parte. Seu direito limita-se a aprovar, rejeitar ou emendar somente no sentido de diminuir o peso ou duração desses gravames

[…]

Tal é o privilégio que a Câmara dos Comuns mais zela na Inglaterra; ela não tolera que nenhuma medida que tem relação direta ou estreita com money-bill possa ser iniciada na Câmara dos Lordes. (SÃO VICENTE, 2002, p. 172-173)

Este poder conferido à Câmara dos Deputados se justificava, em verdade, pela natureza da composição deste órgão, no qual se faziam presentes os mandatários que representavam o Povo, de modo mais imediato:

Os deputados são os mandatários, os representantes os mais imediatos e ligados com a nação, com os povos. Tema a missão sagrada de expressar as idéias e desejos destes, de defender suas liberdades,, poupar os seus sacrifícios, servir de barreira a mais forte contra os abusos e invasões do poder, em suma, de substituir na Assembléia Geral a presença dessas frações sociais e da nação inteira cumpre pois que sejam escolhidos e eleitos por aqueles que lhes cometem tão importante mandato, cumpre que dependam só e unicamente daqueles de cujas idéias, necessidades e interesses, de cujo bem ser e progresso têm o destino de ser órgãos imediatos e fiéis. (SÃO VICENTE, 2002, p. 112)

Portanto, apesar do silêncio (e concordância tácita) sobre a escravidão (art. 94, II), apesar da manutenção do padroado (art. 102, II e XIV) et cetera, a Constituição de 1824 estava (formalmente) em plena sintonia com os baluartes liberais do século XIX, como vangloria LIMA:

A monarquia no Brasil achava-se estreitamente ligada ao sistema parlamentar e foi, até, no século XIX, sem falar na Inglaterra, alma mater do regime representativo e não obstante defeitos procedentes das deficiências políticas do meio, uma das expressões mais legítimas e pode mesmo dizer-se mais felizes. (LIMA, 1962, p. 371)

A competência tributária, portanto, seria o poder delegado pela Constituição para que órgãos do Estado pudessem, mediante Lei, instituir tributos. O exercício de tal competência, em última análise, pressupõe que aquele órgão teria, também, atribuição legiferante, já que o tributo deveria ser instituído mediante Lei em sentido formal (AMARO, 2005, p. 93):

Após a Independência constitui-se, no Brasil, o estado fiscal. A principal característica deste estado consiste em um “novo perfil da receita pública, que passou a se fundar nos empréstimos, autorizados e garantidos pelo legislativo, e principalmente nos tributos” em vez de estar consubstanciada nos ingressos originários do patrimônio do príncipe. Além disso, o tributo deixa de ser cobrado transitoriamente, vinculado a uma determinada necessidade conjuntural (ainda que, às vezes, continuasse sendo cobrado mesmo quando não existia mais necessidade, como se verificou no caso de dotes nupciais), para ser cobrado permanentemente. (BALTHAZAR, 2005, p.79)

A Lei (em sentido formal) é espécie legislativa que, por meio de determinado processo realizado pelos representantes políticos (art. 52 usque art. 70 da Constituição de 1824), a vontade do Estado fica cristalizada. A Lei, portanto, seria um instrumento de inserção, no ordenamento jurídico, daquelas normas que o Estado entende por criar, após a observância de determinado procedimento.

Em outras palavras, a lei é fruto da vontade popular, que, por meio de determinado procedimento, e concretiza as decisões políticas tomadas pelos mandatários do povo (deputados, senadores etc.), inserindo novas normas no ordenamento jurídico, permitindo que o povo se governe.

2.3 A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA NO IMPÉRIO DO BRASIL

2.3.1 A CONCENTRAÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Como exposto, a Constituição de 1824 instituiu um Estado Unitário, em que as províncias não gozavam de autonomia, não participavam do exercício do poder político, o qual estava concentrado no ente central, que representava a Nação.

Se não existia repartição deste poder, sendo as Províncias mera extensão do ente político central, é evidente que não faria sentido que o legislador constituinte as dotasse de parcela do poder de tributar.

De fato, os Conselhos Gerais, que eram órgãos colegiados de deliberação sobre assuntos provinciais (art. 71 da Constituição de 1824), foram expressamente proibidos de instituir tributos (ELLIS, 1995, p.64):

Art. 83. Não se podem propôr, nem deliberar nestes Conselhos Projectos.

I. Sobre interesses geraes da Nação.

II. Sobre quaesquer ajustes de umas com outras Provincias.

III. Sobre imposições, cuja iniciativa é da competencia particular da Camara dos Deputados.

IV. Sobre execução de Leis, devendo porém dirigir a esse respeito representações motivadas á Assembléa Geral, e ao Poder Executivo conjunctamente.

Somente a Câmara dos Deputados detinha a atribuição privativa para iniciar os debates sobre a instituição de tributos, na forma do art. 36, I, da Charta imperial, logo, nenhum outro órgão estatal (central ou provincial) poderia iniciar o processo legislativo para a criação da lei tributária.


Note-se que a deliberação e a aprovação de uma lei (inclusive a tributária) era da atribuição da Assembléia Geral (arts. 13 e 15, VIII, da Constituição imperial), a qual era composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (art. 14, da Constituição imperial).

Apesar de a atribuição para instituir a Lei tributária residir na Assembléia Geral, o exercício da iniciativa para apreciação de propostas de criação de lei tributária partia, necessariamente, da Câmara dos Deputados.

O Poder Legislativo, consoante a Charta Magna imperial, era delegado à Assembléia Geral, com a sanção do Imperador (art. 13 da Constituição imperial), isto é, o Imperador participava do exercício deste Poder, como se infere da interpretação dos arts. 64 a 70 da Constituição imperial. (SÃO VICENTE, 2002, p.111)

2.3.2 PROBLEMAS DECORRENTES DA CONCENTRAÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Tendo em vista a concentração da competência tributária no Ente central, as Províncias ficaram na dependência de decisões políticas de repasses do tesouro público, algo que não ocorria com freqüência, tendo em vista o déficit fiscal crônico que assolava o governo imperial (LIMA, 1962, p.452) e que praticamente impedia a realização de significativas transferências.

Ademais, como exposto, o Império do Brasil recepcionou a legislação tributária lusitana e as Províncias, tendo em vista a penúria fiscal crônica, além de continuarem a cobrar tributos antigos, em flagrante agressão à Charta Magna, instituíram, dissimuladamente, novos tributos, inclusive sobre as mesmas hipóteses de incidência de tributos gerais (isto é, instituídos pelo ente central) (BALTHAZAR, 2005, p.82): “A Constituição de 1824 não resolveu o problema de competências tributárias. Alguns impostos eram cobrados várias vezes sobre o mesmo gênero.” (BALTHAZAR, 2005, p.81)

A situação se agravou a ponto que, em 1835, o Ministro da Fazenda Miguel Calmon du Pin e Almeida, por meio da Circular, de 17 de dezembro de 1827 (decisão nº 126), veio a exigir que as Juntas de arrecadação, nas províncias, elaborassem uma lista completa e circunstanciada de todos os “tributos e impostos”, com a indicação da denominação, da data da criação, do ato normativo que o instituiu, do valor arrecadado líquido (nos últimos três anos), bem como a indicação da despesa pública e do estado atual da dívida ativa da Nação, naquela Província.

Dois dias depois, por meio da Circular, de 19 de dezembro de 1827 (decisão nº 129), o mesmo Ministro da Fazenda exigiu que os presidentes das províncias informassem, minuciosamente os impostos “mais gravosos aos contribuintes e por isso mais nocivos ao desenvolvimento da riqueza pública”, de modo a ser possível determinar quais poderiam ser arrecadados diretamente pela Fazenda pública e quais poderiam ser arrematados por contratos. Requereu também informações sobre eventuais abusos quando da cobrança e fiscalização dos tributos e como corrigir estes excessos, tudo isto a fim de diminuir as despesas e aumentar as receitas.

Com o advento da primeira Lei orçamentária brasileira, a Lei de 14 de novembro de 1827, buscou-se organizar a precária relação entre despesas e receitas.

Apesar desta lei expressamente se referir ao Tesouro público da Corte e da Província do Rio de Janeiro, ela também conferia parâmetros para as demais províncias.

Note-se que as províncias deveriam concorrer para custear as despesas gerais, sendo que seus eventuais saldos existentes deveriam servir para o financiamento do governo central (art. 4º), tendo em vista o déficit público existente (art. 5º). Foram mantidos em vigor, para o exercício de 1828, todos os tributos que estavam sendo exigidos (art. 6º).

2.3.3 O ATO ADICIONAL DE 1834: O SURGIMENTO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PROVINCIAL E A GUERRA FISCAL

2.3.3.1 O ATO ADICIONAL DE 1834.

O Ato Adicional de 1834, a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, transformou os Conselhos Gerais em Assembléias Legislativas (art. 1º) e delegou a estes órgãos diversas competências legislativas (art. 10), dentre elas as de fixar as “despesas municipais e provinciais e os impostos para elas necessários, contanto que não prejudiquem as imposições gerais do Estado”.

Recebendo esta competência legislativa, bastante genérica, o legislador, no art. 12, do mesmo Ato Adicional, também estabeleceu outro limite ao exercício do poder de tributar por aqueles órgãos legislativos provinciais: “As Assembléias Provinciais não poderão legislar sobre impostos de importação […]”.

Com o advento deste Ato Adicional ocorreu que as Províncias receberam poderes para instituir quaisquer tributos, desde que não prejudicassem as imposições gerais do Estado e que não se confundissem com os impostos de importação. (SÃO VICENTE, 2002, p.252)

2.3.3.2 INVASÕES DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA.

Evidente que estas vedações genéricas não bastavam para impedir os excessos dos legisladores provinciais, que reiteradamente invadiam a competência tributária do ente central:

É que as Assembléias Provinciais, contrariando proibição expressa da lei de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional), continuavam a legislar sobre importação e exportação, bem como sobre outras contribuições […] “A circulação dos produtos da indústria nacional é gravada em algumas Províncias com imposições quase proibitivas; em outras os próprios gêneros que já pagaram direitos de importação são novamente tributados, segundo a sua natureza e qualidade, com o intuito de proteger algumas fábricas estabelecidas nas ditas Províncias”. Impunha-se, assim, uma decisão sobre o assunto, pois, do contrário, não só seria perturbado o sistema fiscal, “como prejudicada profundamente a riqueza pública.” (SÃO VICENTE, 2002, p.252)

Em verdade, ao se dotar às províncias de competência tributária sem se estruturar um sistema tributário nacional, que de modo eficaz impedisse os conflitos no exercício deste poder de tributar, criou-se uma grande guerra fiscal no Império do Brasil, pois as províncias, em busca de novas fontes de receitas, instituíam muitas vezes adicionais aos impostos gerais ou então estabeleciam dissimuladamente impostos de importação ou de exportação (o que era vedado), ou tributavam o comércio interprovincial.

A razão para este fenômeno era, sem dúvidas, a escassez de fontes significativas de receitas provinciais:

Dois anos depois, Sales Tôrres Homem acentuava, também, e igualmente na posição de ministro da Fazenda, as distorções causadas pela exorbitância legislativa das Assembléias Provinciais, em matéria de impostos, com grave reflexo nas atividades do país. Mas esse era, sem dúvida, o resultado, que se agravava com o decorrer do tempo, do excessivo poder de tributar que detinha o governo central, em detrimento das províncias, as quais, na falta de recursos, exigidos pela evolução de sua própria economia, não viam outro meio para obtê-los senão desrespeitar os limites fiscais que lhes haviam sido traçados. (ELLIS, 1995, p.73)


2.3.3.3 CRISE FISCAL

Esta falta de recursos, justificada pela impossibilidade de criação de tributos, que pudessem incidir sobre relevantes fatos econômicos se agrava pelo fato que a sociedade brasileira do século XIX continuava a ter por principais atividades econômicas aquelas relacionadas com a monocultura agrícola, fundada no trabalho escravo, bem como, e a exportação destes produtos primários:

[…] podemos dizer que o Período Imperial se assemelhou ao Período Colonial em três aspectos: a economia do Brasil conservava-se monocultora, agro-exportadora e escravocrata. Outro ponto em comum residiu na importância dada ao imposto de importação, alterado conforme as necessidades e anseios protecionistas da Coroa. (BALTHAZAR, 2005, p.101)

As Províncias, portanto, eram praticamente compelidas a invadir a competência tributária do ente central, em busca de fontes de financiamento, tendo em vista que significativamente muito pouco restava para a incidência de eventuais tributos locais: “Na área provincial, como se viu, os governos locais, premidos pela falta de meios, eram levados a recorrer com freqüência, a impostos que conflitavam, ostensivamente, com sua reduzida competência tributária”. (BALTHAZAR, 2005, p.101).

Este conflito ficava mais evidente quando se tinha em conta que, antes mesmo do advento do Ato Adicional de 1834, por meio de leis ordinárias, o Império discriminou as competências tributárias do ente central e das Províncias, classificando-as em Receitas Gerais e Receitas Provinciais.

2.3.3.4 RECEITAS GERAIS E RECEITAS PROVINCIAIS: A REPARTIÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

O conceito de Receita Geral e de Receita Provincial foi inicialmente previsto na Lei nº 58, de 08 de outubro de 1833, que era a lei orçamentária para o exercício financeiro que foi de 1º de julho de 1834 a 30 de junho de 1835.

Inicialmente, como era de praxe nas leis orçamentárias imperiais, determinou-se que todos os impostos que haviam sido instituídos pela lei orçamentária de 24.10.1832 continuariam em vigor naquele exercício financeiro (art. 30, Lei nº 58, de 08 de outubro de 1833).

Por Rendas públicas integrantes da Receita geral (art. 36, da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834), enquanto lei geral não viesse a dispor especificamente sobre o tema, consideravam-se todos as receitas (inclusive os impostos) a que se referiam a Lei nº 58, de 08 de outubro de 1833, bem como os impostos provinciais da Corte e do Município do Rio de Janeiro.

Ou seja, a especificação das receitas gerais era discriminada de forma taxativa, numerus clausus, sendo que na Corte e no Município do Rio de Janeiro havia uma competência tributária cumulativa do ente central (art. 36, §1º, da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834) para cobrar os impostos provinciais, com exceção de alguns impostos que eram de competência da Câmara Municipal do Rio de Janeiro: os arrecadados pela Polícia e os foros anuais decorrentes de terreno de marinha, art. 37, §§1º e 2º, da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834.

As Rendas Provinciais (art. 39 da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834) eram as demais rendas que eram cobrados pelas Províncias e que não eram abarcadas pela competência tributária do ente central, passando a pertencer o produto da arrecadação à Receita Provincial, sendo possível a sua alteração pelas respectivas Assembléias Legislativas.

Ressalte-se que antes mesmos das alterações na competência tributária instituídas pelo Ato Adicional de 1834, a Lei orçamentária nº 58, de 08 de outubro de 1933 já fazia referência expressa ao poder de tributar das Províncias (art. 35), isto é, todos os impostos não inclusos dentro do conceito de Receita Geral, sendo permitido que os Conselhos Gerias (das províncias) fixassem o orçamento local.

A partir da Lei orçamentária nº 99, de 31 de outubro de 1835, que fixava as despesas e receitas para o exercício financeiro compreendido entre 1º de julho de 1936 e 30 de junho de 1937, ficou melhor delineado a amplitude das receitas gerais (art. 11). Por este diploma legislativo, as províncias recebiam uma espécie de competência tributária residual, que deveria ser exercida por sua Assembléia Legislativa (art. 12, da Lei nº 99, de 31 de outubro de 1835):

Ficam pertencendo à Receita Provincial todas as imposições não delineadas nos números do art. 11 antecedente; competindo ás Assembleas Provinciaes legislar sobre a sua arrecadação e altera-las, ou aboli-las, como julgarem conveniente.

O complicador na delimitação das competências tributárias residia no fato de que não existiam normas constitucionais dispondo sobre o tema, ficando ao arbítrio do legislador ordinário, ao elaborar as leis orçamentárias, definir a repartição do poder de tributar e também na existência de um efetivo sistema de controle de constitucionalidade das leis provinciais.

2.3.3.5 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CHARTA MAGNA IMPERIAL E A GUERRA FISCAL

Ao contrário das Constituições republicanas que adotaram, na sua evolução, um misto do sistema americano-germânico para o Controle de Constitucionalidade das leis, a ser exercido pelo Judiciário, de forma difusa (por qualquer órgão jurisdicional, a partir de 1891) ou concentrada (pela nossa Corte Suprema, a partir de 1946), a Charta Magna imperial adotou o sistema britânico de controle, isto é, somente o Parlamento, órgão composto por representes populares, poderia realizar a fiscalização dos atos normativos à luz da nossa Constituição. (MENDES, 2007, p. 154 e 983)

Competia à Assembléia Geral velar pela guarda da Constituição, bem como interpretar, suspender ou revogar as Leis (art. 15, IX e X, da Constituição de 1824), pelo fato de que, pelos ensinamentos de SÃO VICENTE:

O art. 15, §9º da Constituição confirma uma atribuição que o direito de fazer as leis por certo importa; ele inclui necessariamente o direito de inspecionar, de examinar se elas são ou não fielmente observadas.

[…]

De todas as leis as que demandam maior inspeção, por isso mesmo que demandam o mais alto respeito, são as leis constitucionais, pois que são o fundamento de todas as outras e da nossa existência e sociedade política. São os títulos dos direitos dos poderes políticos, e não são só títulos de seus direitos, mas também de suas obrigações, não são só brasões de autoridades, são também garantias dos cidadãos; ligam o súdito e o poder; é por isso que a Constituição ordena que a Assembléia Geral que vele na guarda de seus preceitos. (SÃO VICENTE, 2002, p. 168)

Competia também à Assembléia Geral controlar os atos do Poder Executivo, limitando os seus poderes:

A principal vigilância que a Assembléia Geral deve exercer é que o poder executivo se encerre em sua órbita, que não invada o território constitucional dos outros poderes, é a primeira condição da pureza do sistema representativo e que decide das outras; que respeite as liberdades individuais.

A exata observância das leis ordinárias, das leis fiscais, cujos abusos são mui opressivos, das que promovem os melhoramentos vitais do país, como suas estradas e colonização, cuja omissão tanto pode afetar a sorte do povo, enfim de todas as normas da sociedade, muito interessada, ao seu desenvolvimento e bem-estar. (SÃO VICENTE, 2002, p. 168)


A Charta Magna de 1824 originariamente, por instituir um estado Unitário, sem delegar aos Conselhos Gerais provinciais competências legislativas, estabeleceu que as resoluções tomadas por estes órgãos deveriam ser remetidas ao Poder Moderador (o Imperador), por meio do Presidente da Província (art. 84, da Constituição imperial), o qual poderia mandar executar ou suspender a eficácia da resolução até ulterior deliberação da Assembléia Geral (arts. 86, 87, 88, e 101, IV, da Constituição imperial).

Se a Assembléia Geral estivesse reunida, deveria ser enviada diretamente para este órgão a resolução do Conselho geral provincial, nos termos do art. 85 (da Constituição imperial), para que fosse a proposta debatida como projeto de lei.

Em outras palavras, como os Conselhos Gerais tinham sua atribuição legislativa limitadíssimas, o risco de haver leis provinciais inconstitucionais também era (em tese) reduzido.

Com o advento do Ato Adicional de 1834 e a criação de Assembléias provinciais dotadas de competência legislativa, inclusive tributária, a situação se modificou, pois o risco de surgimento de leis inconstitucionais provinciais aumentou em muito (art. 10, da Lei nº 16, de 12, de agosto de 1834).

Este risco ficou tão evidente para SÃO VICENTE que ele analisa, de modo enérgico, a natureza de uma lei provincial inconstitucional:

§2º Das leis provinciais ofensiva das Constituição:

235. É evidente que qualquer lei provincial que ofender a constituição, ou porque verse sobre assunto a respeito de que a Assembléia Provincial não tenha faculdade de legislar, ou porque suas disposições por qualquer modo contrariem algum preceito fundamental, as atribuições de outro poder, os direitos ou liberdades individuais ou políticas dos brasileiros, é evidente, dizemos, que tal lei é nula, que não passa de um excesso ou abuso de autoridade.

Um ato tal é uma espécie de rebelião da autoridade provincial contra seu próprio título de poder. A própria A própria Assembléia Geral não tem direito para tanto, as Assembléias Provinciais não podem, pois, pretendê-lo. No caso de se dar tal abuso ele deve ser desde logo cassado. (SÃO VICENTE, 2002, p.251)

Como se daria esta cassação da lei provincial inconstitucional?

O art. 20, do Ato Adicional de 1834 (que reformou a Constituição imperial) atribuiu à Assembléia Geral poderes para revogar apenas as leis provinciais que ofendessem a Constituição, os impostos gerais, os direitos de outras províncias ou os tratados.

Entretanto, esta revogação não era automática, dependendo de expressa prática de ato pelo Poder legislativo (art. 8º da Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 (Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834)).

A Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 (Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834), estabelecia, no seu art. 10, §8º, a possibilidade de o Presidente provincial vetar (não sancionar) lei aprovada pela Assembléia Legislativa, por inconstitucionalidade (art. 7º). (SÃO VICENTE, 2002, p.258)

O problema envolvendo esta forma de controle de constitucionalidade era manifesta: a revogação (ou suspensão da eficácia) de uma Lei provincial, pela Assembléia Geral, necessitava de articulação política para que resultasse em deliberação no legislativo nacional, como ocorreu com o imposto de consumo (de giro) instituído pela Assembléia Legislativa pernambucana (1885), em manifesta afronta ao disposto no art. 10, §5º, do Ato Adicional de 1834. O Governo imperial preferiu manter-se inerte, não comprando esta briga, tendo em vista que a existência destas espécies de imposto provinciais era um “mal menor”: o Poder Executivo não desejava intervir para não gerar conflito com as Assembléias Provinciais. (MELLO, 1999, p.277-278)

Diante deste deficiente sistema de controle de constitucionalidade, o estudo dos limites ao poder de tributar ganha um realce maior.

3 LIMITES AO PODER DE TRIBUTAR

À luz do constitucionalismo, o poder de tributar, como qualquer outra forma de poder, tem como seu titular o próprio Povo, que o delega, pela Constituição a órgãos do Estado.

Evidente que o Povo não delega o poder de tributar de forma absoluta, ao contrário, limita o exercício destes poderes a fim de proteger os direitos fundamentais à liberdade e ao patrimônio.

Neste momento, busca-se estudar quais os limites ao poder de tributar que existiam no Direito do Império do Brasil.

3.1 LEGALIDADE

Não existia, no art. 179, da Constituição do Império, uma previsão explícita de que os tributos apenas poderiam ser instituídos por meio lei, em sentido formal.

Entretanto, facilmente se extrai este princípio da leitura da Constituição de 1824: estava assegurado, como direito fundamental dos cidadãos, que ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude lei (art. 179, I, da Constituição de 1824) e é que seria assegurado, a todos, o direito de possuir patrimônio (art. 179, XXII, da Constituição de 1824).

Esta proclamação do império da Lei também se percebe quando se está diante da criação de tributos.

Nos termos da Constituição do Império, a atribuição privativa para se iniciar o processo legislativo para criação de tributos, nos termos do art. 36, I, era da Câmara dos Deputados, cujos representantes eram eleitos (para mandato provisório) pelo voto dos cidadãos habilitados (art. 35 e 90 da Constituição de 1824). Entretanto, a criação da Lei deveria se dar após procedimento que previa debate e deliberação em ambas as Casas do Poder Legislativo (arts. 55 e 60, da Constituição de 1824), com posterior sanção do Imperador, no exercício do Poder Moderador (art. 101, III, da Constituição de 1824).

Portanto, para a criação de tributos, nos termos da Constituição de 1824, exigia-se Lei, em sentido formal.

3.1.1 LEIS ORÇAMENTÁRIAS

Uma prática muito comum, durante o Império do Brasil, a partir da Lei orçamentária nº 58, de 08 de outubro de 1833, era a descrição e a possibilidade de instituição de tributos por meio das leis orçamentárias que iriam vigorar no exercício fiscal seguinte.

Nas próprias leis orçamentárias vinha a descrição dos tributos existentes e, em alguns casos, a instituição de outros ou a alteração das alíquotas dos tributos existentes.


3.1.2 TRATADOS INTERNACIONAIS

Os tratados internacionais podem ser considerados como o calcanhar de Aquiles do 1º Reinado e merecem um estudo mais detalhado.

Nos termos do art. 102, VII e VIII, da Constituição de 1824, competia ao Poder Executivo entabular negociações co


Reforma Tributária: Uma breve análise da PEC nº 233/2008

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional
Lotação: Procuradoria da Fazenda Nacional no Estado do Maranhão

RESUMO: O presente artigo buscou analisar o Projeto de Emenda à Constituição nº 233/2008, que pretende alterar o Sistema Tributário Nacional. Almeja-se, de forma sistematizada, realizar estudo acerca da estrutura da PEC e suas principais inovações. Por meio do estudo do conteúdo da PEC nº 233/2008, à luz da doutrina e jurisprudência pátria, teceu-se análise acerca dos seus principais tópicos: o novo ICMS federal, o Imposto sobre Valor Agregado federal (IVA-F), e as alterações na forma de repartição de receitas, com a criação de novos fundos constitucionais. No estudo desta proposta de alteração da Carta Magna, foi realizado estudo acerca das alterações das regras determinantes das competências tributárias, suas conseqüências jurídicas, questionando-se, inclusive, acerca da existência de agressão ao pacto federativo. Pelo emprego de método dedutivo, tendo como premissa maior a nossa carta magna e como menor as propostas de inovações constitucionais, aplicou-se interpretação integrativa, a fim de demonstrar a constitucionalidade da PEC nº 233/2008. Por fim, conclui-se pela adequação destas inovações constitucionais, em face da necessidade de racionalização do Sistema Tributário Nacional

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Tributária. PEC nº 233/2008. ICMS. IVA-F.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A ESSÊNCIA DA REFORMA TRIBUTÁRIA: a criação de novas competências tributárias para instituição do novo ICMS; 2.1 O ICMS FEDERAL: INTRODUÇÃO; 2.2 O novo ICMS federal (art. 155-A, da PEC nº 233/08); 2.2 O novo ICMS federal (art. 155-A, da PEC nº 233/08); 2.2.1 PRINCIPAIS CARACTERISTICAS DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS FEDERAL; 2.2.1.1 LEI COMPLEMENTAR FEDERAL DESCREVERÁ OS ELEMENTOS NUCLEARES DESTE TRIBUTO; 2.2.1.2 REGULAMENTAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR QUE CRIA O ICMS; 2.2.1.3 AGRESSÕES À COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: SANÇÕES; 2.2.1.4 ALÍQUOTAS; 2.2.1.5 LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR; 2.2.1.6 NÃO-CUMULATIVIDADE E SELETIVIDADE; 2.2.1.7 PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DO NOVO ICMS E A CÂMARA DE COMPENSAÇÃO;2.2.1.8 FIM DO ICMS ESTADUAL; 3 O IVA FEDERAL: PRINCIPAIS CARACTERISTICA DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA; 4 ALTERAÇÕES NA REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS; 4.1 IMPOSTOS RESIDUAIS DA UNÃO; 4.2 FUNDO DE EQUALIZAÇÃO DE RECEITAS E FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL; 4.3 NOVAS ATRIBUIÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO; 5 OUTRAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA PEC Nº 233/2008; 5.1 INTERVENÇÃO FEDERAL; 5.2 MEDIDAS PROVISÓRIAS; 5.3 utilização da receita do novo ICMS como garantia; 5.4 CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS; 5.5 ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; 5.6 EXECUÇÃO EX OFFICIO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA DO TRABALHO; 5.7 MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE; 6 CONCLUSÃO; 7 REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO

O Presidente da República, no exercício das suas competências constitucionais (art. 60, II e art. 84, III, da CF), enviou ao Congresso Nacional, por meio da mensagem nº 81/2008, Projeto de Emenda à Constituição Federal (PEC nº 233, apresentada em 28.02.2008), alterando o Sistema Tributário Nacional.

A análise de qualquer projeto de criação de normas constitucionais é sempre um trabalho baseado no estudo da “lei que virá”, de lege ferenda.

Pode-se afirmar que tal análise passa por três etapas distintas: analisa-se o direito existente, vislumbra-se a proposta de alteração e busca-se inferir quais as conseqüências destas modificações legislativas.

Sem sombras de dúvida exige-se do operador do Direito a utilização plena dos métodos interpretativos lógicos e sistemáticos, a fim de se verificar como as normas se introduzirão no ordenamento, em face das demais normas já existentes, e como estas novas disposições deverão ser interpretadas, sem que se produzam absurdos.

Esta advertência fica mais evidente quando se verifica que, na interpretação das disposições constitucionais, não é possível a realização da mesma a ponto de subverter a própria existência da Constituição, sob pena de obtenção de absurdo resultado, já que o legislador reformador constitucional (poder constituído) jamais poderia implodir a própria Constituição (resultado do exercício do poder constituinte)1.

Neste sentido os ensinamentos de BARROSO, ao analisar o princípio da unidade da constituição, como princípio orientador para o intérprete da nossa Carta Magna:

O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou “otimização” das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas.2

Portanto, ao se analisar os dispositivos existentes na PEC nº 233/2008, que procura alterar o Sistema Tributário Nacional, alerta-se que o presente autor não busca extrair conclusões que desconstruam a nossa Carta Magna, ao contrário, busca harmonizar as proposições de lege ferenda ao sistema constitucional atualmente vigente. Ou seja, neste texto busca-se interpretar os dispositivos da PEC nº 233/2008, conforme a Constituição Federal, isto é:

A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico.3

Evidente que tal artigo não pretende esgotar o tema, mas tão somente torná-lo de mais fácil compreensão ao operador do direito, concatenando os temas correlatos, que estão dispersos pela PEC, e sistematizando-os, a fim de melhor esclarecê-los ao leitor.

2 A ESSÊNCIA DA REFORMA TRIBUTÁRIA: A CRIAÇÃO DE NOVAS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS PARA INSTITUIÇÃO DO NOVO ICMS

2.1 O ICMS FEDERAL: INTRODUÇÃO

Se fosse possível resumir a reforma tributária a ser implementada pela aprovação da PEC nº 233/2008, ela poderia ser sintetizada da seguinte forma: trata-se de uma profunda alteração das competências tributárias, em que haverá repercussão, também da repartição das receitas tributárias.

Por esta razão, para se realizar reforma tributária de tal porte era necessária a utilização da emenda constitucional, tendo em vista a necessidade de alteração destas competências tributárias.


Como sabido, a competência tributária é definida como:

O poder de criar tributos é repartido entre os vários entes políticos, de modo que cada um tem competência para impor prestações tributárias, dentro da esfera que lhe é assinalada pela Constituição. Temos assim, que Competência Tributária, ou seja, a aptidão para criar tributos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Todos tem dentro de certos limites, o poder de criar determinados tributos e definir o seu alcance, obedecidos os critérios de partilha estabelecidos pela Constituição4

O núcleo desta reforma reside, sem dúvidas, na criação do novo ICMS federal e na instituição do Imposto sobre o Valor Agregado Federal (que surgirá para substituir diversos tributos), e também nas novas formas de repartir as receitas decorrentes da arrecadação de tributos.

A Constituição Federal de 1988, originariamente, atribuiu a competência tributária para instituição do ICMS aos Estados Membros:

Em 1987 advém a Assembléia Nacional Constituinte, e nela planta-se com extraordinário vigor os anseios dos estados de “independência e autonomia financeiras” nas estiras da descentralização do poder Central.

Opera-se, então, a construção do maior conglomerador tributário de que se tem notícia na história do país, com a adesão de deputados “expertos” em tributação. As constituintes modernas, que seguem a rupturas inconstitucionais, são radicais. As que seguem “acordos de transição” são compromissórias, embora em ambas existam sempre o “elemento radical” e a “componente compromissória”. Sobre a nossa Constituinte – compromissória aqui e radical acolá – convergiram pressões altíssimas de todas as partes. Dentre os grupos de pressão há que destacar o dos Estados-Membros em matéria tributária, capitaneada pela tecnoburocracia das secretarias de fazenda dos estados. E surge o ICMS, outra vez à revela das serenas concepções dos juristas nacionais, senhores das experiências européias e já caldeados pela vivência de 23 anos de existência do ICM. Suas proposições não foram aceitas. Prevaleceu o querer dos estados. A idéia era, à moda dos IVAs europeus, fazer o ICM englobar o ISS municipal ao menos nas incidências ligadas aos serviços industriais e comerciais. O ISS municipal restou mantido. Em compensação, os três impostos únicos federais sobre (a) energia elétrica, (b) combustíveis e lubrificantes líquidos e gasosos e (c) minerais do país passaram a integrar o fato gerador do ICM, ao argumento de que são tais bens “mercadorias” que circulam. Certo, são mercadorias, mesmo a energia elétrica equiparada a “coisa móvel” pelo Direito Penal para tipificar o delito de furto. Ocorre que são mercadorias muito especiais, com aspectos específicos que talvez não devessem se submeter à disciplina genérica do ICMS. Além de englobar os impostos únicos federais da Carta de 1967, o ICM acrescentou-se dos serviços de (a) transporte e (b) comunicações em geral, ainda que municipais, antes tributados pela União, tornado-se ICM + 2 serviços = ICMS. A rigor, o ICMS é um conglomerado de seis impostos, se computando o antigo ICM, a que se pretende dar um tratamento fiscal uniforme a partir do princípio da não cumulatividade, ao suposto de incidências sobre um ciclo completo de negócios (plurifasia impositiva).5

O que existe atualmente é um tributo, que engloba pelo menos cinco hipóteses de incidência diferentes6, cuja competência tributária é atribuída a cada um dos 27 Estados e ao Distrito Federal. Cada um destes entes da Federação pode criar, no exercício da sua competência tributária privativa7, uma legislação própria (obedecendo a algumas balizas federais), e estas 27 legislações (já que cada Estado institui seu próprio ICMS) repercutem em fatos geradores ocorridos fora dos seus próprios territórios, interferindo no comércio jurídico nacional.8

O ponto de partida do presente estudo da PEC nº 233/2008, portanto, será a criação do novo ICMS federal, cuja competência legislativa passou a ser atribuída à União e cuja regulamentação e gestão se dará por meio de órgãos colegiados compostos por representantes da União e dos Estados (e DF).

Em outras palavras, o novo ICMS passa a ter uma regulamentação federal, já que a PEC nº 233/08 acrescenta à competência tributária da União, a atribuição para, por meio de lei complementar, instituir o novo ICMS federal.

Desde já, afirma-se que não há agressão ao pacto federativo (cláusula pétrea: art. 60, §4, I, da CF), tendo em vista que o que se busca não é suprimir competências tributárias para agredir a autonomia9 dos Estados membros (arts. 18 e 25 da CF).

A intenção da reforma é tão-somente racionalizar a tributação, sobretudo em relação ao ICMS (art. 155, II, da CF), o qual, apesar de ser um tributo cuja atribuição legislativa para instituí-lo (poder de tributar) foi conferida aos Estados (e ao DF: art. 147 da CF), em verdade, o mesmo possui características de tributo “federal”10, já que o seu fato gerador é a circulação de mercadoria de bens (e de determinados serviços) dentro do território nacional, não havendo razão para existência de diferentes regimes de tributação, em cada ente regional da nossa República.

Tal desiderato é manifestado, inclusive, pela exposição de motivos nº 16 que acompanhava o anteprojeto desta PEC, enviada ao Chefe do Poder Executivo federal, em 26 de fevereiro de 2008, pelo Ministro do Estado da Fazenda:

No tocante ao imposto de competência estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), tem-se, atualmente, um quadro de grande complexidade da legislação. Cada um dos Estados mantém a sua própria regulamentação, formando um complexo de 27 (vinte e sete) diferentes legislações a serem observadas pelos contribuintes. Agrava esse cenário a grande diversidade de alíquotas e de benefícios fiscais, o que caracteriza o quadro denominado de “guerra fiscal”. Para solucionar essa situação, a proposta prevê a inclusão do art. 155-A na Constituição, estabelecendo um novo ICMS em substituição ao atual, que é regido pelo art. 155, II, da Constituição, o qual resta revogado. A principal alteração no modelo é que o novo ICMS contempla uma competência conjunta para o imposto, sendo mitigada a competência individual de cada Estado para normatização do tributo. Assim, esse imposto passa a ser instituído por uma lei complementar, conformando uma lei única nacional, e não mais por 27 leis das unidades federadas.”11

2.2 O NOVO ICMS FEDERAL (ART. 155-A, DA PEC Nº 233/08)

2.2.1 PRINCIPAIS CARACTERISTICAS DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS FEDERAL

A PEC nº 233/08 acresce, à nossa Carta Magna, o art. 155-A, artigo único de uma nova Seção intitulada “o imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal”.

Por meio desta proposta, atribui-se aos Estados e ao DF, conjuntamente, a receita do produto da arrecadação do imposto incidente sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

Tal tributo também incidirá sobre “as importações de bem, mercadoria ou serviço, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a finalidade” e “o valor total da operação ou prestação, quando as mercadorias forem fornecidas ou os serviços forem prestados de forma conexa, adicionada ou conjunta, com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios”. (art. 155-A, §1º, III, “a’ e “b”).

Cria-se uma nova competência tributária para a União, a qual deverá ser exercida por meio de lei complementar12, utilizando-se o fato gerador do antigo ICMS (art. 155, II, da CF), atribuindo-se aos Estados e ao DF o produto da arrecadação deste tributo.


Em outras palavras, pode-se afirmar que a alteração da competência tributária proposta pela PEC nº 233/2008 acarreta, implicitamente, no fato de que os Estados e o DF receberão delegação, pela própria Constituição Federal, para fiscalizar e arrecadar este novo ICMS federal13. Ao se utilizar a expressão “implicitamente” o que se pretende dizer é que, nesta PEC não há a previsão expressa desta delegação (como ocorre, por exemplo, com o ITR, em relação aos Municípios, por exemplo, no art. 153, §5º, III, da CF), mas dela pode se inferir, já que não se pretende que os Estados e o DF desmontem suas estruturas fiscalizadoras (do ICMS) e também pelo fato de que em inúmeras passagens se vislumbra a possibilidade desta dupla atuação por estes entes da federação. Note-se que haverá inclusive um período de transição (art. 3º e art. 12, II, da PEC nº 233/2008).

Quando se fala que a o art.155-A atribui aos Estados tão-somente a receita do produto da arrecadação, diz-se isto porque a competência legislativa plena para a instituição do tributo (art. 6º do CTN) foi conferida à União, que deverá exercê-la por meio de lei complementar.

A iniciativa legislativa14 para deflagrar o processo legislativo da lei complementar15 que disporá sobre o novo ICMS é atribuída, exclusivamente, na forma do art. 61, §3º, (contido na PEC nº 233/2008), aos seguintes órgãos:

“I – a um terço dos membros do Senado Federal, desde que haja representantes de todas as Regiões do país;

II – a um terço dos Governadores de Estado e Distrito Federal ou das Assembléias Legislativas, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros, desde que estejam representadas, em ambos os casos, todas as Regiões do País;

III – ao Presidente da República.”

As explicações para esta restrição em relação à competência para iniciativa legislativa é dada pela exposição de motivos nº 16, que acompanhava o anteprojeto desta PEC, enviada ao Chefe do Poder Executivo federal, em 26 de fevereiro de 2008, pelo Ministro do Estado da Fazenda:

Dada a peculiaridade dessa lei complementar, que vai além da norma geral, fazendo as vezes de lei instituidora do imposto para cada Estado e o Distrito Federal, são propostas, no § 3o do art. 61 da Constituição, regras especiais para a iniciativa dessa norma, que ficará a cargo do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, dos Governadores ou das Assembléias Legislativas, sendo que nessas hipóteses deverão estar representadas todas as Regiões do País. Tal configuração tem o objetivo de prover maior estabilidade à legislação do imposto, que, com isso, estará sujeita a um menor volume de propostas de alteração.16

Isto posto, necessário agora vislumbrar pontos específicos do novo ICMS, os quais, para fins didáticos, são expostos em tópicos, a fim de melhor compreensão das propostas de inovação constitucional:

2.2.1.1 LEI COMPLEMENTAR FEDERAL DESCREVERÁ OS ELEMENTOS NUCLEARES DESTE TRIBUTO

O §6º, do art. 155-A, da PEC nº 233/08, prescreve que competirá à lei complementar nacional definir os seguintes aspectos nucleares deste novo tributo:

“I – definir fatos geradores e contribuintes;

II – definir a base de cálculo, de modo que o próprio imposto a integre;

III – fixar, inclusive para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações e prestações;

IV – disciplinar o regime de compensação do imposto;

V – assegurar o aproveitamento do crédito do imposto;

VI – dispor sobre substituição tributária;

VII – dispor sobre regimes especiais ou simplificados de tributação, inclusive para atendimento ao disposto no art. 146, III, “d”;

VIII – disciplinar o processo administrativo fiscal;

IX – dispor sobre as competências e o funcionamento do órgão de que trata o §7º, definindo o regime de aprovação das matérias;

X – dispor sobre as sanções aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal e seus agentes, por descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência do imposto, especialmente do disposto nos §§ 3º a 5º;

XI – dispor sobre o processo administrativo de apuração do descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência do imposto pelos Estados e Distrito Federal e seus agentes, bem como definir órgão que deverá processar e efetuar o julgamento administrativo.”

Os elementos nucleares da norma tributária (art. 97 do CTN) deverão vir contidos, pela PEC, na lei complementar nacional, que criará um ICMS único a viger em toda a Federação.

A hipótese de incidência, a definição da base de cálculo, os elementos referentes à qualificação do contribuinte, bem como as hipóteses para extinção do crédito tributário e a padronização do procedimento administrativo tributário, serão todos objeto de disposição desta lei. Procura-se conferir um tratamento uniforme, para uma matéria que está fragmentada entre os Estados da Federação.

2.2.1.2 REGULAMENTAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR QUE CRIA O ICMS

As atribuições para promover a regulamentação deste tributo (art. 99 do CTN), sem poderes de inovação, serão conferidas a órgão colegiado composto por agentes públicos dos Estados e Distrito Federal, presidido por representante da União (sem direito à voto), que terão atribuições para dispor sobre: parcelamento; hipóteses de anistia, remissão, moratória e transação; fixar prazos para recolhimento do tributo; bem como critérios e procedimentos fiscalizatórios que ultrapassem o território de cada Estado da federação (art. 155-A, §7º).

Na verdade, trata-se do CONFAZ, que passará a ter poderes para promover a regulamentação do ICMS federal.


O regulamento do novo CONFAZ, bem como suas atribuições e procedimentos de deliberação, deverão vir previstos na lei complementar que criar o ICMS, na forma do art. 155-A, §6º, IX.

2.2.1.3 AGRESSÕES À COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: SANÇÕES

O §8º, do art. 155-A da PEC nº 233/08, cria, também sanções por eventual agressão às competências tributárias inseridas no texto constitucional, permitido-se que, se agredidas tais disposições, seja possível a aplicação de penalidades, na forma da lei complementar, tanto ao ente político violador (Estados e DF), com sujeição deste a multas, retenção dos recursos oriundos das transferências constitucionais e seqüestro de receitas; quanto ao agente público que a perpetrou, que poderá se sujeitar às seguintes sanções: multas, suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário (o que nos poderia levar a crer que se pretende que tal prática seja compreendida como um ato de improbidade administrativa).

A União poderá reter as transferências constitucionais aos Estados, ou ao DF, nas hipóteses de agressão às competências tributárias estabelecidas em relação ao novo ICMS (art. 155-A, §8º, I c/c art. art. 160, §2º, com a redação conferida pela PEC nº 233/2008).

A lei complementar que instituir o novo ICMS também deverá dispor sobre as sanções aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal e seus agentes, por descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência deste tributo (art. 155-A, §6º, X) e também estabelecerá o processo administrativo de apuração do descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência do imposto pelos Estados e Distrito Federal e seus agentes, bem como definir órgão que deverá processar e efetuar o julgamento administrativo (art. 155-A, §6º, XI)

2.2.1.4 ALÍQUOTAS

As alíquotas17 deste tributo federal serão fixadas pelo Senado Federal, por meio de Resolução (art. 155-A, §2º, I, da PEC nº 233/08), o qual também terá atribuição para, por meio da mesma espécie legislativa, definir “a alíquota padrão aplicável a todas as hipóteses não sujeitas a outra alíquota”, bem como o “enquadramento de mercadorias e serviços nas alíquotas diferentes da alíquota padrão” (art. 155-A, §2º, II, da PEC nº 233/08).

A lei complementar nacional, que instituir o novo ICMS, definirá sobre quais mercadorias (e serviços) os Estados (e o DF) poderão, por meio de lei própria, alterar as alíquotas do ICMS federal incidente sobre aqueles bens (e serviços), indicando também os limites e as condições para o exercício desta competência (art. 155-A, §2º, V, da PEC nº 233/2008). Nestas hipóteses o Senado Federal não poderá fixar tais alíquotas por meio de Resolução.

2.2.1.5 LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR

As alíquotas poderão ser reduzidas ou restabelecidas por atos do órgão colegiado, o que por si só constitui uma exceção à legalidade (art. 150, I, CF), como previsto no art. 155-A, §7º, da PEC nº 233/2008.

Será possível a criação de isenções, por meio de convênios interestaduais, na forma do §4º, I, do art. 155-A c/c art 150, §6º, da CF. Todas as demais isenções deverão estar prevista na lei complementar que cria tal tributo.

Ademais é importante frisar as importantes imunidades tributárias18 que excluem a incidência deste tributo, elencadas no §1º, IV, do art. 155-A, da CF:

a) as exportações de mercadorias ou serviços, garantida a manutenção e o aproveitamento do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores;

b) o ouro, nas hipóteses definidas no art. 153, § 5o;

c) as prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.

Não se aplica, ao novo ICMS federal, o princípio da anterioridade (art. 150, III, “b”, da CF), nem a “noventena” (prevista no art. 150, III, “c”, da CF), até o prazo de dois anos a contar da sua exigência, por força do disposto no art. 4º, da PEC nº 233/08. Se norma tributária, no prazo de dois anos, vier a aumentar o referido tributo, ela só produzirá efeitos 30 dias após a sua publicação, nos termos do parágrafo único, do art. 4º, da PEC nº 233/08.

2.2.1.6 NÃO-CUMULATIVIDADE E SELETIVIDADE

O novo ICMS federal será não-cumulativo19 (na forma da lei complementar) e, nas operações em que estejam sujeitas a “alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade”, não haverá surgimento de crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes (salvo se a lei complementar dispuser em contrário) (art. 155-A, §1º, I e II). Em outras palavras, o legislador constitucional tenta evitar futuros litígios decorrentes da natureza não-cumulativa deste tributo. O novo ICMS poderá ser seletivo, isto é suas alíquotas (fixadas por Resolução do Senado Federal, na forma do art. 115-A, §2º, I, da PEC nº 233/2008) poderão variar em face da quantidade e do tipo de consumo (art. 155-A, §2º, IV).

2.2.1.7 PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DO NOVO ICMS E A CÂMARA DE COMPENSAÇÃO

Nos termos do art. 155-A, §1º, III, “a”, c/c art. 155-A, §3º, I contido na PEC nº 233/2008, o produto da arrecadação do imposto, nas operações interestaduais, competirá ao Estado de destino da mercadoria, salvo em relação à parcela equivalente a 2% sobre a base de cálculo do imposto, que será atribuída ao Estado de origem (art. 155, §3º, II, da CF). Nas operações em que o valor do tributo seja irrisório, a totalidade deste pertencerá ao Estado de origem (art. 155, §3º, II, “a”).

Observe-se que nas operações com petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica, o imposto pertencerá integralmente ao Estado de destino (art. 155, §3º, II, “b”).

Pelo texto da PEC nº 233/2008, fica criada também uma câmara de compensação (entre os estados federados) com a finalidade de obrigar o Estado de origem a transferir, ao Estado de destino, o montante global do imposto. A esta câmara de compensação, também poderá ser atribuída parcela do produto da arrecadação deste imposto com a única finalidade de liquidar as obrigações do estado relativas a operações e prestações interestaduais (art. 155-A, §3º, III, da PEC nº 233/2008).

2.2.1.8 FIM DO ICMS ESTADUAL

O antigo ICMS vigorará até o 7º ano subseqüente à promulgação desta PEC. No curso deste prazo haverá uma uniformização das alíquotas dos ICMS estaduais, com a padronização também de normas referentes à constituição de créditos fiscais, bem como lei complementar poderá dispor, nas operações interestaduais, sobre a destinação do produto da arrecadação do tributo. (art. 3º, da PEC nº 233/2008)

3 O IVA FEDERAL: PRINCIPAIS CARACTERISTICA DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

A PEC nº 233/2008 acrescentou, ao rol de competências tributárias privativas20 da União, o poder para que este ente da Federação institua imposto sobre “operações com bens e prestações de serviços, ainda que as operações e prestações se iniciem no exterior” (art. 153, VIII, da PEC nº 233/08).


O próprio legislador constitucional reformador nos apresenta indicativo para compreensão do que seria prestação de serviços: “considera-se prestação de serviço toda e qualquer operação que não constitua circulação ou transmissão de bens”, ou seja, poderá ser prestação de serviços tudo aquilo não constituir circulação de bens, ou que não esteja sob a incidência do novo ICMS federal (art. 155-A, a ser acrescentado pela PEC nº 233/2008).

Tal tributo também incidirá sobre as importações (art. 153, §6º, III, previsto na PEC nº 233/08) e integrará sua própria base de cálculo (art. 153, §6º, V, previsto na PEC nº 233/08).

É interessante assinalar que tal tributo não se sujeita ao princípio da anterioridade, por força da nova redação conferida pela PEC nº 233/2008, ao §1º, do art. 150, da CF, mas tão somente à noventena (art. 150, III, “c”, da CF).

Tal imposto não deverá incidir (ou seja, trata-se de uma hipótese de imunidade) sobre a exportação de operações com bens ou prestações de serviços, sendo garantida “a manutenção e o aproveitamento do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores” (art. 153, §6º, IV)

O IVA federal será não-cumulativo (na forma da lei) e, nas operações em que estejam sujeitas a “alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade”, não haverá surgimento de crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes (salvo se lei dispuser em contrário) (art. 153, §6º, I e II, contidos na PEC nº 233/2008). Em outras palavras, o legislador constitucional tenta evitar futuros litígios decorrentes da natureza não-cumulativa deste tributo.

Tal tributo terá por finalidade substituir a COFINS (art. 195, I, “b”, da CF), a CIDE (art. 177, §4º, da CF), o salário-educação (art. 212, §5º, da CF) e a contribuição para o PIS (art. 239, da CF), cujos respectivos dispositivos foram alterados, por força do disposto nos art. 8º e art. 13, bem como da nova redação dada ao “caput” do art. 239, da PEC nº 233/2008.

Esta intenção é manifestada, inclusive, na exposição de motivos nº 16 que acompanhara o anteprojeto desta PEC, enviada ao Chefe do Poder Executivo federal, em 26 de fevereiro de 2008, pelo Ministro do Estado da Fazenda:

No caso da União, propõe-se uma grande simplificação, através da consolidação de tributos com incidências semelhantes. Neste sentido, propõe-se a unificação de um conjunto de tributos indiretos incidentes no processo de produção e comercialização de bens e serviços, a saber: a contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins), a contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e a contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível (CIDE-Combustível).
Tal unificação seria realizada através da criação de um imposto sobre operações com bens e prestações de serviços – que, nas discussões sobre a reforma tributária vem sendo denominado de imposto sobre o valor adicionado federal (IVA-F) –, consubstanciada na inclusão do inciso VIII e dos parágrafos 6o e 7o no art. 153 da Constituição, bem como pela revogação dos dispositivos constitucionais que instituem a Cofins (art. 195, I, “b” e IV, e § 12 deste artigo), a CIDE-Combustíveis (art. 177, § 4o) e a contribuição para o PIS (modificações no art. 239).
Além da simplificação resultante da redução do número de tributos, esta unificação tem como objetivo reduzir a incidência cumulativa ainda existente no sistema de tributos indiretos do País. Esta redução da cumulatividade resultaria da eliminação de um tributo que impõe às cadeias produtivas um ônus com características semelhante ao da incidência cumulativa, a CIDE-Combustíveis, e da correção de distorções existentes na estrutura da Cofins e da contribuição para o PIS, as quais, pelo regime atual, têm parte da incidência pelo regime não-cumulativo e parte pelo regime cumulativo.
Vale destacar que, na regulamentação do IVA-F, será possível desonerar completamente os investimentos, através da concessão de crédito integral e imediato para a aquisição de bens destinados ao ativo permanente. Também será possível assegurar a apropriação de créditos fiscais, atualmente obstados, relativo a bens e serviços que não são diretamente incorporados ao produto final – usualmente chamados de “bens de uso e consumo” –, eliminando assim mais uma importante fonte de cumulatividade r

emanescente nos tributos indiretos federais.21

O produto da arrecadação do imposto sobre a renda (art. 153, III, da CF), do imposto IPI (art. 153, IV, da CF) e do IVA (art. 153, VIII) será repartido nos seguintes termos (art. 159, com a redação atribuída pela PEC nº 233/08):

  1. 38,2% será destinado ao financiamento da seguridade social;
  2. 6,7% será destinado ao financiamento do abono do PIS e o seguro-desemprego (nova redação do art. 239, dada pela PEC nº 233/08)
  3. lei complementar estabelecerá o percentual a ser utilizado para: (c.1) “o pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo, o financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás, e o financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”; (c.2) “o financiamento da educação básica”.

O percentual 21,5% do IVA-F integrará o somatório das rendas para constituição o Fundo de Participação dos Estados (art. 159, II, “a”, com a redação dada pela PEC nº 233/08), enquanto que 22,5% deste tributo integrará o Fundo de Participação do

Município (art. 159, II, “b”, com a redação dada pela PEC nº 233/08).

Parcela (1,8%) deste tributo também será destinada para a constituição do Fundo de Equalização (art. 159, II, “d”), previsto no art. 5º da PEC nº 233/2008.

4 ALTERAÇÕES NA REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS

Anteriormente ao CTN/66 (Lei nº 5172/66) vigorava no Brasil um Sistema Tributário tripartite que, em base essencialmente política, consistia na coexistência de três sistemas tributários autônomos (federal, estadual e municipal), cada qual com seus impostos privativos, cujo produto da arrecadação pertencia em sua totalidade à pessoa política competente para instituí-lo.

A Comissão da Reforma Tributária de 1965, ao elaborar o anteprojeto de que resultou a Emenda Constitucional nº 18/65, teve por escopo a criação de um Sistema Tributário uno e nacional, em que se consideram conjugados os sistemas individuais de cada nível de governo, como partes integrantes de um todo.22


A quase unanimidade dos autores considera o tema Repartição das Receitas Tributárias como inserido no campo de Estudo do Direito Tributário, entretanto, para HARADA,

a repartição das receitas tributárias nenhuma relação tem com os contribuintes; interessa apenas às entidades políticas tributantes; insere-se no campo da atividade financeira do estado, objeto de estudo pelo Direito Financeiro.23

Neste mesmo sentido COÊLHO:

De observar que esta questão da repartição de receitas fiscais ou, noutro giro, das participações das pessoas políticas no produto da arrecadação das outras, não tem, absolutamente nenhum nexo com o Direito Tributário. Em verdade são relações intergovernamentais, que de modo algum dizem respeito aos contribuintes. A inclusão da seção ou, por outro lado, do assunto por ela versado, no Capítulo do Sistema tributário, constitui evidente equívoco.24

Já é tradição nas Cartas Políticas brasileiras que, logo após a outorga das competências tributárias aos entes da federação (competência tributárias privativas), haja a fixação do mecanismo de repartição das receitas tributárias, isto é, a definição dos critérios de participação de um ente da federação na arrecadação dos tributos de outros entes.Nas palavras de HARADA:

Esse critério vias, antes de mais nada, assegurar recursos financeiros suficientes e adequados às entidades regionais (estados-membros) e locais (Municípios) para o desempenho de suas atribuições constitucionais.25

Neste sentido:

[…] é uma das técnicas aptas a garantir a autonomia das ordens políticas parciais na forma federativa de Estado, uma vez que não é possível falar-se em autonomia política se inexiste a autonomia financeira.26

Outra técnica para assegurar a autonomia financeira dos entes da Federação é a distribuição das competências tributárias. Pode-se deduzir que ambas as técnicas são adotadas pela CF/88.

A PEC nº 233/2008 altera significativamente os critérios de repartição de receitas tributárias, a fim de, inclusive, evitar a guerra fiscal (com a criação de fundo para implementar o desenvolvimento regional), bem como perdas de arrecadação dos Estados em face da Reforma Tributária proposta, sobretudo com o advento do novo ICMS.

4.1 IMPOSTOS RESIDUAIS DA UNÃO

Nas palavras de ÁVILA, a competência tributária residual poderia ser assim vislumbrada:

A Constituição Brasileira prevê competência para a instituição de determinados tributos que só poderão ser instituídos mediante a edição de lei complementar: […] impostos não previstos na competência ordinária da União Federal, a serem instituídos no exercício da sua competência residual (art. 154, I). Essa exigência de lei complementar decorre do caráter extraordinário desses tributos.27

Na redação conferida ao art. 157 da CF, o percentual de 20% do produto da arrecadação dos impostos derivados do exercício da competência tributária residual da União (art. 154, I, da CF) são destinados aos Estados e ao DF.

Pela PEC nº 233/2008, o produto da arrecadação destes impostos, decorrentes do exercício desta competência tributária, deverão integrar os Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, nos termos da redação dada ao art. 159, II, da CF, por este Projeto.

4.2 FUNDO DE EQUALIZAÇÃO DE RECEITAS E FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL

O Fundo de Equalização de Receitas (FER), a ser instituído por meio de lei complementar, tem por objetivo compensar a eventual redução de arrecadação dos Estados e do Distrito Federal em decorrência de alterações introduzidas por esta Emenda, em relação ao advento do novo ICMS (art. 155-A), na forma do art. 5º da PEC nº 233/08.

Para composição deste fundo, na forma do art. 159, II, “d”(pela PEC nº 233/08), será destinado 1,8% do produto da arrecadação do montante global do imposto sobre a renda (art. 153, III), do IPI (art. 153, IV), do IGF (art. 153, VII) e do IVA federal (art. 153, VIII), bem como dos impostos residuais da competência tributária da União (art.154, I).

O Poder Executivo da União deverá enviar ao Congresso nacional, em até 180 dias, da data da promulgação da Emenda resultante da aprovação da PEC nº 233/2008, o projeto de lei complementar com a finalidade de instituir tal Fundo de Equalização (art. 5º, §6º, da PEC nº 233/08.

Até que esta lei complementar entre em vigor, “os recursos do Fundo de Equalização de Receitas serão distribuídos aos Estados e ao Distrito Federal proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados, sendo que a nenhuma unidade federada poderá ser destinada parcela superior a vinte por cento do total.” (art. 5º, §7º, da PEC nº 233/2008).

Os Estados (e o DF) somente terão direito à percepção dos recursos deste fundo se implementarem as medidas “concernentes à emissão eletrônica de documentos fiscais, à escrituração fiscal e contábil, por via de sistema público de escrituração digital” (previstas no art. 37, XXII, da CF), nos prazos definidos na lei complementar que cria o Fundo de Equalização de Receitas (FER) (art. 5º, §5º, da PEC nº 233/2008).

Para enfrentamento das desigualdades regionais, a PEC nº 233/2008, pretende instituir um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR, art. 161, IV), o qual terá os seus recursos oriundos de percentual (4,8%) do total da arrecadação de tributos federais (art. 159, II, “c”, acrescentado pela PEC nº 233/2008).

Parte do montante arrecadado (5%) poderá ser utilizado em regiões menos desenvolvidas do Sul e do Sudeste, sendo que, no mínimo, 60% do montante do Fundo deverá ser utilizado para o financiamento de atividades produtivas, havendo até a possibilidade de parte do montante ser repassado para fundos estaduais de desenvolvimento (art. 161, IV, com a redação dada pela PEC nº 233/2008)

4.3 NOVAS ATRIBUIÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

O art. 161 da Constituição, por meio da PEC nº 233/08, passará a conferir novas atribuições ao Tribunal de Consta da União, o qual terá a missão de estabelecer normas para a entrega dos recursos para o Fundo de Participação dos Estados, para o Fundo de Participação dos Municípios28 e para o Fundo de Equalização de Receitas, bem como estabelecerá a normatização para aplicação e distribuição de recursos para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (art. 7º da PEC nº 233/2008):


“Art. 161. omissis

I – estabelecer os critérios de repartição das receitas para fins do disposto no art. 158, parágrafo único, I;

II – estabelecer normas sobre a entrega dos recursos de que trata o art. 159, II, “a”, “b” e “d”, especialmente sobre seus critérios de rateio, objetivando promover o equilíbrio sócioeconômico entre Estados e entre Municípios;

III – omissis;

IV – estabelecer normas para a aplicação e distribuição dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, os quais observarão a seguinte destinação:

a) no mínimo sessenta por cento do total dos recursos para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste;

b) aplicação em programas voltados ao desenvolvimento econômico e social das áreas menos desenvolvidas do País;

c) transferências a fundos de desenvolvimento dos Estados e do Distrito Federal, para aplicação em investimentos em infra-estrutura e incentivos ao setor produtivo, além de outras finalidades estabelecidas na lei complementar.

§ 1o O Tribunal de Contas da União efetuará o cálculo das quotas referentes aos fundos a que alude o inciso II.

§ 2o Na aplicação dos recursos de que trata o inciso IV do caput deste artigo, será observado tratamento diferenciado e favorecido ao semi-árido da Região Nordeste.

§ 3o No caso das Regiões que contem com organismos regionais, a que se refere o art. 43,

§ 1o, II, os recursos destinados nos termos do inciso IV, “a” e “b”, do caput deste artigo serão aplicados segundo as diretrizes estabelecidas pelos respectivos organismos regionais.

§ 4o Os recursos recebidos pelos Estados e pelo Distrito Federal nos termos do inciso IV, “c”, do caput não serão considerados na apuração da base de cálculo das vinculações constitucionais.”

5 OUTRAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA PEC Nº 233/2008

5.1 INTERVENÇÃO FEDERAL

Nas palavras de SLAIBI FILHO, a intervenção seria:

[…] a medida excepcional, decorrente da forma de Estado Federal, através da qual o nível federativo mais elevado assume temporariamente as funções executivas, legislativas e administrativas, total ou parcialmente, do ente federativo imediatamente inferior, visando defender o sistema federativo através do eficiente funcionamento dos órgãos públicos nos seus limites constitucionais e legais de competência.

O objetivo da intervenção é,assim, a assunção dos serviços do ente federativo inferior, de forma excepcional e temporária, de acordo com as estritas hipóteses previstas na Constituição.”29

A PEC nº 233 acrescenta nova alínea ao art. 34, V, ao estabelecer que a União poderá intervir nos Estados quando estes retiverem parcela do novo ICMS (v.g. art. 155-A, III, contido na PEC nº 233/2008) devida a outro ente da Federação da mesma natureza.

Nesta hipótese, para iniciar o procedimento interventivo, seria necessária a solicitação do Poder Executivo do Estado prejudicado pela retenção ilícita dos repasses (art. 36, V, contido na PEC nº 233/2008).

5.2 MEDIDAS PROVISÓRIAS

As medidas provisórias, são espécies legislativas, previstas no art. 59, V, da CF, assim analisadas por MORAES:

Apesar dos abusos efetivados com o decreto-lei, a prática demonstrou a necessidade de um ato normativo excepcional e célere, para situações de relevância e urgência. Pretendendo regularizar esta situação e buscando tornar possível e eficaz a prestação legislativa do Estado, o legislador constituinte de 1988 previu as chamadas medidas provisórias, espelhando-se no modelo italiano.

Desde antes da EC nº 32/2001 (com a introdução do §2º, ao art. 62, da CF), o Supremo Tribunal Federal já admitia a possibilidade de Medida provisória dispor sobre tributos30, inexistindo, portanto, qualquer, limite material ao exercício da competência tributária por meio desta espécie legislativa, salvo nos casos de tributos que, para sua criação (ou alteração), fosse exigida lei complementar.

Ressalte-se que o art. 62, §2º, da CF, admite a instituição (ou majoração) de imposto por meio de medida provisória, estando a eficácia destes tributos, no exercício financeiro seguinte, condicionada à conversão em lei (publicação desta) da referida espécie legislativa (MP), no mesmo exercício financeiro de sua edição.31

Pela redação proposta nesta Reforma Tributária, não se aplica à instituição ou à majoração do IVA-F (art. 153, VIII, contido na PEC nº 233/2008), por meio de Medida Provisória, a necessidade de sua prévia conversão em lei, como requisito para a sua produção de efeitos (§2º, art. 62, com a redação apresentada pela PEC nº 233/2008).

5.3 UTILIZAÇÃO DA RECEITA DO NOVO ICMS COMO GARANTIA

Desde o advento da EC nº 03/2003, admitiu-se a possibilidade de vinculação, pelos Estados, Municípios e DF, de suas receitas geradas pelos seus impostos e dos seus repasses constitucionais (arts. 155 e 156, e arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, da CF) para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta (art. 167, §4º, da CF).


Pela PEC nº 233/2008, atribui-se nova redação ao §4º, do art. 167 da CF, pela PEC nº 233/08, é permitido, também, aos Estados e ao DF, a vinculação de receitas próprias geradas pelo novo ICMS como garantia ou contragarantia à União, para pagamento de seus débitos para com esta.

5.4 CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS

As contribuições sociais possuem natureza jurídica de tributos:

“As contribuições passaram a ser consideradas tributos por força da EC nº 01/69, que estabeleceu, ao lado da competência da União para instituir impostos, sua competência para instituir contribuições de intervenção no domínio econômico, de interesse da previdência social e do interesse de categorias profissionais, conforme se vê do art. 21, §2º, I, da CF/67 com a redação da EC nº 01/69, situado dentro do Capítulo V – Do sistema Tributário Nacional. Com a EC nº 08/77, porém, embora a previsão da competência da União para instituir contribuições tenhas permanecido dentro do capítulo atinente ao Sistema Tributário Nacional, houve o acréscimo do inciso X ao art. 43, que cuidava da competência legislativa da Unia, passando a constar, separadamente, a competência legislativa para dispor sobre tributos, arrecadação e distribuição de rendas (inciso I) e para dispor sobre contribuições sociais (inciso X). Tal foi suficiente para quie o STF entendesse que o Constituinte havia entendido não serem, as contribuições, tributos. A Constituição de 1988, por fim, deu-lhes tratamento dentro do Sistema Tributário Nacional e, escoimando qualquer dúvida, estabeleceu que lhes seriam aplicadas limitações constitucionais ao poder de tributar, bem como as normas gerais em matéria tributária.”32

Com a extinção da COFINS e da CSLL (art. 13, I, “d”, da PEC nº 233/08), subsiste tão-somente a competência tributária para a União instituir a contribuição social cobrada ao empregador, à empresa e à entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício. (art. 195, I, da CF, com a nova redação dada pela PEC nº 233/2008)

Em verdade, a CSLL (instituída pela Lei nº 7.689/89) será absorvida pelo Imposto de Renda (Pessoa Jurídica), por força do acréscimo do III, ao §2º, do art. 153 da CF, bem como por alteração da legislação infraconstitucional:

Outra importante simplificação que está sendo proposta é a incorporação da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) ao imposto de renda das pessoas jurídicas (IRPJ), dois tributos que têm a mesma base: o lucro das empresas. Para tanto propõe-se a revogação da alínea “c” do inciso I do art. 195, da Constituição, sendo que os ajustes decorrentes da incorporação poderão ser feitos através da legislação infra-constitucional que rege o imposto de renda. Faz-se necessário, no entanto, um ajuste nas normas constitucionais relativas ao imposto de renda, de modo a permitir que possam ser cobrados adicionais do IRPJ diferenciados por setor econômico, a exemplo do que hoje já é permitido para a CSLL. Tal ajuste é feito através da inclusão o inciso III no § 2o do art. 153 da Constituição.33

Fica mantida a contribuição social paga pelo trabalhador (art. 195, II, da CF), mas revoga-se o inciso IV, do art. 195 da CF (art6. 13, I, “d”, da PEC nº 233/08), que admitia a instituição de contribuições sociais a serem cobradas do importador de bens ou serviços do exterior (e equiparados), já que o art. 153, §6º, III, referente ao IVA federal, admite este evento como possibilidade para definição da sua hipótese de incidência.

Não houve alteração, em relação à competência tributária, para a instituição de contribuição social incidente sobre concursos de prognóstico (art. 195, III, da CF).

Ressalte-se, por fim, que, pela alteração na redação conferida ao §12, do art. 195, pela PEC nº 233/2008, nos termos fixados lei, a agroindústria, o produtor rural pessoa física ou jurídica, o consórcio simplificado de produtores rurais, a cooperativa de produção rural e a associação desportiva podem ficar sujeitos a contribuição sobre a receita, o faturamento ou o resultado de seus negócios, em substituição à contribuição de que trata o inciso I, do “caput” do art. 195 (sobre empregador ou empresa, com base nos rendimentos pagos a qualquer título), hipótese na qual não se aplica o disposto no art. 149, § 2o, da CF (não-incidência das CIDEs e das contribuições sócias sobre as receitas decorrentes das exportações)

5.5 ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Para MORAES, tal órgão jurisdicional poderia ser assim compreendido:

Assim como podemos afirmar que o STF é o guardião da Constituição, também podemos fazê-lo no sentido de ser o STJ o guardião do ordenamento jurídico federal.34

As atribuições do Superior tribunal de Justiça podem ser classificadas em originária e recursal. Nesta última, pode-se identificar a competência recursal originária e a especial, que agora nos interessa.

A competência jurisdicional para processar e julgar o recurso especial é atribuída ao STJ. O recurso especial seria aquele que :teria por escopo “garantir a efetividade e a uniformidade de interpretação do direito objetivo em âmbito nacional”, sendo admissível daquela “decisão de que já não caiba mais recurso ordinário e que tenha contrariado ou negado vigência a tratado ou a lei federal.”.35

Pela PEC nº 233/2008, passará a competir, ao STJ, processar e julgar o recurso especial das causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais (art. 107 da CF), Tribunais de Justiça (art. 125 da CF) e Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Territórios (art. 92, VII, da CF) que almeje a revisão da decisão que contrarie lei complementar que institua o novo ICMS ou a sua regulamentação, ou que lhe negue vigência ou lhes confira interpretação divergente da que lhes tenha atribuído outro tribunal (alínea “d”, do Inciso III, do art. 105, acrescentada pela PEC nº 233/2005).

Eis as razões apresentadas na exposição de motivo nº 16, pelo Ministro da Fazenda, ao Presidente da República, para esta alteração da competência do Superior Tribunal de Justiça:

Mais uma vez, em função da peculiaridade do modelo proposto, com suas regras nacionais sendo aplicáveis diretamente pelos Estados e julgadas nas respectivas justiças estaduais, prevê-se alteração no art. 105 da Constituição, conferindo-se ao Superior Tribunal de Justiça a competência para o tratamento das divergências entre os Tribunais estaduais na aplicação da lei complementar e da regulamentação do novo ICMS.36

5.6 EXECUÇÃO EX OFFICIO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA DO TRABALHO

A Justiça do Trabalho, após o advento da EC nº 20/98, passou a deter competência jurisdicional para promover a execução de contribuições socais decorrentes das sentenças que proferir, como ensina TEIXEIRA FILHO:


“Durante largo período, muito se discutiu, nos foros da doutrina e da jurisprudência, sobre a competência da justiça do trabalho para promover execuções relativas a contribuições previdenciárias e ao Imposto de Renda.

Encontrava-se no auge essa controvérsia quando adveio a emenda constitucional n. 20, de 12 de dezembro de 1998 (DOU de 16 do mesmo mês), que introduziu o §3º no art. 114 da Constituição Federal, com esta redação: “Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir”.

A contar daí, a Justiça do trabalho ficou dotada de competência para executar as contribuições devidas à Previdência Social. Essa competência, todavia é reflexa ou derivada, uma vez que pressupõe a existência de sentença ou acórdão condenatório proferido pela Justiça do Trabalho. Assim, sem uma lide trabalhista preexistente, não se pode cogitar da competência desta Justiça Especializada para executar contribuições previdenciárias, ainda que estas possuam origem em um contrato de trabalho.”37

Tal competência foi mantida pela EC nº 45/2004, ao acrescentar o inciso VIII, ao art. 114, da Constituição Federal38.

Pela PEC nº 233/2008, os órgãos da Justiça do Trabalho continuam a possuir competência para executar, de ofício, inclusive, as contribuições sociais previstas no art. 195, I (a cargo do empregador, incidente sobre a folha de salários e rendimentos pagos a qualquer título) e II (a cargo dos trabalhadores, incidentes sobre a sua remuneração), bem como seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças prolatadas por estes órgãos jurisdicionais. (nova redação ao inciso VIII, art. 114, contido na PEC nº 233/2008).

5.7 MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE

A própria lei (Lei Complementar nº 123/2006) fornece o conceito de microempresa e empresa de pequeno porte:

Art. 3o Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:

I – no caso das microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais);

II – no caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).

Nos termos do art. 146, III, “d”, da CF (com a redação dada pela PEC nº 233/2008), as microempresas e empresas de pequeno porte também terão tratamento diferenciado e favorecido, nos termos de lei complementar, inclusive em relação ao novo ICMS (art. 155-A) e ao IVA-F (Art. 153, VIII).

6 CONCLUSÃO

Como apresentado na introdução, o presente artigo não busca exaurir o tema, mas tão-somente apontar ao leitor os principais pontos do projeto de Reforma Tributária previsto pela PEC nº 233/208, o qual, na sua essência, poderia ser resumido na idéia de alteração de competências tributárias, a fim de melhor sistematizar a estrutura fiscal brasileira.

A Reforma Tributária tem como cerne a alteração da competência tributária para a criação do ICMS e a instituição de poderes para que a União possa criar o IVA Federal, o qual absorveria, sobretudo, a PIS, a COFINS e a CIDE.

A importância desta reforma fica evidente quando se depara com alguns números, apresentados por ALVARENGA39:

  1. no ano de 2000, o ICMS representou mais de 20% da receita tributária do valor global arrecadado por todos os entes da federação;
  2. 70% da arrecadação tributária de toda a federação brasileira derivava, em 2000, apenas dos seguintes tributos ICMS, contribuições para a Previdência Social (lei nº 8212/91), Imposto sobre a Renda, COFINS e FGTS;
  3. No grupo dos dez maiores tributos, é evidente a elevado crescimento da incidência de tributos cumulativos no total da receita tributária da federação (COFINS: 10,9%; e PIS: 4,0%).

Tal situação foi, inclusive, reconhecida pelo próprio executivo federal, o qual, na sua Cartilha da Reforma Tributária40, na qual se vislumbra que os tributos, quando cumulativos (PIS/COFINS, CIDE, ICMS e ISS), implicariam um impacto sobre a economia de modo a transferir 1,9% do PIB para o poder público.

Na verdade, o que ocorre é que o sistema tributário brasileiro perdeu, à luz da teoria econômica, há um bom tempo, a característica da neutralidade, ou seja, que tributação está introduzindo profundas alterações nos mecanismos de funcionamento da economia de mercado e interferindo substancialmente na alocação dos capitais existentes.

Isto se corrobora com algumas conclusões extraídas da mesma Cartilha da Reforma Tributária, a seguir transcritas:

Além da cumulatividade, o custo dos investimentos é elevado devido ao longo prazo de recuperação dos créditos dos impostos pagos sobre os bens de capital. Uma empresa leva 48 meses para compensar o ICMS pago na compra de uma máquina (ao ritmo de 1/48 por mês) e 24 meses para compensar o PIS/Cofins.

O custo efetivo deste diferimento depende da situação financeira da empresa. Para uma empresa líquida corresponde ao que deixa de receber por não aplicar os recursos no mercado financeiro. Para uma empresa endividada, corresponde aos juros pagos sobre o crédito que tem de tomar para financiar o longo prazo de recuperação do imposto.41


Pelo exposto, fica evidente que o atual sistema tributário brasileiro possui sérias distorções, detectadas pelo próprio Executivo federal, as quais pretendem ser sanadas pela PEC nº 233/2008 e que o debate a ser travado no Congresso Nacional será essencial para se delinear a estrutura da reforma tributária, ou mesmo se ela virá ser efetivada.

Seja como for, alguns dos principais problemas da tributação na economia brasileira já foram diagnosticados e a PEC nº 233/2008 busca efetivamente alterar o atual sistema tributário brasileiro a fim de apresentar soluções para eles.

7 REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito tributário na Constituição e no STF. 7.ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

ALVARENGA, Cleuda Maria Alvarenga. Carga Tributária Brasileira: análise da evolução histórica. 10 e 11pp, http://www.univap.br/biblioteca/hp/Mono%202001%20Rev/07.pdf, acessado em 14.03.2008.

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005.

ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário: de acordo com a emenda constitucional n° 42, de 19.12.03.São Paulo: Saraiva, 2004.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. atual., São Paulo: Malheiros Ed., 2005.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 12ª ed., ver. e atual., Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

CARTILHA: Reforma Tributária
http://www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2008/fevereiro/Cartilha-Reforma-Tributaria.pdf, acessado em 11.03.2008

CASSONE, Vittorio. Direito Tributário. 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2000.

CASTRO, Aldemário Araújo. Direito Tributário. Brasília: Fortium, 2005, p. 104.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002.

DALLEGRAVE NETO, José Affonso


A Prisão da Hermenêutica no Ensino do Direito Tributário: Em busca de novas possibilidades para o seu ensino e sua aplicação

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional, já exerceu os cargos de Advogado da União/PU/AGU, Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região, bem como a função de Conciliador Federal – Seção Judiciária do Maranhão. É professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís e ex-professor substituto de Direito da UFMA.
Especialista em Docência e Pesquisa no Ensino Superior.

RESUMO: Trata-se de artigo que tem por finalidade questionar as limitações interpretativas e integrativas do Direito Tributário, previstas nos arts. 107 a 112 do Código Tributário Nacional, demonstrando como a interferência destas normas cerceia, de modo injustificado, a aplicação e as possibilidades deste ramo do Direito, interferindo, inclusive, no ensino do Direito Tributário.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Tributário. Hermenêutica. Limites. Ensino. Crítica

SUMÁRIO: Introdução; 1 Erro e ilusão no Direito; 2 O Direito como forma de controle social; 3 Os limites para a interpretação do Direito; 4 O Problema da Criação do Conhecimento no Ensino do Direito; 5 A Prisão da Hermenêutica no Direito Tributário e o seu Ensino; 6 Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O fenômeno jurídico é uma instigante manifestação da experiência humana, não apenas porque serve de repositório dos valores da sociedade que o edifica, mas também porque, ao ser erigido, ganha uma autonomia que o torna uma entidade distinta, quase que como o seu fiscal.

Desta forma, o Direito carrega consigo uma força simbólica tão intensa que faz com que se permita até se auto-explicar, a servir de própria referência interpretativa.

O presente texto é uma crítica a esta construção tautológica do fenômeno jurídico: uma crítica específica aos limites interpretativos do Código Tributário Nacional.

A Lei nº 5.172/66, o nosso Código Tributário Nacional, criou um micro-sistema interpretativo-integrativo das normas tributárias, por força do art. 107 do CTN, cerceando a liberdade do operador do Direito, impedindo que outros métodos (ou perspectivas) interpretativos, pudessem arejar o abafado (e quase hermético) universo deste ramo do direito.

Neste texto, sobretudo, buscou-se tratar das possibilidades, ou seja, romper um paradigma que há mais de 40 anos impede que o direito tributário brasileiro possa vir a caminhar para outras rotas, em busca de outros fundamentos, que possam inspirar o aplicador do Direito quando vier a manejar as normas tributárias. Pretendeu-se vislumbrar possibilidades quando da aplicação do Direito, sobretudo quanto às possibilidades no ensino jurídico, quando a criatividade e as alternativas surgidas em sala de aula, poderão gerar frutos nos discentes, no momento que estiverem atuando como operadores do Direito.

Inicia-se o texto tratando do erro e da ilusão no estudo do Direito, sob a perspectiva de Edgar Morin, a fim de se deduzir, ao final, que não se pode aceitar uma racionalização cega quando da explicação dos fenômenos jurídicos.

A seguir passa-se a estudar a natureza simbólica do Direito: analisa-se o direito como uma forma de controle social, verificando a sua natureza e como este se realiza por meio do poder simbólico, vislumbrando o Direito enquanto fenômeno social que tem por escopo o controle comportamental de uma coletividade em busca da manutenção do status quo.

E, à luz dos ensinamentos de Bourdieu, faz-se reflexões acerca do monopólio do Estado da jurisdição e, portanto, da interpretação definitiva do direito, apontando suas razões e consequ?ências.

Em seguida, será apresentada a crítica à teoria do conhecimento científico dominante, na perspectiva de Santos, com a finalidade de, a partir dos elementos desta crítica, demonstrar que não é possível em sala de aula se construir um válido conhecimento científico sem que haja uma atuação ativa do discente.

Por fim, pretende-se revelar que a tautológica construção do Código Tributário Nacional nada mais representa que uma simbólica forma de cercear a liberdade hermenêutica, edificada em um outro contexto histórico, para finalidades que se perderam no tempo e que, sob égide da Charta Magna de 1998, não seria mais possível se tolerar esta restrição, então decorreria a possibilidade de que, tanto o operador do Direito, quanto o professor, possa vir a superar estas limitações apresentadas pelo CTN.

1 ERRO E ILUSÃO NO DIREITO

Estudar o fenômeno jurídico é uma atividade que exige, daquele que pretende realizá-la, não apenas o conhecimento do direito-que-aí-está, mas a possibilidade de compreender o Direito além dos seus próprios limites.

No campo das aparências, o Direito, por diversas vezes, busca se apresentar como um universo fechado, com sua tecnologia lingu?istica própria e que contém os elementos necessários (e suficientes) para fornecer sua própria compreensão. Isto é, tratar-se-ia de um espaço do conhecimento humano em que suas conclusões e “verdades” seriam retiradas das relações lógica entre os seus próprios elementos: uma estranha tautologia científica.

Para ilustrar tal situação, poderia-se imaginar uma hipotética sala de aula em que um aluno, chamado Sócrates, iria formular uma pergunta a um professor que estaria ministrando aula de, por exemplo, Direito Tributário: – O que seria uma “lei”?

Em uma resposta bastante direta, o professor poderia afirmar que se trata de uma espécie legislativa prevista no art. 59 da Constituição Federal, podendo se apresentar como lei ordinária ou lei complementar (art. 68 da Constituição), mas que, em ambos os casos, introduziriam normas no nosso ordenamento que obrigariam as condutas dos sujeitos de direito (art. 5º, II, da Constituição).

Tal resposta, evidentemente, parte de um pressuposto, a de que o conceito de “lei” pode ser extraído apenas da Constituição Federal. Verifica-se que se trata de uma resposta dogmática, que se fundaria apenas na lógica lingu?ística, semântica, isto é, na tecnologia do próprio Direito.

Note-se que a primeira resposta apresentada não é uma verdade absoluta, mas um discurso retórico, no sentido que se pretende, pelos argumentos apresentados, convencer o discente Sócrates que as conclusões são verdadeiras, à luz do direito-que-aí-está.

Importante atentar para as palavras de Santos (1989, p.96-97) sobre a verdade científica, cuja natureza não coincide com a idéia de revelação, mas com persuasão:

[…] a verdade é a retórica da verdade. Se a verdade é o resultado, provisório e momentâneo, da negociação de sentido que tem lugar na comunidade científica, a verdade é intersubjetiva e, uma vez que essa intersubjetividade é discursiva, o discurso retórico é o campo privilegiado da negociação de sentido. A verdade é, pois, o efeito de convencimento dos vários discursos de verdade em presença. A verdade de um discurso de verdade não é algo que lhe pertença inerentemente, acontece-lhe no decurso do discurso em luta com outros discursos num auditório de participantes competentes e razoáveis […]

Retornado à hipotética sala de aula: apresentada tal explicação pelo professor, poderia o aluno Sócrates solicitar a palavra e a permissão para formular novas perguntas. Verificando o professor que haveria tempo e que ele não estaria “atrasado” com o “conteúdo da disciplina”, a permissão seria concedida.


Tal aluno, empolgado, então se “liberta” e indaga: “então “lei” é só o que a Constituição afirma que é “lei”? Pode existir outra espécie legislativa que tenha a mesma força de “lei”, mas que não seja “lei”? Medida Provisória (art. 62 CF) tem “força de lei”, mas não é “lei”, como isto é possível? “Lei” obriga, mas “decreto” não obriga? Qual a essência da distinção entre “lei” e “decreto”? O que é que a “lei” tem, em sua essência, que permite a esta espécie legislativa criar obrigações para os indivíduos? Existe alguma essência no conceito de “lei” que não seja jurídico? A coerção e imperatividade da “lei” advém do Direito ou do Poder? O Poder interfere no Direito ou o comanda?”

Perplexidade: tais reflexões, que são todas pertinentes com o tema, inicialmente, são uma mera decorrência da busca de concatenação entre os conceitos jurídico-constitucionais, mas, a seguir, evoluem para questionamentos que transcendem o próprio Direito.

Sob uma visão dogmática, algumas destas perguntas não possuem resposta no campo do Direito, já que apresentam problemas que buscam respostas em outros ramos do conhecimento. As respostas que poderiam ser oferecidas ao aluno Sócrates seriam aquelas que apenas poderiam ser obtidas pela utilização lógica da tecnologia jurídica.

Evidentemente que tal perspectiva não é aceitável, pois o fenômeno jurídico não pode ser resumido ao direito-que-aí-está. O Direito não é suficiente para se auto-explicar, pois não seria possível construir uma Ciência do Direito fundada, tão-somente, nos elementos dados pela própria tecnologia jurídica, sob pena de nada desvendar, nada responder.

Poder-se-ia, portanto, concluir que aplicar a racionalidade ao estudo do fenômeno jurídico nos levaria a admitir, necessariamente, que as respostas aos questionamentos jurídicos não poderiam se adstringir apenas à tecnologia lingu?ística do Direito, ou seja, não pode se admitir que o estudo jurídico seja hermético, fechado sobre si próprio.

Com perspicácia, Morin (2000, p.23) analisa este problema e dele extrai o princípio da incerteza racional, ao fazer uma distinção entre racionalidade construtiva e a racionalização:

A racionalidade é a melhor proteção contra o erro e a ilusão. Por uma lado existe a racionalidade construtiva que elabora teorias coerentes, verificando o caráter lógico da organização teórica, a compatibilidade entre as idéias que compõem a teoria, a concordância entre suas asserções e os dados empíricos aos quais se aplica: tal racionalidade deve permanecer aberta ao que contesta para evitar que se feche em doutrina e se converta em racionalização [que, por sua vez] se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta.

Por esta razão, não poderia o conhecimento científico arvorar-se como um reflexo puro e simples da realidade. O método científico moderno não se basta para produzir a explicação da realidade: “A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia.” (SANTOS, 1989, p.83)

A incerteza, deve ser considerada como algo intrínseco ao conhecimento humano e, portanto, à própria ciência. Note-se que tal incerteza é intrínseca ao fenômeno jurídico, tendo em vista que este é edificado sobre a linguagem, sobre o ato comunicativo, e que, essencialmente, não se pode construir para a Ciência do Direito um método de estudo do seu objeto que o admita como inalterável, imutável, estático.

Inegavelmente, o Direito somente conteria esta incerteza, porque na verdade ele poderia ser compreendido como símbolo, sobre o qual seria admitida a aplicação da hermenêutica, tema que será objeto de estudo no próximo capítulo.

2 O DIREITO COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL

2.1 O direito é um fenômeno social: não se pode conceber um Direito sem sociedade, ou uma sociedade sem normatização, que venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar a condutas dos indivíduos e dos grupos que lhes integram. Seria possível até afirmar que, para que exista sociedade, faz-se necessário a existência do Direito, sendo este, portanto, uma necessidade daquela:

A sociedade sem o Direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O Direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o direito representa um grande esforço, para adaptar o mundo exterior às suas necessidades da vida.(NADER, 1994, p.298)

Evidente que não se fala aqui de que qualquer sociedade, para existir, terá necessariamente que possuir uma codificação (fenômeno tipicamente ocidental) para reger a sua vida social, mas tal coletividade deverá estar regida por um conjunto de normas que lhe conceda estabilidade e que permita o desenvolvimento de atividades econômicas e relativa segurança tanto aos indivíduos, quanto às relações surgidas entre estes, a fim de evitar que a força (individual), por si só, seja o único elemento que possa definir o resultado das querelas da sociedade.

Presume-se que os indivíduos, de uma dada sociedade, ao edificarem o Direito que irá reger as suas relações sociais e limitar a satisfação das suas necessidades, aceitam como legítimo tanto o poder que cria as normas, quanto válidas (e também aceitáveis) os conteúdos destas, pois, do contrário existiria, no mínimo, um contexto de subversão política, já que, estaria, em questionamento, a própria obediência ao estatuto social criado pelo poder político constituído.

De certa forma, o Direito estrutura-se segundo a forma como uma sociedade se enxerga, trazendo consigo uma forte característica simbólica, em outras palavras, a forma como a sociedade edifica seu direito, cristalizando normas e positivando princípios, que, na verdade fazem com que este espelho seja um reflexo daquilo que ela é, ou daquilo que ela busca esconder de si mesma:

[…] Ou seja, as sociedades são a imagem que têm de si vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico. São os espelhos que, ao criar sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida em sociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu próprio terror. […] A ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão entre os mais importantes espelhos das sociedades contemporâneas. O que eles reflectem é o que as sociedades são, Por detrás ou para além deles, não há nada. (SANTOS, 2000, p. 45-46)

Pelo que foi apresentado, para a continuação deste ensaio, se faz necessária a formulação de questões acerca de alguns aspectos: a) Se o Direito é um fenômeno social, como poderia este controlar a própria sociedade que o engedrou? b) Qual o fundamento de legitimidade para que o Direito possa se impor sobre uma determinada sociedade? c) Como o Estado consegue impor um Direito sobre uma sociedade?


2.2 O primeiro ponto de análise deve ser a compreensão da construção da “Ciência do Direito”

Ora, a construção de uma ciência jurídica, teria, por óbvio, uma faceta simbólica manifesta: a de apresentar ao espectador uma aparência de lógica, de autonomia, de sistema fechado, que serviria para isolar (para fins de estudo?) o fenômeno jurídico dos demais eventos sociais, ou das demais disciplinas, de modo que se pudesse construir e compreender o Direito, pelos seus próprios princípios, nos seus próprios termos. Bourdieu (2007, p.209) assim enfrenta o tema:

A ciência jurídica tal como concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna.

Portanto, construir uma teoria pura, para o fenômeno jurídico, seria algo “natural”, dentro desta lógica da absoluta autonomia da ciência jurídica, tendo em vista que, se o direito constitui um sistema que se auto-explica, deveria conter categorias lógicas próprias. Bourdieu (2007, p. 209) tece interessante crítica sobre a construção de uma teoria pura para o Direito:

A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento.

A respeito do tema, deve ser lida também uma interessante crítica de Maman (2003, p.45) a esta construção kelseniana:

Muito mais para explicar, do que para compreender o fenômeno jurídico, constroem-se modelos teóricos que são pura ficção científica. Veja-se Kelsen e sua pretensa neutralidade axiológica e epistemológica. A neutralidade axiológica já não era colocada bem mesmo no Círculo de Viena. E a compreensão da realidade jurídica em termos de força material organizada está no neokantismo. A norma fundamental como pressuposto jurídico leva ao positivismo, que não é senão o represamento da decisão. Assim, toda a construção de Kelsen é uma construção dogmática que deve ser interpretada silogisticamente, segundo uma lógica superada […].

Kelsen lisonjeia o comodismo dos aplicadores do direito, com a lei, numa interpretação racional, abstrata, pré-moldada, podemos resolver todos os problemas. Abre caminho para a cibernética e a solução do computador.

Esta concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que almeja apenas treinar/instruir “técnicos jurídicos”.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam submetidos àquelas normas.

Bourdieu (2007, p.242) explica que esta construção de um discurso homogêneo para a “ciência jurídica” advém inclusive de formação jurídica também homogênea que os operadores do direito adquirem: uma tecnologia que lhes permitirá, pela vias do direito, trabalhar com os conflitos sociais:

A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.

As normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos seus movimentos. Ao isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo.

2.3 Portanto, o Direito procura construir uma simbologia própria para, pela sua utilização por operadores do direito “aptos” e “treinados”, que seja possível controlar e manter, dentro das expectativas do aceitável, os potenciais conflitos sociais que possam emergir das diversas interações entre os agentes sociais.

O Direito cria um discurso, baseado na forma, a fim limitar não apenas a atuação de agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas, mas para tanto, para conseguir manter a eficácia destas regras (ou princípios), faz-se necessária a adesão daqueles que irão suportar o seu peso, e isto se concretiza pela perda do discernimento (dos destinatários das normas), do seu potencial para a questioná-las ou delas discordar, por não estarem “tecnicamente aptos”:

É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais cerca quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento.(BOURDIEU, 2007, p.243)

SANTOS, de forma brilhante, cria uma imagem, uma metáfora, muito forte para demonstrar as consequ?ências este distanciamento entre o Direito e a sociedade que o engedrou: o Direito seria uma espelho da sociedade, refletindo suas estruturas, seus valores, seus ideais, entretanto, tal espelho ganha “vida”, ou seja, a imagem passa a ser uma estátua viva, autônoma em face da coletividade que ela representa. Seria como se o Davi, de Michelangelo, ou a sua Pietá, passassem a exigir que a beleza humana fosse aferida pelos seus parâmetros, pela sua irreal estética:

[…] os espelhos sociais, porque são eles próprios processos sociais, têm vida própria e as contingências dessa vida podem alterar profundamente a sua funcionalidade enquanto espelhos. […] Quanto maior é o uso de um dado espelho e quanto mais importante é esse uso, maior é probabilidade de que ele adquira vida própria. Quando isto acontece, em vez de a sociedade se ver reflectida no espelho, é o espelho a pretender que a sociedade a reflicta. De objecto do olhar, passa a ser, ele próprio, olhar. Um olhar imperial e imperscrutável, porque se, por uma lado, a sociedade deixa de ser reconhecer nele, por outro não entende sequer o que o espelho pretende reconhecer nela. É como se o espelho passasse de objetcto trivial a enigmático super-sujeito, de espelho passasse a estátua. Perante a estátua, a sociedade pode, quando muito, imaginar-se como foi ou, pelo contrário, como nunca foi. Deixa, no entanto, de ver nela uma imagem credível do que imagina ser quando olha. A actualidade do olhar deixa de corresponder à actualidade da imagem.

Quando isto acontece, a sociedade entra numa crise que podemos designar crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira do terror de ver refletida nenhuma imagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado.. Entre os muitos espelhos das sociedades modernas, dois deles, pela importância que adquiriram, parecem ter passado de espelhos a estátuas: a ciência e o direito.(SANTOS, 2000, p. 45-46)


2.4 Pelo distanciamento dos seus destinatários o Direito busca exercer o controle social. Como se daria este distanciamento? De modo brilhante, eis a percepção de Bourdieu (2007, p. 215-216):

[…] A maior parte dos processos lingu?ísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em um sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado [são] próprios para exprimirem a generalidade e atemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético […]

Ou seja, na construção das normas jurídicas, pretende-se apresentar aos seus destinatários um aspecto de impessoalidade e abstração, que, em verdade, apenas existiriam na edificação do discurso cristalizado na lei e que serviriam para, diante do leitor/súdito da norma, transmitir-lhe a crença de que a sua natureza (ou a sua finalidade) coincidiria com a forma como foi redigida. Neste sentido, FERRAZ JR. (2008, p. 45-46):

[…] o jurista da era moderna, ao construir os sistemas normativos, passa a servir aos seguintes propósitos, que são também seus princípios: a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível. Por meio de leis, fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental, que deve ser captada como tal. As lei tem um caráter formal e genérico, que garante a liberdade dos cidadãos no sentido de disponibilidade. Nesses termos, a teoria jurídica estabelece uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria bordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítimas da utilidade privada. Sobretudo, esboça-se uma teoria da regulação genérica e abstrata do comportamento por normas gerais que fundam a possibilidade da convivência dos cidadãos.

Pelo discurso, pretende-se construir um mise en scène, desviando a atenção do leitor/súdito da norma do verdadeiro desiderato do comando, gerando neste a crença na impessoalidade e neutralidade da norma jurídica:

Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização […] que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto há séculos. (BOURDIEU, 2007, p.216)

Logo, para exercer o controle da sociedade, não basta apenas deter o monopólio da produção do direito, sendo necessário também que haja uma limitação ao ato de interpretar as normas jurídicas.

Se o discurso cristalizado no direito positivo busca o controle da sociedade, necessário analisar, a seguir, quem detém o monopólio sobre a atuação de dizer o Direito, de dar a última palavra acerca da relação entre os fatos e as normas: o atuar do Estado-Juiz.

3 OS LIMITES PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

3.1 O direito positivado, cristalizado em normas escritas, que estão corporificadas nas espécies legislativas, podem, sem dúvidas, subverter o próprio sistema. Como poderia isto acontecer?

A construção do direito passa necessariamente da atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural como a nossa a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Evidentemente que existe um risco (decorrente de insegurança) se o conteúdo das normas jurídicas forem criados livremente pelos seus próprios intérpretes. Aí reside a insegurança jurídica, que não pode ser tolerada, sob pena de que, pela ausência de um dos pilares que justificam a sua existência, venha o Direito perder a sua legitimidade em face dos seus súditos.

Por esta razão, para limitar a pluralidade de interpretações, o Direito limita: (a) o espaço em que este debate se realizará; (b) os atores legitimados para validamente realizar a interpretação das normas; e (c) a sua duração, concedendo ao Estado-Juiz a última palavra sobre o tema debatido.

3.2 Bourdieu (2007, p. 229), de forma brilhante, percebe que este debate jurídico realizado sobre a válida interpretação das normas jurídicas deve ocorrer em um campo próprio:

O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflicto directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as lei escritas e não escritas do campo- mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei […].

E mais:

A constituição do campo jurídico é um princípio de constituição da realidade […]. Entrar no jogo, conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia violência física e às formas elementares de violência simbólica. (BOURDIEU, 2007, p. 233)

3.3 Ao adentrar neste campo jurídico, os litigantes renunciam à possibilidade de solução própria individual do litígio, conferindo o poder de encontrar a interpretação adequada, ao caso concreto, para o Estado-Juiz, aceitando, portanto, as “regras do jogo”, para que possam ter acesso, de forma legítima, ao bem da vida que está sob disputa, mas, em regra, deverão as partes atuar por meio de profissionais habilitados para tanto:


O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele (pelo recurso da força ou a um árbitro não oficial ou pela procura directa de uma solução amigável), ao estado de clientes de profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que garante o domínio dos meios vê recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo. (BOURDIEU, 2007, p. 233)

3.4 O Direito não admite a eternização do debate e da disputa jurídica acerca dos bens da vida, pelo fato que, se assim ocorresse, a insegurança permearia as relações humanas, tendo em vista que os conflitos não encontrariam fim, já que seria possível, aos litigantes, sempre reiterar (ou renovar) seus pontos de vista. Para tanto, ao Estado-Juiz, é concedido o poder de pôr termo às disputas, apresentando a interpretação definitiva do fato, à luz do Direito:

Confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo tempo cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto solenemente enunciado de uma “autoridade” socialmente mandatada, o pliro representa uma encenação paradigmática da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem impor-se ao reconhecimento e, deste modo realizar-se, está em jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de divisão […], portanto, de distribuição legítima. (BOURDIEU, 2007, p. 236)

Ou seja, o monopólio da jurisdictio, de interpretar o mundo, está contido nas mãos do Estado, que em regra não delega a particulares os seus atos de jurisdição, como fica bem evidente no tipo “Exercício ilegal das próprias razões” (art. 350, do Código Penal), em que a parte, julga e age, em busca da concretização do direito que entende ser seu. Neste sentido Bourdieu (207, p. 236-237) aprofunda o tema:

O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negociações a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publicamente o que elas são na verdade, em última instância, pertence à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim do insulto lançado por um simples particular que, enquanto discurso privado – idios logos – , que só compromete o seu autor, não tem qualquer eficácia simbólica; ele representa a forma por excelência da palavra autorizada, palavra pública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes enunciados performativos, enquanto juízos de atribuição formulados publicamente por agentes que actuam como mandatários autorizados de uma colectividade e constituídos assim em modelos de todos os actos de categorização […], são actos mágicos que são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem.

E conclui afirmando que o Direito seria o poder simbólico por excelência (LYRA FILHO, 2006, p.8), já que controla a sociedade, moldando os rumos da história:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas.

O direito é a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este. (BOURDIEU, 2007, p.237)

Se o direito busca criar os próprios limites para o exercício da limitação da interpretação do fenômeno jurídico, a fim de controlar a insegurança que poderia surgir no próprio sistema, reprimindo a atuação dos particulares, delegando a palavra final para o Estado-Juiz, estas características ficam mais evidentes quando a própria lei limita o próprio intérprete, como ocorre com o art. 111 do CTN:

Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II – outorga de isenção;

III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

Por este dispositivo, quando da aplicação de determinados tipos de normas tributárias, o operador do Direito estaria adstrito, tão-somente, a um único e específico tipo de interpretação. Entretanto, em verdade, tal norma jurídica, que como se nota, não estabelece nenhuma sanção, atuaria como um símbolo que contaminaria todo o Direito Tributário, cerceando a liberdade interpretativa e cristalizando este ramo do Direito, inclusive no que se refere ao ensino jurídico.

4 O PROBLEMA DA CRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NO ENSINO DO DIREITO

4.1 Desde o século XVI, após o Renascimento, a civilização ocidental viveu à sombra de um paradigma que alcançou seu auge no Iluminismo e no século XIX, mas, no nosso atual contexto histórico, as suas construções científicas nada mais são que “uma pré-história longínqua”, pois chegamos à pós-modernidade, que traz consigo a idéia de superação de um modelo cognoscitivo.

Nas palavras de SANTOS (2005, p.21-22):

Os modelos de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. […] Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

Daí se conclui que, no paradigma científico dominante, o que não é mensurável não seria (cientificamente) relevante, tendo em vista que, para se conhecer a realidade, faz-se necessário reduzir a complexidade a modelos simples, a fim de detectar os elementos essenciais de cada objeto, definindo as suas principais características, com o espeque de dividi-los e classificá-los.


4.2 Ora, edificado este paradigma pela ciência moderna, Santos identifica e demonstra que o mesmo está em crise, vislumbrando-se a ascensão de um novo paradigma científico: “A crise do paradigma [científico] dominante é o resultado interactivo de uma pluralidade de condições [dentre elas] o aprofundamento do conhecimento que permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda [a própria ciência].” (SANTOS, 2005, p.41)

Em verdade, vive-se uma “perda de confiança epistemológica”, isto é, duvida-se se a ciência clássica, seus métodos e a própria capacidade de explicar a realidade, como foram edificadas, desde o século XVI, ainda fornecem respostas válidas para trazer explicações para o mundo em que se vivia.

O conhecimento científico buscou, pelo seu discurso e pela sua construção teórica, arvorar-se como espelho da realidade, isto é, a própria ciência nada mais seria que um reflexo da realidade, já que a descreveria e a explicaria, por meio da sua linguagem.

4.3 Se o Direito não é uma realidade objetiva, não se pode conceber que a transmissão do conhecimento jurídico, dentro de um ambiente de sala de aula se dê por meios que suprimam a criatividade interpretativa do aluno.

Ao contrário, na sala de aula, em um ambiente em que se pretenda transmitir o conhecimento jurídico, não basta apenas expor o direito positivo (direito-que-aí-está), deve-se construir o Direito, deve-se edificar o seu conteúdo.

Portanto, a aquisição do conhecimento jurídico é uma atividade realizada pelo sujeito, logo a sua subjetividade e a qualidade das relações existentes em um ambiente de sala de aula são dados relevantes para tanto.

A construção do direito passa necessariamente pela atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural (como a nossa) a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Surgem então os extremos da dogmática jurídica, que desembocam na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que pode ser considerada como uma das grandes obras que influenciou o pensamento jurídico do século XX, pela qual se pretendia construir uma teoria do direito que não pode ser “contaminada” por elementos que não fossem jurídicos:

O esforço notável de Hans Kelsen de constituir uma ciência do direito livre de toda ideologia, de toda intervenção de considerações extra-jurídicas, e que se concretizou pela elaboração de sua teoria pura do direito (Reine Rechtslehre), foi talvez o fato que suscitou mais controvérsias entre os teóricos do direito do último meio século. As teses apresentadas por esse mestre inconteste do pensamento jurídico, com a clareza e a força de convencimento que caracterizam todos os seus escritos, colocaram em questão tantas idéias comumente admitidas, atingiram tantas consequ?ências paradoxais — das quais a mais escandalosa diz respeito à concepção tradicional da interpretação jurídica, bem como ao papel do juiz na aplicação do direito –, que nenhum teórico do direito poderia nem as ignorar nem abster-se de posicionar-se a seu respeito.

A ciência do direito, como conhecimento de um sistema de normas jurídicas, não pode constituir-se, segundo nosso autor, senão excluindo tudo o que é estranho ao direito propriamente dito. O direito, sendo um sistema de normas coercitivas válido em um Estado determinado, pode ser distinguido nitidamente, por um lado, das ciências que estudam os fatos de toda espécie, o que é e não o que deve ser (o Sein oposto ao Sollen), e, por outro, de todo sistema de normas diverso — de moral ou de direito natural — com o qual gostaríamos de confundi-lo ou ao qual gostaríamos de subordiná-lo. Uma ciência do direito não é possível, segundo Hans Kelsen, a não ser que seu objeto seja fixado sem interferências estranhas ao direito positivo. Eis porque a teoria pura do direito se apresenta como a “teoria do positivismo jurídico”.(PERELMAN, 2008)

Tal concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando-se com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que busca apenas formar “técnicos jurídicos”, como já exposto.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam sendo submetidos às normas. Ora, as normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos movimentos destes agentes sociais.

Ao pretender isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir, para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo. A essência desta separação entre direito e agente social se encontra na concepção de que o estado seria algo abstrato, distante da sociedade: “O conceito de Estado, enquanto entidade abstracta, separada quer do governante quer do governado, é o resultado de um longo percurso conceptual que remonta à recepção do direito romano nos séculos XII e XIII.”(SANTOS, 2000, p.162)

Ora, se o Estado, fonte “única” e “central” da produção normativa, de criação do Direito, encontra-se isolado da sociedade que por ele é submetida, por óbvio, as normas jurídicas que dele provêm também estariam distantes desta sociedade e seriam suficientes para reger a vida civil do civites, do cidadão. Esta é a perspectiva dogmática. Seria ela válida? Óbvio que não. Eis um exemplo manifesto:

O Código Civil (Lei nº 10.406/2002) tem por pretensão reger as relações civis no âmbito do território brasileiro. Pelo nosso código, apesar de vigorar o princípio da socialidade, nele ainda se encontra a idéia de que o condomínio é uma exceção a regra de que a propriedade não pode ser compartilhada, logo, o caminho natural, de qualquer condomínio, seria a sua dissolução (art. 1320 e 1321 do Código Civil/2002).

Tal lógica possui substrato na concepção capitalista de propriedade, mas, talvez, não possua sentido em uma sociedade quilombola, ou em uma sociedade indígena, em que as normas jurídicas dominicais do nosso Código Civil não possam ser aplicadas pelo fato de que não encontrariam o devido substrato social para sua incidência, sob pena de destruição da própria vida comunitária e da própria autonomia cultural dos agentes sociais.

Fica evidente que, para a construção de um conhecimento jurídico válido para a realidade em que vivemos, é necessário que o discente seja agente do processo educacional, porque ele também é agente na construção do fenômeno jurídico.

Neste mesmo sentido, Freire (1996, p.47):

Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua própria produção ou para a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento


Portanto, o papel para construção de um novo ensino jurídico seria a pesquisa (em substituição à aula), já que, nas palavras de Demo (2006, p.6), ela seria “a base da educação escolar”, pois ela possibilitaria interpretações próprias, com a utilização da vivência do aluno, com a reconstrução do conhecimento, que é um processo complexo, a partir do senso comum, com a real compreensão do que se vislumbra.

Pela pesquisa, seria possível fornecer ao discente técnicas para reconstruir o conhecimento jurídico, possibilitando que o aluno passe a ser agente na construção do próprio fenômeno, ou seja, operador do direito e não apenas um mero técnico, que conhece as normas, mas não constrói os seus conteúdos.

5 A PRISÃO DA HERMENÊUTICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO E O SEU ENSINO

5.1 O Código Tributário Nacional (CTN), inegavelmente, é o melhor diploma legislativo fiscal que o Brasil já possuiu. A Lei nº 5.172/66, criada para regulamentar os dispositivos inseridos pela Emenda constitucional nº 18/65, à Constituição de 1946, deu precisos contornos ao Sistema Tributário Nacional.

Fundado na idéia de que o tributo seria uma relação obrigacional pecuniária, instituída por lei, que vincularia o indivíduo e o Estado, o CTN buscou assegurar deveres e direitos recíprocos para as partes, afastando do sujeito passivo tributário a absoluta sujeição patrimonial, já que este teria direitos que poderiam ser opostos perante o detentor do poder de tributar.

Entretanto, desde a criação do CTN, já se vão mais de 40 anos. É natural que ocorra o fenômeno do ancilosamento normativo, isto é, as normas jurídicas começam a caducar, tendo em vista a transformação do substrato social que ampara tais normas, surgindo lacunas ontológicas no sistema. De fato, desde a década de 1960, o Brasil transformou-se muito.

O CTN, criado pelo governo militar de Castello Branco (1964-1967), sob a Constituição de 1946, pretendia apresentar conceitos nucleares para as relações tributárias, em um país ainda eminentemente agrário, em que as relações empresariais eram regidas pelos atos de comércio do Código Comercial de 1850 e pelas relações civis, pelo liberal Código de 1916.

O Brasil de 2009 quase que não consegue imaginar a década de 1960, pois além de ter sofrido uma profunda alteração social, a partir da década de 1970, com o fenômeno da urbanização massiva, as relações empresariais e civis também evoluíram, com a tecnologia das comunicações (a partir da década de 1980), permitindo a consumação de milhões de contratos, pelo uso da informática.

Sem dúvidas, a principal mudança introduzida pelo CTN foi a de possibilitar que surgisse uma espécie de arquétipo tributário, isto é, que os tributos possuíssem uma uniformidade em todo território nacional, sendo regidos por institutos que seriam sempre similares por todo o país.

A fim de robustecer esta identidade, esta padronização, para todos os entes federativos, o CTN criou o que poderia se denominado de micro-sistema hermenêutico para as normas tributárias (arts. 107 a 112 do CTN) fazendo com que estas somente pudessem vir a serem interpretadas à luz do que o próprio Código estabelecesse.

5.2 Como já exposto, o Código Tributário Nacional (CTN), Lei nº 5.172, de 1966, inseriu, no ordenamento jurídico brasileiro, uma norma que buscava limitar a atuação dos operadores do direito no momento em que estavam a analisar o alcance das normas previstas na legislação tributária: o art. 111 do CTN.

Tal dispositivo legal busca restringir a atividade interpretativa do operador do direito, sobretudo em temas que envolvam causas de suspensão (moratória, depósitos do montante integral etc, como previsto no art. 151 do CTN) e exclusão do crédito tributário (isenção e anistia, nos termos do art. 175 do CTN).

Havia uma justificativa para criação desta norma, já que o Código Tributário Nacional (CTN), no seu nascedouro, teve por meta atuar como uma meta-lei, transcendendo às legislações estaduais e municipais, conferindo um padrão geral (um standard) para criação dos tributos (e da legislação tributária em geral).

O art. 111 do CTN, portanto, dentro deste contexto, buscava impedir que os órgãos administrativos e judiciários, por meio de normas interpretativas, viessem a quebrar este padrão, instituindo, por meio de meras interpretações, benefícios fiscais que não estavam expressamente previstos em lei. Em suma, buscava-se limitar a liberdade interpretativa do operador do Direito, seja o Estado-Juiz, seja a autoridade tributária, com a finalidade, sobretudo, de se evitar possível lesão aos cofres públicos (pela perda de recitas), bem como agressão à isonomia (com a concessão de benefícios fiscais particulares).

Entretanto, o que deveria ser uma limitação pontual, pela própria natureza simbólica do direito, tornou-se quase que uma proibição genérica que passou a cercear a liberdade interpretativa no âmbito de todo Direito Tributário, engessando, por mais de quatro décadas, a liberdade do Estado-Juiz de dizer o direito no caso concreto, inclusive construindo regra jurídica mais equânime para cada situação.

Agravando-se tal situação, esta limitação interpretativa, associada à limitação de integração da legislação tributária, prevista no art. 108 do CTN, fez com que, no ensino do direito tributário, fossem criadas amarras que impedem uma evolução interpretativa da legislação, reproduzindo-se, portanto, a mesma forma de se estudar e de se compreender o Direito Tributário, desde a década de 1960.

É nesse contexto, que surge a crítica à manutenção desta ilusória e simbólica limitação, que serve, mais do que tudo, para a reprodução de um status quo fiscal baseado, portanto, em apenas uma interpretação literal da lei tributária.

Pode-se afirmar que o art. 111 do CTN se apresenta para a estrutura do Direito tributário quase como o Código de Napoleão de 1804, que impedia a livre interpretação dos seus dispositivos, a fim de evitar uma destruição do sentido original da própria lei.

Em verdade, tal dispositivo, sem dúvidas, se apresenta como um símbolo que enclausurou todo o direito tributário, seja quando da interpretação do CTN e da legislação infraconstitucional, seja porque tais regras interpretativas afastam, no campo da aplicação das normas constitucionais (princípios e regras) do Sistema Tributário Nacional, os demais princípios norteadores da nossa Cartha Magna.

Em verdade, pode-se afirmar que este micro-sistema hermenêutico tributário aprisionou inclusive o próprio estudo e ensino do Direito tributário: se a interpretação e a integração do direito tributário somente podem ser realizadas sob a égide dos dispositivos presentes entre os arts. 107 e 112 do CTN, porque permitir novos olhares sobre este ramo do Direito?

Muito interessante seria se, por exemplo, o CTN pudesse ser interpretado à luz da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) que representa o alicerce sobre o qual se ampara toda a República Federativa do Brasil.

Como poderiam ser as conclusões que surgiriam deste tipo de interpretação? Em um exercício de imaginação, admissível concluir que seria possível: a) a dispensa do pagamento de tributo, pela aplicação da equ?idade, quando tal cobrança acarretasse em impossibilidade de se assegurar vida digna ao indivíduo (estaria, portanto, revogado o §2º, do art. 108, do CTN); b) ao Estado-Juiz pudesse ampliar a extensão das normas referentes à causa de exclusão do crédito tributário (isenção e anistia), por meio de aplicação de regras interpretativas, ou, até mesmo, por equ?idade, quando viessem conferir vida digna ao indivíduo, obtida por meio da valorização do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF); e c) ao Estado-Juiz se libertar das amarras hermenêuticas que o prendem, em face da livre convicção motivada das suas decisões (art. 93, X, CF), sendo possível que, por exemplo, pudessem vir a ser construídos, caso a caso, meios de transação do crédito tributário, por conciliação judicial, para colocar fim aos litígios existentes, sempre que, nesta conciliação, estivesse presente a necessidade se assegurar a possibilidade de o indivíduo explorar de modo lícito sua atividade econômica, retirando sustento para a sua vida (e da sua família). Em outras palavras, as possibilidades são tantas, tão vastas, que não seria possível elencar todas, mas, seguramente, o Direito tributário que iria emergir seria algo absolutamente diferente, vivo, adaptado à realidade brasileira do Século XXI, no qual o Estado-Juiz poderia construir uma novo tipo de relação entre o ente tributante e o sujeito passivo da relação tributária.


6 CONCLUSÃO

O ato de educar, inegavelmente, é um processo lingu?ístico, no qual, a construção do conhecimento é uma atividade coletiva, já que nesta relação humana finalística faz-se necessário que haja uma interação e que nesta, tanto o docente, quanto o discente atuem como protagonistas.

O atuar como protagonista pressupõe que o discente terá de efetivamente interferir e, sobretudo, participar na construção do conhecimento que, em sala de aula, pretendeu ser transmitido.

Fica evidente que a experiência do discente, mesmo que fundada apenas em (um difuso) senso comum, deverá ser fonte da criação/transformação do conhecimento que, em sala de aula, é apresentado. Se se admitir que a experiência do aluno, mesmo que fundada apenas no senso comum, serve de ponto de partida para que o discente possa edificar novos conhecimentos, deve-se considerar que esta experiência deve servir, inclusive, como fonte autorizada para a realização da hermenêutica do próprio conhecimento científico.

Ora, se a interpretação é da essência do Direito, já que o direito é símbolo, construída sob formas lingu?ísticas, como demonstrado, não é possível que se admita limites à interpretação, mesmo que derivados de vedação legal, logo, nem o operador do Direito, nem o estudante estão tolhidos de enxergar o ordenamento jurídico pátrio se valendo da regra matriz do ordenamento jurídico brasileiro, a proteção da dignidade humana (art. 1º, III, da CF).

Portanto, não se pode tolerar, durante o processo educativo, da validade ou da aplicabilidade das normas de interpretação e integração da legislação tributária, previstas nos arts. 107 a 112 do CTN, sob pena de transformar o Direito Tributário em um estéril campo de atuação dos alunos (e futuros juristas), com a reprodução de uma ideologia de um outro contexto histórico da sociedade brasileira.

Necessária a transformação dos critérios de interpretação e de integração da legislação tributária (arts. 111 e 108, CTN), para permitir que o Estado-Juiz, quando da aplicação do Direito ao caso concreto, tenha a liberdade para moldar a estrutura tributária aos fundamentos da República, sobretudo o da dignidade humana e da valorização social do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, CF).

Se, como exposto, o Direito é um espelho da sociedade, cuja imagem tende a se transformar em estátua, quando este corpo social não detecta pontos de contato entre a sua realidade e as normas deste ordenamento, manter esta vedação à livre interpretação e integração do CTN representaria transformar o melhor diploma fiscal do Brasil em um imenso Colosso de Rodes, à espera de um terremoto que viesse a espalhar deus destroços: seria impelir o CTN a caducar, a perder contato com a realidade brasileira que necessita dele.

REFERÊNCIAS

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. Sâo Paulo: Quartier Latin, 2003.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya, revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho, São Paulo: Cortez, UNESCO, 2000.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

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SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

_______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000, v.1.

________. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2005.


A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas

André Emmanuel Batista Barreto Campello1

“[…] fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso.
As leis concernentes à escravidão (que não são muitas)
serão pois classificadas à parte, e formarão nosso Código Negro.”.

Augusto Teixeira de Freitas, na sua Consolidação das Leis Civis, de 1858.

RESUMO:

Trata-se de estudo que busca realizar uma análise da escravidão enquanto fenômeno jurídico durante o Império do Brasil, analisando-se o ordenamento jurídico brasileiro do referido período, em busca do regime jurídico do escravo e dos fundamentos legais da escravidão.

Palavras-chave: Escravidão. História do Direito. Brasil Império. Direito Constitucional. Direito Civil. Direito Penal.

1 INTRODUÇÃO

O fascínio de se realizar um estudo sobre história do direito reside no fato de que ao se adentrar na legislação de um ordenamento jurídico que não mais vigora, em verdade, se depara com a alma de uma sociedade que não mais existe.

Seria como reanimar, com um sopro, um ser que não mais vive, vendo como ele se move, quais são seus objetivos, seus valores, seus traumas, em suma, tentando enxergar o cotidiano do reanimado, pois, com o estudo das formas jurídicas, é possível compreender como uma sociedade tutela seus principais valores e como pretende defender e efetivar os direitos assegurados, que estão cristalizados nas normas jurídicas.

Sem dúvidas este ato de reconstrução da dinâmica jurídica é uma atividade artificial, já que os integrantes daquela sociedade, sobre a qual incidiam aquele ordenamento jurídico estudado, não se encontram presentes, logo, para o estudo do direito deve-se buscar a doutrina, a opinio iuris, de contemporâneos que pudessem nos explicar a dinâmica daquele Direito.

Portanto, ao se realizar um estudo sobre o direito que regia uma outra sociedade, que não mais existe, deve-se buscar interpretar a legislação, não com os nossos olhares, mas pelos padrões de compreensão daqueles que viveram sob aquele ordenamento.

Neste presente artigo pretende-se vislumbrar os marcos jurídicos do instituto da escravidão vigentes durante o Império do Brasil.

É manifesto que os aspectos sociológicos e econômicos da escravidão são em demasia abordados na farta bibliografia nacional sobre o tema, entretanto, por mais estranho que possa parecer, não é usual encontrar artigos que venham a trazer análise do ordenamento jurídico brasileiro vigente no século XIX, que amparava tal instituto.

A escravidão, muitas vezes, é enxergada apenas como um fenômeno fático, percebido sob nuances sociológicas ou econômicas, que simplesmente existia no Brasil do século XIX e que foi extinto por meio da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888.

Entretanto, a questão não é tão simples assim: a escravidão era amparada por uma legislação, que, inclusive a constitucionalizava, apesar de não se referir a ela diretamente (MORAES, 1966, p.372).

Neste artigo pretende-se apresentar ao leitor os marcos jurídicos e a sua dinâmica, a fim de ser possível conhecer o regime jurídico da escravidão, bem como analisar como a natureza jurídica do escravo, tanto no âmbito civil, quanto no âmbito penal.

O primeiro passo, sem dúvida é desvendar o mistério de como a Constituição de 1824 conseguiu conciliar a contradição existente na manutenção da escravidão e a sua natureza liberal, que inclusive trazia um grande rol de direitos fundamentais.

2 A ESCRAVIDÃO COMO INSTITUTO DO DIREITO VIGENTE NO IMPÉRIO DO BRASIL

2.1 A Escravidão: fundamentos constitucionais do instituto.

O fenômeno constitucionalista brasileiro não adveio de uma revolução, pois a Independência não significou uma ruptura com o passado brasileiro.

A independência do Reino do Brasil Unido a Portugal e Algarves (desde a chegada da família real portuguesa e da transferência da Corte para o Rio de Janeiro) não significou um rompimento das estruturas sociais e econômicas vigentes no período histórico anterior, mas uma manutenção destas, conferindo-se poderes políticos à aristocracia rural brasileira.

Pela sua perspectiva de manutenção do status quo, não haveria como a futura constituição do Império do Brasil eliminar subitamente o instituto jurídico da escravidão que servia de fundamento jurídico do sistema produtivo brasileiro.

Apesar disto, na Assembléia Constituinte de 1823 foi apresentada, por José Bonifácio, representação contra a escravatura, nos seguintes termos:

[…] sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso, e uma marinha florescente. Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade, e justiça; e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força, e poder entre as nações. (DOLHNIKOFF, 2005, p.51)

A escravidão não estava prevista, expressamente, em nenhum dos dispositivos da Constituição Imperial, de 1824, o que não poderia ser diferente, já que, pela sua inspiração liberal, não poderia tal Charta Magna, explicitamente trair a sua própria finalidade, como preconizado pela teoria constitucionalista, o resguardo das liberdades individuais.

Dispor sobre a escravidão em uma Constituição liberal seria uma contraditio in terminis, entretanto, o legislador constituinte encontrou uma saída: implicitamente, fez referência aos cidadãos brasileiros libertos, ou seja, que emergiram da capitis diminutio maxima, passando a gozar de seu status libertatis, mas sem alcançar o mesmo status civitatis dos cidadãos brasileiros ingênuos.

Tal conclusão pode ser ratificada pela leitura do art. 6º, §1º, da Constituição de 1824, que classificava os cidadãos brasileiros em duas categorias, os ingênuos e os libertos:

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.


Para perfeitamente definir estes termos jurídicos contidos na Charta imperial, importantíssima a leitura das lições do Conselheiro Joaquim Ribas (1982, p. 280):

Em relação ao direito de liberdade, dividem-se os homens em – livres e escravos, e aquelles se subdividem em – ingênuos e libertos. Chama-se ingênuo o que nasce livre; liberto o que tendo nascido escravo, veio a conseguir a liberdade.

Pode-se concluir que, se a própria Charta Magna imperial atribuía a condição de cidadãos apenas àqueles indivíduos que se apresentavam como ingênuos ou libertos era porque este diploma admitia, ao menos tacitamente, a existência de, no território do Império (art. 2º), haver a possibilidade de existência de outros indivíduos que não poderiam ser cidadãos, por não possuírem este status libertatis, ou seja, porque eram escravos.

A Constituição imperial não declarou a existência da escravidão, mas dela poderia se inferir a existência e a legitimidade deste instituto, pelo ordenamento jurídico brasileiro.

2.2 O estatuto constitucional do liberto

O art. 94, §2º, da Charta imperial reduz o liberto à condição de cidadão de segunda classe: apesar de os libertos serem cidadãos e, portanto, gozarem de liberdade, não poderiam ser eleitores (em um contexto do voto censitário), portanto, também estaria vedado o seu acesso a cargos públicos cujo requisito fosse a condição de eleitor:

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléia Parochial. Exceptuam-se.
I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
II. Os Libertos.

Deve-se frisar que há uma aparente antinomia entre o dispositivo em comento e o art. 179, XIV, da Charta imperial, já que se o liberto era um cidadão brasileiro, não poderia haver vedação dos cidadãos ao cargos públicos, nem criação de restrições, senão com fundamento nos talentos e virtudes de cada um: “XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.”.

Evidente que, à luz da Charta imperial, talentos e virtudes não seriam suficientes para suprir a perda do status libertatis (em algum momento da sua existência), que impossibilitaria que ex-escravos viessem a ocupar cargos públicos.

O Conselheiro Joaquim Ribas assim comenta o status do liberto, demonstrando que ele poderia retornar ao estado de escravo (RIBAS, 1982, p. 280):

Entre os Romanos esta distinção [entre ingênuos e libertos] influía poderosamente na condição do liberto para tornal-a inferior à do ingênuo. Entre nós esta influencia hoje só se entende à esphera do direito político; pois a possibilidade de ser o liberto reconduzido ao estado de escravidão, por ingratidão, nos casos definidos pela Ord. L. 4, Tit. 63 §7 e seguintes, cessou pela disposição do art. 4 §9 da lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871.

Observe-se que o liberto, em verdade, no ordenamento jurídico brasileiro, vivia sob um estado de constante insegurança jurídica, já que existia uma real possibilidade jurídica de perda do seu status libertatis em face da possibilidade de se invocar a ingratidão por supostos atos praticados pelo alforriado em detrimento do seu antigo dominus.

Esta possibilidade de revogação do status libertatis é objeto do raciocínio do Conselheiro Joaquim Ribas, que a justificava aplicando-lhe o regime jurídico da doação, com fundamento no disposto no § 7º, Título 63, do Livro IV, das Ordenações Filipinas:

Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, commetter contra quem o forrou, alguma ingratidão pessoal em sua presença, ou em sua absencia, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá este patrono revogar a liberdade, que deu a este liberto, e reduzil-o à servidão, em que antes estava. E bem si por cada huma das outras causas de ingratidão, porque o doador pôde revogar a doação feita ao donatário, como dissemos acima.

As consequ?ências práticas deste odioso dispositivo podem ser assim compreendidas:

A prática da alforria permitia a um indivíduo constituir uma clientela de homens obrigatoriamente dedicados. Mercê da alforria, o político escravista podia aumentar o número de votos que controlava nas eleições primárias ou paroquiais. Nisto reside a explicação da circunstância, repetidamente lamentada por Joaquim Nabuco, de que nas eleições os libertos votavam nos candidatos antiabolicionistas. Por medo de serem acusados de ingratos, os libertos denunciavam as conspirações escravas. O liberto se vinculava ao patrono até mesmo pelo sobrenome. Escravos, como se sabe, não tinham sobrenome, e por isto ao se alforriarem adotavam o do patrono. A Lei Rio-Branco (Lei n.º 2.040), de 1871, ao revogar o dispositivo das Ordenações que facultava a revogação da alforria, conferiu a todos os libertos a mais completa independência jurídica, mas nem por isso suprimiu a restrição aos seus direitos políticos. (FREITAS, 1988, p. 55-56)

Como exposto, a previsão legal de reversão da alforria concedida foi revogada, expressamente, pelo §9º, art. 4.º, da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871, a denominada “lei do ventre livre”, que derrogava os dispositivos das ordenações Filipinas que admitiam esta possibilidade: “§9.º Fica derrogada a Ord.. liv. 4.º, tit.63, na parte que revoga as alforrias por ingratidão.”

É importante frisar que este odioso dispositivo, que permitia a reversão no status do liberto, somente foi revogado aproximadamente transcorrido meio século após a outorga da Charta imperial, pela Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871.

2.3 A herança legislativa portuguesa e a compra e venda de escravos

Quando se busca investigar as estruturas legislativas do ordenamento jurídico brasileiro, vigentes no Império do Brasil, não se pode deixar de falar que o país não herdou apenas a estrutura econômico-social vigente durante a colônia, mas também a legislação metropolitana portuguesa, recepcionada pela Lei de 20 de outubro de 1823:

Art. 1.º As Ordenações, Leis, Regimentos, Avaras, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelíssima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brazil, em quanto reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negócios do interior deste Império, emquanto se não organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas.

Na falta de um Código, os atos da vida civil deveriam ser regidos pelo Livro IV, das Ordenações Filipinas, que tratava especificamente deste tema, mas que não possuía ponto de contato com a sociedade brasileira do século XIX, já que este diploma legislativo havia sido criado antes da União Ibérica, isto é, já datando mais de 200 quando da independência do Brasil.


O Conselheiro Joaquim Ribas assim comenta e critica a aplicação das Ordenações Filipinas à sociedade brasileira (RIBAS, 1982, p. 76):

O ultimo [trabalho legislativo português], que ainda até hoje se acha em vigor, foi começado no reinado de Fellippe II de Hespanha e I de Portugal, e concluída no seguinte, sendo sancionado e publicado pelo Alv. De 11 de Janeiro de 1603. Em consequ?ência, porém, da elevação da casa de Bragança ao throno de Portugal, entende-se necessário revalidar estas Ordenações, e para este fim expediu D. João IV a lei de 29 de Janeiro de 1643, que revogou todas as legislações anteriores a ella, [salvo algumas exceções] (…). Dos cinco livros das Ordenações Philipinas quase que só o 4º é destinado à theoria do direito civil. Mas os seus preceitos, além de nimiamente [sic.] deficientes, e formulados sem ordem, não estão ao par das necessidades da sociedade actual e dos progressos da sciencia jurídica.

Não obstante estas críticas, os negócios jurídicos civis em geral, bem como os contratos, deveriam ser regulados por este diploma legislativo que apresentava inclusive as regras para regência do contrato de compra e venda de escravos, nos termos do Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas:

Qualquer pessoa, que comprar algum scravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se delle, o poderá engeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro de seis meses o dia, que o escravo lhe for entregue.

É de se ressaltar que, nos parágrafos do Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas, havia a regulamentação, bem como de eventuais vícios redibitórios, além de outros que pudessem contaminar o referido negócio jurídico:

Se o scravo tiver commettido algum delicto, pelo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda e não declarar, poderá o comprador engeital-o dentro de seis meses, contados da maneira, que acima dissemos. E o mesmo será, se o scravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

Em suma, no próprio negócio jurídico de compra e venda, já se pode constatar que, aos escravos, poderiam ser aplicadas sanções, tendo em vista o peculiar regime jurídico dos cativos, distinto daquele relacionado aos homens livres. Esta diversidade de regimes sancionatórios será analisada mais adiante.

3 DEBATES ACERCA DA LEGALIDADE DA ESCRAVIDÃO

3.1 Questionamentos sobre a legitimidade da escravidão

Evaristo de Moraes, em brilhante obra, questiona a legalidade da própria manutenção da escravidão e de escravos, à luz nas normas vigentes durante o Império do Brasil.

O mencionado autor, para espanto, cita um trecho da fala do senador Ribeiro da Luz, em discurso proferido no dia 07 de julho de 1883, tecendo reflexões sobre a validade e eficácia da Lei de 07 de novembro de 1831 (mais adiante analisada):

Não sei qual foi a lei que autorizou a escravidão. O que nos diz a história pátria é que, havendo índios escravos entre nós, para libertá-los, foram introduzidos os africanos, que passaram a substituí-los no cativeiro. Conheço muitas leis, que fazem referência à escravidão, e estabelecem, disposições especiais a respeito do escravo; mas não sei de nenhuma que autorize expressamente a escravidão no Brasil. Foi o tempo e depois as lei, que se referiam à escravidão, que a legalizaram. (MORAES, 1966, p. 156-157)

A regra é a liberdade, já que a escravidão não se presume:

Sendo a escravidão, como fato anormal contrário à lei natural, somente tolerada pela lei civil, por força de razões puramente econômicas, nunca e e em caso algum se presume, mas deve pelo contrário, se provada sempre: Inst. Just. pr. de libert. 1.º e 5.º; Ord. I, 4º tit 42; alv. 30 de junho de 1609. (MARQUES apud MOARES, 1966, p. 165)

Esta conclusão decorre de um exercício de lógica: se a Constituição política, que deveria servir de fundamento para a defesa de direitos fundamentais, não declara (ao menos expressamente) a existência da escravidão, não tolerando a violação do direito à liberdade (art. 179, I e VII, da Charta de 1824, por exemplo), não haveria razão para, de forma tácita, inferir que este abominável instituto civil viesse a prosperar no nosso solo. Evidente que não era desta forma que se interpretava a Charta imperial.

Prova disto é que o Supremo Tribunal de Justiça (cuja existência e competências se encontravam previstas no art. 163 da Carta imperial), julgou em sentido contrário a este preceito clássico de direito romano e canônico, entendendo que a liberdade não pode se presumir se houver agressão ao direito de propriedade do dominus sobre o escravo. Tal decisão é assim comentada pelo jurista Cândido Mendes de Almeida:

As causas de liberdade pelo nosso antigo Direito sempre forão reputadas causas pias (…), e por conseguinte gozando de todo o favor. Entretanto uma decisão do Supremo Tribunal de 5 de Julho de 1832 publicada no Diário do Rio de Janeiro de 23 de Agosto do mesmo ano declarou, que não se podia conceder nestes casos liberdade aos escravos em prejuízo dos direitos de propriedade, i. e., contra o princípio aqui firmado. Em vista do que diz o §4º [do título 11, do Livro 4, das Ordenações Filipinas] em se principio toda a legislação Romana e Canônica em pró da liberdade dos captivos deve ser aceita e executada; nem seria possível que em uma epocha de liberdade a legislação outr’ora executada com tanto favor em pró dos escravos, se tornasse sem nenhum motivo ou lei de repugnante dureza. (MENDES, 1870, p.790)

Ressalte-se que o direito romano e o canônico eram considerados como fontes do direito civil brasileiro, consoante aplicação das Ordenações Filipinas (RIBAS, 1982, p.107), com aplicação subsidiária, nos termos do título LXIX, do Livro III, das Ordenações e sob as limitações conferidas pela lei da boa razão, a Lei de 18 de agosto de 1769. (RIBAS, 1982, p.110)

Entretanto, no Império do Brasil, os fundamentos da sua economia justificavam a existência da situação fática da escravidão (SENTO-SÉ, 2000, p.37-39), pois, pelos diplomas legais existentes, a vigência das normas referentes a sua manutenção passaram a ser, cada vez com mais intensidade, questionadas pela sociedade. Uma situação fática irreformável legitimava a vigência de diplomas não recepcionados.

3.2 A tese da ilegalidade da escravidão

Não obstante este debate acerca da legitimidade da escravidão, uma forte tese começou a surgir no Brasil imperial: a escravidão era uma conduta ilegal e que, em verdade, os senhores dos escravos estavam realizado dupla conduta típica, contrabando (art. 177 do Código Criminal) e reduzir pessoa livre à escravidão (art. 179 do Código Criminal).


A idéia era simples, o Império do Brasil firmou com o Reino da Inglaterra tratado internacional, em 26 de novembro de 1826, por este instrumento: “[…] o Brasil proibia o tráfico dentro de três anos improrrogáveis. Seriam então punidos como piratas quantos neles se envolvessem. Conferiu-se à Inglaterra o tão cobiçado direito de visita e busca.” (TAUNAY, 1941, p. 264)

Este tratado foi ratificado em 13 de março de 1827, devendo passar a viger a partir de 1830.(VIANNA, 1967, p. 148)

Pela Portaria de 21 de maio de 1831, expedida pelo Ministro da Justiça Manoel José de Souza Franco, durante a Regência, ficou expressamente vedado o contrabando de escravos:

Constando ao Governo de S. M. Imperial que alguns negociantes, assim nacionais como estrangeiros, especulam com desonra da humanidade o vergonhoso contrabando de introduzir escravos da Costa da África nos portos do Brasil, em despeito da extinção de semelhante comércio, manda a Regência Provisória, em nome do Imperador, pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, que a Câmara Municipal desta cidade faça expedir uma circular a todos os juízes de paz das freguesias do seu território, recomendando-lhes toda a vigilâncias policial ao dito respeito; e que no caso de serem introduzidos por contrabando alguns escravos novos no território de cada uma das ditas freguesias, procedam imediatamente ao respectivo corpo de delito e constando por este que tal ou tal escravo boçal foi introduzido aí por contrabando, façam dele sequ?estro, e o remetam com o mesmo corpo de delito ao juiz criminal do território para ele proceder nos termos de direito, em ordem a lhe ser restituída a sua liberdade, e punidos os usurpadores dela, segundo o art. 179 do Código, dando de tudo conta imediatamente à mesma Secretaria.(MORAES, 1966, p. 366)

Tal portaria teve muito pouca repercussão, além, de baixíssima efetividade. Cumpre ressaltar que as portarias eram consideradas fontes do direito que buscavam regular os casos nela tratados, sem prejudicar terceiros, nem revogar ou alterar a legislação vigente (RIBAS, 1982, p.83 e MORAES, 1966, p.154), por esta razão adveio a Lei de 07 de novembro de 1831.

O Art. 1º de tal diploma estabelecia: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres.”.

De duas alternativas, uma das teses deve prevalecer:
Primo, se for considerado o argumento de que eventual ato de traficar escravos da Costa da África é importação de mercadoria – compreendendo o escravo como mercadoria, tendo em vista a sua possível natureza de res –, vislumbra-se que a importação destes é proibida desde 13 de março de 1827, portanto, o importador comete o crime público de contrabando:

Art. 177. Importar, ou exportar gêneros, ou mercadorias prohibidas; ou não pagar os direitos dos que são permittidos, na sua importação, ou exportação.
Penas – perda das mercadorias ou gêneros, e de multa igual à metade do valor delles.

No caso concreto o senhor que viesse a importar tais escravos poderia figurar, no mínimo, como cúmplices, na forma do art. 6º, 1.º, do Código Criminal do Império:

Os que receberem, occultarem ou comprarem cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o foram, ou devenddo sabel-o em razão da qualidade, ou condição das pessoas, de quem receberam, ou compraram. (fls. 143)

Secundo, entretanto, é manifesto que o legislador, pela Lei de 07 de novembro de 1831, em verdade, assegurou que escravos introduzidos após a vigência deste dispositivo seriam considerados como homens livres.

Em tese, não poderia mais existir escravos que tivessem sido importados para o Brasil, a partir da publicação deste diploma legal. Esta é a única conclusão que se pode chegar.

Qualquer indivíduo que reduzisse estes homens à condição de escravo estaria cometendo o crime particular, contra a liberdade individual, de reduzir à escravidão pessoa livre, (como previsto no art. 4º desta mencionada lei):

Art. 179. Reduzir à escravidão pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade.
Pena – de prisão por três a nove annos, e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor, que o do captiveiro injusto, e mais uma terça parte.

Comentando o tema, o brilhante deputado pernambucano Joaquim Nabuco:

Com efeito, a grande maioria desses homens, sobretudo no Sul, ou são africanos, importados depois de 1831, ou descendentes destes. Ora, em 1831 a lei de 7 de novembro declarou no seu artigo 1.º: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres.”. Como se sabe, essa lei nunca foi posta em execução, porque o Governo brasileiro não podia lutar com os traficantes; mas nem por isso deixa ela de ser a carta de liberdade de todos os importados de pois de sua data. Que antes de 1831, pela facilidade de aquisição de africanos, a mortalidade dos nossos escravos, ou da Costa ou crioulos, era enorme, é um fato notório. “É sabido dizia Eusébio de Queirós em 1852 na Câmara dos Deputados, que a maior parte desses infelizes [os escravos importados] são ceifados logo nos primeiros anos, pelo estado desgraçado que os reduzem os maus tratos da viagem, pela mudança de clima, de alimentos e todos os hábitos que constituem a vida”. Desses africanos, porém, – quase todos eram capturados na mocidade – introduzidos antes de 1831, bem poucos restarão hoje, isto é, depois de cinqu?enta anos de escravidão na América a juntar aos anos que vieram da África; e, mesmo sem a terrível mortalidade, de que deu testemunho Eusébio entre os recém-chegados, pode-se afirmar que quase todos os africanos vivos foram introduzidos criminosamente no país (NABUCO, 1977, p. 115-116, grifo nosso).

Nas palavras do advogado Busch Varela (apud MORAES, 1966, p. 159-160), em discurso proferido no dia 09 de março de 1884, em conferência realizada no Rio de Janeiro:

Como já observei, a lei de 1831 não criva uma disposição transitória; não se limitava a abolir o tráfico; foi além – declarou livres todos os escravos, importados de então em diante. Tal disposição é, de sua natureza, irrevogável; a liberdade, uma vez adquirida, nunca mais se pode perder. Os importados depois de 1831 adquiriram-na, por disposição expressa de lei, nunca foram escravos no Brasil; foram vítimas de atroz e condenada pirataria; ninguém dirá que o roubo é meio de adquirir propriedade e de transmiti-la legitimamente.

A conclusão que chega Evaristo de Moraes é peremptória:


Uma e única: muitos senhores de escravos, orgulhosos latifundiários brasileiros, se não eram ladrões, eram, pelo menos, receptadores de grande número de liberdades humanas; boa porção das suas fortunas tinha raízes na prática do crime previsto no art. 179 do Código Criminal do Império, pois resultava da escravidão direta dos africanos contrabandeados e da indireta dos africanos livres, misturados no eito com os outros (MORAES, 1966, p. 165).

Ora, se a partir de 1831, qualquer escravo que, após o advento desta lei fosse importado e viesse a ser desembarcado no Brasil seria considerado como homem livre, logo, pode-se concluir que somente poderiam ser considerados cativos, em território brasileiro, os filhos de mãe e pais escravos que já houvesse chegado ao território nacional, anteriormente a este diploma legislativo.

4 A NATUREZA JURÍDICA DO ESCRAVO

Pode-se afirmar, que falar da natureza jurídica de algo é inserir o objeto estudado dentro das categorias lógicas do direito vigente naquele contexto histórico, isto é, é afirmar que aquilo que está sendo estudado tem características que tornam possível, para fins de classificação, afirmar que ele se encontra dentro de um específico conjunto com propriedades similares.

O debate sobre a natureza jurídica do escravo versa necessariamente sobre a controvérsia se aquele ser humano, à luz do direito, deveria ser regido pelo regime jurídico das coisas ou das pessoas.

4.1 O status do escravo na legislação brasileira: persona e res

Para o Conselheiro Joaquim Ribas, o escravo não era tão-somente uma res, era considerado também como personae, ou seja, os direitos do senhor sobre seu escravo (dominica potestas) não eram apenas exercidos a título de dominus, mas também como potestas:

A dominica potestas dos Romanos, constando de dous elementos – o dominium e a potestas, impunha ao escravo duplo subjeição ao senhor, e o considerava ao mesmo tempo como cousa e como pessoa. Esta instituição não despessoalizava, pois, inteiramente o escravo, nem poderia elle sel-o, pois que a sua incapacidade era subjeita a restrições. À proporção, porém, que o direito estricto se foi aproximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza,e a liberdade como faculdade natural. Entre nós também os direitos do senhor sobre o escravo constituem domínio e poder, em relação ao domínio o escravo é cousa, em relação ao poder é pessoa (RIBAS, 1982, p. 281-282).

Tal raciocínio pode ser explicado pela compreensão dos institutos de direito romano que eram aplicados subsidiariamente para sistematizar a escravidão brasileira: o escravo era res e personae ao mesmo tempo, desde que se compreenda este último termo não como sujeito de direito, mas como ser humano:

No direito romano o termo personae era usado como equivalente a homo e não como titular de direito. Por isso os escravos eram considerados ao mesmo tempo personae, e res. Isto não significa que o escravo pudesse ser titular de direito, pois Ulpiano esclarece muito bem a sua posição perante o direito civil – “Quod attinet ad IUS CIVILE SERVI pro nullis habentur.” O escravo não era sujeito de direito, pois era considerado uma coisa, ou melhor, um animal humano. O dominus exercia sobre o servus o direito de propriedade e para sancionar esse direito fazia uso da reivindicatio, isto é, da mesma ação de que se servia em se tratando de um objeto móvel. (NÓBREGA, 1955, p. 120 e p. 130)

Para exemplificar, pode-se analisar um caso concreto, descrito no Parecer nº. 05, de 20 de março de 1858, da lavra do Conselho de Estado do Império, que discutia as questões apontadas, analisando a extensão do direito de propriedade do dominus sobre o servus.

A questão levada ao Conselho de Estado iniciava-se com o fato de que Porfírio Fernandes Siqueira, residente na província do Rio Grande do Sul, hipotecou três escravos seus a Francisco Manuel dos Passos.

A hipoteca, assim como hoje, era considerada direito real, nos termos das Ordenações Filipinas, Livro II , f. 52, §5º e livro 4º, f. 3º. O art. 13, do regulamento de 14 de novembro de 1846 previa os efeitos legais da hipoteca: “[…] são efeitos legais o registro das hipotecas, tornar nula a favor do credor hipotecário, qualquer alienação dos bens hipotecados por título, quer gratuito, quer oneroso.”

Posteriormente, com a finalidade de retirar o gravame que incidia sobre seus escravos, com manifesta má-fé, Porfírio Fernandes Siqueira levou-os à República Oriental do Uruguai, cuja legislação considerava livre os escravos que ali se encontrassem.

Francisco Manuel dos Passos, diante deste prejuízo, com a perda da garantia real do seu crédito, formulou requerimento ao Presidente da Província requerendo que este, junto a legação imperial em Montevidéu, reclamasse a extradição dos escravos brasileiros hipotecados, com fundamento no art. 6º do tratado de extradição firmado entre a República Oriental do Uruguai e o Império do Brasil, que possuía o seguinte conteúdo:

O governo da República Oriental do Uruguai reconhece o princípio da devolução dos escravos pertencentes a súditos brasileiros que, contra a vontade dos seus senhores, forem, por qualquer maneira, para o território da dita república e aí se acharem.

Na fundamentação da decisão ao requerimento formulado por Francisco Manuel dos Passos (de 15 de dezembro de 1857, da lavra do Presidente da Província do Rio Grande do Sul), encontra-se a perfeita descrição do status do servus perante a legislação brasileira:

O governo [da República] oriental, concedendo a devolução, como exceção da lei que aboliu a escravatura em todo o território da república, limitou-a aos casos em que os escravos passarem a esse território contra a vontade de seus senhores. O Governo Imperial, aceitando essa limitação, garantiu a liberdade aos que se acharem no caso contrário. Por isso, em toda questão de devolução, é mister ter em vista não somente os direitos do governo oriental e do senhor do escravo, mas também a posição deste para com aquele. O escravo ignora as transações de que é objeto, não entra, nem pode entrar, no exame delas: obedece a seu senhor. Se este o traz para o Estado Oriental, quaisquer que sejam as obrigações contraídas, haja ou não hipotecas, por aquele simples fato, o escravo adquire a sua liberdade, é livre nesta república, é liberto no Brasil. Ambos os governos estão obrigados a manter-lhe o direito que lhe concederam, nem um pode reclamar a sua devolução, nem o outro pode concedê-la. […]. Finalmente, devem ser considerados libertos os escravos, que estando como contratados, ou em serviço autorizado por seus senhores no território indicado – voltarem à província do Rio Grande do Sul, porquanto, pelo princípio geral acima exposto, o fato de permanecer ou ter permanecido, por consentimento do seu senhor, em um país onde está abolida a escravidão, dá imediatamente ao escravo a condição de liberto […] (O Conselho de Estado, 2005, p. 32-33).

Tais conclusões foram remetidas ao Conselho de Estado do Império, que as ratificou e acrescentou:

Se esses escravos voltassem ao Império, então poderia o reclamante fazer valer seus direitos hipotecários contra uma liberdade conferida com fraude manifesta e, ainda assim, o êxito seria duvidoso. (O Conselho de Estado, 2005, p. 34)

O Imperador aprovou o parecer em 29 de março de 1859.

4.2 Capacidade jurídica minorada e responsabilidade

Portanto, manifesto que o escravo possuía, ao lado da sua condição de personae, a natureza de coisa, tendo em vista que sobre ele, inclusive poderiam recair inclusive direitos reais de garantia. Nas palavras de COSTA: “Nas formas jurídicas do século XIX, o escravo é tido como ser ausente. É ausente por não ser sujeito ou ser quase-sujeito” (COSTA, 2009, p. 204).

O ordenamento jurídico brasileiro, como exposto, também considerava o escravo como pessoa, mas diferindo destas perspectivas clássicas, o servus poderia ser paciente ou agente de condutas que desencadeariam o surgimento de consequ?ências jurídicas (ou seja, não haveria atribuição das consequ?ências jurídicas para o dominus).

As consequ?ências jurídicas oriundas da prática de atos jurídicos incidiriam tão-somente sobre a sua pessoa (escravo), que poderia vir a integrar um dos pólos de uma relação jurídica.

Cumpre ressaltar que, apesar da aparente ilogicidade desta argumentação, está a se tentar explicar um determinado fenômeno jurídico valendo-se da teoria do fato jurídico contemporânea.

Para o direito brasileiro do século XIX era possível que o escravo fosse res e personae2, pelo simples fato de que, pela aplicação subsidiária do direito romano, não haveria óbices para que o escravo pudesse vir a ser objeto de sanção penal, pois desde a antiguidade o mesmo respondia por eventuais condutas criminosas por ele perpetradas, tendo o dominus direito de vida e de morte sobre o servus. (NÓBREGA, 1955, p. 138)

É de se observar que, para o Estado Imperial, qualquer aplicação da sanção capital deveria restar submetida ao devido processo legal (art. 179, XI, da Charta da 1824).

Inclusive o escravo deveria figurar como parte, como preceitua o art. 332 do Código de Processo Criminal do Império, de 1932 (que atribui ao Júri a competência para “imposição da pena de morte”). Ou seja, pela legislação imperial, o servus poderia inserir-se em relação processual.

Entretanto, não poderia figurar como testemunha no processo criminal, consoante a Lei de 29 de novembro de 1832, o Código de Processo Criminal do Império:

Art. 89. Não podem ser testemunhas o ascendente, descendente, marido, ou mulher, parente até o segundo gráo, o escravo, e o menor de quatorze annos; mas o Juiz poderá informar-se delles sobre o objecto da queixa, ou denuncia, e reduzir a termo a informação, que será assignada pelos informantes, a quem se não deferirá juramento. Esta informação terá o credito, que o Juiz entender que lhe deve dar, em attenção ás circumstancias.

Para o direito romano clássico, o servus não poderia integrar validamente relação processual:

Nas Novelas de Teodósio encontramos um texto segundo o qual a incapacidade do escravo para participar de um processo se explicava pelo fato de não ser ele persona. O Escravo, esclarece Sohm, é um homem, que não é pessoa jurídica, mas uma coisa; não podia participar de qualquer relação jurídica; não tinha bens ativos (propriedade) nem passivos (contrair dívidas); não participava de qualquer relação de direito de família. Um processo contra um escravo seria completamente inócuo (NÓBREGA, 1955, p. 138).

Portanto, pelo exposto acima, pode-se concluir que: (a) para o direito imperial, o servus, apesar de não ser cidadão brasileiro, poderia se inserir em algumas relações jurídicas. Conclui-se que, para a legislação brasileira, o escravo era um sujeito de direito cuja capacidade jurídica estava minorada, pois se inexistisse esta capacidade e o direito brasileiro adotasse plenamente a doutrina romanística, não poderia o escravo integrar validamente nenhuma relação processual; e(b) para o direito brasileiro, os atos praticados pelo escravo não necessariamente repercutem sobre o seu dominus. Ou seja, o senhor não se torna responsável pelos fatos praticados pelo escravo (inaplicabilidade da teoria pelo fato da coisa), nem a título de culpa, até porque a pena não pode passar da pessoa do condenado (art. 179, XX, da Charta imperial). Ou seja, como o escravo poderia ser sujeito ativo de crime, sofrendo as consequ?ências de condenação criminal, a pena não poderia repercutir sobre a pessoa do dominus, que não concorreu para o resultado delituoso.

A conclusão não poderia ser diferente, para o direto imperial, o escravo poderia ser sujeito de relação jurídica penal, sobretudo na condição de agente.


4.3 A capacidade do escravo para figurar nas relações jurídicas civis

O escravo, paulatinamente, ao longo do século XIX, foi adquirindo legitimação para a prática de atos da vida civil:

A ab-rogação da penalidade consistente em açoites – penalidade excepcional e de extensão arbitrária – não teve, somente, o efeito que lhe atribuíram alguns escravistas, entre os quais Lourenço da Albuquerque e Ratisbona, não influiu, apenas, por haver suprimido o receio de atrozes sofrimentos físicos. Mais importante foi o reflexo moral da lei n.º 3.310, de 15 de outubro de 1886. Ela acresceu a série de atos legislativos que, desde 1871, vinham conferindo personalidade ao escravo; aumentou o grau da sua elevação na escala para a cidadania; colocou-o, quanto à repressão penal, quase na mesma plana das pessoas livres; numa palavra, forrou o escravo do opróbio, sempre, e por toda parte, ligado aos castigos corporais.” (MORAES, 1966, p. 244)

Pela Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871, pelo seu art. 4.º, o escravo estava autorizado a constituir um pecúlio com finalidade de obter sua alforria:

Art. 4.º É permittido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo pecúlio.

Observe-se que até efeitos sucessórios eram descritos, bem como o reconhecimento de relação conjugal, no §1.º, deste mesmo art. 4.º:

§ 1.º Por morte do escravo, metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmittirá aos seus herdeiros, na fôrma da lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio será adjudicado ao fundo de emancipação de que trata o art. 3.º.

Na lúcida visão do Conselheiro Joaquim Ribas (RIBAS, 1982, p. 282):

À proporção, porém, que o direito estricto se foi approximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza, e a liberdade como faculdade natural.

O escravo, inclusive estava autorizado ao contratar, em prol da sua liberdade, nos termos do art. 4.º, §1.º, da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). Tal diploma legal foi exaustivamente criticado, por contemporâneos, pela sua limitada e lenta efetivação:

Em matéria de emancipação, temos uma lei falha e manca, triste e arrastadamente executada, e mais nada. Nas arcas do Tesouro existem 4.000 contos do fundo de emancipação por qualquer pretexto fiscal. Quatro mil homens ainda escravos por qualquer relaxação administrativa. Até hoje, três anos depois da lei, nem a mínima, providência sobre a educação dos ingênuos e dos emancipados (REBOUÇAS apud MORAES, 1966, p. 24).

Estudada a capacidade civil do escravo, deve-se vislumbrar como o ordenamento jurídico brasileiro do século XIX dispunha sobre a responsabilidade penal dos escravos.

5 O DIREITO PENAL MATERIAL E PROCESSUAL E O ESCRAVO

5.1 A responsabilidade penal do escravo

O Código Criminal do Império do Brasil, a Lei de 16 de dezembro de 1830, estabelecia o conceito de criminoso, nos seus arts. 3º e 4º:

Art. 3.º Não haverá criminoso, ou delinqu?ente, sem má fé, isto é, sem conhecimento do mal, e intenção de o praticar.
Art. 4.º São criminosos, como autores, os que commetterem, constragerem, ou mandarem alguém commetter crimes.

Os escravos não se enquadram em nenhum dos casos de inimputabilidade previsto no art. 10 do referido Código Criminal:

Art. 10. Também não se julgarão criminosos: 1.º Os menores de quatorze annos.
2.º Os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lúcidos intervallos, e nelles commtterem o crime.
3.º Os que commetterem crimes violentados por força, ou por medo irresistíveis.
4.º Os que commetterem crimes casualmente no exercício, ou pratica de qualquer acto licito, feito com a tenção ordinária.

Portanto, por óbvio, os escravos, apesar sua capitis dimininutio maxima, estavam submetidos ao Código Penal, podendo figurar como “criminosos” das condutas previstas neste diploma legal: “Em geral, o Direito penal considera o escravo como pessoa, quando julga apto para servir de agente ou paciente de qualquer delicto” (RIBAS, 1982, p. 282).

Uma outra questão que merece análise é a da possibilidade de o escravo vir a ser vítima do crime homicídio praticado pelo seu senhor: juridicamente falando, o dominus que perpetrasse conduta que viesse a resultar na morte do escravo poderia ser processado pelo delito previsto no arts. 192 ou 193 do Código Criminal do Império ou estaria ele no exercício de uma faculdade sua, derivada do seu poder de propriedade sobre o seu servus?

Para responder tal questionamento, deve-se vislumbrar que o art. 14, item 6º do Código Criminal do Império admitia a possibilidade de o dominus praticar conduta lesiva que viesse a resultar dano a seu escravo, desde que de forma moderada, sob a forma de castigo, salvo se agredisse as leis em vigor no Império: tratava-se de uma hipótese de “crime justificável”, segundo a legislação penal da época, mas não seriam admitidas denúncias do escravo contra o senhor, nos termos do art. 75, § 2º, do Código de Processo Criminal do Império de 1932, já que “a vontade do cativo não pode colidir com a vontade do seu proprietário” (COSTA, 2009, p. 205).

Note-se que, segundo o Código Criminal do Império, o senhor não poderia matar o escravo, como sanção privada pelos atos cometidos por este. Como castigo moderado não se inclui a morte do servus. (RIBAS, 1982, p.282)

Cometendo este ilícito, o Estado estaria autorizado a realizar a persecução penal em face do senhor que houvesse provocado o resultado morte no seu escravo, pelos castigos aplicados.


Neste sentido, a denúncia oferecida pelo promotor adjunto (art. 74 do Código de Processo Criminal do Império: Lei de 29 de novembro de 1832), perante o Juiz Substituto do 3º Distrito Criminal da Comarca de São Luís do Maranhão, em face de D. Anna Rosa Vianna Ribeiro, Baronesa de Grajaú (esposa do presidente da Província do Maranhão Dr. Carlos Fernando Ribeiro, em 1884), pelo homicídio do seu escravo Inocêncio, em face de castigos imoderados por ela perpetrados:

Desta sorte indigitada a denunciada, como autora das sevícias e maus tratos encontrados e reconhecidos no cadáver do seu escravo Inocêncio, visto que este durante o tempo em que foi possuído por ela, jamais esteve em outro poder e debaixo de outras vistas, torna-se a mesma denunciada, D. Anna Rosa Vianna Ribeiro criminosa; e, por isso, e em cumprimento da lei, dá o abaixo assinado a presente denúncia, para o fim de ser ela punida com as penas decretadas no art. 193 do Código Criminal, oferecendo por testemunhas aos adiante nomeados, os quais serão citados para deporem no dia e hora que V. S.ª designar, e bem assim a denunciada para se ver processar, sob pena de revelia, fazendo-se as requisições necessárias (ALMEIDA, 2005, P. 65-70).

Ressalte-se que a pena de galés, ou seja, prestação de trabalhos públicos forçados, com os pés acorrentados era inaplicável às mulheres, nos termos do art. 45, 1º, do Código Criminal do Império, devendo ocorrer a sua conversão em prisão, com a realização de serviços compatíveis com o sexo feminino, pelo mesmo período de tempo fixado na sentença.

No caso em comento, foi proferida sentença de impronúncia (em 23.01.1877), nos termos do art. 145 do Código de Processo Criminal do Império, a qual, sendo objeto de recurso, foi reformada (no dia 13.12.1877), determinando o juízo ad quem (Tribunal da Relação) a pronúncia da ré, que foi levada a júri popular, sendo absolvida em 22.02.1877.

Após apelação (art. 301 do Código de Processo Criminal do Império), foi julgado improcedente o recurso (em 22.05.1877), e, não havendo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art. 305 do Código de Processo Criminal do Império), o feito transitou em julgado.

5.2 As penas aplicadas aos escravos

Os regimes das penas aplicadas aos escravos, manifestamente, diferiam das sanções aplicadas aos homens livres.

5.2.1 A pena de açoitação

A priori, é de se ressaltar que a Charta imperial, no seu art. 179, XIX, abolia as penas cruéis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[…]
XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.

Entretanto, o art. 60 do Código Criminal do Império do Brasil, estabelecia:

Art. 60. Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será conmdemnado na de açoute, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar. O número de açoutes será fixado por sentença; e o escravo não poder´pa levar por di mais de cincoenta.

Ademais, nas Ordenações Filipinas, Livro V, título LX, §2º, recepcionadas, verifica-se a previsão da pena de açoitação para o delito de furto, aplicável tanto a homens livres quanto a escravos.

Aos escravos, segundo o disposto nas Ordenações, seriam aplicadas a penas açoitação nos seguintes termos: “Porém, se for escravo, quer seja Christão, quer infiel, e furtar valia de quatrocentos reis para baixo, será açoutado publicamente com baraço e pregão.”.

Para solucionar tal antinomia, a doutrina jurídica do período realizava a harmonização destes dispositivos alegando que o art. 179 da Constituição imperial assegurava direitos fundamentais e liberdades públicas tão-somente aos “Cidadãos Brazileiros”, ora, se o escravo perdeu seus status libertatis (ocorrendo a capitis diminutio maxima), não poderia ser um Cidadão, portanto, inaplicável tal proteção a estes indivíduos. (MORAES, 1966, p. 175).

Portanto, revogada estava à pena de açoitação, prevista nas Ordenações Filipinas, somente para os cidadãos e não para os escravos.

Tal pena era assim executada, nas palavras do Conselheiro Otoni:

Era castigo crudelíssimo: – atava-se o paciente solidamente a um esteio (poste vertical de madeira) e, despidas as nádegas, eram flageladas até ao sangue, às vezes até à destruição de uma parte do músculo. Se não havia o esteio, era o infeliz deitado de bruços e amarrado em uma escada de mão; aí tinha lugar o suplício (apud MORAES, 1966, p. 177).

Cumpre esclarecer que o regime de pena de açoitação, poderia ser judicial ou doméstico. O regime judicial, como referido no art. 60 do Código Criminal, possuía seus limites no arbítrio do órgão jurisdicional (art. 60 do Código Criminal): “o legislador penal da monarquia não limitava o número total dos açoites; deixava ao arbítrio do julgador. Apenas limitava a dose diária” (MORAES, 1966, p. 176).

No que se refere à pena de açoitação, os fundamentos para o exercício deste poder punitivo no âmbito doméstico podem ser encontrados no art. 14, § 6º, do Código Criminal do Império, que estabelecia, dentre as causas de “crimes justificáveis”, a aplicação de castigo moderado que os senhores venham a aplicar a seus escravos. Quando o dominus exercia este seu poder, o critério para fixação do quantum desta sanção decorria do seu livre arbítrio, mas “a maneira material da execução do suplício era, em uma e outra hipótese, os mesmos.” (MORAES, 1966, p. 177).

Tal pena aplicada aos escravos foi revogada pela Lei nº. 3.310, de 15 de outubro de 1886.

5.2.2 A pena de morte

5.2.2.1 A pena de morte e o direito penal imperial

Antes do advento do Código Criminal do Império, vigorava no Brasil, como fonte do direito penal, o Livro V, das Ordenações Filipinas, que previa a existência da pena capital.

Apesar de inúmeros debates, de manifestações inclusive contrárias, Bernardo Pereira de Vasconcelos, autor do anteprojeto do Código Criminal de 1932, manteve a pena de morte tanto para crimes comuns, quanto para crimes políticos, sob o fundamento de que, tal sanção subsistiria para poucos delitos e que o anseio de segurança pública deveria prosperar, já que a inocência, em verdade, era sempre a vítima do crime (RIBEIRO, 2005, p. 27).


Ademais, consoante argumentos do relator, a Constituição Imperial admitia implicitamente a possibilidade de existência da pena capital, como se depreende da leitura do art. 27 desta Charta Magna:

Art. 27. Nenhum Senador, ou Deputado, durante a sua deputação, póde ser preso por Autoridade alguma, salvo por ordem da sua respectiva Camara, menos em flagrante delicto de pena capital.

Como exposto, o Código Criminal do Império trazia, dentre as espécies de pena, a de morte (art. 38), a qual era executada na forca, após o trânsito em julgado do feito, no dia seguinte após a intimação, mas nunca antes de domingo, dia santo ou de festa nacional (art. 39).

Para o cumprimento da pena capital, o réu era conduzido pelas “ruas mais públicas” até a forca, acompanhado pelo Juiz Criminal, pelo escrivão e pela força policial necessária (art. 40).

A presidência dos atos de execução desta pena era feita pelo juiz Criminal, com a lavratura de certidão de todos os atos pelo Escrivão, a qual será juntada aos autos do processo (art. 41).

O corpo do réu poderia ser entregue à família (ou amigos), se requisitado ao juiz, mas não haveria enterro com pompa, sob pena de prisão daqueles que descumprissem este comando (art. 42).

Mulheres grávidas não poderiam ser enforcadas, nem julgadas enquanto perdurasse este estado, somente após transcurso 40 dias do parto (art. 43).

Nos processo criminais em que fosse determinada a condenação nesta pena, poderia haver o perdão pelo exercício do Poder Moderador (art. 66 do Código Criminal c/c art. 101, §8º, da Constituição Imperial), ou, no caso de “crimes particulares” (“sem accusação por parte da Justiça” – art. 67). A pretensão executiva era imprescritível (art. 65).

5.2.2.2 A pena de morte e a Lei n.º 04, de 10 de junho de 1855

Em relação às penas de morte aplicadas aos escravos, necessário o estudo da execrada, desde sua época, Lei n.º 04, de 10 de junho de 1855. Tratava-se de lex specialis que previa tipificação especial e pena capital para algumas condutas delituosas dos escravos, além de rito processual específico para julgar estes crimes, quando figurassem como réus tais agentes.

Anteriormente à Lei nº. 04, de 10 de junho de 1835, foi instituído o Decreto de 11 de abril de 1829 (anterior, portanto ao Código Criminal do Império, de 1830), pelo qual “todo réu escravo, condenado à pena máxima por assassínio do seu senhor devia ser executado, imediatamente, sem direito ao recurso de graça, interposto ao Poder Moderador.”.

Inicialmente, deve-se frisar que tal Decreto, além de agredir ao disposto no art. 101, §8º, da Constituição do Império, por ofensa explícita às competências constitucionais do Poder Moderador imperial, criava-se uma inconstitucional exceção à Lei de 06 de setembro de 1826, que atribuía ao próprio Imperador (no exercício das suas atribuições) ressalvas ao seu poder de moderar ou perdoar as penas aplicadas.

O Decreto de 11 de abril de 1829, sem dúvidas é o embrião da cruel Lei nº. 04, de 10 de junho de 1835, tendo em vista a manifesta ratio legis, isto é, acirrar o terror, pela célere aplicação da sanção capital para réus escravos.

Iniciando o estudo da Lei nº 04, de 10 de junho de 1835, seu art. 1º estabelecia:

Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas que matarem por qualquer maneira que seja, que propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendência ou ascendentes, que em, sua companhia morarem, a administrador, feitor e as suas mulheres que com elês viverem. Se o ferimento, ou ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.

Observe-se que, por este dispositivo, buscava-se criar uma norma protetiva do status quo escravista, não apenas para a proteção do senhor e da sua família, mas também dos indivíduos (e respectivo grupo familiar) incumbidos do gerenciamento desta mão-de-obra escrava.

Pela leitura de um trecho de Parecer da Seção de Justiça do Conselho de Estado, de 09 de setembro de 1854, cujo relator fora o Visconde do Uruguai, consegue-se captar a ratio legis do referido diploma: “[…] É uma lei inteiramente excepcional, ad terrorem, feita para produzir terror, que, ao menos agora, não produz.”, na verdade, a Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835, foi uma consequ?ência da revolta dos negros Malés na cidade de Salvador:

Em 24 de janeiro de 1835 irrompia em Salvador, uma insurreição armada, que passaria à história como Revolta dos Malês ou a Grande Insurreição. Esta revolta faz parte de um grande ciclo de rebeliões ocorridas na Bahia desde o início do século XIX, e que se estenderia até o ano de 1844. […].
Os primeiros tiros partiram da casa de Manuel Calafate, onde os revoltosos atacados, revidaram e passaram à ofensiva dirigindo-se então para a Rua da Ajuda “onde tentaram arrombar a cadeia a fim de libertar Pacífico Licutan”, não conseguindo lograr êxito. O grupo marcha para o Largo do Teatro, onde trava combate com a polícia derrotando-a pela segunda vez. Essa vitória tinha aberto “caminho para atingirem o Forte de São Pedro. No entanto, com as forças que dispunham era impossível tomar o Forte de artilharia”. Buscam, então, outras alternativas. “Os escravos vindos do Largo do Teatro tentaram estabelecer junção com outra coluna que vinha da Vitória, sob o comando dos dirigentes do Clube da Barra. Esses, por sua vez, já haviam conseguido unir-se ao grupo do Convento das Mercês. Os escravos da Vitória operaram a junção planejada, abriram caminho para a Mouraria onde travaram combate com a polícia, sendo que neste combate perderam dois homens. Rumam, então, para a Ajuda; daí estabelecem uma mudança de rumo na sua marcha: desceram para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos Coqueiros.3

Até então, os crimes praticados pelos escravos eram processados de acordo com o legislação procedimental comum (a Lei de 29 de novembro de 1832, isto é, o Código de Processo Criminal), mas com o surto de pânico que assolou a sociedade escravista brasileira, em face de tal revolta, inclusive, com reflexos na Corte e na Província do Rio de Janeiro (FREITAS; SOUZA, 1988, p. 63-65), surgiu uma legislação que de modo sumário e extremamente agressivo, cominava penas capitais, quando da prática de insurreições escravas, a fim de responder aos anseios de manutenção da paz e do status quo.

Tal afirmação pode ser corroborada com o fato de que o art. 2º, da Lei n.º 04, de 10 de junho de 1835, também aplicava os seus rigores quando ocorresse o crime de insurreição, restando revogadas as penas cominadas, no Código Criminal, para este delito (art. 5º, da Lei de 10 de junho de 1835):

Art. 2º. Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1.º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Jury do Termo (caso não esteja em exercíciio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados (grifos nossos).


Como exposto, fica manifesto que a intenção do legislador é a proteção ao bem jurídico “sistema de produção escravista”, com a previsão que a pena capital será aplicada aos escravos que cometerem o delito de insurreição (art. 113 do Código Criminal):

Art. 113 Julgar-se-ha commettido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da fôrça. Penas – aos cabeças – de morte no grão Maximo; de galés perpétuas no médio; e por quinze annos no minimo; – aos mais – açoutes.

Observe-se que o delito de Insurreição (que era um crime público, contra a segurança interna do Império, e publica tranqu?ilidade) poderia contar com a participação de homens livres (arts. 114 e 115 do Código Criminal), mas, a tais agentes, não se estendia a pena prevista no art. 1º da Lei nº 04, de 10 de junho de 1835, em face de que estes detinham seu status libertatis pleno.

Ratificando o que foi exposto, faze-se necessário ler-se os dispositivos deste diploma legislativo, que prescrevem procedimento penal específico (e absurdo) para estas condutas delituosas:

Art. 2º. Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1.º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Jury do Termo (caso não esteja em exercíciio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados.
Art. 3.º Os Juizes de Paz terão jurisdicção cumulativa em todo o Município para processarem taes delictos até a pronuncia com as diligencias legaes posteriores, e prisão dos delinqu?entes, e concluído seja o processo, o enviarão ao Juiz de Direito para este apresenta-lo no Jury, logo que esteja reunido e seguir-se os mais termos.
Art. 4.º Em taes delictos a imposição da pena de morte será vencida por dous terços do número de votos; e para as outras pela maioria; e a sentença, se for condemnatoria, se executará sem recurso algum.

Por tal procedimento, cria-se um rito sumaríssimo para julgar os delitos praticados pelos escravos, presos preventivamente, sendo a imposição da pena de morte uma consequ?ência automática, que somente não ocorrerá se vencida por 2/3 (dois terços) dos votos dos membros do Júri.

Observe-se que se a sentença for condenatória ela será irrecorrível, ou seja, a contrariu sensu, somente se favorável ao réu (isto é, se absolutória), é que será admitida a interposição de recurso.

Entretanto, esta previsão legal de sentença capital irrecorrível, contrariava, o disposto no art. 101, §8º, da Constituição do Império (que foi regulamentado pelo art. 1º da Lei de 11 de setembro de 1826): “nenhuma sentença de pena capital podia ser, então, executada, sem que, previamente, fosse presente ao imperador, para, se assim o entendesse, perdoar ou minorar, a pena”.

Como exposto, das sentenças condenatórias, com fundamento nos dispositivos da Lei n.º 04, de 10 de junho de 1835, não caberia recurso algum.

Entretan


Premissas de Direito Econômico, conforme a Nova Lei do Cade

Segunda edição da obra do Procurador da Fazenda Sérgio Augusto foi lançada também em formato digital.


Os riscos das nomeações políticas

Resultado de estudo vai ao encontro da tese defendida pelo SINPROFAZ sobre a garantia de exclusividade dos cargos aos Advogados Públicos Federais, um dos pontos em debate no PLP 205/12.


12º Encontro: presidente do Etco defende reforma tributária

O presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), Roberto Abdenur, voltou a defender ontem (6) a reforma tributária possível durante o 12º Encontro Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional.


AGU deve ser vista como órgão de defesa do Estado

Em artigo publicado hoje, 7/12, no Conjur, presidente do SINPROFAZ reitera as missões institucionais da AGU e da PGFN, temas em pauta no 12º Encontro Nacional da Carreira de PFN.


AGU diz ter economizado e arrecadado R$ 2,1 trilhões

A Advocacia-Geral da União divulgou, em outubro, relatório no qual diz ter arrecadado e economizado aos cofres públicos R$ 2,1 trilhões entre 2010 e 2012. A cifra é metade do PIB do Brasil registrado em 2011 (R$ 4,1 trilhões, segundo o IBGE). O documento aponta números de arrecadação e economia na seguinte ordem: Administração Direta…


Começa amanhã o IV Congresso AJUFESP de Execuções Fiscais

SINPROFAZ faz parte da Comissão Organizadora, representado pela diretora do Cejuris. Trabalhos ocorrem nesta quinta e sexta-feira, 22 e 23 de novembro.


Comissão de Trabalho vai realizar audiência sobre o PLP 205

A Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta, 31/10, requerimento para a realização de debate sobre o projeto que atualiza a LC 73/93.


Concluído Curso de Formação de Estagiários na PRFN3

Nesta quinta-feira, 25/10 , houve a palestra de encerramento do curso. Certificados aos participantes serão emitidos pelo Cejuris em novembro.


IV Congresso AJUFESP de Execuções Fiscais

Evento será realizado em São Paulo nos dias 22 e 23 de novembro de 2012. SINPROFAZ faz parte da Comissão Organizadora, representado pela diretora do Cejuris.


Combate à sonegação passa pela reestruturação da PGFN

Por Allan Titonelli Nunes

A corrupção tem propiciado um intenso debate da sociedade e da imprensa a respeito do desvio de conduta existente nas relações institucionais e privadas da administração pública do país. O julgamento do mensalão e as eleições municipais estão catalisando a difusão desse tema.

Essa realidade também esteve no centro da discussão quando da apuração de outros escândalos, como o caso da fraude ao INSS capitaneado pela Jorgina de Freitas; o processo de impeachment do ex-presidente Collor, decorrente da acusação de fraudes na reforma da casa da dinda e desvio de dinheiro de campanha; a fraude na construção do TRT de São Paulo, que culminou na cassação do senador Luiz Estevão, conhecido, também, como “caso Lalau”, entre tanto outros.

Em cada acontecimento dessa natureza devemos extrair dos fatos maneiras de coibir as condutas irregulares, evitando, assim, o desvio das verbas públicas.

A corrupção, entretanto, não é o maior problema relacionado ao desvio de conduta, precipuamente se comparado com os dados relativos à sonegação. Segundo estudos da Fiesp o custo médio anual da corrupção no Brasil pode ser calculado entre R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões, representando aproximadamente de 1,5% a 2,6 % do PIB.[1] A sonegação, de outro lado, segundo estudos do IBPT, determina a evasão de R$ 200 bilhões, cujos dados levam em conta apenas as pessoas jurídicas, destacando, ainda, que o faturamento anual não declarado por essas empresas chega a R$ 1,32 trilhão.[2]

Os dados deixam claro que a sonegação é uma corrupção qualificada, resultando, respectivamente, no desvio ou não ingresso de receitas aos cofres públicos.

Natural que para o alcance dos objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado será necessária a arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização daqueles. Portanto, ambas as práticas, corrupção e sonegação, acabam por comprometer as políticas públicas a serem executadas pelo Estado.

Logo, é fundamental que o Estado adote medidas para evitar esses desvios. Considerando a maior repercussão econômica da sonegação, e a brevidade da análise, passa-se a analisar a sonegação em consonância com os deveres institucionais do Estado para promover seu controle.

A sonegação acaba afetando a isonomia e provocando graves desigualdades sociais, assim, para enfrentarmos esses problemas e construirmos um país mais igualitário, diminuindo a desigualdade social existente, é primordial que todos contribuam, respeitando, evidentemente, a capacidade contributiva. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações espontaneamente.

Dessa forma, é importante que o Estado seja dotado de órgãos de arrecadação bem estruturados para exercer esse controle. Nesse pormenor, o Ordenamento Jurídico Brasileiro incumbiu à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a arrecadação dos tributos e demais receitas, não pagas e inscritas em dívida ativa da União.

A cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa da União garantirá a isonomia entre o devedor e o cidadão que paga seus tributos, evitando, também, a concorrência desleal e todas as suas consequências nefastas, como o desemprego.

Um órgão de recuperação bem aparelhado propiciará evitar a sonegação, garantindo, consequentemente, maior disponibilidade de caixa para a execução das políticas públicas.

Todavia, essa lógica está distante da realidade do órgão, o qual carece de uma carreira efetiva de apoio, estrutura física, técnica e instrumental adequada para o exercício das atividades dos procuradores da Fazenda Nacional, falta de provimento de todo o quadro efetivo de procuradores, sistemas informatizados não integrados, entre outros problemas.

Face a precariedade de recursos, surpreendentemente, o órgão tem apresentado resultados relevantes, resultado da atuação dedicada dos seus procuradores e da criatividade na utilização dos recursos que lhe são destinados.

Levando em conta apenas os dados relativos ao ano de 2011 a PGFN evitou a perda de R$ 277.562.496.807,83(duzentos e setenta e sete bilhões, quinhentos e sessenta e dois milhões, quatrocentos e noventa e seis mil oitocentos e sete reais e oitenta e três centavos) para os cofres da União e arrecadou o montante de R$ 25.482.287.233,73 (vinte e cinco bilhões, quatrocentos e oitenta e dois milhões, duzentos e oitenta e sete mil duzentos e trinta e três reais e setenta e três centavos), ao erário federal.[3]

Considerando-se o valor total arrecadado e a despesa realizada pela PGFN em 2011, temos que, para cada R$ 1 (um real) alocado neste órgão, suas atividades retornaram à sociedade e ao Estado, aproximadamente, R$ 53,93 (cinquenta e três reais e noventa e três centavos). Se acrescermos ao total arrecadado os valores das vitórias judiciais e extrajudiciais da PGFN, que refletem a manutenção do caixa da União, teremos um retorno de R$ 642,52(seiscentos e quarenta e dois reais e cinquenta e dois centavos) para cada R$ 1 (um real) de despesa.[4]

Pode-se somar aos dados aqui apresentados o alto índice de vitórias da PGFN nas causas em que há contestação, aqui tomado em sentido lato, chegando a 88% das ações, comprovando a alta especialização e dedicação dos procuradores da Fazenda Nacional.[5]

Relevante também registrar que a carga de trabalho e condições impostas aos integrantes da PGFN são bem inferiores àquelas existentes no Poder Judiciário, paradigma em relação aos órgãos/instituições envolvidas com a prestação jurisdicional, o qual conta com cerca de 19 servidores para auxiliar o trabalho de cada juiz federal, enquanto os procuradores da Fazenda Nacional não possuem nem 1 servidor para apoiar as suas atividades. Isso sem registrar que cada procurador da Fazenda Nacional é responsável por uma média de 7.000 processos judiciais, carga 30% maior que a dos Magistrados Federais, sem contar as inúmeras atividades administrativas atinentes aos procuradores da Fazenda Nacional.[6]

Esses números demonstram que a realidade existente na PGFN não é condizente com a condição estratégica do órgão, bem como o fato de que a União não tem combatido a sonegação de forma efetiva.

Nesse pormenor, temos que a preservação da função estratégica da atividade de fiscalização e arrecadação da União é garantida desde a criação do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf) através do Decreto-Lei 1.437/75, o qual tem como escopo financiar o reaparelhamento e reequipamento das atividades de fiscalização e arrecadação da União, conforme preconiza o artigo 6° da legislação citada.

Todavia, a União, a despeito do que determina a Lei 7.711/88, a qual vincula as receitas do fundo, na subconta da PGFN, para reestruturação do órgão, tem contingenciado esses valores para os fins mais diversos possíveis, entre eles a realização do superávit primário.[7]

A falta de respeito à lei e à eliminação dos problemas enfrentados pelo órgão demonstram que a sonegação não é o principal objetivo de combate por parte do governo. Para o bem de nosso Estado Democrático de Direito, da eficiência administrativa, da estruturação do planejamento estratégico do Estado, do combate à sonegação e à concorrência desleal é essencial que essa realidade mude.

[1]Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/competitividade/downloads/custo%20economico%20da%20corrupcao%20-%20final.pdf> Acesso em 23.10.2012.

[2]Disponível em: <http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/13649/175.pdf> Acesso em 23.10.2012.

[3]Disponível em: <http://www.pgfn.gov.br/noticias/PGFN%20Em%20Numeros%20-%202011.pdf> Acesso em 23.10.2012.

[4]Ibid.

[5]Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=12782&Itemid=6> Acesso em 23.10.2012.

[6]GADELHA, Marco Antônio. Os Números da PGFN. 2. ed. Sinprofaz. Brasília: 2011. Disponível em: <http://www.sinprofaz.org.br/publicacao.php?id=110927181741-1a3209da4c42460ab1808cb468ad34f6&arquivo=/s/images/stories/pdfs/numeros_pgfn_2011.pdf&titpub=Os%20N%C3%BAmeros%20da%20PGFN%20-%202011&> Acesso em 23.10.2012.

[7]NUNES, Allan Titonelli. NETO, Heráclio Mendes de Camargo. País deve aplicar receita da PGFN no próprio órgão. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 23 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-ago-23/pais-investir-receita-pgfn-proprio-orgao> Acesso em 23.10.2012.


Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz).

Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2012