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A efetividade da prestação jurisdicional e a virtualização do Processo Judicial

THE EFFECTIVENESS OF THE JURISDICTION OF THE JUDICIAL PROCESS AND VIRTUALIZATION RESUMO O presente trabalho objetiva contrapor o mandamento insculpido no art. 5º, LXXVIII, inserido em nosso ordenamento jurídico por meio da emenda à CF/88 nº 45/04, ou seja, a garantia de razoável duração do processo e a celeridade de sua tramitação, aos dispositivos estampados…


O incidente de uniformização para TNU pode tratar de questão exclusivamente constitucional?

Resumo: O presente estudo busca demonstrar um breve panorama do incidente de uniformização para a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU e, principalmente, que a competência da TNU reclama discussões teóricas, inclusive, quando cotejados os próprios julgados deste colegiado.

Palavras-chave: Incidente de uniformização. Cabimento. Competência. Matéria Constitucional. TNU. Jurisprudência. Representativo de controvérsia.

Sumário: Introdução. 1. Incidente de uniformização. 1.1. Nomenclatura. 1.2. Fundamento legal. 1.3. Natureza jurídica. 1.4. Finalidade. 1.5. O incidente de uniformização como novo paradigma recursal dos juizados. 2. O incidente de uniformização para TNU como recurso de fundamentação vinculada e o princípio da tipicidade das competências. Conclusão.

Introdução

O incidente de uniformização para a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU não é objeto de aprofundados debates pelos processualistas, em que pese seu importante papel uniformizador de âmbito nacional.

Da expressa menção do art. 14, da Lei 10.259 de 12 de julho de 2001 aos termos “de lei federal” conclui-se que a uniformização de interpretação não abarca questão constitucional. Porém, a TNU, em que pese a sua, até então, consolidada jurisprudência no sentido de ser incabível o incidente para a TNU em matéria constitucional, julgou recentemente (15/05/2012) incidente de uniformização, como representativo de controvérsia, em matéria constitucional (I.U. nº 2010.51.51.040706). Seria mera adequação da jurisprudência ou haveria error in procedendo?

1. O incidente de uniformização para a TNU.

Compete à Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais processar e julgar os incidentes de uniformização de interpretação de lei federal para a TNU (além deste há incidentes para turmas regionais ou para o STJ) interpostos contra decisões proferidas por turmas recursais ou turmas regionais, que versem sobre questões de direito material. A abrangência cingida apenas à legislação federal do incidente de uniformização constou, detaque-se, expressamente do art. 14, da Lei n. 10.259 de 2011 (Lei instituidora dos Juizados Especiais Federais).

1.1. Nomenclatura.

O nomem iuris nunca foi uma grande preocupação da legislação do microssistema dos Juizados Especiais. No caso do recurso cabível contra sentença, a Lei n. 10.259 de 2001 não se dedicou à escolha de um nome e este recurso acabou sendo conhecido pelos operadores do direito como recurso inominado ou recurso contra sentença. Esta postura do legislador mostra o maciço envolvimento com o princípio do informalismo que orienta os juizados especiais.

O caso do incidente de uniformização segue a mesma linha, pois a Lei n. 10.259 de 2001 mencionou que “caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal” em seu art. 14, mais uma vez deixa de lado o nomem iuris do recurso. E, valendo-se do aludido termo “pedido”, parcela da doutrina (VIEIRA, 2011, p. 95) utiliza o designativo “Pedido de uniformização” para identificar o meio de impugnação de acórdão de turma recursal ou regional.

Outra parcela da doutrina (TOURINHO NETO; FIGUEIRA JUNIOR, 2007, p. 296) apropriou-se do nome do recurso do sistema processual civil ordinário, qual seja, os embargos de divergência, que possui maior proximidade com o recurso em tela. Por seu turno, o Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformização (Resolução n. 22 de 04 de setembro de 2008, art. 6º, caput) preferiu a designação de incidente de uniformização de interpretação de lei federal.

Por fim, existe ainda quem (SOUZA, 2011, p. 324) ignorou este aspecto, tratando apenas de uniformização de jurisprudência o recurso em tela. Assim, a par das divergências, opta-se pelo nome “incidente de uniformização” por ser este designativo o que, s.m.j., melhor expressa as nuances do recurso uniformizador de jurisprudência dos Juizados Especiais Federais.

1.2. Fundamento legal.

O incidente de uniformização de interpretação de lei federal para a TNU encontra-se unicamente previsto no art. 14, da Lei n. 10.259 de 2001, lei instituidora dos Juizados Especiais Federais.

O processamento é tratado pelo Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (Resolução CJF n. 22 de 04 de setembro de 2008, alterada mais recentemente pela Resolução CJF n. 62, de 25 de junho de 2009).

1.3. Natureza jurídica.

A natureza jurídica do incidente de uniformização é de recurso, sendo que este guarda maior proximidade, repita-se, com os embargos de divergência previstos no art. 496, VIII do Codex Processual Civil.

Apesar do nome, não se cuida de incidente, diferentemente do que ocorre com o instituto do art. 476, do Código de Processo Civil, este sim, autêntico incidente processual de uniformização de jurisprudência.

1.4. Finalidade.

Sua função no sistema recursal dos juizados especiais federais é uniformizadora e tem como objeto de atuação o conflito exegético entre turmas recursais ou turmas regionais dos Juizados Especiais Federais, observados os demais requisitos. O seu “equivalente” no Código de Processo Civil, os embargos de divergência, visam uniformizar a jurisprudência interna do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça (DIDIER JR; CUNHA; 2010, p. 351). Porém, o incidente de uniformização para a TNU é extra corte, ou seja, deixa o plantel de um determinado órgão para atingir o acervo das turmas recursais e regionais federais de todo país.

1.5. O incidente de uniformização como novo paradigma recursal dos juizados.

A fase embrionária da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Projeto de Lei 1.480-D, de 1989) arquitetava um sistema recursal onde havia previsão de recurso uniformizador de jurisprudência (art. 47) para os Juizados Especiais Estaduais. Contudo, o dispositivo do aludido Projeto de Lei encontrou pelo caminho o veto presidencial, fundamentado este na celeridade processual que poderia ser, na visão do então Presidente da República, comprometida com a criação de novo recurso no microssistema.

Contudo, com a edição da Lei n. 10.259/2001 foi introduzido o incidente uniformizador de jurisprudência no âmbito dos Juizados Especiais Federais.

E isso não seria um retrocesso em relação à decisão política tomada em 1995? A resposta é negativa, porquanto uma variável muda drasticamente nos Juizados Especiais Federais, qual seja, as partes ocupantes dos pólos passivos das demandas nestes ajuizadas se caracterizam pela atuação nacional, por exemplo: a União, o INSS, a CEF, a EBCT etc.

Este fato acrescentou peso no lado da balança (ponderação) em que figura o princípio da segurança jurídica em detrimento do princípio da celeridade (princípio da proporcionalidade também é aplicável ao legislador1). Neste caso, há, é verdade, um detrimento aparente ao princípio da celeridade pelo fato de que a uniformização de jurisprudência pode até atrasar o processo em que se formará o leading case, porém contribuirá com o desfecho abreviado de vários outros feitos com o mesmo objeto que estejam em trâmite ou que serão ajuizados.

A mesma linha argumentativa fez com que se criasse recurso também de caráter uniformizador de jurisprudência nos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei n. 12.153 de 2009, arts. 18 e 19), demonstrando que a inovação trazida pela Lei n. 10.259 de 2001 é um modelo de sucesso.

2. O incidente de uniformização para TNU como recurso de fundamentação vinculada e o princípio da tipicidade das competências.

É pertinente a classificação dos recursos como de fundamentação livre ou de fundamentação vinculada. Pode-se afirmar de fundamentação vinculada o recurso que tem seu objeto lindado pela lei (ou Constituição Federal), restando impossibilitado de enfrentar todos os pontos de um decisum, pois a lei especificadamente registra seu âmbito de atuação. O recurso de fundamentação livre, por sua vez, como o próprio nome sugere, pode veicular toda a matéria em que haja sucumbência da parte recorrente. Os clássicos exemplos (MEDINA; WAMBIER, 2011, p. 46) dos embargos de declaração (art. 535, do CPC) e do recurso especial (art. 105, III, da CRFB/88) são extremamente didáticos para a identificação do recurso como de fundamentação vinculada, pois são recursos largamente utilizados, bem ainda pertencem ao sistema recursal do CPC (comum).


Ocorre que no microssistema dos Juizados Especiais Federais também há recurso com fundamentação vinculada, é o caso do incidente de uniformização para a TNU. Este caráter do recurso contribui para a aferição da competência jurisdicional da TNU, panorama umbilicalmente ligado ao princípio da tipicidade das competências. Este preceitua que um órgão jurisdicional somente pode julgar aquilo delineado previamente pela lei ou pela Constituição Federal como de sua competência.

Assim, as questões de cunho eminentemente constitucional não se inserem na competência da TNU, porquanto o recurso cabível para a aludida questão é o recurso extraordinário, inclusive a própria TNU tem julgados nesse sentido, v.g., Agravo Regimental em Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal n. 2007.70.50.016646-5, Relator Juiz Federal Janilson Siqueira, julgado em 29 de fevereiro de 2012.

Ocorre que o mencionado princípio (tipicidade das competências) restou nitidamente olvidado ao se apreciar recurso de contribuinte com fundamentação exclusivamente constitucional (imunidade tributária) na recentíssima sessão do colegiado de 15 de maio de 2012. Confira-se da ementa do aresto a natureza eminentemente constitucional da questão posta no incidente de uniformização (I.U. n. I.U. nº 2010.51.51.040706-0 – Rel. Juiz Federal VLADIMIR VITOVSKY, julgado em 15/05/2012, DOU, Seção I, pg. 153, de 01/06/2012), verbis:

TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE REMUNERAÇÃO DE MILITARES INATIVOS E PENSIONISTAS – INEXISTÊNCIA DE DIREITO À IMUNIDADE CONFERIDA AOS SEGURADOS DO RGPS E SERVIDORES – ART. 5º EC 41/03 – ART. 40 §18 CR 88 – INCIDENTE CONHECIDO E NÃO PROVIDO
1. A contribuição previdenciária dos militares inativos e pensionistas deve incidir sobre o total das parcelas que compõem os proventos da inatividade, de acordo com a norma do artigo 3-A da Lei nº 3.765/60, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2215- 10/2001, não havendo direito à imunidade conferida aos segurados do RGPS e servidores.
2. Sugiro, respeitosamente, ao MM. Ministro, que imprima a sistemática prevista no art. 7º do Regimento Interno, que determina a devolução às Turmas de origem dos feitos congêneres, para manutenção ou adaptação dos julgados conforme a orientação ora pacificada.
3. Incidente conhecido e não provido.” (grifo nosso)

Frise-se que o aludido precedente possui envergadura de representativo de controvérsia, conforme divulgado pela própria TNU em seu sítio eletrônico2, bem ainda sugerido pelo item “2” da ementa do aresto transcrita nas linhas volvidas.

Com efeito, o recurso extraordinário é cabível de acórdão de Turma Recursal, porquanto o inciso III do art. 102 da Constituição Federal não limitou o cabimento a julgados de Tribunais, como fez o inciso III, do art. 105 também da Constituição (Nesse sentido súmula 640, do STF).

Assim, a parte sucumbente que se deparar com acórdão de turma recursal ou regional que enfrente questão exclusivamente constitucional deve-se valer do recurso extraordinário e não do incidente de uniformização para a TNU.

Conclusão.

O paradigma que se cria com o julgado em destaque neste abreviado estudo (I.U. n. I.U. nº 2010.51.51.040706-0) demonstra que o ainda impúbere sistema recursal dos Juizados Especiais Federais reclama cuidados de ordem primária, como o respeito ao princípio da tipicidade das competências.

Verdadeiramente, a celeridade é o maior avanço dos Juizados Especiais, contudo as bases principiológicas e legais do sistema recursal não devem ser suprimidas, sob pena de se instaurar a insegurança jurídica aos cidadãos que buscam a prestação jurisdicional dos juizados, reconhecidamente um grupo composto, em maior número, por pessoas que se encontram em alguma projeção da vulnerabilidade humana.

Referências

DIDIER JR. Fredie; CUNHA. Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de Impugnação às Decisões judiciais e Processo nos Tribunais. Salvador. Editora Jus Podivm, 2010.

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Tereza Arruda Alvin Wambier. Recursos e Ações Autônomas de Impugnação. Processo civil moderno; v. 2. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória. São Paulo: Saraiva, 2011.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do processo civil e processo de conhecimento. v. 1. 53. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

TOURINHO NETO, Fernando Costa; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais: comentários à Lei n. 10.259, de 10.07.2001. 2ª ed. rev. atual. ampli. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

VIEIRA, Luciano Pereira. Sistemática Recursal dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.


Notas

1Questão bem desenvolvida no voto condutor do Min. Gilmar Mendes na Intervenção Federal n. 298.

2Apesar de inexistir no Regimento Interno ou na Lei 10.259/2011 a expressão “representativo de controvérsia”.


AUTOR

Wesley Luiz de Moura
Procurador da Fazenda Nacional


Crime de descaminho pode ser insignificante

Por Nelson Edilberto Cerqueira

O crime de descaminho está previsto no artigo 334 do Código Penal brasileiro, e sua formulação básica consiste em “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”. As demais condutas, previstas nos parágrafos do referido artigo guardam sempre a essência do tipo, qual seja: a ilusão do fisco, para supressão do tributo.

Sendo do verbo típico a exigência de pagamento de tributo, nossos tribunais superiores têm entendido que sua natureza é tributária, eis que o intento do legislador consiste na preservação dos mecanismos de controle sobre arrecadação, pelo Estado.

Sobre esse aspecto, vamos passar ao largo, pois a contrariedade que pretendemos apontar pode prescindir dessa discussão. Embora também não concordemos com essa premissa, elementar para a conclusão sobre a insignificância, vamos tomá-la como ponto consensual – verdade admitida – mas, insisto, apenas para demonstrar que o raciocínio que dali se empreende não guarda sustentação lógica.

Nos autos do HC 100.942PR, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, relator do acórdão ali produzido, e publicado em 9 de agosto de 2011, deixa evidenciado o raciocínio que se empreende para caracterização da insignificância para a prática de descaminho. Em suma: parte da assertiva de que já assentado que o descaminho é crime contra a ordem tributária. Na seqüência, aduz que a União, com base no artigo 20 da Lei 10.522, de 2002, desistiu do ajuizamento de execuções fiscais, cujo valor perseguido é inferior a R$ 10 mil. Por fim, conclui-se que se não há interesse no recebimento do tributo (que ofende o patrimônio do executado) não há justa causa para agredir um bem de maior valor: a liberdade. Em reforço ao argumento, e como conseqüência dele, aduz-se que a esfera criminal somente deve ser tomada como última razão; quando a atuação na esfera cível/administrativa não se fizer suficiente.

A mesma tese tem sido retomada tanto pelo Superior Tribunal de Justiça, como também por Tribunais Regionais (Por exemplo: STJ: AgRg no REsp 1265032/PR; TRF3: processo 0002039-95.2007.4.03.6113, TRF1: processo RSE 2007.38.00.008919-4/MG).

Cabe, portanto, melhor análise do regramento tomado como referência para concluir-se que a União não tenha interesse sobre débitos de valor inferior a R$ 10 mil. A Lei 10.522 foi publicada aos 19 de julho de 2002, passando a viger na data de sua publicação. Seu objetivo é a criação do Cadastro Informativo de Créditos (Cadin).

No inciso I do seu artigo 2º, estabelece que será lançado em dito cadastro, o nome dos devedores da Administração Pública Federal, direta e indireta. Logo mais adiante, em seu artigo 6º, prescreve o normativo quais as restrições para aquele que tem seu nome registrado no Cadin:

  1. realização de operações de crédito que envolvam a utilização de recursos públicos;
  2. concessão de incentivos fiscais e financeiros;
  3. celebração de convênios, acordos, ajustes ou contratos que envolvam desembolso, a qualquer título, de recursos públicos, e respectivos aditamentos.

Após tratar do parcelamento de débitos para com a União, o normativo traça diretrizes para atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional em Juízo, na persecução do crédito da União.

Inicialmente, lista os créditos que não mais lhe interessam (artigo 18 e seus incisos), determinando o cancelamento do lançamento do tributo; dentre eles, aqueles inferiores a R$ 100. Já nos artigos 19 a 24 trata da racionalização da atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional em juízo, delimitando os casos em que poderá haver desistência da ação, abstinência quanto à interposição de recurso, ou dispensa de encargos para o executado que desistir da demanda em face da União.

E é nesse contexto que se lança, mais precisamente no artigo 20, autorização legal para desistência de execuções, cujo montante cobrado seja inferior a R$ 10 mil. Frise-se: desistência da ação, e não do crédito. E o crédito, no caso, é considerado pelo contribuinte, e não por fato gerador, eis que seu parágrafo 4º deixa explícito que quando houver dívidas reunidas, e o montante for superior a R$ 10 mil, não está autorizado o respectivo Procurador da Fazenda Nacional desistir da ação.

Atenta leitura da lei ora em comento não deixa dúvidas de que a União (afora os casos específicos que enumera em seu artigo 18) não reconhece os créditos inferiores a R$ 100.

Na mesma linha da Lei 10.522, de 2002, foi editada a Portaria 75, de 22 de março de 2012[1], dispõe que não serão inscritos em dívida ativa da União os débitos inferiores a R$ 1 mil. Quanto ao ajuizamento de ação, para cobrança de valores, há que se ter, em regra, o mínimo de R$ 20 mil.

No entanto, como podemos ver dos parágrafos do artigo 1º da citada portaria, haverá ajuizamento de execução fiscal em diversas situações: débito oriundo de condenação criminal, cumulação de débitos com total superior a R$ 20 mil, acréscimos decorrentes da mora (juros e correção monetária), potencial recuperabilidade do crédito.

Outro dispositivo de interesse é o constante do artigo 6º do veículo normativo ora em comento, que autoriza o Procurador Geral da Fazenda Nacional e o Secretário da Receita Federal a buscarem outros meios (extrajudiciais) pelos quais possam ser recuperados os créditos da União, inscritos, ou não em dívida ativa.

Da leitura da Lei 10.522 e da Portaria 75, emergem três situações:

  1. Para os créditos não lançados em dívida ativa[2]a Fazenda Nacional não poderá ingressar em juízo, não poderão ser objeto de consolidação para ajuizamento de ação e não haverá as sanções decorrentes de sua inscrição no Cadin.

    De se observar, nesse aspecto, que se mostra ilegal a inscrição no Cadin de devedores de valores inferiores a R$ 1 mil, pois somente com a inscrição em dívida ativa é que o crédito tributário goza de presunção de certeza e liquidez (artigo 204 do Código Tributário Nacional). Por isso, entendemos que o disposto no artigo 6º da Portaria 75 do Ministério da Fazenda somente se aplica em situações transitórias[3].

  2. Para os débitos inscritos em dívida ativa e superiores a R$ 20 mil, além do esforço extrajudicial, a Fazenda Nacional perseguirá os créditos da União por via judicial.
  3. Para os débitos inscritos em dívida ativa e, atualmente, situados entre um e R$ 20 mil haverá esforço extrajudicial para sua persecução. Em via judicial, sua persecução está atrelada à existência dos fatores enumerados na Portaria 75 do Ministério da Fazenda (que podemos simplificar com a expressão “conveniência e oportunidade”).

Retomamos, agora, o raciocínio empregado para a aplicação do princípio da insignificância aos crimes de descaminho, qual seja: não havendo interesse da União em perseguir seus créditos, não se pode imputar ao cidadão maior gravame, causado pela condenação criminal.


Agora, confrontando esse pensamento com as três hipóteses acima aventadas, vemos que somente é válida ou verdadeira para a primeira delas, qual seja: quando o débito não for inscrito em dívida ativa.

Não será válida ou verdadeira para a terceira hipótese, simplesmente porque a União, eventualmente, poderá não ingressar em juízo para perseguir seu crédito. Destaco: eventualmente. No entanto, não abre mão de seu poder estatal para forçar o contribuinte ao adimplemento de sua obrigação.

E pomos um exemplo prático para ilustrar o que afirmamos: uma determinada pessoa contrai débito para com a União, no importe de R$ 2 mil. Seu nome é lançado no Cadin. Não tem bens para suportar execução fiscal (mesmo que fosse ajuizada execução fiscal, o resultado seria nulo, porque bens não seriam encontrados, frustrando-se a execução).

Busca financiamento para saldar suas dívidas (com particulares) na praça, o que possibilitaria manter um mínio de credibilidade no mercado local para aquisição de gêneros de maior necessidade da família. Por estar inscrita no Cadin, entretanto, sua pretensão se vê frustrada.

O exemplo, ainda que com variações, não é de difícil ocorrência, mas revela que a persecução extrajudicial pode ser mais gravosa que a simples execução fiscal.

Por consequência, não se pode afirmar que a União tenha desprezado seu crédito, mas insista na penalização do indivíduo. Ainda mais quando consideramos que a penalização para o delito de descaminho somente resulta em restrição da liberdade em casos especiais, eis que é de sua natureza a não existência de violência ou lesão, e seu apenamento máximo é de quatro anos (o que faz supor que geralmente a pena a ser aplicada é substitutiva da restrição de liberdade).

A fragilidade do argumento (tendo como uma de suas consequências a criação de uma “zona de liberdade” para os descaminheiros, notadamente se considerarmos o novo limite para ajuizamento de execução fiscal), pode ser sentida em recentes decisões, indicativas de que o Poder Judiciário está revendo seu posicionamento. Nos autos do AgRg no REsp 1276363 / PR, relatado pela ministra Laurita Vaz, a 5ª Turma do STJ, publicado em 27 de abril de 2012, é rejeitada a aplicação da insignificância pela “habitualidade” do agente, na prática delitiva. Nos autos do HC 107041/SC , relatado pelo ministro Dias Toffoli, e publicado em 13 de setembro de 2011, a 1ª Turma do STF, rejeitou aplicabilidade a caso em que o débito [4] era superior a R$ 1 mil, argumentando que o desinteresse da União está vinculado à não inscrição em dívida ativa, e não ao ajuizamento da execução fiscal.

Temos que esse é o entendimento que mais se coaduna com o princípio da insignificância. De fato, com a ocorrência do fato gerador a União tem o poder/dever de aferir qual o crédito a que faz jus. Ao verificar que a dívida é inferior R$ 1 mil, deixará de promover sua inscrição em dívida ativa, renunciando à presunção de certeza e liquidez. Indica que a lesão causada ao erário é diminuta, que não lhe causa gravame algum.

Na seara criminal, a repercussão é sentida no próprio tipo penal, que se vê desfigurado, porque não há que se falar em supressão de tributos se a própria União não o reconhece. O ato de iludir o Fisco, praticado pelo descaminheiro, não gera conseqüências materiais relevantes.

Portanto, concluímos que somente poderá ser aplicado ao descaminho o princípio da insignificância nos casos em que a supressão de tributos não comporte inscrição em dívida ativa, e não esteja a Procuradoria da Fazenda Nacional dispensada do ajuizamento da execução fiscal.

No momento, o valor parâmetro é de R$ 1 mil; que poderá ser minorado por norma de eficácia regional ou nacional, mas que somente será aplicável aos casos que se verificarem a partir da edição dessa norma.

Os casos de prática reiterada, o que enseja reação estatal, poderá ser demonstrada pela reunião dos vários procedimentos administrativos e fiscais, que indiquem a supressão de tributos, e sua inscrição em dívida ativa, em montante superior a R$ 1 mil.

Na fase pré-processual (atuação policial) a verificação da quantidade de itens apreendidos, sua diversidade, aferição de preço nédio das mercadorias, antecedentes do envolvido e circunstâncias da apreensão (que indiquem finalidade comercial) são fatores facilmente aferíveis para formação do juízo acerca das medidas que enseja o caso (prisão em flagrante ou simples apreensão).

Na fase processual, será possível, já no nascedouro da lide, ter certeza do montante suprimido e dos casos de reiteração de conduta, com parâmetros seguros para a oferta, ou não, de denúncia — e seu recebimento, ou rejeição.


[1]Apenas a título de curiosidade, tão só o artigo 54 da Lei 8212, autoriza norma infralegal fixar limites de valor para não inscrição em dívida ativa, o que poderia tornar a norma duvidosa quanto à sua legitimidade

[2] Atualmente fixado em R$ 1 mil, mas que poderá ser em valor inferior, por norma editada pela Procuradoria da Fazenda Nacional, com vigência regional ou geral (artigo 7º da Portaria 75 do Ministério da Fazenda).

[3]Isto é: entre a ocorrência do fato gerador e o momento em que deveria ser lançado em dívida ativa, e não poderá estar acompanhado de nenhuma medida de “força”, eis que somente gozará de presunção de certeza e liquidez com sua inscrição em dívida ativa.

[4]Previdenciário no caso, mas que segue a mesma natureza tributária.


Nelson Edilberto Cerqueira é chefe da Delegacia de Polícia Federal em Araraquara (SP).

Revista Consultor Jurídico, 19 de junho de 2012


AGU enfraquece instituição e prejudica interesses da sociedade

Em nota pública, Fórum Nacional e Unafe repudiam pontos de suposto anteprojeto que altera a LC da AGU. Proposta coloca em risco a independência técnica dos Advogados Públicos Federais.


Mobilização na AGU teve repercussão na imprensa

As reivindicações dos Advogados Públicos Federais ganharam espaço na mídia. Portais na internet e jornais impressos relataram os principais momentos da manifestação de ontem.


Vale poderá distribuir dividendos

Valor Econômico 25/04/2012 A tentativa da Fazenda Nacional de bloquear R$ 5,48 bilhões em dividendos a serem distribuídos pela Vale no dia 30 foi frustrada ontem no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A União pediu que a companhia ofereça garantias em um processo que discute o pagamento de cerca de R$ 24 bilhões de Imposto…


Setor de TI questiona mudança na tributação

Por Bárbara Pombo | De São Paulo As empresas de tecnologia da informação (TI) questionam na Justiça o Plano Brasil Maior, instituído pelo governo para desonerar a folha de pagamentos de alguns setores da indústria. O Sindicato das Empresas de Processamentos de Dados de São Paulo (Seprosp) ajuizou ação contra a nova forma de cálculo…


Federalismo e Construção do Espaço Público Democrático no Brasil

MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA1

RESUMO: Este artigo jurídico está voltado ao estudo do modelo de Estado federativo adotado pela Constituição de 1988, que contribui para a participação do indivíduo nas esferas decisórias de poder e na construção do espaço público democrático no Brasil. O arranjo instituído possibilita maior atuação do cidadão nas questões estatais, em especial as locais, considerados os instrumentos constitucionais disponibilizados, como o plebiscito (consulta anterior ao ato a ser veiculado pelo Poder Público), o referendo (consulta após a realização do ato) e a lei de iniciativa popular (projeto de lei subscrito pelos cidadãos a partir de requisitos estabelecidos constitucionalmente), além de facultar o aumento da participação da cidadania nos atos praticados pelo poder estatal em uma perspectiva pluralista de Estado Democrático de Direito, que preconiza a descentralização político-federativa, a autonomia dos entes federados e sua relevância quanto à participação direta na consecução de políticas públicas fundamentais ao aprimoramento das instituições democráticas.

PALAVRAS-CHAVE: federalismo, democracia, subsidiariedade, descentralização, Constituição.

ABSTRACT: This article is aimed to study the legal state model adopted by the federal Constitution of 1988, which contributes to increase the individual´s participation in decision-making spheres of power and the construction of a democratic society in Brazil. The arrangement allows most established role of citizens in state issues, especially local ones, considering the constitucional instruments available, such as the plebiscite (form of consultation prior to the act to be published by the Government), the referendum (which consultation takes place following the completion of the act) and the law or popular initiative (bill signed by citizens from certain requirements of the Constitucion), as well as help increase citizen participation in the acts of the state power in a pluralist perspective of The Democratic State of Law, which calls for federal political decentralization, autonomy granted to federal entities and their relevance in terms of direct participation in the achievement of public policies that are fundamental to improving democratic institutions.

KEYWORDS: federalism, democracy, subsidiarity, decentralization, Constitution

1 INTRODUÇÃO

A crise política, institucional e social que atualmente afeta os Estados nacionais, dentre eles, o Brasil, representa motivo de crescente preocupação. Aliado a isto, verifica-se a ausência de políticas governamentais eficazes para o combate aos problemas existentes e também o constante desgaste daquelas já instituídas, que não se mostram aptas ao enfrentamento dos problemas. Ainda pior, nesse contexto, o fato de que o principal ator social, o cidadão, retira-se cada vez mais do processo político e deliberativo, permanecendo em posição secundária e de menor importância na sociedade.

A análise da estrutura constitucional pode nos auxiliar a entender melhor como o modelo de Estado federativo repercute em nossa estrutura social, bem como o destaque ocorrido nas Cartas Constitucionais anteriores, além de ser cláusula pétrea na Carta vigente. Ressalte-se que, no Brasil, a proposta federativa tem forte influência do modelo norte-americano, não podendo se desprezar tal circunstância.

O modelo de Estado federativo adotado pela Constituição de 1988 pode contribuir para determinar o incremento da participação do indivíduo nas esferas decisórias de poder e a construção do espaço público democrático no Brasil, possibilitando maior atuação do cidadão nas questões estatais em uma perspectiva pluralista de poder.

A descentralização político-democrática objetiva a diminuição da distância entre o cidadão e os entes governamentais. Representa instrumento para o exercício e o reforço da democracia, ou seja, quanto mais elementos constitucionais forem disponibilizados para o seu exercício, mais probabilidade existe de o poder ser democrático e participativo, aumentando-se não somente os instrumentos de fiscalização, mas também o controle e a supervisão das suas atividades.

O arranjo federativo estabelecido pela Constituição de 1988 traz alguns institutos que podem ser citados como exemplos de incremento na participação democrática (democracia direta) atribuída ao cidadão, dentre eles, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (art. 14, I a III da CRFB/88), sendo, portanto, tais elementos fundamentais, porém não exclusivos, do ponto de vista da atuação direta do cidadão nos assuntos estatais em uma perspectiva de poder pluralista.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 PACTO FEDERATIVO E PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

O estudo do federalismo democrático vem ganhando o interesse crescente dos acadêmicos de ciências sociais. Pela via democrática, a forma de Estado federativa representa a realização da descentralização necessária para aproximar o indivíduo das esferas decisórias do poder político.

A formação federativa brasileira advém de uma proposta de Estado unitário (séc. XIX), instituída pela Constituição de 1824. Com a primeira Carta federativa (1891), a União cede poderes para viabilizar a instituição dos entes regionais, criando proposta de federação na qual o ente central detém a maior parte das competências constitucionais, enquanto as entidades subnacionais atuam de maneira complementar, dependendo, em diversos casos, do ente principal para a implementação das suas iniciativas, fato que repercute diretamente na participação do indivíduo nas esferas de poder.

A perspectiva descentralizadora diminui a distância entre o cidadão e os entes governamentais. A descentralização política representa instrumento fundamental para a ampliação do espaço público democrático. Celso Bastos (1997, p. 285) explica:

a federação se tornou, por excelência, a forma de organização do Estado democrático. Hoje, nos Estados Unidos, há uma firme convicção de que a descentralização do poder é um instrumento fundamental para o exercício da democracia.

O arranjo federativo instituído pela Constituição de 1988 repercute diretamente na autonomia atribuída aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, acarretando, em algumas situações, o afastamento do indivíduo da sede do poder decisório. Tal circunstância compromete o federalismo democrático, tendo em vista que o Poder Público não consegue, em certas situações, solucionar questões relevantes relacionadas ao administrado.


Nesse contexto, torna-se importante o estudo da subsidiariedade como elo nas relações estabelecidas entre os cidadãos e os entes federativos. Augusto Zimmermann (2005, pp. 200-201) esclarece:

Conferindo-se ao sistema político os objetivos de descentralização política ou meramente administrativa, o Estado procede à valorização do princípio da subsidiariedade, atuando preferencialmente para os fins da autonomia dos seus órgãos descentrais. Em outras palavras, apenas quando ao nível inferior não seja possível a realização de determinada ação, de igual ou melhor forma, é que o nível superior deve receber a competência para agir. Também por isso, todos os programas de descentralização democrática, incluindo aqueles de mera desestatização, ficam inevitavelmente ligados ao princípio disposto. Redimensionados os limites da ação estatal, alcançam-se assim os efeitos positivos do controle da sociedade sobre as práticas políticas preferivelmente situadas nas zonas periféricas, e não mais no poder central.

O princípio da subsidiariedade consubstancia aspecto relevante em uma perspectiva federativa pluralista e na consolidação do espaço público democrático. Assim, “devem ser atribuídas ao governo federal e ao estadual aquelas tarefas que não possam ser cumpridas senão a partir de um governo com esse nível de amplitude e generalização” (BASTOS, 1997, p. 285). José Alfredo de Oliveira Baracho (2003, pp. 30-31) explica melhor:

O princípio da subsidiariedade pode ser aplicável nas relações entre órgãos centrais e locais, verificando-se, também, o grau de descentralização. A descentralização é um domínio predileto de aplicação do princípio da subsidiariedade, sendo que a doutrina menciona as relações possíveis entre centro e periferia. A descentralização é um modelo de organização do Estado, pelo que o princípio da subsidiariedade pode ser invocado. A descentralização é um problema de poderes, seja financeiro ou qualquer outro que proponha efetivá-la, bem como de competências. O princípio da subsidiariedade explica e justifica, em muitas ocasiões, a política de descentralização. A compreensão do princípio da subsidiariedade, em certo sentido, procura saber como em organização complexa pode-se dispor de competências e poderes. Aceitá-lo é, para os governantes, admitir a ideia pela qual as autoridades locais devem dispor de certos poderes. O princípio da subsidiariedade intui certa ideia de Estado, sendo instrumento da liberdade, ao mesmo tempo que não propõe a absorção de todos os poderes da autoridade central. A modificação da repartição de competência, na compreensão do princípio da subsidiariedade, pode ocorrer com as reformas que propõem transferir competências do Estado para outras coletividades. Através da sua aplicação, todas as competências que não são imperativamente detidas pelo Estado devem ser transferidas às coletividades. Procura-se resolver a questão de saber quando o Estado e as demais coletividades devem ser reconhecidas na amplitude de suas competências. Deverá ser ela exercida em nível local, ao mesmo tempo em que se propõe determinar qual coletividade terá sua competência definida. Nem sempre o princípio da subsidiariedade dá resposta precisa a todas estas questões. Ele fixa apenas o essencial, quando visa orientar uma reforma, uma política, indicando direção, inspirada na filosofia da descentralização.

Francisco Mauro Dias (1995, p. 21) reforça a relevância da subsidiariedade, mencionando o exemplo francês:

As perplexidades da conjuntura e o despertar globalizado para a incapacidade de o Estado assumir a responsabilidade de resolver, que não subsidiariamente, seus grandes desafios impuseram ao então Primeiro Ministro de França, Senhor Édouard Balladur, a constituição, em 1994, de uma Comissão de Alto Nível, presidida por Alain Minc, para refletir sobre a amplitude dos problemas de natureza econômica e social que a sociedade francesa teria de confrontar, recenseando prospectivamente os desafios do ano 2000.

Em última análise, o reforço da proposta subsidiária pode contribuir para o próprio pluralismo estatal, na medida em que garante ao cidadão mecanismos de participação, os quais serão capazes de mitigar as diferenças a partir do instante em que os indivíduos estarão mutuamente envolvidos na construção da sociedade. Gisele Cittadino (2004, p. 87) explica:

reconhecer o pluralismo, portanto, é reconhecer a diferença. Apenas recorrendo à dimensão ético-política da democracia é possível, segundo Walzer, compatibilizar a participação em uma comunidade política democrática, que tenha a liberdade e a igualdade como princípios, com o pluralismo cultural, étnico e religioso. Em outras palavras, em face do pluralismo, não nos resta outra alternativa senão abdicar das respostas únicas, verdadeiras e definitivas para o problema da associação política e admitir o caráter parcial, incompleto e conflitivo do consenso entre indivíduos.

Ademais, se o poder estatal encontra-se próximo ao indivíduo, mais motivos haverá para que as crescentes demandas possam ser solucionadas e, melhor, para que se incremente a fiscalização dos poderes por órgãos (conselhos, por exemplo) locais onde os diversos setores da comunidade efetivamente participem.

Assim, constata-se que o aumento da participação democrática do indivíduo no processo político decisório, nos termos do arranjo constitucional federal vigente, implica a ampliação das esferas de participação popular no poder público, reforçando a perspectiva democrática a partir do instante em que, através da sua atuação, passa a se sentir partícipe direto dos desígnios da comunidade na qual interage.

2.2 DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICA

A democracia pressupõe a participação do cidadão nos atos praticados pelo poder público. Desta maneira, “o intervencionismo e o excesso de planejamento do poder central consubstanciam-se num fator de seriíssimos problemas ao sistema federativo pátrio, no correto ajustamento das respectivas competências e na distribuição dos recursos” (ZIMMERMANN, 2005, p. 210).


Luis Roberto Barroso (1982, p. 109) acusa, ainda na vigência da Carta Constitucional anterior, o problema da centralização no Brasil:

Refletindo fatores insuperáveis, provenientes de um contexto global, ao qual agrega as peculiaridades típicas do regime político que se instalou no Poder, o sistema federativo no Brasil procura subsistir em meio a circunstâncias adversas. Tal adversidade origina-se de duas fontes: em primeiro lugar, da própria Constituição Federal, que, fiel às inspirações dos que a impuseram, tolhe a autonomia dos estados e procura submeter todas as questões relevantes ao crivo do Poder Central; e, em segundo, no conjunto de elementos, circunstâncias e propósitos que, em injunções que se verificam à sombra dos textos legais, condicionam o desempenho das instituições do país, submetidas, ora às complexidades dos mecanismos econômicos, ora às ingerências pouco legítimas de mecanismos políticos.

Quanto ao quadro atual do federalismo no país e à importância de uma nova proposta federativa, Paulo Bonavides (2004, pp. 400-401) ensina:

É inexplicável a indiferença à questão federativa naquilo que entende como a necessidade de um remédio eficaz, de natureza institucional, e não simplesmente paliativa para os problemas federativos já presentes e em debate. Não poderão eles ser resolvidos nas dimensões de um federalismo clássico do modelo liberal. Não se deve redemocratizar o país sem cogitar, igualmente, a modalidade de federalismo que se vai perfilhar. Os vícios que mataram o federalismo das autonomias não poderão conviver com uma estrutura legitimamente democrática. Cedo, a massa de atribuições e prerrogativas concentradas nas esferas executivas e presidenciais da União, por decorrência do rompimento do antigo equilíbrio federativo, se abateriam sobre o novo organismo jurídico-democrático, destroçando-o por inteiro. A presente forma de federalismo se apresenta mais extinta que a democracia mesma; esta respira nos partidos do sistema único, ao passo que o federalismo padeceu graves golpes, a que já sucumbiu tanto na letra da Constituição como nas praxes políticas vigentes. Urge, por conseguinte, um novo quadro federativo para o Brasil.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou nesse sentido sobre o assunto:

Processo

ADI-MC 216

ADI-MC – Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade

Relator(a)

Celio Borja Sigla do órgão

STF Descrição

Votação: Por maioria. Resultado: Deferida. Caso Repiquinho. Total de páginas: 39. Análise: (DMY). Revisão: (NCS). Inclusão: 20.05.93, (MV). Alteração: 25/05/93, (MK). DSC_Procedência_Geográfica: PB – Paraíba

Ementa

Ação direta de inconstitucionalidade – Constituição estadual – Processo legislativo – A questão da observância compulsória, ou não, de seus princípios, pelos estados-membros – nova concepção de federalismo consagrada na Constituição de 1988 – perfil da federação brasileira – extensão do poder constituinte dos estados-membros – relevo jurídico do tema – suspensão liminar deferida. O perfil da federação brasileira, redefinido pela Constituição de 1988, embora aclamado por atribuir maior grau de autonomia dos estados-membros, e visto com reserva por alguns doutrinadores, que consideram persistir no Brasil um federalismo ainda afetado por excessiva centralização espacial do poder em torno da União federal. Se é certo que a nova Carta política contempla um elenco menos abrangente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, com isso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletividades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quanto aos princípios federais extensíveis e aos princípios constitucionais estabelecidos, os quais, embora disseminados pelo texto constitucional, posto que não é tópica a sua localização, configuram acervo expressivo de limitações dessa autonomia local, cuja identificação – até mesmo pelos efeitos restritivos que deles decorrem – impõe-se realizar. A questão da necessária observância, ou não, pelos estados-membros, das normas e dos princípios inerentes ao processo legislativo provoca a discussão sobre o alcance do poder jurídico da União federal de impor, ou não, as demais pessoas estatais que integram a estrutura da federação, o respeito incondicional a padrões heterônomos por ela própria instituídos como fatores de compulsória aplicação. Este tema, que se revela essencial à organização político-administrativa do Estado brasileiro, ainda não foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Da resolução desta questão central, emergirá a definição do modelo de federação a ser efetivamente observado nas práticas institucionais. Enquanto não sobrevier esse pronunciamento, impõe-se, como medida de cautela, a suspensão liminar de preceitos inscritos em Constituições estaduais, que não hajam observado os padrões jurídicos federais, de extração constitucional, concernentes ao processo legislativo.

Referência Legislativa
LEG-EST CES ANO-1989 ART-00033 INC-00018 ART-00034 PAR-00002, PB. Revisor

Celso de Mello


O federalismo institui, portanto, através da Constituição, poderes autônomos e descentralizados hábeis à promoção do exercício autônomo, nos termos da CRFB/88, das prerrogativas constitucionais promotoras da pluralidade de poderes verticalmente estatuídos.

Tem-se, desta forma, na organização político-administrativa federativa instituída pela Constituição brasileira de 1988, uma estrutura tendente à centralização. Sem embargo, “um poder central estatizante é inconveniente a uma autêntica federação, que pressupõe um equilíbrio entre as diversas esferas governamentais” (BASTOS, 1997, p. 285), sendo certo que a descentralização política é um processo garantidor de autoridade e recursos para os governos regionais e locais.

A mera descentralização administrativa consubstancia sistema municipalista que se distancia do princípio federalista, podendo, inclusive, recair no próprio Estado unitário descentralizado como critica Celso Ribeiro Bastos (1997, pp. 293-294):

O traço principal que marca profundamente a nossa já capenga estrutura federativa é o fortalecimento da União relativamente às demais pessoas integrantes do sistema. É lamentável que o constituinte não tenha aproveitado a oportunidade para atender ao que era o grande clamor nacional no sentido de uma revitalização do nosso princípio federativo. O Estado brasileiro na nova Constituição ganha níveis de centralização superiores à maioria dos Estados que se consideram unitários e que, pela via de uma descentralização por regiões ou por províncias, conseguem um nível de transferência das competências tanto legislativas quanto de execução muito superior àquele alcançado pelo Estado brasileiro. Continuamos, pois, sob uma Constituição eminentemente centralizadora, e se alguma diferença existe relativamente à anterior é no sentido de que esse mal (para aqueles que entendem ser um mal) se agravou sensivelmente.

A luta pela descentralização de poder no Brasil é histórica, advinda da própria proclamação da República (e também do federalismo!), em que o principal embate era a desconcentração do poder imperial para o novel Estado que se criava, principalmente nos aspectos nacional e regional, sendo, portanto, pleito antigo da sociedade brasileira que chega aos dias atuais.

Há problemas institucionais no que tange à sua efetivação. Como já visto, o poder central, durante as Constituições nacionais que se sucederam, foi prestigiado, via de regra, em clara demonstração de certo receio em se avançar para uma proposta de Estado em que o poder local tivesse mais voz (e vez!).

Todavia, não se deve atribuir exclusivamente ao pacto federativo as dificuldades inerentes à implementação de políticas públicas. Assim, para melhor entender o funcionamento dos sistemas federais, não é necessário compreender somente a estrutura constitucional vigente, mas sim as forças reais do sistema, os partidos políticos e as práticas e as estruturas do poder econômico que influenciam diretamente as escolhas institucionais no Estado

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2.3 ESPAÇO PÚBLICO DEMOCRÁTICO E INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DE EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA DIRETA

Outra questão fundamental é o entendimento do espaço público democrático e sua relação com o Estado federal. A delimitação do espaço público democrático passa a ser bastante relevante. A sua concretização consolida o sistema político e democrático. A sociedade civil deve ser parte ativa na sua idealização e realização práticas, sem o que passa a ter perigoso papel secundário no processo político. A esfera pública burguesa pode ser compreendida, assim, como o espaço das pessoas privadas reunidas em um espaço público. Elas desejam esta esfera pública regulamentada pela autoridade (como forma de proteção em uma perspectiva originariamente contratualista), mas diretamente contra a própria autoridade, a partir do momento que não desejam sofrer, principalmente, as consequências decorrentes das limitações de direitos advindas do poder público.

O Estado de Direito burguês pretende, com base na esfera pública em funcionamento, uma tal organização do poder público que garanta a sua subordinação às exigências de uma esfera privada que se pretende neutralizada quanto ao poder (HABERMAS, 2003, p. 104). Assim, para Habermas, “a ideia burguesa de Estado de Direito, ou seja, a vinculação de toda a atividade do Estado a um sistema normativo, na medida do possível sem lacunas e legitimado pela opinião pública, já almeja a eliminação do Estado” (2003, p. 102). Desta maneira, segundo este autor, “a esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das pessoas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietários e de meros seres humanos” (2003, p. 74).

Sobre o tema, José Ribas Vieira (1995, pp. 70-71) esclarece:

Essa compreensão define que o essencial da Constituição é viabilizá-la como processo estabelecedor para a aplicação de decisões coletivas. Essa postura sobre o perfil constitucional aproxima-a, logicamente, da visão habermasiana. Em seu último livro, Faktizitát und Geltung, conforme mencionamos anteriormente, (já há uma versão em língua inglesa mimeografada), Habermas ressalta que a esfera pública traduz uma “rede de comunicação de conteúdos e formas de postura, isto é, de opiniões”. Tal rede filtra ou elabora os fluxos de opiniões e gera opinião pública. Assim, o interessante da análise de Habermas sobre a opinião pública é no sentido de visualizar como a lei não é determinada exclusivamente pelo Parlamento, e sim pela organicidade dessa via política e sua articulação com o público. Na última obra citada de Habermas, ele aponta para duas formas de atores na formulação da opinião pública, a saber: os atores usufrutuários (os partidos políticos, associações de interesses e os meios de comunicação) e os sujeitos “autônomos” responsáveis pela geração e contribuição para reprodução das condições de possibilidade da esfera pública como rede comunicativa, integrantes, assim, da sociedade civil. É, por exemplo, nesse quadro dos Direitos Fundamentais, a partir de uma perspectiva jurídica procedimental, que aumenta a sua responsabilidade de alargar os maiores graus de liberdades públicas e de participação política da sociedade civil.

Ana Lúcia de Lyra Tavares (1995, p. 5), referindo-se à relevância da contribuição do espaço público para o ideal democrático, destaca:


O espaço público, tanto em seu aspecto físico, como procedimental, não escapa a idealizações, a configurações preconcebidas, particularmente no que tange à construção de esquemas de distribuição espacial e funcional do poder, visando ao aperfeiçoamento do sistema político e, nos países aqui focalizados, ao ideal democrático. Se estes esquemas emanam, notadamente, do Estado, não se pode esquecer, todavia, que nos contextos de efetiva prática da democracia a sociedade civil é, por igual, parte ativa na idealização dos mesmos.

Como consequência da omissão do Estado e da sua falta de iniciativa, combinadas com a inoperância do poder público no que tange ao atendimento das demandas sociais cada vez mais crescentes das sociedades de massas, observa-se que os problemas da comunidade tendem a ser mais complexos, contribuindo para o aparecimento do poder paralelo ao Estado, na medida em que os problemas sociais não conseguem ser solucionados satisfatoriamente. Continua Tavares (1995, p. 9):

A lentidão, não raro as omissões, no atendimento às demandas da sociedade civil, em decorrência dos entraves que se criam nas relações entre os poderes instituídos, ao mesmo tempo em que os fragilizam perante a população, dada a frustração que o seu desempenho insatisfatório suscita, concorrem para o fortalecimento de poderes sociais não instituídos e a criação de outros, até marginais, que acabam por atuar com desenvoltura no seio da sociedade.

Para maior efetividade em termos de participação do cidadão no processo político-democrático instituído em 1988, disponibilizam-se alguns instrumentos constitucionais na Carta vigente, dentre eles, como já visto, o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular.

O plebiscito consubstancia instrumento de consulta ao cidadão realizado anteriormente ao ato que se vai praticar (inc. I do art. 14 da CRFB/88). Diferentemente do plebiscito, há o referendo (inc. II do art. 14 da CRFB/88), que se caracteriza como consulta posterior ao ato veiculado. Na história recente do país, tivemos a oportunidade de nos manifestar em plebiscito em 1993, escolhendo a forma de governo republicana e o sistema presidencialista. Posteriormente, em 2005, o cidadão foi chamado a deliberar acerca do desarmamento, restando derrotada tal iniciativa.

Outro instrumento constitucional de participação democrática direta é a lei de iniciativa popular (inc. III do art. 14 c/c § 2º. do art. 61, ambos da CRFB/88), que caracteriza possibilidade legislativa conferida ao cidadão para apresentar, mediante proposta, projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2. da CRFB/88).

Como exemplos de projetos de lei de iniciativa popular, há a Lei n. 8.930/94 (Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez), que alterou a Lei n. 8.072/90, tornando-a mais gravosa; a Lei n. 9.840/99 (captação de sufrágio), “a qual possibilitou que a Justiça Eleitoral possa coibir com mais eficiência a compra de votos de eleitores” (LENZA, 2010, p. 449) e, finalmente, a “lei da ficha limpa” (Lei Complementar n. 135/10), recentemente aprovada pelo Congresso Nacional. Destaca-se, ainda, que para sua maior efetividade, melhor seria que as suas exigências constitucionais fossem facilitadas, além de se admitir a possibilidade de o cidadão propor projeto de Emenda à Constituição.

Fábio Konder Comparato (2010, pp. 58-59) explica:

As outras duas medidas institucionais de instauração da democracia entre nós são: 1. A livre utilização pelo povo de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação da iniciativa popular de projetos de lei e a criação da iniciativa popular de emendas constitucionais. 2. A instituição do referendo revocatório de mandatos eletivos (recall), pelos quais o povo pode destituir livremente aqueles que elegeu, sem necessidade dos processos cavilosos de impeachment. Salvo no tocante à iniciativa popular de emendas constitucionais, já existem proposições em tramitação no Congresso Nacional a este respeito, redigidas pelo autor destas linhas e encampadas pelo Conselho Federal da OAB: os Projetos de Lei n. 4.718 na Câmara dos Deputados e n. 1/2006 no Senado Federal, bem como a proposta de Emenda Constitucional 73/2005 no Senado Federal. Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a proposta de Emenda Constitucional n. 26/2006, apresentada pelo senador Sérgio Zambiasi, que permite a iniciativa popular de plebiscitos e referendos.

Para tornar mais efetiva a proposta feita por Komparato, ideal seria que o cidadão tivesse o poder de convocar tais instrumentos de participação direta como o plebiscito e o referendo. Entretanto, nos termos do inc. XV do art. 49 da CRFB/88 (“É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XV- autorizar referendo e convocar plebiscito”), verifica-se que tal atribuição é exclusiva do Congresso Nacional. Afinal de contas, que democracia direta é esta em que o povo delega ao Congresso Nacional o poder de decidir se haverá ou não consulta quanto a questões fundamentais? E a regra do art. 1º., parágrafo único da Constituição vigente (“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), desconsidera-se ?

Diante da difícil questão, Komparato (2010, pp. 58-59) conclui no referido artigo:

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia, organização e competência. Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder? É a pergunta que ora faço à presidente eleita.

Assim, o incremento da participação da cidadania nos assuntos estatais, o pluralismo político, o respeito à igualdade e às liberdades públicas contribuem para a formação do espaço público democrático, ressaltando-se que o amadurecimento político, o posicionamento consciente e livre no processo de participação nos debates e nas deliberações pela cidadania e pela sociedade organizada e, em última análise, na reconstrução do espaço público implicam uma base educacional condizente com um país que visa pleitear melhores posições no campo interno e internacional.


Conclui-se, portanto, que há certa dificuldade de se estabelecer um autêntico espaço público democrático no país, principalmente do ponto de vista da influência do processo histórico desigual de formação da sociedade brasileira, que repercute hodiernamente, além da ausência de vontade política das elites dominantes.

Nesse diapasão, a maior efetividade desses mecanismos constitucionais de democracia estará a cargo da sociedade organizada através de sua maior participação no espaço democrático. Todavia, parece inócua tal mobilização se não for apoiada pelas funções de poder da República, em especial o Poder Judiciário, que tem hoje a importante missão, em uma perspectiva neoconstitucional e pós-positivista, de colocar o cidadão como ator principal do processo social, com decisões arrojadas e justas, prestigiando o Estado de Direito e a dignidade da pessoa humana.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão da organização do Estado (aí incluído o brasileiro, objetivo do trabalho) encontra-se hoje na ordem do dia. Indaga-se: O Estado vem cumprindo o seu verdadeiro papel que dá sentido à sua criação? Justifica-se, na perspectiva contratualista, a submissão da população aos seus ditames em um contexto em que o Estado cada vez mais agoniza e perde espaço para poderes paralelos, como é o caso do tráfico de drogas nas favelas cariocas?

Estas questões devem ser entendidas como forma de aprimorar a vida em sociedades cada vez mais complexas. Pode-se concluir que o Estado brasileiro, apesar de significativos avanços, ainda padece de um melhor aperfeiçoamento em termos de pacto federativo. A nossa origem federativa, quase integralmente importada dos estadunidenses na primeira Constituição republicana de 1891, da noite para o dia decretou que um Estado inicialmente monárquico-imperial se transformaria em federativo, ou seja, de um poder centralizado no imperador passa-se a uma perspectiva descentralizada com entes federativos criados para o seu exercício autonomamente.

A federação consolidou-se e chega a 1988 com status de cláusula pétrea (inc. I do § 4º. do art. 60 da CRFB/88) no que tange à forma federativa de Estado. Claro que a organização originária e os aspectos histórico-sociológicos repercutirão em 1988. Tem-se, pois, que a Constituição cidadã, conforme preconizara Ulisses Guimarães, traz uma série de avanços em relação ao pacto federativo instituído. Todavia, observa-se que o poder central prevalece sobremaneira sobre os demais entes federativos (estados-membros, municípios e Distrito Federal), não só em termos de atribuições elencadas (arts. 21 a 24 da CRFB/88), como também em termos econômicos (arts. 153, 154, 149 e 195, todos da CRFB/88), carecendo, pois, de maior descentralização em termos de construção de perspectiva federativa autêntica e efetiva.

Nesse contexto, os poderes regional e local sobrevivem à sombra do poder federal, haja vista que se observa uma subsidiariedade invertida, quando, na verdade, o ideal seria que o poder estivesse mais próximo do cidadão (no município), depois os estados e o Distrito Federal e, por último, a União. A questão é: o Brasil estaria preparado para essa maior autonomia local? Tentou-se em 5 de outubro de 1988. Todavia, observe-se que, posteriormente, a Emenda Constitucional n. 25/2000 trouxe uma série de limitações aos municípios, tendo em vista os desmandos locais protagonizados por políticos descomprometidos com uma proposta séria e digna de país.

Dúvidas não há que o arranjo posto repercutirá na questão do espaço público democrático que, originariamente, era (e ainda é!) extremamente desigual, apesar de políticas compensatórias colocadas em vigor com sucesso, como o Bolsa Família, o Prouni e outros, em especial, no último mandato do presidente Lula (2007/2010).

Observa-se que, na luta por uma sociedade mais participativa e democrática, existe o histórico embate entre forças progressistas e aquelas, conservadoras, que insistem em não aceitar ou admitir que o progresso e a dignidade da pessoa humana cheguem às camadas mais pobres da sociedade brasileira. Parece que a Constituição não pode ser considerada como o único instrumento de viabilização dessas mudanças. O papel central estará a cargo da sociedade civil organizada, esta sim verdadeira protagonista das transformações sociais. No entanto, torna-se complicado discutir a questão das mudanças políticas atualmente prescindindo-se da análise jurídico-constitucional.

Assim, debruçando-se sobre a Carta vigente, visualizam-se importantes instrumentos de participação direta, como plebiscito, referendo e iniciativa popular, que podem ser muito úteis na consolidação do processo democrático. Esta última protagonizou uma das maiores vitórias da sociedade organizada – a Lei da Ficha Limpa – devendo também ser atribuído tal direito ao cidadão para fins de propositura de projeto de Emenda à Constituição, nos termos do art. 60, I a III da CRFB/88, que o exclui, além de ser facilitada para que a cidadania possa participar ainda mais. Relativamente ao plebiscito e ao referendo, entende-se que tais instrumentos representam elementos preciosos de consolidação da perspectiva democrática no Brasil, não podendo permanecer sob o crivo da “convocação e autorização” do Congresso Nacional. Ora, o cidadão que deve ser convocado e autorizado a participar da via democrática, na verdade, é mero coadjuvante de um processo no qual deveria ser ator principal, pois o Estado se justifica a partir do instante em que passa a aprimorar a vida do indivíduo, e não a coagi-lo ou a desconsiderá-lo em termos de opinião.

Logo, questões recentes e relevantes como desnacionalização de empresas nacionais, voto obrigatório, maioridade penal, reformas política e tributária, dentre outras, passaram ao largo da vontade da cidadania e são decididas em Brasília por parlamentares fisiológicos e lobistas corruptos, que têm por escopo, única e exclusivamente, o patrocínio dos interesses dos poderosos que se locupletam, comprometendo a vida digna dos integrantes da sociedade, especialmente, os excluídos.

O caminho é árduo, difícil, entretanto, constroem-se na América Latina (com todas as dificuldades inerentes aos seus 500 anos de exploração) boas perspectivas, elegendo-se governos mais progressistas e comprometidos com as populações mais carentes e com os movimentos sociais. Em termos de Brasil, elegeu-se, pela primeira vez, um operário (Luiz Inácio Lula da Silva), que atingiu mais de 80% de popularidade no final de seu governo, e uma mulher (Dilma Rousseff), ex-guerrilheira, que sofreu nos porões de uma ditadura que insiste em se esconder e em se proteger anos depois, algozes de toda uma geração que, calada e envergonhada, viu passar uma excelente oportunidade de construir um país livre, justo e solidário. Prova-se que o futuro se edifica através de lutas e, principalmente, de desejos e sonhos a serem conquistados.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.


Notas

1Procurador da Fazenda Nacional, mestre em Ciência Política / UFF, especialista em Direito Constitucional, professor de Direito Constitucional / Ciência Política da graduação e pós-graduação da Universidade Estácio de Sá / RJ, professor de Direito Constitucional do Centro de Estudos Jurídicos 11 de Agosto/RJ, pesquisador associado do Laboratório de Estudos sobre Democracia do IESP/UERJ.


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29403 (14378)

Arquivos:
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IMPORTANTE: (OS NÚMEROS DE FLS. INDICADOS SÃO OS DO ARQUIVO DIGITAL. O VOLUME CORRESPONDE A UM DOS ARQUIVOS DIGITAIS QUE SÃO DIVIDIDOS EM VOLUMES)

Índice:

Identificação Fl. Vol.
Petição Inicial 03 01
Decisão indeferindo liminar 196 01
Agravo Regimental SINPROFAZ 202 01
Parecer MPF 17 02
Acórdão denegando segurança 53 02
Recurso Ordinário SINPROFAZ 74 02
Contrarrazões ao Recurso Ordinário 106 02
Remessa dos autos ao STF 163 02
Parecer MPF 169 02

Última folha: 417

OBJETO/PEDIDO: Mandado de segurança impetrado visando impugnar nomeação de cidadão alienígena dos quadros da Procuradoria da Fazenda Nacional ao cargo de Diretor do Departamento de Gestão da Divida Ativa da União.


Honorários: OAB pede preferência no julgamento da ADI 3396

SINPROFAZ é amicus curiae na referida ação que está sob relatoria do ministro Celso de Mello e tramita no STF desde 2005.


Aspectos relevantes das Certidões Negativas Trabalhistas nos contratos administrativos


Fazem-se breves apontamentos sobre aspectos relevantes relacionados aos efeitos e abrangência da exigibilidade, como requisito de habilitação em procedimentos licitatórios, da denominada Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT.


1. Introdução

O presente artigo tem por escopo realizar breves apontamentos sobre aspectos relevantes relacionados aos efeitos e abrangência da exigibilidade, como requisito de habilitação em procedimentos licitatórios, da denominada Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT, instituída por intermédio da Lei nº 12.440, de 7 de julho de 2011, que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho e a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993).


2. Exigibilidade da comprovação da regularidade trabalhista a todas as espécies de contratações públicas e casos em que pode ser dispensada.

Em um primeiro momento, é preciso investigar se a exigência de regularidade trabalhista é aplicável a todas as espécies de contratação pública, tanto aquelas derivadas de certames licitatórios, bem como referentes a hipóteses de contratação direta. Para elucidar este ponto deve-se desmembrar o tópico em três aspectos a serem abordados: (i) possibilidade de se exigir a CNDT nas contratações diretas da Administração Pública; (ii) possibilidade de se dispensar a exigibilidade da CNDT em alguns casos ou situações e (iii) dirimir se a aplicabilidade da exigência da CNDT aplica-se apenas às hipóteses de terceirização de serviços com alocação exclusiva de mão de obra ou se a mesma é aplicável para todos os tipos de prestação se serviços terceirizados.

No que tange ao primeiro ponto, cumpre trazer à colação excerto de artigo doutrinário de lavra da Dra. Greyce Silveira Carvalho, que afirma a possibilidade da exigência da CNDT também nos casos de contratação direta[i]:

(…) Há quem entenda que a nova exigência não se aplicaria às contratações por dispensa ou inexigibilidade de licitação. O equívoco deste entendimento está em imaginar que a habilitação se trata única e exclusivamente de uma fase do procedimento licitatório. Tal ilação poderia ser extraída da interpretação literal e rasa do art. 27 da Lei nº 8.666, de 1993. Ocorre que uma exegese teleológica e mais consentânea com o direito administrativo-constitucional impõe a conclusão de que a habilitação constitui uma providência pré-contratual, ou seja, deve ser observada antes da formalização do contrato, seja ele precedido ou não de licitação. Não tem sentido exigir idoneidade do particular que participa de certame licitatório e dispensar tal exigência para aquele que contrata com o Poder Público de forma direta. A prevalecer esse entendimento, estaríamos diante de inegável afronta à isonomia.

A lógica subjacente à exigência da comprovação de regularidade fiscal – e agora trabalhista – é a de que uma empresa irregular, além de estar infringindo a lei, tem condições de apresentar preços mais vantajosos, o que violaria a competitividade. A regra privilegia, portanto, os princípios da legalidade, isonomia e da moralidade.

Tratando-se de contratação direta, poder-se-ia sustentar que tal argumento restaria esvaziado, porquanto não há concurso de licitantes. Todavia, por força do disposto no art. 26, da Lei nº 8.666, de 1993, até nos casos de contratação direta, a vantajosidade do preço é objeto de análise e de cotejo com pesquisas de mercado. Tal análise poderia restar prejudicada ou apontar uma vantagem indevida em favor da contratada se esta não recolhe os tributos e não paga os empregados. Assim, entendemos que a razão que inspira a exigência de comprovação da regularidade fiscal e trabalhista prevalece também nos casos de contratação direta.

A respeito da indispensabilidade da comprovação de regularidade fiscal nos casos de contratação direta, já decidiu o Tribunal de Contas da União:

Entendimento prevalecente nesta Corte”, segundo o qual: a) “por força do disposto no art. 195, § 3º, da Constituição Federal, que torna sem efeito, em parte, o permissivo do art. 32, § 1º, da Lei 8.666/1993, a documentação relativa à regularidade fiscal e com a Seguridade Social, prevista no art. 29, inciso IV, da Lei 8.666/1993, é de exigência obrigatória nas licitações públicas, ainda que na modalidade convite, para contratação de obras, serviços ou fornecimento, e mesmo que se trate de fornecimento para pronta entrega;”; e b) a obrigatoriedade de apresentação da documentação referida no subitem anterior é aplicável igualmente aos casos de contratação de obra, serviço ou fornecimento com dispensa ou inexigibilidade de licitação, ex vi do disposto no § 3º do art. 195 da CF.”. Precedentes citados: Decisão n.º 705/94-Plenário e Acórdão n.º 457/2005-2ª Câmara. Acórdão n.º 3146/2010-1ª Câmara, TC-022.207/2007-6, rel. Min. Augusto Nardes, 01.06.2010.

Assim, como regra geral, não se pode dispensar a exigência de regularidade trabalhista nas contratações direta de maneira automática, inadvertida.

(…)

Na opinião de Marçal:

“a contratação direta não importa, de modo mecânico, a dispensa de comprovação dos requisitos de habilitação. Ou seja, os mesmos fundamentos que impõem a verificação da idoneidade daquele que participa de uma licitação também se aplicam no caso de contratação direta.(…)

A questão não reside, portanto, na existência ou não de licitação, mas na natureza e nas características da futura contratação.” (pg. 489).


Irreprochável o entendimento doutrinário acima esposado. Como bem salientado, a teleologia da norma é propiciar contratações mais seguras pela Administração, procurando garantir a maior idoneidade possível aos eventuais contratados, não importando, neste passo, se a avença resultará de procedimento licitatório ou de contratação direta.

Elucidativo é o ensinamento de Marçal Justen Filho, em que afere-se a diferenciação entre as condições de participação em licitação e os requisitos de habilitação, demonstrando que estes últimos visam assegurar a idoneidade do contratado e não apenas possibilitar a sua participação em um certame licitatório:

Os requisitos para o sujeito participar da licitação, podem ser denominados de ‘condições de participação’. A expressão indica o conjunto de exigências, previsto em lei e no ato convocatório, cujo descumprimento acarretará a ausência de apreciação de sua proposta.

Esse conjunto de exigências abrange os requisitos de habilitação, mas não se restringe a eles. Existem outras exigências previstas em Lei e no ato convocatório que condicionam a admissibilidade da proposta de um licitante. Isso permitiria aludir a condições de participação em sentido amplo, gênero que abrangeria os requisitos de habilitação e as condições de participação em sentido estrito. Embora a distinção não seja usual na prática, os requisitos de habilitação não se confundem com as condições de participação em sentido restrito.

Os requisitos de habilitação consistem em exigências relacionadas com a determinação da idoneidade do licitante. É um conjunto de requisitos que se poderiam dizer indiciários, no sentido de que sua presença induz a presunção de que o sujeito dispõe de condições para executar satisfatoriamente o objeto licitado. Por decorrência, a ausência de requisito de habilitação acarreta o afastamento do licitante do certame, desconsiderando-se sua proposta. O elenco dos requisitos de habilitação está delineado em termos gerais nos arts. 27 a 32 da Lei de Licitações. É inviável o ato convocatório ignorar os limites legais e introduzir novos requisitos de habilitação, não autorizados legislativamente.

As condições de participação em sentido estrito não se relacionam diretamente com a idoneidade do licitante. Consistem em requisitos formais e substanciais para o sujeito participar da disputa[ii].

Ante o exposto, os requisitos de habilitação, insertos no artigo 27 da Lei de Licitações, dentre eles a necessidade de regularidade trabalhista, tem por objetivo fulcral possibilitar a verificação da idoneidade de futuro contratado, razão pela qual pode-se exigir a denominada CNDT também nos casos de contratação direta, sem licitação.

Outro aspecto de relevo é perquirir quais as situações em que a regularidade trabalhista poderia ser dispensada.

A possibilidade de flexibilização da exigência das condições de habilitação é prevista no artigo 32, § 1º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos ao dispor que a documentação relacionada à habilitação poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão.

A primeira observação a ser feita é a de que o rol do mencionado dispositivo legal não é exaustivo, mas meramente exemplificativo.

Reputa-se que a previsão do § 1º do art. 32 não é exaustiva. A dispensa da apresentação dos documentos será admissível não apenas quando o montante quantitativo da contratação for reduzido ou quando a natureza do contrato não exigir maiores indagações sobre a situação subjetiva do interessado. Também se admitirá que o ato convocatório deixe de exigir a comprovação de outras exigências facultadas em lei se tal for desnecessário para assegurar a execução satisfatória da futura contratação.[iii]

Por outro lado, aponta a melhor doutrina que o dispositivo deve ser interpretado com certa flexibilidade no sentido de que nem sempre as exigências habilitatórias deverão ser dispensadas simplesmente pelo fato de se enquadrarem nas hipóteses ali contidas (convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão):

Deve-se reconhecer que existem requisitos de habilitação cuja exigência é facultativa e que poderão ser dispensadas em alguns casos. Assim se passa, por exemplo, com a qualificação econômico-financeira e com a qualificação técnica, que não necessita ser examinada em algumas hipóteses. Em tais hipóteses, a dispensa da exigência da documentação é uma decorrência da ausência de requisitos de habilitação.

Mas há alguns requisitos de habilitação cuja exigência é necessária em todos os casos. Assim se passa com a habilitação jurídica, com a comprovação da ausência de falência e com a regularidade com a seguridade social. Esses requisitos devem ser exigidos ainda nas hipóteses referidas no art. 32, § 1º.

(…)

A interpretação exposta conduz à conclusão de que, mesmo nas hipóteses previstas no dispositivo ora examinado, a Administração estará impedida de contratar se verificar que os requisitos mínimos e indispensáveis não estão preenchidos.[iv]

Quanto à exigibilidade da CNDT, entende-se que esta não poderá ser dispensa nem mesmo nas hipóteses elencadas no artigo 32, § 1º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

Inicialmente, a exigibilidade da CNDT mesmo nas hipóteses do artigo 32, § 1º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos terá por objetivo, em se tratando de contratos de prestação de serviços com alocação de mão de obra, evitar-se a ocorrência (extremamente comum, diga-se) da responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelos débitos trabalhistas de suas contratadas, o que, por si só, justificaria a exigibilidade das certidões nestes casos.


Não obstante, também para outros tipos de contratação, em que não se verifica a possibilidade de responsabilidade subsidiária, deve-se sempre exigir a CNDT. Isso porque, além de propiciar a escolha de contratado idôneo pela Administração, a novel exigência tem por escopo sufragar bem jurídico de maior valor: a garantia de remuneração pelo trabalho humano.

Com efeito, a Constituição Federal (art. 1º) erige como um dos seus fundamentos os valores sociais do trabalho. Além disso, a garantia da remuneração por serviços prestados por trabalhadores está amplamente prevista no artigo 7º da Constituição Federal. Neste passo, ao se exigir a CNDT, visa-se, precipuamente, efetivar a valorização do trabalho, bem como da dignidade da pessoa humana (dos trabalhadores), outro fundamento basilar do constitucionalismo pátrio.

Assim, assentada a finalidade principal da norma, no sentido de propiciar maior efetivação ao fundamento constitucional da valorização do trabalho humano, conclui-se que, em regra, a CNDT deverá SEMPRE ser exigida, em quaisquer tipos de contratações da Administração Pública (mesmo em não se tratando de terceirização de serviços com alocação de mão de obra), tal como ocorre com a necessidade de comprovação de regularidade com a seguridade social.

Entretanto, nos casos em que se configurar uma situação de inexigibilidade de licitação, em razão da necessidade de se contratar um único prestador ou fornecedor, será possível dispensar a exigência da CNDT com o fito de propiciar a execução do serviço de interesse relevante para a Administração, em função dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade[v]:

Afigura-se que haverá cabimento de promover a contratação direta sem exigência da comprovação dos requisitos de habilitação nos casos em que a Administração não dispuser de outra alternativa. Assim, suponha-se a situação em que há um único fornecedor, o qual se encontra em situação irregular perante a Fazenda Nacional ou, mesmo, o próprio INSS. A Administração necessita da utilidade que poderá ser fornecida apenas e exclusivamente por aludido sujeito. Aplicar-se-á o princípio da proporcionalidade e se ponderarão os diversos interesses. De um lado, haverá o risco de perecimento de interesses essenciais, se a contratação não ocorrer. De outro, haverá o risco de contratação de sujeito que não dispõe de requisitos de habilitação, se a contratação ocorrer. Entre o perecimento inevitável, previsível e altamente danoso dos interesses colocados sob a tutela do Estado e a ausência de cumprimento a uma formalidade, a Constituição Federal impõe a opção pela segunda alternativa. O princípio da República obriga à adoção de todas as providências que evitem o comprimento dos fins buscados pelo Estado. As exigências infraconstitucionais do cumprimento de certos formalismos são meramente instrumentais: devem ser afastadas quando se prestarem a frustrar a proteção dos fins buscados pelo Estado, eis que o único fundamento que lhes dá razão de existência é sua instrumentalidade para proteger dito interesse. Quando não se prestarem a tal, deverão ter sua aplicação evitada.[vi]

Diante do exposto, conclui-se neste tópico: (i) em regra, é possível e necessária a exigibilidade da CNDT nas contratações diretas da Administração Pública; (ii) a CNDT pode ser dispensada nas hipóteses de inexigibilidade de licitação em que há apenas um único fornecedor ou prestador de serviço que possa satisfazer às necessidades da Administração, desde que a sua não contratação implique em relevante prejuízo ao interesse público, utilizando-se como critérios norteadores os princípios da proporcionalidade e razoabilidade em cada caso concreto; (iii) em regra, deve ser exigida a CNDT em todas as contratações realizadas pela Administração Pública, mesmo nas hipóteses de que trata o artigo 32, § 1º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos e (iv) a exigência da CNDT é cabível para todos os tipos de contratação e não apenas as que envolvam terceirização de serviço com alocação de mão de obra.

3. Aplicabilidade imediata da nova legislação que instituiu a regularidade trabalhista aos contratos anteriormente celebrados.

A análise sobre a aplicabilidade ou incidência da nova legislação, instituidora da mencionada regularidade trabalhista, aos contratos já celebrados e ainda em execução envolve, necessariamente, o estudo do direito intertemporal.

A colisão da lei nova com a anterior, algumas vezes, gera problemas. Isso porque determinadas circunstâncias estabelecidas pela lei antiga podem permanecer sob a vigência da nova lei; ou, por outro lado, situações outras que foram criadas pela lei velha já não vão encontrar guarida na novel legislação. Destarte, conforme leciona Paupério, há que se estudar até que ponto a lei antiga pode gerar efeitos e até que ponto a lei nova não pode impedir esses efeitos da lei antiga.

Esse estudo, necessário para o desatar de problemas jurídicos de apreço, recebe as denominações de conflito de leis no tempo, retroatividade ou não-retroatividade das leis, aplicação do direito em relação ao tempo, supervivência da lei no tempo, direito transitório e, com tendência a prevalecer sobre as demais, direito intertemporal[vii]

No caso em tela, especificamente, o cerne da questio iuris é saber se eventual exigibilidade da CNDT a cada pagamento, no caso dos contratos celebrados anteriormente à vigência da legislação instituidora da regularidade trabalhista, desrespeitaria o ato jurídico perfeito celebrado sob a égide da legislação pretérita ou, até mesmo, o direito adquirido à manutenção das condições e termos da avença anteriormente celebrada.

3.1. Aplicabilidade imedita X retroatividade da norma

Em casos tais é comum que se entenda que essa exigibilidade macularia, irremediavelmente, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, o que seria expressamente vedado pela Constituição Federal, bem como pela Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro. Este posicionamento advém da necessidade de se promover, em um Estado Democrático de Direito, a indispensável segurança jurídica, tida por doutrinares de escol como valor jurídico máximo ou absoluto.

Por outro lado, há quem defenda a aplicabilidade imediata da novel legislação sempre que tal fato for possível erigindo-se, como argumento, a não menos importante “preponderância do interesse público” presente presumidamente em cada inovação legislativa.


Por outro norte, é aceitável admitir que a preponderância do interesse público sobre as conveniências dos cidadãos – como conseqüência proveniente da soberania da lei –, justifica, antes de qualquer consideração, sua aplicação a todos os fatos por ela regulados. Para que a legislação mais moderna possa realizar inteiramente sua finalidade benéfica, o interesse social exige seja aplicada tão completamente quanto possível. Nesse sentido e parafraseando Paiva Pitta, se a lei nova tiver de respeitar a sua razão de ser no passado, restringindo o seu império somente ao que se fizer depois da sua promulgação, ver-se-á caminhar, paralelamente, o pretérito com o presente, o desengano com a esperança, a saudade com o gozo, a sombra com a luz, enfim, as velhas com as novas instituições.[viii]

É induvidoso que o atual ordenamento jurídico brasileiro adota, como regra-geral, o princípio da irretroatividade das leis tendo em vista a expressa dicção constitucional ao asseverar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”[ix], bem como a prescrição inserta na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro: “A lei terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”[x].

Entretanto, tal assertiva não tem, por si só, o condão de afastar a exigibilidade das CNDTs a cada pagamento relacionado a contratos anteriormente celebrados. É que há de se fazer a distinção fundamental entre retroatividade da lei (o que é, em regra, vedado) e aplicabilidade imediata de uma novel legislação.

Nesse ponto, é de importância elementar a distinção entre efeito retroativo e imediato da lei. E o próprio ordenamento jurídico brasileiro, pelos precisos termos do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, discrimina-os, de modo capital, ao dispor: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Isso revela que não só as situações não definitivamente constituídas (facta pendentia), como também os efeitos presentes e futuros dos fatos já consumados (facta praeterita), serão abarcados pela novel legislação. Não significa tal aplicação, portanto, efeito retroativo, mas, sim, imediato.[xi]

No mesmo sentido, Washington de Barros Monteiro:

Mas entre a retroatividade e a irretroatividade existe situação intermediária, a da aplicabilidade imediata da lei nova a relações que, nascidas embora sob a vigência da lei antiga, ainda não se aperfeiçoaram, não se consumaram. O requisito sine qua non, para a imediata e geral aplicação, é também o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Acham-se, nesse caso, as leis constitucionais, políticas, administrativas, de ordem pública (ainda que de direito privado), de interesse geral, penais mais benignas, interpretativas, que regulam o exercício dos direitos políticos e individuais, condições de aptidão para cargos públicos, organização judiciária e processo (civil e criminal). Aliás, em regra, todas as normas de direito público têm aplicação imediata, o que, no entanto, como é óbvio, pode ser intencionalmente arredado pelo legislador.[xii]

Celmo Fernandes Moreira assevera:

Destarte, constitui grave erronia a afirmação de que as leis de ordem pública são retrooperantes. Porém, tal assertiva não equivale à admissão de que não devam incidir imediatamente sobre os atos e fatos jurídicos que tiveram a sua gênese sob o império da lei antiga e que continuam gerando efeitos na vigência da lei nova, posto que não consumados e integrados no patrimônio do titular e, ainda, porque vicejam no terreno nebuloso entre a retroatividade e a irretroatividade, caso em que deve predominar o interesse público e a realização dos fins sociais, que é a finalidade última da lei, diante do confronto frente a interesses particulares.[xiii]

Miguel Reale, um dos maiores juristas brasileiros de todos os tempos, obtemperou que a aplicação imediata da lei nova “… implica na exigência irrevogável do seu cumprimento, quaisquer que sejam as intenções ou desejos das partes contratantes, ou dos indivíduos a que se destinam”.[xiv]

Não é outro o entendimento de Alex Sandro Ribeiro, com apoio em Wilson de Souza Campos Batalha e Savigny:

Assim observado, sem deslembrar abalizada doutrina contrária, estamos inclinados a sustentar que normas de conteúdo de ordem pública são, não só constitucionais, como também de aplicação imediata e alcançam até mesmo os contratos em curso. Sentimo-nos nessa inclinação, pois, conquanto conservadores nalguns casos, não podemos negar os pensamentos de vanguarda. Temos uma lei nova para aplicar, e temos de sugerir situações novas, tal qual foi por ela objetivado. Isso, obviamente, com muito respeito ao ordenamento vigente e com muito profissionalismo no que se argumenta.

Não discrepa o entendimento de Wilson de Souza Campos Batalha. Em seus comentários à “Lei de Introdução ao Código Civil”, ao analisar o problema do conflito das leis no tempo nos dá o ponto de vista de Savigny, que é o predominante. Segundo o jurista francês o princípio da irretroatividade das leis não é absoluto e tolera exceções necessárias para evitar algumas conseqüências absolutamente inaceitáveis:

“Seu ponto de vista é que, em princípio a lei nova se aplica mesmo às situações estabelecidas ou às relações formadas desde antes de sua promulgação. Este princípio é uma conseqüência da soberania da lei e da predominância do interesse público sobre os interesses privados” (op. cit., t. I/55, vol. II, Editora Max Limonad, pág. 64).

Essa também tem sido a atual tendência jurisprudencial em situações semelhantes à presente – normas de interesse público -, que vêm entendendo serem elas de aplicação imediata, anulando “cláusulas cuja regularidade era incontestável na época em que foram aceitas pelas partes” (“RT”, vol. 656/202).[xv]


Lúcio Delfino noticia o entendimento de Paupério a respeito do tema:

Conforme ensina Paupério, a lei nova poderá, entretanto, ser capaz de aplicar-se aos efeitos futuros das relações jurídicas presentes e anteriores, originadas sob a égide e o império da lei precedente, por ela revogada. Nada obstante, não se deve desprezar que os efeitos já produzidos pela antiga lei deverão ser preservados e respeitados. Os novos efeitos é que serão submetidos à força da novel legislação.

(…)

Pauperio, em lição precisa, esclarece que nos “próprios contratos em curso, subordinados antes, até mesmo para os efeitos futuros, à lei antiga, a não ser que a lei nova estabelecesse o contrário, tem lugar o efeito imediato, que não significa, sem dúvida alguma, efeito retroativo. Só aos momentos anteriores de uma situação em curso é que não poderia a lei nova aplicar-se sem retroatividade”.[xvi]

Maria Helena Diniz também ressalta a diferenciação entre a retroatividade e a aplicação imediata de uma nova lei:

(…) é princípio fundamental de direito que as leis sejam aplicáveis a atos anteriores à sua promulgação, contanto que tais atos não tenham sido objeto de demandas, que não estejam sob o domínio da coisa julgada, nem configurem ato jurídico perfeito ou direito adquirido. Fácil é perceber que entre a retroatividade e a irretroatividade existe uma situação intermediária, a da aplicação imediata da nova norma às relações nascidas sob a vigência da anterior e que ainda não se aperfeiçoaram.[xvii]

Entendimentos deste jaez são inúmeros na doutrina nacional. Com base neste segmento doutrinário é que se propugna a aplicabilidade imediata do Código de Defesa do Consumidor aos contratos em curso anteriormente celebrados:

No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, não restam dúvidas da sua aplicação imediata naquelas situações não definitivamente concluídas ou nos efeitos presentes e futuros decorrentes de fatos já consumados. Advirta-se mais uma vez: não se tratará, nessas hipóteses, de efeito retroativo da lei, senão da imediata aplicação dela.

(…)

Assim, o Código de Defesa do Consumidor aplica-se, por exemplo, àqueles contratos assinados antes de sua vigência, anulando cláusulas leoninas ou abusivas cuja eficácia prática ocorreria agora, ou no futuro – os chamados contratos de trato sucessivo [68] –, ferindo a nova ordem de valores imposta pela legislação consumerista. Nesse ponto não há lesão alguma ao princípio da irretroatividade das leis, pelo simples fato de inexistir direito adquirido ou ato jurídico perfeito. Não há se falar aqui em retroatividade da lei, mas, sim, em sua aplicação imediata, uma vez que a cláusula passível de anulação não se consumou ou se exauriu antes da publicação da Lei 8.078/90; embora constituído o contrato, algumas de suas cláusulas, agora abusivas, não se consumaram. Marques assevera, com pena de ouro, que “o ato jurídico pode ser assinado e não ser juridicamente perfeito. Como ensinava Clóvis Bevilacqua: “Já ficou dito que o direito adquirido pressupõe um fato capaz de produzi-lo, segundo as determinações da lei” (então vigente). “A segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido, pela proteção concedida ao seu elemento gerador.” Um ato assinado pode não ser gerador de direitos adquiridos, mas pode ser gerador de efeitos já consumados, agora intocáveis, por isso mesmo a definição do art. 6º, §1º, da LICC prioriza a expressão “consumado”, para frisar sua diferente função em relação ao direito adquirido.”

Posto isso, conclui-se que o Código de Defesa do Consumidor não tem efeito retroativo pelo mero fato de ser uma norma de ordem pública. O texto constitucional, ao preceituar que a lei nova não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, não faz distinção entre legislações de ordem pública e outras que não possuem essa natureza. Quisesse o ordenamento jurídico nacional recepcionar a retroatividade das leis de ordem pública, deveria, como fez com questões envolvendo a lei penal benéfica ao réu, excepcionar, expressamente, tal situação na própria Constituição Federal. Destarte, os fatos já consumados, perfeitamente concluídos na vigência de normas anteriores à Lei consumerista, não são, de maneira alguma, atingidos por sua força e autoridade legislativa. Poderão, por outro lado, ter significativa influência do Código de Defesa do Consumidor (efeito imediato) aquelas situações não definitivamente concluídas ou os efeitos presentes e futuros decorrentes de fatos já consumados, sempre que disserem respeito a relações de consumo.[xviii]

A mesma argumentação é utilizada para defender a aplicabilidade do novo Código Civil aos efeitos e até mesmo sobre a validade dos contratos celebrados anteriormente à sua vigência:

(…) é adequada à regra sistemática de hermenêutica e, evidentemente, constitucional, a não prevalência das convenções, ainda que firmadas anteriormente à vigência do novo Código, que contrariem preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos para assegurar a função social da propriedade e dos contratos, dês que tais contratos pretéritos ainda estejam pendentes de execução ou com esta em curso sem ainda ter atingido o seu termo final quando da entrada em vigor do Código Civil de 2002.[xix]

Diante dos ensinamentos doutrinários acima apontados, e tendo em vista a natureza e finalidade das normas que passaram a exigir as denominadas CNDTs, imperioso concluir pela possibilidade de se exigir as mencionadas certidões a cada pagamento por serviços executados em função de contratos celebrados anteriormente à inovação legislativa.


Tal conclusão não implicará em retroatividade da nova lei aos contratos anteriores, mas sim em sua aplicabilidade imediata no sentido de que para contratar ou manter-se contratado com a Administração Pública deve-se estar regular com os débitos trabalhistas. Exemplificando: considerar nulos ou irregulares os contratos celebrados ou pagamentos realizados sem as CNDTs antes da vigência da nova lei seria conferir a esta efeito retroativo, o que é vedado. Por outro lado, exigir a certidão para possibilitar a manutenção da relação contratual em face à edição da nova lei é apenas conferir aplicabilidade imediata à novel norma, sem macular ou interferir em atos pretéritos. Esta conclusão é inafastável tendo em vista a teleologia da norma no sentido de que a mesma visa propiciar e conferir maior eficácia a direitos e princípios constitucionais como a valorização do trabalho e a dignidade humana, erigindo, para tal mister, uma nova condição de idoneidade para contratar e se manter contratado pela Administração Pública, conforme exposto alhures.

3.2. Inexistência de afronta ao direito adquirido ou a ato jurídico perfeito – o contrato administrativo como instituição jurídica

Pode haver, indubitavelmente, duas grandes objeções à conclusão acima apontada: (i) que não se trataria de aplicabilidade imediata, mas sim de retroatividade mínima, o que seria vedado e (ii) que o fundamento da exigibilidade de se verificar a regularidade do contratado a cada pagamento é o disposto no artigo 55, inciso XIII, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o qual prevê “a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Assim, como as CNDTs não teriam sido exigidas na licitação ou contratação, não poderiam, agora, ser exigidas a cada pagamento.

Alerte-se, quanto à primeira objeção, que parte da doutrina e da jurisprudência entenderia que o caso vertente trata de retroatividade mínima da norma, tendo em vista que a mesma estaria sendo aplicada aos efeitos futuros de fatos (contratos) passados, o que seria vedado às leis ordinárias por afronta ao direito adquirido ou ato jurídico perfeito. Confira-se, nesse sentido, os ensinamentos do constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF:

(…)

Assim, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que as leis que afetam os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente são retroativas (retroatividade mínima), afetando a causa, que é um fato ocorrido no passado. No RE 188.366, restou assente essa orientação, conforme se pode depreender da síntese contida na ementa do acórdão:

“Mensalidade escolar. Atualização com base em contrato. Em nosso sistema jurídico, a regra de que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por estar inserida no texto da Carta Magna (art. 5º, XXXVI), tem caráter constitucional, impedindo, portanto, que a legislação infraconstitucional, ainda quando de ordem pública, retroaja para alcançar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada, ou que o juiz a aplique retroativamente. E a retroação ocorre ainda quando se pretende aplicar de imediato a lei nova para alcançar os efeitos futuros de fatos passados que se consubstanciem em qualquer das referidas limitações, pois ainda nesse caso há retroatividade – a retroatividade mínima –, uma vez que se a causa do efeito é o direito adquirido, a coisa julgada, ou o ato jurídico perfeito, modificando-se seus efeitos por força da lei nova, altera-se essa causa que constitucionalmente é infensa a tal alteração. Essa orientação, que é firme nesta Corte, não foi observada pelo acórdão recorrido que determinou a aplicação das Leis nºs 8.030 e 8.039, ambas de 1990, aos efeitos posteriores a elas decorrentes de contrato celebrado em outubro de 1989, prejudicando, assim, ato jurídico perfeito. Recurso extraordinário conhecido e provido.”[xx]

No entanto, o caso em tela é bastante diverso. Primeiro não há, verdadeiramente, incidência da nova lei a efeitos dos contratos administrativos anteriores. Não haverá qualquer regulação da norma quanto aos objetos contratuais, prazos, multas, formas de execução ou qualquer outro elemento de sua composição. A lei apenas estabelece, conforme defendido aqui, uma nova condição a ser preenchida por quem desejar manter-se em uma relação jurídica (como contratado) com a Administração Pública.

A inovação legislativa altera, portanto, os requisitos que devem estar presentes para se considerar o contratado como idôneo para manter uma relação jurídica contratual com a Administração. Em outros termos, a lei alterou os requisitos a serem preenchidos para que o contratado se mantenha na situação jurídica de idoneidade para contratar ou se manter contratado com a Administração.

Com efeito, a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos constitui-se na principal fonte normativa do “regime” ou “estatuto” licitatório. Disciplina todos os aspectos dos institutos da licitação e dos contratos administrativos. Encampa, verdadeiramente, um regime jurídico que deverá sempre ser observado. E, dentro deste regime, como um de seus aspectos fundamentais, estão regulados os requisitos mínimos a serem preenchidos para contratar com a Administração (habilitação).

Assim, não se pode negar a aplicabilidade imediata à nova legislação que alterou este “estatuto licitatório” sob a simples alegação de que determinados contratos foram celebrados sob a égide do “regime” anterior, o que macularia o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Afinal, como aponta Gilmar Ferreira Mendes, com apoio em doutrinadores de primeira grandeza, não há que se falar em direito adquirido a uma situação jurídica individual em face da alteração de um estatuto ou regime jurídico:

As duas principais teorias sobre aplicação da lei no tempo – a teoria do direito adquirido e a teoria do fato realizado, também chamada do fato passado – rechaçam, de forma enfática, a possibilidade de subsistência de situação jurídica individual em face de uma alteração substancial do regime ou de um estatuto jurídico.

(…)

O problema relativo à modificação das situações subjetivas em virtude da mudança de um instituto de direito não passou despercebido a CARLOS MAXIMILIANO, que assinala, a propósito, em seu clássico O direito intertemporal, verbis: “Não há direito adquirido no tocante a instituições, ou institutos jurídicos. Aplica-se, logo, não só a lei abolitiva, mas também a que, sem os eliminar, lhes modifica essencialmente a natureza. Em nenhuma hipótese granjeia acolhida qualquer alegação de retroatividade, posto que, às vezes, tais institutos envolvam certas vantagens patrimoniais que, por eqüidade, o diploma ressalve ou mande indenizar.”


Essa orientação básica, perfilhada por nomes de prol das diferentes correntes jurídicas sobre direito intertemporal, encontrou acolhida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se pode depreender de alguns expressivos arestos daquela Alta Corte.

Mencione-se, a propósito, a controvérsia suscitada sobre a resgatabilidade das enfiteuses instituídas antes do advento do Código Civil e que estavam gravadas com cláusula de perpetuidade. Em sucessivos pronunciamentos, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que a disposição constante do art. 693 do Código Civil aplicava-se às enfiteuses anteriormente constituídas, afirmando, igualmente, a legitimidade da redução do prazo de resgate, levada a efeito pela Lei nº 2.437, de março de 1955.

Rechaçou-se, expressamente, então, a alegação de ofensa ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido. Esse entendimento acabou por ser consolidado na Súmula 170 do Supremo Tribunal Federal (“É resgatável a enfiteuse instituída anteriormente à vigência do Código Civil”).

Assentou-se, pois, que a proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito não obstava à modificação ou à supressão de determinado instituto jurídico.

(…)

Vê-se, assim, que o princípio constitucional do direito adquirido não se mostra apto a proteger as posições jurídicas contra eventuais mudanças dos institutos jurídicos ou dos próprios estatutos jurídicos previamente fixados.[xxi]

Em suma, não haverá qualquer incidência da norma nos efeitos futuros dos contratos administrativos anteriores. Haverá, tão somente, a aplicabilidade imediata da norma que alterou o “regime” ou “estatuto” jurídico das contratações públicas no sentido de estipular que mais um requisito deve se fazer presente para que os contratados sejam considerados idôneos a figurar na relação jurídica com a Administração Pública. Não há que se falar, portanto, em retroatividade ou em afronta a direitos adquiridos ou ato jurídico perfeito.

Insta consignar, por oportuno, a natureza peculiar dos contratos administrativos, regulados amplamente pela lei (seu estatuto jurídico) em diversos aspectos inafastáveis pelas partes, o que aproxima tais contratos muito mais à categoria de institutos jurídicos do que a de atos de autonomia da vontade (relações estritamente contratuais).

Esta afirmação é importante para demonstrar, com base na doutrina acima transcrita, que não há que se falar em direito adquirido a situação jurídica individual em face de estatutos ou regimes jurídicos amplamente regulados pela legislação (e que os contratos administrativos estão nesta categoria jurídica), diferentemente do que ocorre nas relações onde se predomina amplamente o princípio da autonomia da vontade:

Tal como destaca BAPTISTA MACHADO, o desenvolvimento da doutrina sobre a aplicação na lei no tempo acaba por revelar especificidades do “estatuto contratual” em face do “estatuto legal”. Enquanto este tem pretensão de aplicação imediata, aqueloutro estaria, em princípio, submetido à lei vigente no momento de sua conclusão, a qual seria competente para o reger até à extinção da relação contratual.

Na lição de BAPTISTA MACHADO, a vontade das partes seria a razão para uma disciplina específica:

O fundamento deste regime específico da sucessão de leis no tempo em matéria de contratos estaria no respeito das vontades individuais expressas nas suas convenções pelos particulares – no respeito pelo princípio da autonomia privada, portanto. O contrato aparece como um acto de previsão em que as partes estabelecem, tendo em conta a lei então vigente, um certo equilíbrio de interesses que será como que a matriz do regime da vida e da economia da relação contratual.

A intervenção do legislador que venha modificar este regime querido pelas partes afecta as previsões destas, transforma o equilíbrio por elas arquitetado e afecta, portanto, a segurança jurídica. Além de que as cláusulas contratuais são tão diversificadas, detalhadas e originais que o legislador nunca as poderia prever a todas. Por isso mesmo não falta quem entenda que uma lei nova não pode ser imediatamenteaplicável às situações contratuais em curso quando do seu início de vigência sem violação do princípio da não retroactividade.”

A segunda possível objeção à tese aqui defendida pode ser assim resumida: o fundamento da exigibilidade de se verificar a regularidade do contratado a cada pagamento é o disposto no artigo 55, inciso XIII, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o qual prevê “a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Assim, como as CNDTs não teriam sido exigidas na licitação ou contratação, não poderiam, agora, ser exigidas a cada pagamento.

Tal objeção não poderia prosperar. A exigibilidade da regularidade não tem apenas este fundamento. Afinal, o que importa (nunca é demais repetir), é verificar a idoneidade do contratado para executar os serviços designados (o que deve ser feito no início e durante a execução contratual). Desta forma, a existência de débitos trabalhistas, assim como ocorre com os débitos de natureza fiscal, podem ocasionar, indubitavelmente, em entraves para a consecução dos fins contratuais[xxii]. Desta forma, o que importa é a manutenção da aptidão para a execução contratual, presumida com a regularidade do contratado. E esta regularidade, agora, também abarca a regularidade trabalhista.

Em outras palavras, se a lei atual (regime ou estatuto jurídico licitatório) considera inidônea para participar de licitação, ou ser contratado diretamente, pessoa jurídica com débitos trabalhistas não quitados, não há razão para manter-se os contratos anteriores sem se exigir a regularidade trabalhista, sob pena de a Administração prolongar ou manter relações negociais com contratados reputados pela atual legislação como inidôneos. Entender o contrário seria admitir a possibilidade de a Administração manter duas classes de contratados: os idôneos e os inidôneos (ou potencialmente inidôneos), tão somente em razão da data da celebração de cada avença, o que se afigura, ao meu sentir, situação desprovida de razoabilidade e lógica.


3.3. Solução de equidade

É claro que se deve estar sensível a eventuais problemas de ordem prática que tal entendimento pode ensejar no âmbito da Administração Pública. Afinal, poderão ser inúmeros os atuais contratantes que não possuem a regularidade trabalhista exigida pela legislação. Diante disso, deve o administrador agir com cautela, levando-se em conta sempre o interesse público. Sugere-se, nesta seara, que se notifique os atuais contratados informando-os da necessidade da demonstração da regularidade trabalhista durante toda a execução contratual em função da exigência legal conferindo-lhes prazo razoável para que providenciem a regularização da sua situação possibilitando-se, assim, os pagamentos e a continuidade da avença. Entendo que este procedimento evitará surpresas aos atuais contratados, propiciando, ao mesmo tempo, a aplicabilidade da nova legislação[xxiii].

4. Exigibilidade da regularidade trabalhista no momento das prorrogações contratuais

Diante do exposto, conclui-se, em razão dos mesmos fundamentos, pela exigibilidade da regularidade trabalhista no momento das prorrogações dos contratos vigentes. Afinal, pelos motivos anteriormente expostos, se é imprescindível a exigência a cada pagamento, com muito mais razão deve se exigir a CNDTs no momento da prorrogação contratual.

Ademais, mesmo para os que entendam que não se deveria exigir as CNDTs a cada pagamento (nos contratos anteriores) a sua exigibilidade no momento da prorrogação seria imperiosa. Afinal, a natureza jurídica da prorrogação contratual é a celebração de uma nova avença, e este “novo” contrato deve ser celebrado nos moldes da legislação atual de regência, especialmente em se tratando de legislação que visa proteger o interesse público e valores constitucionais, conforme já amplamente debatido neste Parecer. Tal conclusão justifica-se, ainda, pelo fato de que nem a Administração nem o contratado têm a obrigação de prorrogar o ajuste.

Assim, a exigência não acarretaria prejuízo a quaisquer das partes, mormente, também, porque não se trata de aspecto econômico do contrato. Caso o contratado não queira ou não possa apresentar a documentação exigida, a Administração deverá promover o procedimento necessário à contratação de outrem para a execução dos serviços, da mesma forma que ocorreria se o interessado simplesmente não pretendesse prorrogar o contrato por quaisquer outros motivos.


5. Conclusões

Ante o exposto, conclui-se:

(i) os requisitos de habilitação são pressupostos de aferição da idoneidade para contratar e manter-se contratado com a Administração Pública;

(ii) em regra, é possível e necessária a aplicação da exigibilidade da CNDT nas contratações diretas da Administração Pública;

(iii) a CNDT pode ser dispensada nas hipóteses de inexigibilidade de licitação em que há apenas um único fornecedor ou prestador de serviço que possa satisfazer às necessidades da Administração, desde que a sua não contratação implique em relevante prejuízo ao interesse público, utilizando-se como critérios norteadores os princípios da proporcionalidade e razoabilidade em cada caso concreto;

(iv) em regra, deve ser exigida a CNDT em todas as contratações realizadas pela Administração Pública, mesmo nas hipóteses de que trata o artigo 32, § 1º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos;

(v) a exigência da CNDT é cabível para todos os tipos de contratação e não apenas as que envolvam terceirização de serviço com cessão de mão de obra;

(vi) as licitações e contratações administrativas são institutos jurídicos regulados por seu respectivo “estatuto” ou “regime” jurídico, diferenciando-se, neste ponto, dos atos em que se predomina amplamente a autonomia da vontade;

(vii) a inovação legislativa (regularidade trabalhista) acresceu mais um elemento que deverá estar presente para reputar-se o contratado como inserto na situação jurídica individual de idôneo para contratar ou manter-se contratado com a Administração;

(viii) não há que se falar em direito adquirido ou afronta a ato jurídico perfeito à manutenção de uma situação jurídica individual em face de estatutos ou regimes jurídicos amplamente regulados pela legislação;

(ix) a inovação legislativa (exigibilidade da regularidade trabalhista) não atinge efeitos futuros de contratos anteriormente celebrados (retroatividade mínima). O que ocorre é apenas a sua aplicabilidade imediata no sentido de que, agora, o regime jurídico licitatório/contratual exige, como requisito de idoneidade para contratar ou manter-se contratado com a Administração, a regularidade trabalhista;

(x) é necessária a consulta à regularidade trabalhista a cada pagamento mesmo nos contratos celebrados anteriormente à vigência da lei que instituiu a regularidade trabalhista e a exigibilidade das CNDTs no âmbito das contratações públicas;

(xi) é possível à Administração conceder prazo razoável para que os atuais contratados promovam a sua regularidade trabalhista antes de se começar a exigi-la; e

(xii) é necessária a consulta da regularidade trabalhista no momento das prorrogações dos contratos administrativos anteriormente celebrados.


Notas

[i] CARVALHO, Greyce Silveira. A exigência de regularidade trabalhista nas licitações. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3102, 29 dez. 2011. Disponível em: <“http://jus.com.br/revista/texto/20744”>.


[ii] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed. 2009. p. 382/383.

[iii] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed. 2009. p.469.

[iv] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed. 2009. p.468.

[v] Nesse sentido, a Orientação Normativa nº 9 da Advocacia-Geral da União, aplicável à regularidade trabalhista mutatis mutandis: “A COMPROVAÇÃO DA REGULARIDADE FISCAL NA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO OU NO PAGAMENTO DE SERVIÇOS JÁ PRESTADOS, NO CASO DE EMPRESAS QUE DETENHAM O MONOPÓLIO DE SERVIÇO PÚBLICO, PODE SER DISPENSADA EM CARÁTER EXCEPCIONAL, DESDE QUE PREVIAMENTE AUTORIZADA PELA AUTORIDADE MAIOR DO ÓRGÃO CONTRATANTE E CONCOMITANTEMENTE, A SITUAÇÃO DE IRREGULARIDADE SEJA COMUNICADA AO AGENTE ARRECADADOR E À AGÊNCIA REGULADORA”.

[vi] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed. 2009. p.470.

[vii] DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Jus Navegandi, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4832″>.

[viii] DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Jus Navegandi, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4832″>.

[ix] Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

[x] Art. 6º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.

[xi] DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Jus Navegandi, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4832″>.

[xii] “Curso de Direito Civil – Parte Geral”, vol. I/32-33, Editora Saraiva, 23ª ed., 1984.

[xiii] “Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Direito Intertemporal. Aplicação Imediata aos Contratos em Curso”. In R. Dout. Jurisp., Brasília, 36, págs. 67/73.

[xiv] Citado por Alex Sandro em: RIBEIRO, Alex Sandro. Retroatividade do art. 2.035 do Código Civil de 2002 aos contratos pretéritos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 602, 2 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6386″>. Acesso em: 13 mar. 2012.

[xv] RIBEIRO, Alex Sandro. Retroatividade do art. 2.035 do Código Civil de 2002 aos contratos pretéritos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 602, 2 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6386″>. Acesso em: 13 mar. 2012.

[xvi] DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Jus Navegandi, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4832″>.

[xvii] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao código civil brasileiro interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 193.

[xviii] DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Jus Navegandi, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4832″>.

[xix] RIBEIRO, Alex Sandro. Retroatividade do art. 2.035 do Código Civil de 2002 aos contratos pretéritos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 602, 2 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6386″>. Acesso em: 13 mar. 2012.

[xx] MENDES, Gilmar Ferreira. Anotações sobre o Princípio do Direito Adquirido Tendo em Vista a Aplicação do Novo Código Civil. Revista Direito Público nº 1 – Jul/Ago-Set/2003-DOUTRINA. Disponível na Internet em: http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/viewFile/501/202.

[xxi] MENDES, Gilmar Ferreira. Anotações sobre o Princípio do Direito Adquirido Tendo em Vista a Aplicação do Novo Código Civil. Revista Direito Público nº 1 – Jul/Ago-Set/2003-DOUTRINA. Disponível na Internet em: http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/viewFile/501/202.

[xxii] Sobre a regularidade fiscal averbou Marçal Justen Filho, em ensinamentos que podem ser aplicados perfeitamente à regularidade trabalhista, por identidade de razão: “Por outro lado a irregularidade fiscal produz o risco de apropriação dos bens do licitante para satisfação de dívidas perante o Fisco. Há uma potencialidade de sobrevir a ausência de qualificação econômico-financeira. (…) Ademais disso, o empresário que não liquida suas obrigações fiscais incorre em custos mais reduzidos, acarretando infração à livre concorrência. Enfim, o sujeito que não satisfaz suas obrigações perante o Fisco não pode ser reputado como idôneo e confiável, não merecendo tratamento equivalente ao reservado para aquele que cumpre os seus deveres para com a coletividade.” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed. 2009. p.470.).

[xxiii] Esta providência é legítima e recomendável tendo em vista a doutrina de Savigny no sentido de que, em se tratando de alteração de estatutos ou regimes jurídicos, os prejuízos aos detentores da antiga situação jurídica alterada pela nova lei pode ser minorado com regras de transição ou compensações, por razão de equidade.


Autor

Marcelo Lopes Santos

Procurador da Fazenda Nacional, lotado na Coordenação Jurídica de Licitações e Contratos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional em Brasília/DF. Especialista em Direito Público. Ex-Procurador Federal, ex-Analista Judiciário do Superior Tribunal de Justiça, ex-Advogado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.

NBR 6023:2002 ABNT: SANTOS, Marcelo Lopes. Aspectos relevantes das Certidões Negativas Trabalhistas nos contratos administrativos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3190, 26 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21351>. Acesso em: 27 mar. 2012.


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Os princípios de interpretação constitucional e sua utilização pelo Supremo Tribunal Federal


A partir da Constituição de 1988, promulgada sob o pós-positivismo, as normas constitucionais adquiriram status de normas jurídicas. Todos os ramos do Direito tiveram seus contornos revistos para adequá-los aos princípios e às normas constitucionais.


O momento atual do Direito, denominado de pós-positivismo, é caracterizado pela a valorização dos princípios, com sua incorporação, explícita ou implícita, pelas Constituições, bem como o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na Lei Maior. O Direito se reaproxima da ética e é consagrada a supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, ganha destaque a análise dos novos métodos utilizados para a interpretação das normas constitucionais, que, como veremos a seguir, tiveram como fundamento a idéia da efetividade da Constituição.

No entanto, é importante esclarecer que a nova interpretação constitucional não representa o afastamento dos métodos tradicionais de hermenêutica na busca do sentido e do alcance da norma jurídica visando sua aplicação aos casos concretos. Ela, na verdade, vem para complementá-los. Por isso, dedicamos a primeira parte do nosso trabalho à questão da interpretação dos textos normativos, abordando brevemente os métodos tradicionais de hermenêutica, para em seguida estudar os princípios de interpretação constitucional.

Para que o objeto do nosso trabalho não ficasse restrito à teoria, foram colacionadas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais foram utilizados os princípios de interpretação constitucional, demonstrando a importância do estudo dessa matéria no cenário jurídico atual.


1. A interpretação dos textos normativos

Todos os dispositivos legais são objeto de interpretação pelos operadores do Direito.

A interpretação transforma textos normativos em normas jurídicas1, viabilizando sua aplicação para as situações que se apresentarem em concreto.

Eros Roberto Grau, ao se debruçar sobre o tema da interpretação e aplicação do Direito, faz a seguinte consideração:

“A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em normas.

Daí, como as normas resultam da interpretação, o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, um conjunto de normas.

O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky].

O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem [Ruiz e Cárcova] “2.

Celso Ribeiro Bastos afirma que “a interpretação faz o caminho inverso daquele feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só é factível procurando atribuir o exato significado à norma”3.

Ainda com relação à interpretação e aplicação do Direito, é importante trazer à lume o pensamento de Carlos Maximiliano:

“A Aplicação não prescinde da Hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose. Em erro também incorre quem confunde as duas disciplinas: uma, a Hermenêutica, tem um só objeto – a lei; a outra, dois – o Direito, no sentido objetivo, e o fato. Aquela é um meio para atingir a esta; é um momento da atividade do aplicador do Direito. Pode a última ser o estudo preferido do teórico; a primeira, a Aplicação, revela o adaptador da doutrina à prática, da ciência à realidade: o verdadeiro jurisconsulto”4.

Paulo de Barros Carvalho consigna que “a aplicação do direito pressupõe a interpretação, e esse vocábulo há de ser entendido como a atividade intelectual que se desenvolve à luz de princípios hermenêuticos, com a finalidade de construir o conteúdo, o sentido e o alcance das regras jurídicas”5.

Importante grifar que mesmo o mais claro dos dispositivos legais deve ser objeto de interpretação, como ressalta Carlos Maximiliano:

“(…) Os domínios da Hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”6. (grifado no original)

Nesse sentido é o ensinamento de Celso Ribeiro Bastos, ao se opor ao brocardo jurídico in claris cessat interpretatio:

“(…) Todas as normas necessitam de interpretação, mesmo porque para afirmar que a interpretação cessa diante da clareza do dispositivo, é dizer, para concluir-se que esse dispositivo é claro, necessita-se da interpretação. (…)”7.

A finalidade mais relevante da produção da norma jurídica, resultante da interpretação do texto legal, é a sua aplicação num caso concreto e isso ocorrerá mediante uma decisão judicial ou administrativa, denominada por Eros Roberto Grau de “norma de decisão”8.


Cabe deixar consignado que não é somente na atividade jurisdicional que as normas de decisão anteriormente referidas são produzidas, sendo recorrentes também em âmbito administrativo. Por outro lado, deve-se atentar para o fato de que as normas de decisão produzidas na instância administrativa podem ser questionadas na via judicial, o que ensejará a construção de uma nova norma de decisão, agora pelo Poder Judiciário.

A produção da norma de decisão é o ponto máximo do processo de interpretação, momento em que ocorre a concretização do Direito com a solução do conflito apresentado numa situação concreta. Todos os operadores do Direito estão aptos a transformar um enunciado legal numa norma jurídica, utilizando-se, para tanto, das regras de hermenêutica, mas poucos possuem o poder-dever de produzir a norma de decisão.

“(…) Este, que está autorizado a ir além da interpretação tão-somente como produção das normas jurídicas, para dela extrair normas de decisão, é aquele que Kelsen chama de ‘intérprete autêntico’: o juiz”9.

A respeito dessa questão, observa André Ramos Tavares:

“A aplicação é o ‘momento’ em que se atribui, ao problema concreto, uma decisão oficial dotada de normatividade. Nesse sentido, a aplicação, como aqui trabalhada, há de ser apenas aquela realizada pelos órgãos estatais competentes para construir as normas individuais, normas de decisão. E, ademais, a aplicação depende, como mencionado, de um sujeito juridicamente autorizado/reconhecido (em nome do Legislativo, Executivo ou Judiciário) para adotar uma decisão com caráter preceptivo, que coloque o texto normativo e sua interpretação em contato com o problema que demanda uma solução juridicamente adequada”10. (grifado no original)

Cabe ressaltar que a interpretação realizada por aqueles a quem não foi atribuída a função de produzir uma norma de decisão, e, portanto, não tem como objetivo a solução de um conflito concreto, se funda na introdução hipotética de um conflito, baseado nas experiências do cotidiano forense. Essa forma de interpretação, denominada de discurso jurídico, não vincula terceiros, enquanto a norma de decisão produzida pelo juiz ou pela autoridade administrativa, em razão de sua natureza impositiva, é designada de discurso de Direito11.

A hermenêutica jurídica propõe métodos de interpretação que devem ser aplicados conjuntamente. São eles: o literal ou gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico.

O método literal ou gramatical recomenda que o intérprete analise a construção gramatical contida no preceito a partir da significação de cada palavra do texto, retirando daí o seu significado. De acordo com o método histórico, devem ser investigadas as origens da produção da norma, a realidade subjetiva e objetiva que se fazia presente naquele momento, os debates que a antecederam, alcançando, assim, a vontade do legislador. A orientação do método sistemático é no sentido de buscar a significação da norma dentro do ordenamento jurídico, utilizando-se, nesse momento, das regras de subordinação e de coordenação que regem a coexistência das regras, bem como comparando o dispositivo a ser interpretado com outros do mesmo repositório ou contidos em leis diversas, referentes ao mesmo objeto12. Por fim, o método teleológico privilegia a análise da razão de ser dessa norma, seu espírito e sua finalidade, o valor ou bem jurídico que o preceito busca proteger13.

Ainda no tocante ao método teleológico, cabe lembrar o teor do art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (denominada anteriormente de Lei de Introdução ao Código Civil), in verbis: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Carlos Maximiliano defende que os fatores sociais também devem influir no trabalho do intérprete:

“A interpretação sociológica atende cada vez mais às conseqüências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto; quanto possível busca uma solução benéfica e compatível com o bem geral e as idéias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana (…)”14. (grifado no original)

Como vimos, para a interpretação do Direito considera-se insuficiente a mera leitura do texto legal, que constitui apenas o momento inicial deste processo intelectivo. Deve haver sua contextualização com a totalidade do ordenamento jurídico, além do conhecimento a respeito de sua finalidade. Nesse mister, ganha cada vez mais importância a questão dos princípios, tanto expressos como implícitos, que conferem harmonia ao nosso sistema jurídico.

“Princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, ou, se se preferir, o verdadeiro alicerce deste. Trata-se de disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência. O princípio, ao definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, acaba por lhe conferir a tônica e lhe dar sentido harmônico”15.

De acordo com a definição de José Afonso da Silva, “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”16.

Portanto, a interpretação dos textos legais deve sempre levar em consideração os princípios. Segundo afirma Eros Roberto Grau, “a interpretação do direito é dominada pela força dos princípios”17:

“Os princípios atuam como mecanismo de controle da produção de normas pelo intérprete, ainda que o próprio intérprete produza as normas-princípio. Aqui não há, contudo, contradição, na medida que os princípios atuam como a medida do controle externo da produção de normas. Além disso, a escolha do princípio há de ser feita, pelo intérprete, sempre diante de um caso concreto, a partir da ponderação do conteúdo do próprio princípio; (…)”18. (grifado no original)

Nesse mesmo sentido é o ensinamento de Rizzatto Nunes:

“Nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas”19.


Prossegue o referido autor:

“Percebe-se, assim, que os princípios exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, uma vez que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral. Por terem essa qualidade, os princípios dão coesão ao sistema jurídico, exercendo excepcional valor aglutinante”20.

A partir do exercício de interpretação e aplicação, o Direito é concretizado, sendo inserido na realidade social. Ao interpretar um enunciado, o operador do Direito escolhe, dentre as várias possibilidades de interpretações, aquela que ele reputa mais adequada, mais justa diante do caso concreto. Em face dessa realidade, Eros Roberto Grau consigna que a interpretação/aplicação do Direito não é uma ciência, mas sim o exercício da prudência.

“Cogitam os que não são intérpretes autênticos, quando do direito tratam, da juris prudentia, e não de uma juris scientia; o intérprete autêntico, ao produzir normas jurídicas, pratica a juris prudentia, e não juris scientia.

(…)

Daí por que afirmo que a problematização dos textos normativos não se dá no campo da ciência: ela se opera no âmbito da prudência, expondo o intérprete autêntico ao desafio desta, e não daquela. São distintos, um e outro: na ciência, o desafio de, no seu campo, existirem questões para as quais ela (a ciência) ainda não é capaz de conferir respostas; na prudência, não o desafio da ausência de respostas, mas da existência de múltiplas soluções corretas para uma mesma questão [Adomeit]”21. (grifado no original)

O juiz, ao produzir a norma de decisão, completa a criação do legislador. Portanto, não é correto afirmar que o juiz cria o Direito. Na verdade, o juiz concretiza o Direito ao final de um processo intelectivo consistente em compreender o enunciado legislativo e os fatos trazidos à sua apreciação, produzir as normas possíveis para a solução do caso e escolher aquela que no seu entender é a mais adequada para aquela situação.

“O texto, preceito, enunciado normativo é alográfico. Não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A ‘completude’ do texto somente é realizada quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete”22. (grifado no original)

Traçadas as primeiras linhas a respeito da interpretação dos textos normativos que, repetimos, tem como finalidade precípua a aplicação do direito ao caso concreto, analisaremos no próximo item as técnicas específicas empregadas para a interpretação dos dispositivos constitucionais.


2. Os princípios de interpretação constitucional

A Constituição Federal de 1988 consolidou os ideais do pós-positivismo delineados no início do nosso trabalho. São eles: a) a valorização dos princípios, com sua incorporação, explícita ou implícita, pelo texto constitucional; b) o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na Lei Maior; c) a reaproximação do Direito e da ética e d) a consagração da supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana.

Importante registrar que, a partir de sua entrada em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, concretizou-se o entendimento de que a interpretação de qualquer dispositivo legal deveria partir da Constituição Federal e essa concepção causou impactos em todos os ramos do Direito, que passaram a ter seus contornos revistos para adequá-los aos ditames trazidos pela Lei Maior.

Adentrando ao objeto do nosso estudo, que é a interpretação dos enunciados contidos na Constituição Federal, cabe trazer à lume o ensinamento de José Afonso da Silva:

“A interpretação é um modo de conhecimento de objetos culturais. Quando esse objeto se compõe de palavras, tem-se a interpretação de um texto que é, ao mesmo tempo, um objeto de significações e um objeto de comunicação, cujo sentido se capta mediante análise interna e análise externa. Ou seja, o sentido do texto se reconstrói de duas perspectivas distintas e complementares: de dentro para fora, a partir da análise interna das muitas pistas neles espalhadas; de fora para dentro, por meio das relações contextuais. A Constituição é um texto, um texto normativo, um texto jurídico, por isso a sua interpretação, ou seja, a captação de seu sentido, a descoberta das normas que esse texto veicula, também se submete às relações de contexto. Ela é um texto que está no mundo, independente daqueles que a captam. A percepção que cada um tem dela é considerada separadamente dela própria. De igual modo, as intenções de seu autor – o constituinte – são consideradas separadas dela, porque ela é, em si mesma, um ser, um ser com seus próprios poderes e a sua dinâmica, um ser autônomo. A tarefa do intérprete é como a de alguém que penetra nesse ser autônomo, por meios da análise textual. E já se vê que a interpretação tem um aspecto objetivo, que se refere ao objeto a ser interpretado, e um aspecto subjetivo, que se refere às qualificações e ideologia do intérprete, porque este não é neutro no processo interpretativo, porque nele participa com a carga de experiência, de conhecimentos, cultura e ideologia que informam sua formação jurídica”23. (grifado no original)

Apesar de sua posição superior na estrutura do ordenamento jurídico, constituindo fundamento de validade para as regras hierarquicamente inferiores, a Constituição é uma lei e, portanto, seu texto também deve ser interpretado, utilizando-se para tanto das mesmas técnicas aplicadas às normas jurídicas em geral.

Luís Roberto Barroso destaca que as regras contidas na Constituição Federal não passam apenas pelo processo de interpretação, mas também pelo processo de construção:

“(…) Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou esquema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a alcançar situações que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas”24.


Com relação à linguagem utilizada no texto constitucional, afirma o referido autor:

“Já se deixou consignado, anteriormente, que uma das singularidades das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitucional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de interesse local, dignidade da pessoa humana). É justamente dessa abertura de linguagem que resultam construções como: (a) legitimados os fins, também estarão os meios necessários para atingi-los; (b) se a letra da norma assegura o direito a mais, está implícito o direito a menos; (c) o devido processo legal abriga a idéia de procedimento adequado e de razoabilidade substantiva (…)”25. (grifado no original)

Ademais, em razão das especificidades inerentes às regras constitucionais, dentre as quais citamos a superioridade hierárquica, a linguagem diferenciada e o seu caráter político, foram desenvolvidos princípios próprios de interpretação.

Importante grifar que a expressão “princípios” acima utilizada deve ser compreendida como premissas metodológicas que estão à disposição do intérprete na busca da adequada solução para uma questão jurídica. Além disso, esses princípios devem ser utilizados conjuntamente, da mesma forma como ocorre com os métodos interpretativos tradicionais.

Com relação aos princípios de interpretação constitucional, assinala Inocêncio Mártires Coelho:

“Quanto à sua função dogmática, deve-se dizer que embora se apresentem como enunciados lógicos e, nessa condição, pareçam anteriores aos problemas hermenêuticos que, afinal, ajudam a resolver, em verdade e quase sempre os princípios da interpretação funcionam como fórmulas persuasivas, das quais se valem os aplicadores do direito para justificar pré-decisões que, mesmo necessárias ou convenientes, sem o apoio desses cânones interpretativos se mostrariam arbitrárias ou desprovidas de fundamento.

Não por acaso já se proclamou que essa disponibilidade de métodos e princípios potencializa a liberdade do juiz, a ponto de lhe permitir antecipar as decisões – à luz da sua pré-compreensão sobre o que é justo em cada situação concreta – e só depois buscar os fundamentos de que precisa para dar sustentação discursiva a essas soluções puramente intuitivas, num procedimento em que as conclusões escolhem as premissas e os resultados selecionam os meios”26. (grifado no original)

A seguir, estudaremos os princípios de interpretação constitucional reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência.

2.1. Princípio da supremacia da Constituição

Esse princípio consagra a prevalência da norma constitucional, independentemente de seu conteúdo, sobre todas as outras regras existentes no sistema jurídico.

Por força da posição hierárquica superior ocupada pela Constituição, as leis, os atos normativos e os atos jurídicos em geral somente serão válidos se forem compatíveis com as normas constitucionais[27]. Ademais, é importante lembrar que a Constituição, além de regular a forma de produção das demais regras jurídicas, também delimita o conteúdo dessas regras.

Ainda em razão desse princípio, impõe-se que a interpretação de todo o ordenamento jurídico deve ser feita a partir da Constituição, como afirma Nelson Nery Júnior:

“O intérprete deve buscar a aplicação do direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema”28.

Cabe destacar que é o princípio da supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico que fundamenta o controle de constitucionalidade no plano concreto (controle difuso) e abstrato (controle concentrado).

“(…) É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma constitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta)”29. (grifado no original)

Impende, por fim, transcrever trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário 107869/SP, no qual foi mencionado expressamente o princípio ora estudado:

“O princípio da supremacia da ordem constitucional – consectário da rigidez normativa que ostentam os preceitos de nossa Constituição – impõe ao Poder Judiciário, qualquer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis ou atos estatais reputados em conflito com a Carta Federal.

A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado. Dentro dessa concepção, reveste-se de nulidade o ato emanado do Poder Público que vulnerar os preceitos inscritos na Constituição. Uma lei inconstitucional é uma lei nula, desprovida, consequentemente, no plano jurídico, de qualquer conteúdo eficacial.

(…)

A convicção dos juízes e tribunais, de que uma lei ou ato do Poder Público é inconstitucional, só pode levá-los, no plano decisório, a uma única formulação: o reconhecimento de sua invalidez e a recusa de sua aplicabilidade”30.


2.2. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público

De acordo com esse princípio, as leis e os atos normativos em geral são reputados constitucionais, somente perdendo sua validade e eficácia mediante a declaração judicial em contrário obtida no controle concentrado de constitucionalidade ou por força de Resolução do Senado Federal, na hipótese de a inconstitucionalidade ter sido reconhecida incidentalmente por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Importante salientar que um ato normativo apenas poderá ser declarado inconstitucional se sua desconformidade com a Constituição for patente e se constatar que não há nenhuma forma de interpretá-lo de maneira a torná-lo compatível com a Lei Maior.

No intuito de demonstrar a aplicação deste princípio pelo Supremo Tribunal Federal, colacionamos o acórdão proferido no julgamento do Inquérito 1864/PI:

“INQUÉRITO. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PARLAMENTAR FEDERAL. PAGAMENTO INTEGRAL DO DÉBITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. REMESSA DOS AUTOS AO JUÍZO FEDERAL COMPETENTE, PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO EM RELAÇÃO AOS CO-RÉUS. 1. O art. 9º da Lei n° 10.684/03 goza de presunção de constitucionalidade, não obstante esteja em tramitação nesta Corte ação direta de inconstitucionalidade, sem pedido de liminar. 2.Comprovado nos autos, através de ofício da Procuradoria Federal Especializada, o pagamento integral do débito imputado ao parlamentar federal indiciado, é imperativo o reconhecimento da extinção da pretensão punitiva estatal. 3. Denúncia não recebida em relação ao parlamentar, por estar extinta a punibilidade dos fatos a ele imputados, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei n° 10.684/03. 4. Os autos devem ser remetidos ao juízo federal competente da Seção Judiciária do Piauí, para regular prosseguimento em relação aos co-réus”31.

Segundo Luís Roberto Barroso, “o princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, notadamente das leis, é uma decorrência do princípio geral da separação dos Poderes e funciona como fator de autolimitação da atividade do Judiciário, que, em reverência à atuação dos demais Poderes, somente deve invalidar-lhes os atos diante de casos de inconstitucionalidade flagrante e incontestável”32.

Esse princípio, portanto, cria uma limitação para o Poder Judiciário no controle de constitucionalidade, prestigiando a independência e harmonia dos Poderes, pois confere maior efetividade aos atos normativos produzidos pelos Poderes Executivo e Legislativo.

2.3. Princípio da interpretação conforme a Constituição

De início, cabe frisar a dupla natureza da interpretação conforme a Constituição: a de princípio de interpretação e a de técnica empregada no controle de constitucionalidade[33]. Registre-se que, quando utilizada no controle de constitucionalidade, essa técnica é denominada de “declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”.

Como método de interpretação, esse princípio sugere que, diante de mais de uma interpretação possível da norma infraconstitucional, o intérprete escolha aquela que esteja em conformidade com a Constituição, “ainda que não seja a que mais obviamente decorra do seu texto”34.

Inocêncio Mártires Coelho ressalta que esse princípio concretiza uma regra de prudência política, que também pode ser entendida como política constitucional. No entanto, faz o autor o seguinte alerta:

“Essa prudência, por outro lado, não pode ser excessiva, a ponto de induzir o intérprete a salvar a lei à custa da Constituição, nem tampouco contrariar o sentido inequívoco da lei, para constitucionalizá-la de qualquer maneira. No primeiro caso porque isso implicaria interpretar a Constituição conforme a lei, e, assim, subverter a hierarquia das normas; no segundo, porque toda a conformação exagerada implica, no fundo, usurpar tarefas legislativas e transformar o intérprete em legislador, na exata medida em que a lei resultante dessa interpretação conformadora, em sua letra como no seu espírito, seria substancialmente distinta daquela resultante do trabalho legislativo.

Afinal de contas, em sede de controle de constitucionalidade, como todos sabem, os tribunais devem comportar-se como legisladores negativos, anulando as leis contrárias à Constituição, quando for o caso, e jamais como produtores de normas, ainda que por via interpretativa”35. (grifado no original)

No julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 581/DF, que teve por objeto a parte final do parágrafo 1º do inciso I do art. 3º da Lei nº 8.215/1991, que tratava da promoção por merecimento dos Juízes do Trabalho, o Supremo Tribunal Federal utilizou esse princípio para julgar parcialmente procedente a ação, declarando a constitucionalidade deste dispositivo nos termos da interpretação conferida pela Corte Suprema, afastando, por força da inconstitucionalidade, qualquer outra exegese que a contrariasse.

Neste julgamento, o Ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto, faz a seguinte consideração a respeito deste princípio:

“(…) o princípio da interpretação conforme a Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a partir de sua concreta incidência, a integridade do ato do Poder Público no sistema do direito positivo. Essa função conservadora da norma permite que se realize, sem redução do texto, o controle de sua constitucionalidade (…)”36.

Esse princípio reforça o conteúdo dos outros dois princípios de interpretação anteriormente mencionados, quais sejam, o da supremacia da Constituição e o da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público.

2.4. Princípio da unidade da Constituição

A orientação contida nesse princípio é no sentido da inexistência de hierarquia nem de contradição entre as normas previstas na Constituição. Determina, ainda, que a Constituição precisa ser compreendida em sua unidade, ou seja, o intérprete não pode obter o significado de um enunciado contido na Constituição de forma isolada, mas contextualizada dentro do ordenamento constitucional.


Ao se dedicar ao estudo desse princípio, Luís Roberto Barroso tece o seguinte comentário:

“A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga ‘o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador’.

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas (…)”37. (grifado no original)

Transcreve-se abaixo trecho do acórdão proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2650/DF, no qual há expressa menção ao princípio ora estudado:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 7º da Lei 9.709/98. Alegada violação do art. 18, § 3º, da Constituição. Desmembramento de estado-membro e município. Plebiscito. Âmbito de consulta. Interpretação da expressão “população diretamente interessada”. População da área desmembranda e da área remanescente. Alteração da Emenda Constitucional nº 15/96: esclarecimento do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios. Interpretação sistemática. Aplicação de requisitos análogos para o desmembramento de estados. Ausência de violação dos princípios da soberania popular e da cidadania. Constitucionalidade do dispositivo legal. Improcedência do pedido. 1. Após a alteração promovida pela EC 15/96, a Constituição explicitou o alcance do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios e, portanto, o significado da expressão “populações diretamente interessadas”, contida na redação originária do § 4º do art. 18 da Constituição, no sentido de ser necessária a consulta a toda a população afetada pela modificação territorial, o que, no caso de desmembramento, deve envolver tanto a população do território a ser desmembrado, quanto a do território remanescente. Esse sempre foi o real sentido da exigência constitucional – a nova redação conferida pela emenda, do mesmo modo que o art. 7º da Lei 9.709/98, apenas tornou explícito um conteúdo já presente na norma originária. 2. A utilização de termos distintos para as hipóteses de desmembramento de estados-membros e de municípios não pode resultar na conclusão de que cada um teria um significado diverso, sob pena de se admitir maior facilidade para o desmembramento de um estado do que para o desmembramento de um município. Esse problema hermenêutico deve ser evitado por intermédio de interpretação que dê a mesma solução para ambos os casos, sob pena de, caso contrário, se ferir, inclusive, a isonomia entre os entes da federação. O presente caso exige, para além de uma interpretação gramatical, uma interpretação sistemática da Constituição, tal que se leve em conta a sua integralidade e a sua harmonia, sempre em busca da máxima da unidade constitucional, de modo que a interpretação das normas constitucionais seja realizada de maneira a evitar contradições entre elas. Esse objetivo será alcançado mediante interpretação que extraia do termo “população diretamente interessada” o significado de que, para a hipótese de desmembramento, deve ser consultada, mediante plebiscito, toda a população do estado-membro ou do município, e não apenas a população da área a ser desmembrada (…)”38.

(grifos nossos)

Por força desse princípio interpretativo, afirma-se em casos de colisão de preceitos constitucionais que há conflito “aparente” de normas.

Esse conflito “aparente” de normas constitucionais foi apreciado no julgamento dos agravos regimentais interpostos por associações e sindicatos representativos de servidores municipais em face da suspensão de segurança concedida ao Município de São Paulo, suspendendo a eficácia das liminares proferidas pelo Tribunal de Justiça, que impediam a divulgação da remuneração bruta dos servidores no sítio eletrônico denominado “De Olho nas Contas”. Neste caso, o princípio da publicidade dos atos administrativos prevaleceu sobre o direito á intimidade, vida privada e segurança dos servidores municipais:

“SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos”39. (grifos nossos)

Para que seja mantida a unidade da Constituição, o intérprete poderá utilizar outros princípios instrumentais, como, por exemplo, o da concordância prática ou da harmonização, o da justeza ou correção funcional, e o da eficácia integradora, que abordaremos a seguir.


2.5. Princípio da concordância prática ou da harmonização

Segundo esse princípio, na hipótese de conflito entre bens e valores constitucionalmente protegidos, o intérprete deve preferir a solução que favoreça a realização de todos eles, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros.

A denominação “concordância prática” decorre da compreensão de que apenas é possível realizar essa coordenação dos bens e valores envolvidos num conflito no momento da aplicação do direito ao caso concreto. Neste diapasão, é possível concluir que a prevalência de um bem ou um valor será decidida diante de cada situação submetida ao Poder Judiciário, do que se depreende que cada caso poderá ser resolvido de forma diversa.

De acordo com o ensinamento de Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, essa técnica de ponderação de interesses, bens, valores e normas ocorre em três etapas: a) na primeira, o intérprete encontrará as normas aptas a solucionar o caso, identificando os possíveis conflitos entre elas; b) a segunda etapa é voltada para o exame dos fatos concretos e sua relação com as normas selecionadas na primeira etapa; e c) na terceira e última etapa há a concretização da ponderação, momento no qual serão decididos os pesos que devem ser conferidos aos elementos em conflito e, consequentemente, quais normas devem preponderar neste caso. Por fim, cabe definir a intensidade da prevalência das normas aplicadas sobre as demais, caso seja possível graduar essa intensidade40.

Eros Roberto Grau faz as seguintes considerações com relação aos eventuais conflitos que podem ocorrer entre princípios constitucionais, descrevendo pormenorizadamente os efeitos decorrentes do exercício da ponderação:

“Em conseqüência, quando em confronto dois princípios, um prevalecendo sobre o outro, as regras que dão concreção ao que foi desprezado são afastadas: não se dá a sua aplicação a determinada hipótese, ainda que permaneçam integradas, validamente (isto é, dotadas de validade), no ordenamento jurídico. As regras que dão concreção ao princípio desprezado, embora permaneçam plenas de validade, perdem eficácia – isto é, efetividade – em relação à situação diante da qual o conflito entre princípios manifestou-se.

E o que torna tudo mais complexo, portanto mais belo: inexiste no sistema qualquer regra ou princípio a orientar o intérprete a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles estabelecido, deve ser privilegiado, qual deve ser desprezado.

(…)

O momento da atribuição de peso maior a um determinado princípio é extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de uma das soluções corretas, no elenco das possíveis soluções corretas a que a interpretação jurídica pode conduzir – pondera-se o direito em seu todo, desde o texto da Constituição aos mais singelos atos normativos, como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato – as circunstâncias peculiares do problema considerado – e jurídicas – lingüísticas, sistêmicas e funcionais -, são então descortinadas. E, paradoxalmente, é precisamente o fato de o intérprete estar vinculado, retido, pelos princípios que torna mais criativa a prudência que pratica”41.

O método interpretativo ora estudado tem sido muito utilizado pelo Poder Judiciário. Entre os temas que demandam a ponderação de valores estão, por exemplo, a liberdade de expressão e o direito à informação colidindo com o direito à honra, à imagem e à inviolabilidade da vida privada; a questão da relativização da coisa julgada, que gera o conflito entre o princípio da segurança jurídica e valores relevantes como a justiça, os direitos da personalidade, etc.

Visando elucidar o que foi dito acima, colacionamos o acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 363889/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos”42.

Impende transcrever a crítica formulada por Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos a respeito da utilização deste princípio de interpretação:

“(…) No estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial. Tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer. A existência de ponderação não é um convite para o exercício indiscriminado de ativismo judicial. O controle de legitimidade das decisões obtidas mediante ponderação tem sido feito através do exame da argumentação desenvolvida. Seu objetivo, de forma bastante simples, é verificar a correção dos argumentos apresentados em suporte de uma determinada conclusão ou ao menos a racionalidade do raciocínio desenvolvido em cada caso, especialmente quando se trate do emprego da ponderação”43. (grifado no original)

Dessa forma, quando a situação concreta exigir a utilização da técnica da ponderação, para verificar se a solução escolhida dentre as várias interpretações possíveis é, de fato, a mais adequada, torna-se imprescindível o exame da argumentação adotada.


A argumentação adquire relevância na interpretação constitucional em razão do caráter aberto de muitas normas, o que implica numa margem maior de subjetividade por parte do intérprete.

Cabe destacar, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, em razão de sua magnitude dentro do direito constitucional brasileiro, sempre prevalecerá sobre todo o ordenamento jurídico, não se submetendo à técnica de ponderação.

Trazemos, por fim, o pensamento de Rizzatto Nunes a respeito da aplicação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana:

“Está mais do que na hora de o operador do Direito passar a gerir sua atuação social pautado no princípio fundamental estampado no texto magno. Aliás, é um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o princípio da dignidade da pessoa humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas”44. (grifado no original)

2.6. Princípio da justeza ou da correção funcional

Por força desse princípio, o intérprete dos enunciados constitucionais não pode aceitar significados que subvertam ou perturbem o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo Poder Constituinte originário. Neste contexto, podemos afirmar que uma das premissas do processo de interpretação das normas constitucionais é o princípio da separação de poderes, consagrado no art. 2º da Lei Maior.

No julgamento do RE 358315/MG, cujo acórdão transcrevemos abaixo, é possível verificar a aplicação desse princípio:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. ANÁLISE SOBRE O FURTO E O ROUBO. CONCURSO DE PESSOAS. PROPORCIONALIDADE ENTRE AS RESPECTIVAS PENAS. Sob o pretexto de ofensa ao artigo 5º, caput, da Constituição Federal (princípios da igualdade e da proporcionalidade), não pode o Judiciário exercer juízo de valor sobre o quantum da sanção penal estipulada no preceito secundário, sob pena de usurpação da atividade legiferante e, por via de conseqüência, incorrer em violação ao princípio da separação dos poderes. Ao Poder Legislativo cabe a adoção de política criminal, em que se estabelece a quantidade de pena em abstrato que recairá sobre o transgressor de norma penal. Recurso Extraordinário conhecido e desprovido”45.

A preocupação com a preservação do princípio da separação de poderes também é retratada no trecho do acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 388312/MG:

“(…) Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário autorizar a correção monetária da tabela progressiva do imposto de renda na ausência de previsão legal nesse sentido. Entendimento cujo fundamento é o uso regular do poder estatal de organizar a vida econômica e financeira do país no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo (…)”46.

2.7. Princípio da eficácia integradora

De acordo com a orientação contida nesse princípio, na solução de problemas jurídicos-constitucionais, deve o intérprete preferir os critérios que favoreçam a integração política e social.

Ao analisar a premissa interpretativa ora estudada, Inocêncio Mártires Coelho faz a seguinte ressalva:

“Em que pese a indispensabilidade dessa integração para a normalidade constitucional, nem por isso é dado aos aplicadores da constituição subverter-lhe a letra e o espírito para alcançar esse objetivo a qualquer custo, até porque, à partida, ela se mostra submissa a outros valores, desde logo reputados fundamentais – como a dignidade humana, a democracia e o pluralismo, por exemplo, – que precedem a sua elaboração, nela se incorporam e, afinal, seguem dirigindo a sua interpretação”47.

5.2.8. Princípio da força normativa da Constituição

A recomendação desse cânone interpretativo é que seja escolhida, entre as interpretações possíveis, aquela que confira maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.

As normas constitucionais, da mesma forma que as normas jurídicas em geral, possuem o atributo da imperatividade e, portanto, devem ser observadas, sob pena de ativação de mecanismos próprios para seu cumprimento forçado. Cabe principalmente ao Poder Judiciário assumir essa função de concretizador das normas constitucionais, conferindo a essas normas a máxima efetividade que delas pode ser extraída.


Os trechos dos acórdãos abaixo colacionados são bastante elucidativos deste princípio interpretativo:

“ (…) A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. – O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional – transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. – A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. – A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes (…)”48. (grifos nossos)

“(…) 1. O artigo 196 da CF impõe o dever estatal de implementação das políticas públicas, no sentido de conferir efetividade ao acesso da população à redução dos riscos de doenças e às medidas necessárias para proteção e recuperação dos cidadãos. 2. O Estado deve criar meios para prover serviços médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, além da implementação de políticas públicas preventivas, mercê de os entes federativos garantirem recursos em seus orçamentos para implementação das mesmas. (arts. 23, II, e 198, § 1º, da CF). 3. O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional. (…)”49.

Importante registrar por fim, que o Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que em casos excepcionais o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública implemente políticas públicas e direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes50.

2.9. Princípio da máxima efetividade ou da eficiência

Este princípio está intimamente ligado ao princípio da força normativa da Constituição, acima descrito, e dispõe que deve ser atribuído a um enunciado contido na Constituição o significado que lhe conceda maior efetividade.

“(…) Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador”51. (grifado no original)

Celso Ribeiro Bastos define esse cânone interpretativo da seguinte forma:

“O postulado é válido na medida em que por meio dele se entenda que não se pode empobrecer a Constituição. O que efetivamente significa esse axioma é o banimento da idéia de que um artigo ou parte dele possa ser considerado sem efeito algum, o que equivaleria a desconsiderá-lo mesmo. Na verdade, neste ponto, acaba por ser um reforço do postulado da unidade da Constituição. Não se pode esvaziar por completo o conteúdo de um artigo, qualquer que seja, pois isto representaria uma forma de violação da Constituição”52.


Transcrevemos a seguir algumas decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais restaram reveladas a preocupação em buscar a máxima efetividade de um princípio ou de uma regra constitucional:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA, INSTITUÍDA PELO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. FIGURA DO PEQUENO TRAFICANTE. PROJEÇÃO DA GARANTIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). CONFLITO INTERTEMPORAL DE LEIS PENAIS. APLICAÇÃO AOS CONDENADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI 6.368/1976. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA (INCISO XL DO ART. 5º DA CARTA MAGNA). MÁXIMA EFICÁCIA DA CONSTITUIÇÃO. RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO-POSITIVA. INEDITISMO DA MINORANTE. AUSÊNCIA DE CONTRAPOSIÇÃO À NORMAÇÃO ANTERIOR. COMBINAÇÃO DE LEIS. INOCORRÊNCIA. EMPATE NA VOTAÇÃO. DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RECORRIDO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do art. 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente “generosa”. 2. Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu art. 5º, a Constituição não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal. Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma. (…)”53.

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. IPTU. ENTIDADE ASSISTENCIAL. IMÓVEL VAGO. IRRELEVÂNCIA. JURISPRUDÊNCIA DO STF. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO DESPROVIDO. 1. A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, da CF alcança todos os bens das entidades assistenciais de que cuida o referido dispositivo constitucional. 2. Deveras, o acórdão recorrido decidiu em conformidade com o entendimento firmado por esta Suprema Corte, no sentido de se conferir a máxima efetividade ao art. 150, VI, “b” e “c”, da CF, revogando a concessão da imunidade tributária ali prevista somente quando há provas de que a utilização dos bens imóveis abrangidos pela imunidade tributária são estranhas àquelas consideradas essenciais para as suas finalidades. Precedentes: RE 325.822, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 14.05.2004 e AI 447.855, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, DJ de 6.10.06. (…)”54.

“Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória”55.

2.10. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade

O princípio em questão não está direcionado apenas à interpretação das normas constitucionais, sendo, na verdade, um princípio geral de Direito, precedendo e condicionando a positivação jurídica. Sua essência está relacionada com a ideia de equidade, prudência, proibição de excessos e, principalmente, de justiça, razão pela qual não é fácil conceituá-lo, sendo mais fácil constatar que esse princípio está sendo atendido através dos sentidos e da intuição.

A expressão “razoabilidade” está ligada à razão. É a adequação entre motivos, os fins e os meios dos atos realizados pelo Poder Público que também devem estar de acordo com os valores fundamentais consagrados na Constituição.

Já a proporcionalidade consiste na ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido. Sua concepção abrange também a adoção da medida adequada para o fim pretendido, analisando-se, para tanto, se não há outra medida menos gravosa para o atingimento dessa finalidade.

Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos assim descrevem esse princípio:

“Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o


Consultor Tributário: Fazenda tem vantagem no contencioso administrativo

publicado em 22/02/2012 às 09h17 Em regra, o título executivo extrajudicial é constituído por meio da expressa concordância do devedor com a respectiva dívida. É o caso, por exemplo, dos títulos de crédito (como cheques, notas promissórias etc.), que pressupõem a manifestação de vontade prévia por parte de quem assume a dívida. Tal concordância é…


Saiba como será o expediente dos tribunais no Carnaval

No Carnaval, o STF e o STJ estarão fechados nos dias 20 e 21 de fevereiro, segunda e terça. Já na quarta-feira (22/2), o expediente deve começar a partir das 13h. A regulamentação do STF está na Portaria 49, a do STJ na Resolução 1/1985. No TST, o expediente será idêntico ao do STF e STJ.


A instauração de execução coletiva pelos sindicatos no interesse de seus filiados


O STJ admitiu que a sentença de ação coletiva sobre direitos individuais homogêneos pode ser liquidada por cálculos, o que corrobora a necessidade de os associados ao menos autorizarem sua representação pela entidade na fase de execução, uma vez que não há mais que se falar em substituição processual, mas tão somente em representação, entendimento este diverso do proferido pelo STF.


O presente trabalho tem por escopo analisar e comentar as questões polêmicas sobre a representação dos Sindicados no interesse dos seus filiados e associados, em sede de Execução Coletiva, explorando, ainda, se essa representação demandaria necessária autorização prévia, bem como quais os prejuízos trazidos aos filiados.

Em que pese a discussão sobre esta representação tenha se iniciado logo após a edição do Código de Defesa do Consumidor (1990), verifica-se que o posicionamento dos Tribunais Superiores (lato sensu) ainda se encontra controvertido, em razão das disposições contidas nos artigos 21 da Lei 7.347/85, 98 do Código de Defesa do Consumidor e 8º, inciso III, da Constituição Federal.

Entretanto, antes de se adentrar ao mérito deste trabalho, torna-se importante realizar uma breve exposição sobre o instituto das Ações Coletivas de modo a estabelecer parâmetros válidos e fundamentais à discussão central a que se pretende chegar, uma vez que se trata de discussão relativamente recente e pouco aprofundada pela doutrina nacional devido às suas especificidades e omissões legislativas.

O nosso Código de Processo Civil, elaborado por Alfredo Buzaid e aprovado no ano de 1973, não contemplou quaisquer normas procedimentais ou instrumentais para a viabilidade da tutela coletiva em juízo, mas tão somente foi elaborado e promulgado para dar cabal efetividade às lides individuais.

Em que pese antes de sua promulgação já existisse o instituto da Ação Popular (Lei 4.717/65), as peculiaridades desta ação coletiva foram esquecidas quando da promulgação do Código de Processo Civil ainda vigente, não sendo incluídas após a promulgação da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que, embora disponham sobre a tutela coletiva, pouco disciplinam acerca da sua instrumentalidade no processo.

Desta forma, claramente se conclui pelo esquecimento do legislador acerca da necessidade de disciplinar a tutela coletiva em juízo, pois as recentes emendas processuais que trouxeram grandes modificações ao Código de Processo Civil (Leis 11.232/05 e 11.386/06) em nada individualizaram ou disciplinaram a tutela coletiva, razão pela qual utiliza-se, quando possível, o processo civil individual para as ações coletivas, no que couber.

A doutrina nacional, por outro lado, com vistas a suprir as omissões decorrentes da falta de legislação específica sobre o tema, elaborou, sob a coordenação da Professora Dra. Ada Pellegrini Grinover, o Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, tendo sido encaminhado a Casa Civil e após, ao Congresso Nacional, onde foi rejeitado pela Câmara dos Deputados.

Assim, verifica-se a falta de cuidado dos legisladores sobre a efetiva proteção aos direitos de terceira geração, pois tutelados por leis esparsas e repletas de omissões legislativas, especialmente no campo processual.

Desta forma, atualmente se propõe as ações coletivas previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Ação Civil Pública, com a utilização do procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.

Passada essa primeira crítica, torna-se importante analisar e conceituar as ações coletivas e os ditos direitos coletivos (lato sensu), para melhor contextualizar a matéria a ser tratada, senão vejamos:

Para se ter idéia do que seriam as ações coletivas, podemos conceituá-las como sendo o instrumento processual adequado conferido aos entes legitimados pelas Leis 7.347/85 e 8.078/90 para que possam tutelar e responsabilizar eventuais danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico ou a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

A doutrina, atualmente, utiliza-se dos conceitos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 81 abaixo), a fim de conceituar os direitos coletivos (lato sensu) hoje divididos em três tipos, a saber: (i) os direitos difusos, direitos tipicamente transindividuais ou pertencentes a uma certa coletividade, como o direito ao meio ambiente equilibrado; (ii) direitos coletivos (stricto sensu) direitos de natureza indivisível, mas ligados por um vínculo jurídico que lhes dá coesão e identificação perante outras pessoas e, por fim; (iii) direitos individuais homogêneos, direitos coletivos, mas individualizados, sendo caracterizados por uma mesma relação de fato ou de direito:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Com relação aos dois primeiros direitos coletivos, quais sejam, difusos e coletivo stricto sensu, a doutrina é pacífica quanto a possibilidade de Associações Civis, entes públicos, Ministério Público, etc. deterem a legitimidade ativa para o ingresso das Ações Coletivas, pois decorre de expressa previsão tanto no art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, como no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, abaixo:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;

III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V – a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

(…)

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público,

II – a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.

§ 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.

Assim, temos que nas hipóteses acima referidas, a legitimidade de tais entes é ordinária, pois o legitimado não está defendendo direito alheio em nome próprio, mas porque seus titulares não podem fazê-lo individualmente.

Quanto aos direitos individuais homogêneos, por outro lado, temos que a legitimidade dos entes acima elencados não se dá de modo ordinário, mas por meio da substituição processual, isto é, por legitimação extraordinária.

Essa conclusão decorre da previsão contida no artigo 91 do Código de Defesa do Consumidor que busca a eventual responsabilização dos causadores do dano pelas vítimas ou sucessores, em razão dos danos individualmente sofridos, abaixo:


Art. 91. Os legitimados de que trata o art. 82 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos seguintes

Deste modo, as pessoas físicas ou jurídicas, individualmente, poderão se valer do Poder Judiciário, mas um ente público como por exemplo o Ministério Público Estadual ou Federal, igualmente poderá ingressar com Ação Coletiva visando a reparação destes danos, sendo esta legitimidade extraordinária.

Referida discussão se torna necessária para entendermos as razões pelas quais a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ainda possuem posição controvertida sobre o tema.

O Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº. 193.503-1 que tratava da possibilidade de Cumprimento de Sentença pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Metalúrgica, representando o interesse de seus associados, em julgamento apertado (6 votos a favor e 5 contra) realizado no dia 12 de junho de 2006, concluiu ser desnecessária a autorização dos filiados.

Para tanto, interpretou a medida como hipótese de substituição processual, razão pela qual não incidiria a representação, mas tão somente a postulação de um direito em nome do próprio Sindicato, na defesa de seus filiados, sendo desnecessária qualquer autorização dos indivíduos substituídos, conforme ementa abaixo:

“EMENTA: PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam.

Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores.

Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos.

Recurso conhecido e provido”.

(STF. Pleno. RE 193.503-1/SP. Rel. Carlos Veloso. D.J. 12/06/06).

Nas razões de julgamento, o então Ministro Nelson Jobim, em ilustres razões, diferenciou em seu voto os institutos da substituição e da representação, estabelecendo uma construção histórica iniciada por Carnelutti, Chiovenda e Liebman, concluindo, ao final, que na fase de liquidação de direitos individuais homogêneos, utiliza-se da representação, de modo a ensejar a autorização dos representados.

Entretanto, referido entendimento não prevaleceu, mantendo-se na presente, a hipótese de substituição processual que acarreta na faculdade de autorização dos substituídos, conforme ementa acima.

Em que pese o julgado acima tenha sido proferido em 2006, importante observar que referido entendimento foi recentemente corroborado pela Corte Suprema, em julgamento proferido em fevereiro de 2010, conforme ementa abaixo:

EMENTA: 1. LEGITIMAÇÃO PARA A CAUSA. Ativa. Caracterização. Sindicato. Interesse dos membros da categoria. Substituição processual. Art. 8º, III, da Constituição da República. Recurso extraordinário inadmissível. Agravo regimental improvido. O artigo 8º, III, da Constituição da República, confere legitimidade extraordinária aos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. 2. RECURSO. Agravo regimental. Reconhecimento de repercussão geral. Temas distintos. Erro material. Decisão de prejudicialidade do agravo e retorno dos autos à origem, para os fins do art. 543-B do CPC. Correção, de ofício, para torná-la sem efeito. Corrige-se, de ofício, decisão que contém erro material.

(RE 213974 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 02/02/2010, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-06 PP-01454 LEXSTF v. 32, n. 375, 2010, p. 149-152)

Entrementes, embora a Corte Suprema já tenha sedimentado seu entendimento sobre o tema, torna-se importante ressaltar a existência de entendimento diverso, recentemente proferido pelo C. Superior Tribunal de Justiça, defendendo a necessidade de autorização prévia dos filiados, conforme abaixo:

“CIVIL E PROCESSUAL. SINDICATO. AÇÃO COLETIVA QUE RECLAMA DIFERENÇAS DE FGTS. FASE DE EXECUÇÃO. REPRESENTAÇÃO DOS FILIADOS. AUTORIZAÇÃO. NECESSIDADE.

I – Na execução de ação coletiva exige-se, do sindicato, autorização de seus filiados, não podendo fazê-la em nome próprio, já que apenas os representa processualmente nesta fase.

II – Embargos de divergência conhecidos e desprovidos”.

(STJ. Corte Especial. Emb. Div. No Resp. 757.270/RS. D.J. 10/05/10. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior).

Nas razões utilizadas pela Corte Superior, expressamente se menciona o entendimento perpetrado pelo Supremo Tribunal Federal, todavia, por se entender que na liquidação de sentença, em regra, há valores a serem recebidos pelos exequentes e que desta possibilidade, fatalmente poderá ocorrer situações de desvio, como já ocorridas no passado com relação às verbas de reajuste do Fundo de Garantia – FGTS, concluiu-se que o Sindicato poderá propor a Ação Coletiva na defesa dos interesses de seus filiados, mas que, especialmente na execução coletiva, a atuação do Sindicado se submete ao instituto da representação.


Assim, representando seus filiados, referida conduta se limita a postular direito alheio, em nome próprio, o que é diverso da postulação do direito próprio e alheio, em nome próprio, como ocorre na substituição, pois os valores a serem recebidos serão de terceiros individuais, não do sindicato.

Referido entendimento, embora diverso das razões estampadas pelo Supremo Tribunal Federal, encontra razão na cautela do juízo em autorizar a efetividade do processo coletivo, mas limitá-la a autorização prévia dos direitos individuais homogêneos que estão sendo tutelados, principalmente na fase executiva, pois poderá ensejar no ganho de valores pelo Sindicato que podem vir a ser não repassados aos seus filiados.

Desta forma, até mesmo em razão da ausência de litispendência entre a execução coletiva e a execução individual (Resp. 995.932/RS. Rel. Min. Castro Meira), não se pode olvidar que os individuais postulem pela demanda individualmente ou autorizem a execução por terceiros, posição esta que se parece a mais correta.

Isso porque, como é cediço, muitos consumidores representados por associações ou trabalhadores representados por sindicatos podem não deter o conhecimento necessário de uma decisão de procedência em Ação Civil Pública ou Ação Coletiva e podem não ser avisados pelos órgãos coletivos exatamente porque estes podem vir a executar coletivamente a sentença com o posterior recebimento dos valores declarados por esta.

Ademais, o Superior Tribunal de Justiça recentemente reconheceu que o prazo para o consumidor ajuizar ação individual de conhecimento – a partir da qual lhe poderá ser aberta a via da execução – independe do ajuizamento da ação coletiva, e não é por esta prejudicado, regendo-se por regras próprias e vinculadas ao tipo de cada pretensão deduzida, entendimento este que pode vir a ser aplicado nos demais casos de Ação Civil Coletiva (não apenas para as ações que tratem de relação de consumo), consoante acórdão abaixo:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO COLETIVA. APADECO X CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. EXPURGOS. PLANOS ECONÔMICOS. PRAZO DE PRESCRIÇÃO.

1. A sentença não é nascedouro de direito material novo, não opera a chamada “novação necessária”, mas é apenas marco interruptivo de uma prescrição cuja pretensão já foi exercitada pelo titular. Essa a razão da máxima contida na Súmula n. 150/STF: “Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação”. Não porque nasce uma nova e particular pretensão de execução, mas porque a pretensão da “ação” teve o prazo de prescrição interrompido e reiniciado pelo “último ato do processo”.

2. As ações coletivas fazem parte de um arcabouço normativo vocacionado a promover a facilitação da defesa do consumidor em juízo e o acesso pleno aos órgãos judiciários (art. 6º, incisos VII e VIII, CDC), sempre em mente o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, CDC), por isso que o instrumento próprio de facilitação de defesa e de acesso do consumidor não pode voltar-se contra o destinatário da proteção, prejudicando sua situação jurídica.

3. Assim, o prazo para o consumidor ajuizar ação individual de conhecimento – a partir da qual lhe poderá ser aberta a via da execução – independe do ajuizamento da ação coletiva, e não é por esta prejudicado, regendo-se por regras próprias e vinculadas ao tipo de cada pretensão deduzida.

4. Porém, cuidando-se de execução individual de sentença proferida em ação coletiva, o beneficiário se insere em microssistema diverso e com regras pertinentes, sendo imperiosa a observância do prazo próprio das ações coletivas, que é quinquenal, nos termos do precedente firmado no REsp. n. 1.070.896/SC, aplicando-se a Súmula n. 150/STF.

5. Assim, no caso concreto, o beneficiário da ação coletiva teria o prazo de 5 (cinco) anos para o ajuizamento da execução individual, contados a partir do trânsito em julgado da sentença coletiva, e o prazo de 20 (vinte) anos para o ajuizamento da ação de conhecimento individual, contados dos respectivos pagamentos a menor das correções monetárias em razão dos planos econômicos.

6. Recurso especial provido.

(REsp 1275215/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 01/02/2012)

Desta forma, em que pese a sentença em ação coletiva seja sempre genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados (Resp. 701.166/RS. Rel. Min. Laurita Vaz), deve-se ter em mente que o próprio Superior Tribunal de Justiça já admitiu que a sentença proferida em Ação Coletiva sobre direitos individuais homogêneos possa ser liquidada por cálculos (Resp. 880.358/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi), o que corrobora a necessidade de os associados ou filiados ao menos autorizarem sua representação pela entidade na fase de execução, uma vez que não há mais que se falar em substituição processual, mas tão somente em representação, entendimento este diverso do atualmente proferido pelo Supremo Tribunal Federal.


BIBLIOGRAFIA:

ATAIDE JR. Vicente de Paula. A execução individual da sentença coletiva após a Lei 11.232/2005. MENDES. Aluisio Gonçalves de Castro. Sentença, liquidação e execução nos processos coletivos para a tutela dos direitos individuais homogêneos. BERTOGNA JR. Oswaldo. Da liquidação e do cumprimento de sentença na ação civil pública – Aspectos relevantes. In Coord. WAMBIER. Luiz Rodrigues et. al. Execução Civil. Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Junior. RT. São Paulo. 2007.

GRINOVER. Ada Pellegrini. (et. al). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10ª Ed. Rev. Atual. Rio de Janeiro. Forense. 2011. Vol. II.

VENTURI. Elton. A tutela Executiva dos direitos difusos nas ações coletivas. In Processo de Execução e Assuntos afins. Coord. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim. RT. 1998.

SHIMURA. Sergio. Tutela Coletiva e sua efetividade. Ed. Método. São Paulo. 2006.

Autor

Bruno Molina Meles

Advogado em São Paulo (SP). Graduado pela UniFMU. Pós Graduado pela PUC/SP em Direito Processual Civil. Pós Graduando pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus em Direito Constitucional Aplicado.

NBR 6023:2002 ABNT: MELES, Bruno Molina. A instauração de execução coletiva pelos sindicatos no interesse de seus filiados. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3144, 9 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21055>. Acesso em: 10 fev. 2012.


O avanço da injustiça tributária: Carro novo no Distrito Federal é parcialmente isento de IPVA

Aldemario Araujo Castro
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Professor da Universidade Católica de Brasília

Brasília, 5 de fevereiro de 2012

Foi realizado, no dia 27 de janeiro de 2012, um debate sobre o Controle Social da Gestão Tributária, promovido pelo Sindicato Nacional dos Analistas-Tributários da Receita Federal do Brasil – SINDIRECEITA(1). O evento integrou as atividades do Fórum Social Temático ocorrido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Ao participar do debate, sustentei antiga concepção sobre a espécie de Reforma Tributária a ser concretizada no Brasil(2). Nessa seara, são dois os objetivos principais a serem perseguidos: a) redução da complexidade excessiva do Sistema Tributário e b) construção de um Sistema Tributário, no plano de legislação infraconstitucional, voltado para a realização da Justiça Fiscal.

Nessa perspectiva, somente uma vigorosa mobilização social, notadamente em espaços institucionais onde possam ser manejados instrumentos adequados, pode reverter a perversa lógica que impera nas últimas décadas na conformação e operacionalização das políticas tributárias. Entre esses espaços institucionais são particularmente relevantes: a) o Senado Federal, no exercício da competência expressamente definida no art. 52, inciso XV, da Constituição(3) e b) o Conselho de Política e Administração Tributária – CONPAT(4).

Especificamente no campo da injustiça tributária reinante atualmente na sociedade brasileira são inúmeros e variados os caminhos idealizados e implementados nos laboratórios dos formuladores da política tributária. Registro, para ilustrar a afirmação anterior, alguns desses expedientes:

a) uma fortíssima pressão sobre o consumo (e o trabalho, por extensão), aliviando outras bases econômicas (como a propriedade e a renda, notadamente decorrente do capital). Ilustre-se esse ponto com uma das mais absurdas decisões tributárias do STF. Trata-se do inusitado entendimento de que o IPVA somente incide sobre veículos automotores terrestres. Assim, um carro popular com cinco anos de uso pagará o tributo, mas um helicóptero, um avião ou uma lancha escaparão do “leão”(5)(6);

b) os juros sobre o capital próprio. Por essa via, a remuneração do capital do proprietário, nas suas várias formas jurídicas, tradicionalmente realizada como lucros e dividendos, pode ser feita como juros, reduzindo o imposto de renda. Ademais, o rendimento percebido a esse título pelo sócio ou acionista será tributado exclusivamente na fonte com a alíquota de 15%, revelando-se, assim, um tratamento profundamente injusto quando comparado aos rendimentos provenientes do trabalho. Alerte-se que esse mecanismo fiscal, introduzido pelo governo Fernando Henrique Cardoso, não possui similar em nenhum outro país(6);

c) a isenção da distribuição de lucros e dividendos e da remessa de lucros para o exterior. Não há tributação dessas rendas na fonte ou na declaração anual de ajuste. Em torno desse assunto existe uma flagrante demonstração de tratamento tributário diferenciado para segmentos sociais distintos. Com efeito, a distribuição de lucros e resultados da empresa para os trabalhadores é considerada antecipação do imposto de renda devido na declaração da pessoa física, portanto, sujeita à tabela progressiva do imposto de renda(6);

d) a tributação exclusiva na fonte sobre os ganhos e rendimentos de capital. Nessa modalidade de operacionalização da tributação, o tributo é retido, em caráter definitivo, pela fonte pagadora. Essa, por sua vez, entrega ao beneficiário o valor já líquido do tributo. Nessa modalidade de tributação não se aplica a tabela progressiva do imposto e não ocorre ajuste na declaração anual do imposto. Assim, tão-somente em função do segmento econômico-social beneficiado pelo rendimento foi construído um injusto mecanismo de favorecimento fiscal(6) e

e) isenção do imposto de renda para investidores estrangeiros no âmbito do mercado financeiro(6).

Nos últimos dias do ano de 2011, o Distrito Federal presenciou mais um capítulo da triste novela da injustiça fiscal-tributária no Brasil. Com efeito, por força da Lei Distrital n. 4.733, de 29 de dezembro de 2011, foi concedida isenção do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) para veículo automotor novo, no ano de sua aquisição(7).

A engenharia jurídico-tributária presente no diploma legal mencionado permite, como efetivamente permitiu, sustentar falsamente que se trata de uma mera postergação do pagamento do IPVA para os anos seguintes ao da aquisição do veículo novo. Com efeito, a mesma lei aumentou, nos três anos posteriores ao da compra do veículo novo, a alíquota do IPVA de 3% para 3,5%.

Perceba-se que o IPVA não recolhido no primeiro ano é recuperado parcialmente, pelo Poder Público, nos três anos seguintes ao da aquisição. Em termos de alíquota, somente 1,5% são cobrados nos anos seguintes (e não três por cento). Por outro lado, a base de cálculo (valor venal do automóvel) cai ao longo dos anos em função da perda de valor do veículo.

Eis um exemplo com demonstração numérica da inequívoca redução do IPVA pago por aquele agraciado com o privilégio tributário em comento:

  2012 2013 2014 2015 Valor Total Recolhido
Base de Cálculo R$ 120.000,00 R$ 110.000,00 R$ 90.000,00 R$ 85.000,00
Alíquota sem Isenção 3,00% 3,00% 3,00% 3,00%
Alíquota com Isenção 0,00% 3,50% 3,50% 3,50%
IPVA sem Isenção R$3.600,00 R$3.300,00 R$2.700,00 R$2.550,00 R$12.150,00
IPVA com Isenção 0 R$3.850,00 R$3.150,00 R$2.975,00 R$9.975,00

Assim, viabilizou-se um quadro de puro surrealismo tributário. Alguém, suficientemente endinheirado, pagará proporcionalmente menos IPVA nos quatro anos contados a partir da aquisição de um veículo novo do que outro cidadão, com menor estofo pecuniário, que mediante economia de recursos ou empréstimo, comprar um veículo usado. No limite, justamente para aqueles mais bafejados pela sorte financeira, não será pago um centavo de IPVA. Para tanto, o afortunado deve vender o carro no final do ano da aquisição e adquirir um novo no início do ano subsequente.

Particularmente, não tenho nenhuma dificuldade de identificar a inconstitucionalidade da medida legislativa em comento. São violados, pelo menos, o princípio da isonomia tributária (art. 150, inciso II, da Constituição) e a necessidade de graduar a tributação segundo a capacidade econômica do contribuinte (art. 145, parágrafo primeiro, da Constituição).

A justificativa de que a medida busca a harmonização da legislação do Distrito Federal com a de outros Estados da Federação é simplesmente inaceitável. Trata-se, por essa via, de uniformizar a inconstitucionalidade com claro aprofundamento da injustiça tributária já fortemente experimentada na sociedade brasileira. A malversação da legislação tributária no rumo em questão pode e deve ser combatida pelo Governador do Distrito Federal por intermédio do manejo de ações diretas de inconstitucionalidade(8).

Ademais, estamos diante de um discutível incentivo à aquisição de veículos novos no Distrito Federal que já sofre seriíssimos problemas de trânsito com uma frota que ultrapassa 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) veículos para quase 2.500.000 (dois milhões e quinhentos mil) habitantes(9).

Portanto, esse é mais um emblemático exemplo da imperiosa necessidade da sociedade brasileira, por seus setores e segmentos organizados, dedicarem tempo, atenção e energia para a realização de um controle efetivo sobre a formulação e a execução das políticas tributárias federais, estaduais, distrital e municipais.

NOTAS:

(1) Site na internet: http://www.sindireceita.org.br.

(2) Artigo QUANTO CUSTA O BRASIL PRA VOCÊ? (Parte II – Reforma Tributária). Disponível em: <http://www.aldemario.adv.br/quantoparte2reforma.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2012.

(3) “avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios”.

(4) Previsto em projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados por influência do SINDIRECEITA.

(5) Recurso Extraordinário n. 255.111/SP. Julgado pelo Tribunal Pleno em 29 de maio de 2002.

(6) Ver: http://www.aldemario.adv.br/mestradodiss.htm

(7) Disponível em: <http://www.fazenda.df.gov.br/aplicacoes/legislacao/legislacao/TelaSaidaDocumento.cfm? txtNumero=4733&txtAno=2011&txtTipo=5&txtParte=.>. Acesso em: 4 fev. 2012.

(8) Art. 103, inciso V, da Constituição.

(9) Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2011/02/13/interna_cidadesdf,23 7496/em-10-anos-frota-de-carros-no-df-cresceu-cinco-vezes-mais-que-populacao.shtml>. Acesso em: 4. fev. 2012.


SINPROFAZ presente na abertura do Ano Judiciário

O presidente Allan Titonelli acompanhou a solenidade ocorrida ontem, 1º/02, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Chefes do poderes Executivo e Legilativo estavam presentes e compuseram a mesa de trabalhos.


AGU divulga as prioridades na sua atuação em 2012

A Advocacia-Geral da União vai trabalhar em 2012 para implantar na instituição a Lei de Acesso à Informação, ampliar o número de escritórios avançados em outros órgãos e aperfeiçoar a gestão de informações judiciais. Esses são alguns temas que terão tratamento prioritário pelas unidades, que apresentaram as suas metas nesta segunda-feira (30/01). Escritórios Avançados A…


PGR arquiva pedido de investigação contra Eliana Calmon

Por Rogério Barbosa O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, determinou o arquivamento do procedimento administrativo aberto na instituição a pedido de entidades de juízes contra a ministra Eliana Calmon. Os juízes queriam que o Ministério Público Federal apurasse se houve quebra de sigilo, por parte do Conselho Nacional de Justiça e de sua Corregedoria, ao…


O CNJ como legitimador social do Poder Judiciário

Autor(es): Allan Tittonelli Nunes
Correio Braziliense – 30/01/2012
Procurador da Fazenda Nacional, é presidente do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal

A Emenda Constitucional 45/04 alterou e acresceu à Constituição de 1988 diversos dispositivos, sendo nominada no meio jurídico como a Reforma do Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criado no contexto dessa mudança para exercer papel de fiscalização e “(…) controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (…)”, popularmente consagrado como controle externo do Judiciário.

Desde a criação, suas atribuições foram alvo de irresignações (naturais em ambiente democrático) que contribuíram para a pluralização do debate e evolução da interpretação constitucional. A diversificação argumentativa como mecanismo de legitimação da decisão é premissa defendida por Peter Häberle. Ele propõe a construção de hermenêutica constitucional que leve em conta as variáveis interpretativas da sociedade, permitindo a democratização do debate, o que convencionou chamar de sociedade aberta de intérpretes da Constituição.

O processo de debate é retomado após duas liminares concedidas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski. Discutir e repensar o papel do CNJ é fundamental para o amadurecimento das instituições e do Estado Democrático de Direito. Nesse pormenor, fulcral analisar o CNJ como verdadeiro controle externo do Poder Judiciário. É certo que, para efetivar esse papel, impõe-se composição, no mínimo, igualitária. Isso porque o CNJ é presidido pelo presidente do STF e composto por nove membros advindos do Poder Judiciário e seis da sociedade.

Interessante observar que, na composição, deixou-se de incluir duas carreiras integrantes das funções essenciais à Justiça, Advocacia Pública e Defensoria Pública. O capítulo referente às funções essenciais à Justiça encontra-se no Título IV, Da Organização dos Poderes. A sistematização concretizada visa atender os preceitos modernos do Estado Democrático de Direito, em que o equilíbrio e harmonia entre os poderes serão efetivados, também, por meio desses órgãos.

Outrossim, o desígnio “Justiça” não teve alcance restrito, de prestação jurisdicional, mas de isonomia, imparcialidade, preservação dos direitos, eliminação da ingerência do Estado, transparência, cidadania e democracia, o que Diogo de Figueiredo Moreira Neto convencionou chamar de “Estado de Justiça”. Por essas razões, é imprescindível a participação da Advocacia Pública e da Defensoria Pública na composição do CNJ até como forma de evitar que decisões sejam tomadas sob o crivo do corporativismo.

De outro giro, vive-se momento em que o Poder Judiciário interfere em quase todas as políticas públicas (fenômeno conhecido como ativismo judicial), legisla (vide o exemplo das decisões do Tribunal Superior Eleitoral em diversas matérias. Entre elas, número de vereadores e (in)fidelidade partidária. E, obviamente, presta a tutela jurisdicional, que deveria ser sua única função.

Esse fenômeno é relatado por Luiz Werneck Vianna no livro Judicialização da política e das relações sociais no Brasil como resultado da judicialização da política nacional. Necessita-se, portanto, resgatar o equilíbrio perseguido pelo constituinte. Para resguardar a congruência do ativismo judicial hoje existente, que muitas vezes transcende o que determina a lei, é necessário que o STF decida com coerência.

Entretanto, não é demais registrar que o art. 103-B, § 4.°, III da Constituição, ao disciplinar as atribuições do CNJ, além de permitir a reclamação por parte de qualquer cidadão, determina a competência disciplinar concorrente ao consignar sua função fiscalizatória e correicional. O Poder Judiciário é o único que não passa pelo crivo da sociedade, razão pela qual, para lhe resguardar a legitimidade, é inafastável a transparência, publicidade e eficiência dos atos, bem como sujeição aos princípios constitucionais administrativos.

Ante ao exposto, certo é que o esvaziamento das atribuições do CNJ poderá provocar enormes prejuízos à sociedade e aos magistrados comprometidos com suas funções. O poder de fiscalizar e punir juízes e servidores contribui para separar o joio do trigo, resguardando a imagem do Judiciário.


Implantação da Lei de Acesso à Informação e concursos para as carreiras de advogado e procurador são temas prioritários na AGU em 2012

Data da publicação: 30/01/2012 A Advocacia-Geral da União (AGU) vai trabalhar em 2012 para implantar na instituição a Lei de Acesso à Informação, ampliar o número de escritórios avançados em outros órgãos e aperfeiçoar a gestão de informações judiciais. Esses são alguns temas que terão tratamento prioritário pelas unidades que nesta segunda-feira (30/01) apresentaram os…


Conjur destaca o apoio do SINPROFAZ e Forvm em defesa do CNJ

Nota da revista eletrônica Consultor Jurídico repercute o ato em defesa da competência disciplinar concorrente do CNJ, que acontecerá dia 31 de janeiro na sede da OAB Federal, com apoio do SINPROFAZ e Forvm.


SINPROFAZ e Forvm Nacional em defesa da independência do CNJ

Entidades manifestam publicamente seu apoio e confirmam participação no ato em defesa da independência do CNJ, que ocorrerá na sede da OAB Federal em 31 de janeiro.


Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência


Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio, e são assegurados pela Lei n.º 8.906/94 aos membros da Advocacia-Geral da União.


Resumo: O presente trabalho tem como objetivo fornecer argumentos jurídicos aptos a justificar a titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência, bem como criticar o entendimento firmado no Parecer GQ – 24.

Palavras-chave: Honorários advocatícios de sucumbência. Membros da Advocacia-Geral da União. Titularidade.

Abstract: Union, by law and in compliance with the principle of decentralization in the Constitution, is not qualified to perform actions directly under block funding of the Brazilian Public Health System (SUS) called attention to secondary and tertiary care outpatient and inpatient. Nevertheless, it is increasing the number of court decisions that impose to Union an obligation to perform these actions. It was demonstrated, through analysis of current case law, as judicial decisions disrupt the way the SUS is structured, with respect to the actions planned for the mentioned block funding. On the other hand, it was explained as the Judiciary, to consider the principle of decentralization, in its decisions, can become an ally in implementing the system in order to ensure achievement, more effective health actions in the block care of ambulatory and tertiary care hospitals.

Keywords: Brazilian Public Health System (SUS). Principle of Decentralization. Block Funding Attention of Middle and High Complexity Hospital Outpatient. Public Policy. Lawsuits

Introdução

O objeto da presente estudo reside no exame da titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.

I – Da ausência de suspeição ou impedimento.

De início, cumpre analisar eventual suspeição ou impedimento dos Advogados da União no exame de questões que se encontram umbilicalmente relacionados com o interesse da Instituição.

A Advocacia-Geral da União encontra assento no art. 131 da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

A referida norma está inserida na segunda sessão do Capítulo IV do Titulo IV da Constituição Federal, com a seguinte denominação: “Das Funções Essenciais à Justiça” . Infere-se, assim, que a Advocacia-Geral da União é uma Instituição que exerce, segundo o texto constitucional, “funções essenciais à justiça”. A propósito, convém transcrever as fecundas lições do eminente Uadi Lammêgo Bulos1 sobre a matéria:

Por isso, o Judiciário só funciona por provocação, ou seja, se o agente exigir que ele atue, donde resulte a importância dos protagonistas da dinâmica processual, titulares das funções essenciais à Justiça.

A Carta Magna os enumerou, taxativamente:

  • Ministério Público (arts. 127 a 130);
  • Advocacia Pública (arts. 131 e 132);
  • Profissional da Advocacia (art. 133); e
  • Defensoria Pública (arts. 134 e 135).

Todos esses organismos desencadeadores da atividade jurisdicional atuam por meio de seus agentes públicos ou privados, isto é, promotores, procuradores, advogados e defensores públicos.

Dessa maneira, a inércia da jurisdição é compensada pelo dinamismo dos protagonista das funções essenciais à Justiça.

Em verdade, o papel constitucional dos promotores, procuradores, advogados e defensores públicos é relevantíssimo, porque, de modo genérico, compete-lhes agir em defesa dos interesses do Estado-comunidade, e não do Estado-pessoa.

O arquétipo prefigurado na Constituição da República distancia-os da caricatura usual de que ocupam posição de superioridade se comparados aos cidadãos comuns. Ao invés, encontram limites ao exercício de suas atribuições, pois quem tem o poder e a força do Estado não pode exercer em benefício próprio a autoridade que lhe foi conferida.

A Advocacia-Geral da União, como função essencial à Justiça, tem a atribuição privativa de representar judicial e extrajudicialmente a União, bem como exercer as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo. Ao examinar a questão, o Pleno do Supremo Tribunal Federal não hesitou em reconhecer a referida exclusividade, ao atestar a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 3º Região, no julgamento da RCL 8025, veja-se:

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, em julgar preliminarmente, o Tribunal afirmou a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional federal da 3ª Região. Em seguida, o Tribunal rejeitou a questão de ordem no sentido de intimar a Advocacia Geral da União para que, querendo, se manifeste nos autos. E no mérito, o Tribunal, por maioria julgou procedente a reclamação, para anular a eleição de Presidente e determinar que outra se realize, nos termos do voto do relator.


Nesse contexto, a Lei Complementar n.º 73/1993 – Lei Orgânica da Advocacia -Geral da União, em seus arts. 2º, II, b e art. 11, inciso III, dispõe, respectivamente:

Art. 2º A Advocacia-Geral da União compreende:

II – órgãos de execução

b) a Consultoria da União, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, da Secretaria-Geral e das demais Secretarias da presidência da república e do Estado-Maior das Forças Armadas;

Art. 11. Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:

III – fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União;

Da leitura das normas acima reproduzidas, torna-se possível concluir que a Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, como órgão setorial da Advocacia-Geral da União, tem a atribuição de, exclusivamente, exercer assessoramento jurídico da sua Pasta.

Feitos esses esclarecimento, convém agora analisar os deveres dos Advogados da União, com previsão na já mencionada Lei Complementar e na Lei n.º 8.112/90, que assim prescreve:

. Lei Complementar n.º 93/1993:

Art. 29. É defeso aos membros efetivos da Advocacia-Geral da União exercer suas funções em processo judicial ou administrativo:

I – em que sejam parte;

II – em que hajam atuado como advogado de qualquer das partes;

III – em que seja interessado parente consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o0 segundo grau, bem como cônjuge ou companheiro;

IV – nas hipóteses da legislação processual.

Art. 30. Os membros efetivos da Advocacia-Geral da União devem dar-se por impedidos:

I – quando hajam proferido parecer favorável à pretensão deduzida em juízo pela parte adversa;

II – nas hipóteses da legislação processual.

. Lei n.º 8.112/90:

Art. 116. São deveres do servidor:

I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;

II – ser leal às instituições a que servir;

Art. 117. Ao servidor é proibido:

IX – valer-se co cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil:

Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:

I – de que for parte;

II – quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.

Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:

V – interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.

À primeira vista, poder-se-ia alegar a suspeição ou impedimento de todos Advogados da União no exame da presente matéria. Este, contudo, não é o melhor entendimento. As normas infraconstitucionais, como trivialmente sabido, devem ser interpretadas à luz do texto constitucional que, como visto, reserva à Advocacia-Geral da União a função de exercer, exclusivamente, o assessoramento jurídico do Poder Executivo. Aplicam-se aqui os princípios que norteiam a interpretação constitucional, dentre os quais se destacam: o da máxima efetividade e o da razoabilidade.

O primeiro impõe que à norma constitucional, sujeita à atividade hermenêutica, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade. Já o segundo indica que a validade dos atos emanados do poder público é aferida com fundamento em três máximas: adequação, necessidade e proporcionalidade. A adequação designa a correlação lógica entre motivos, meios e fins, de maneira que, tendo em vista determinados motivos, devem ser providos meios, para a consecução de certos fins. A necessidade ou exigibilidade denota a intervenção mínima, isto é, inexistência de meios menos gravoso para a obtenção do fim pretendido. Já a proporcionalidade denomina a ponderação entre o encargo imposto e o benefício trazido2.


Nesse contexto, o constituinte originário, ao conferir à Advocacia-Geral da União a exclusividade do assessoramento jurídico, bem como incluí-la no rol das “funções essenciais à justiça”, não previu qualquer exceção capaz de afastar a sua atuação, de sorte que não seria razoável que a Instituição deixasse de examinar a constitucionalidade e regularidade dos projetos de atos normativos e consultas de seu interesse.

Em reforço à tese até aqui desenvolvida, não se pode olvidar que, quando o constituinte originário exigiu a citação prévia do Advogado-Geral da União nas causas em que o Supremo Tribunal Federal vier apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, para defender o texto ou ato impugnado, não fez qualquer restrição em relação à sua atuação. Assim, ainda que a eventual impugnação seja de norma referente à Instituição, a sua participação se faz necessária3.

Mas não é só. Em última análise, se fosse admitida o afastamento dos Advogados da União para exame de matéria dessa natureza, para que estranhos à carreira a realizassem, além de ferir de morte o art. 133 da Constituição Federal, estar-se-ia dando ensejo ao desvio de função, prática que destoa dos princípios da legalidade e moralidade, que norteiam a atuação da Administração, de tal modo que os atos por eles praticados estariam eivados do vício de nulidade.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não destoa desse entendimento, consoante se pode verificar da leitura da ementa abaixo transcrita:

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI COMPLEMENTAR 11/91, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (ART. 12, CAPUT, E §§ 1º E 2º; ART. 13 E INCISOS I A V) – ASSESSOR JURÍDICO – CARGO DE PROVIMENTO EM COMISSÃO – FUNÇÕES INERENTES AO CARGO DE PROCURADOR DO ESTADO – USURPAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. – O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. (ADI 881 MC/ES, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 25.04.97.)

Como se pode observar, a exclusividade das atribuições reservadas pelo texto constitucional à Advocacia-Geral da União, para assessoramento jurídico do Poder Executivo, impõe que todas as consultas jurídicas sejam por ela examinadas, inclusive as referentes à própria Instituição.

II – Questão preliminar: Honorários e Subsídio.

Antes de se adentrar no exame do direito dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários de sucumbência, afigura-se indispensável a análise de uma questão preliminar, qual seja, a sua compatibilidade com o regime de subsídio.

O vocábulo subsídio foi inserido na Constituição Federal pela Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/98), que introduziu o § 4º no art. 39, in verbis:

§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.

A referida Emenda também alterou o art. 135 da Constituição Federal, que passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 135. Os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e III deste Capítulo serão remunerados na forma do art. 39, § 4º.

Como se vê, com o advento da Emenda Constitucional nº 19/98, a carreira da Advocacia-Geral da União passou a ter uma nova disciplina remuneratória, que veio a se materializar com o advento da Medida Provisória nº 305, de 29.06.2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006 .

O subsídio, pois, caracteriza-se como nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Esse rigor, entretanto, é relativizado por outras normas constitucionais, que não foram atingidas pela Emenda, como é o caso, por exemplo, do art. 39, § 3º.

Outro não é o entendimento da eminente Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 que, ao examinar a questão, assinala:

No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no art. 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX. Com isto, o servidor que ocupe cargo público (o que exclui os que exercem mandato eletivo e os que ocupam emprego público, já abrangidos pelo art. 7º) fará jus a: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo a 50% à do normal, adicional de férias.


Como se pode observar, a regra do art. 39, § 4º, da Constituição Federal não é absoluta. Por outro lado, sobreleva anotar que o seu alcance se limita aos valores pagos pela administração pública. Os honorários advocatícios de sucumbência, diferentemente das vantagens ali mencionadas, são verbas de natureza particular, eis que são pagos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora, ou seja, não saem dos cofres públicos. Nessa linha, são os ensinamentos de Ivan Barbosa Rigolin5:

V – Ao que parece viceja, cá e lá, o entendimento de que os honorários de sucumbência constituem algo como “benefício aos servidores públicos”, pagos pelo poder Público, e talvez aí resida toda a origem do impasse que pode estar acontecendo.

Honorários advocatícios de sucumbência jamais foram benefício a servidor público, porque não são pagos com dinheiro público, não saem dos cofres públicos, mas do bolso dos derrotados em ações judiciais contra o poder Público. Não têm origem em recursos públicos, mas particulares – e muitos particulares. Quem os pagou já o sentiu.

Como se isso não bastasse, deve-se destacar que, se a intenção do constituinte fosse a de proibir o advogado público, o que se admite apenas por hipótese, teria a consagrado expressamente, com o fez em outra passagem do texto constitucional, como é o caso do art. 128, II, a da Constituição Federal, in verbis:

Art. 128. O Ministério Público abrange:

II – as seguintes vedações:

a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;

Ora, não foi esse o tratamento dispensado à Advocacia-Geral da União, não havendo qualquer restrição a respeito. A Lei Complementar n.º 73/1993, a seu turno, não traz qualquer proibição dessa natureza.

Registre-se, por relevante, que o texto original da Lei Complementar n.º 73/93 aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado à sanção presidencial, previa em seu art. 65 a vedação ao recebimento dos honorários6. Contudo, a aludida norma foi vetada pelo Presidente da República por interesse público, a fim de garantir a premiação do êxito, nos seguintes termos:

Quanto ao pro labore, percebido pelos Procuradores da Fazenda Nacional, por força da lei 7711 de 22 de dezembro de 1988, limita-se à sucumbência dos devedores vencidos nas execuções fiscais (honorários advocatícios). Desses honorários, 50 % destinam-se à implementação e modernização das procuradorias da Fazenda Nacional (informatização, custeio de taxas e custos de execuções fiscais, despesas de diligências, pro labore de peritos técnicos, avaliador e contadores judiciais, além de despesas de penhora, remoção e depósito de bens). Esse sistema de incentivo tem funcionado com múltiplo êxito para os cofres da União, sendo o principal fator de crescimento da arrecadação, apesar do decrescente números de Procuradores da Fazenda nacional em todo País7.

Resta, portanto, muito claro que o regime de subsídio não constitui óbice ao pagamento dos honorários de sucumbência aos membros da Advocacia-Geral da União, cuja titularidade restará demonstrada a seguir.

III – Lei n.º 8.906/94 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

A título de contextualização, cumpre realizar um breve histórico sobre a evolução legislativa dos honorários de sucumbência. De início, a Lei n.º 4.215/63, em seu art. 998, os previu. Em seguida, o Código de Processo Civil – Lei n.º 6.355/1973, no art. 209, também os consagrou. Nesse período, entretanto, tais honorários, a princípio, eram da titularidade da parte e não do advogado, bem como tinham natureza eminentemente indenizatória.

Em 1994, sobreveio a Lei n.º 8.906 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – EOAB, que trouxe profunda alterações à matéria, modificando sobremaneira o regime até então vigente. Os honorários deixaram de ser meramente indenizatórios, para assumir status de remuneração. Nesse contexto, esclarecedores os comentários de Yussef Said Cahali10:

A Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil), embora contendo dispositivos notoriamente polêmicos, teve o mérito contudo de enunciar claramente a quem pertencem os honorários advocatícios da sucumbência. Assim, ao estabelecer, em seu art. 23, que os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, o novel legislador buscou superar a aparente antinomia existente entre o artigo 20 do Código de Processo Civil e o artigo 99 do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963), geradora de um inconciliável dissídio doutrinário e jurisprudencial.

Uma das grandes inovações trazidas pelo referido diploma legal, indubitavelmente, foi a de reservar ao advogado, em seu Capítulo VI, a titularidade dos honorários de sucumbência. A propósito, não é desnecessário afirmar que os honorários têm natureza alimentar, consoante a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Vale, por todos, transcrever ementa do Supremo Tribunal Federal nesse sentido:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO DE FUNDAMENTO EM AGRAVO REGIMENTAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR. AGRAVO IMPROVIDO. I – É incabível a inovação de fundamento em agravo regimental, porquanto a matéria arguida não foi objeto de recurso extraordinário. II – O acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência da Corte no sentido de que os honorários advocatícios têm natureza alimentar. III – Agravo regimental improvido. (AI 732358, Rel. Min. Ricardo Lewandoswski, Primeira Turma, DJ 21.08.2009. Destacou-se)


Posteriormente, foi publicada a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, asseverou que as normas previstas no Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam à Administração Pública direta da União, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, consoante se pode verificar da leitura do seu art. 4º, in verbis:

Art. 4º As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista.

Em razão da sucessão de leis no tempo tratando da mesma matéria, deve-se destacar que não merecer prosperar o argumento segundo o qual, em razão do disposto no art. 20 do Código de Processo Civil, os honorários de sucumbência pertenceriam à parte e não ao advogado, eis que a Lei n.º 8.906/94, por ser posterior, a revogou tacitamente. Essa é a inteligência do art. 2º, I, do Decreto-Lei n.º 4.65711, de 4 de setembro de 1942 – Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro.

Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. HONORÁRIOS. INTERPRETAÇÃO ANTERIOR À LEI N. 8.906/94.TITULARIDADE DA PARTE VENCEDORA.

1. Verifica-se que o acórdão recorrido analisou todas as questões atinentes à lide, só que de forma contrária aos interesses da parte. Logo, não padece de vícios de omissão, contradição ou obscuridade, a justificar sua anulação por esta Corte. Tese de violação do art. 535 do CPC afastada.

2. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que antes do advento da Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dosAdvogados do Brasil), a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência era da parte vencedora e, não, do seu respectivo advogado.

3. Recurso especial provido. (REsp 859944/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE 19.08.2009)

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. DÉBITO DE NATUREZA ALIMENTÍCIA. ACÓRDÃO DECIDIDO POR FUNDAMENTOS DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE NA VIA RECURSAL ELEITA. TITULARIDADE, EM PRINCÍPIO, DO ADVOGADO DA PARTE VENCEDORA, PERMITIDA CONVENÇÃO EM SENTIDO CONTRÁRIO. POSSIBILIDADE DA EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO DISTINTO PARA A VERBA DE SUCUMBÊNCIA. DIREITO AUTÔNOMO DO ADVOGADO.

1. A questão em torno da natureza da verba recebida a título de honorários de sucumbência — se possui ou não caráter alimentício — foi decidida pela Corte de origem por fundamentos de índole eminentemente constitucional, insuscetíveis de apreciação em sede de recurso especial.

2. A análise de matéria constitucional, em sede de recurso especial, é alheia à competência atribuída a esta Superior Corte de Justiça, a teor do disposto no art. 105, III, da Constituição Federal.

3. A Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), ao contrário da legislação anterior que disciplinava a matéria, modificou a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência, passando-as da parte vencedora para o seu respectivo advogado.

4. Até prova em contrário, os honorários sucumbenciais são devidos ao advogado da parte vencedora, “tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, independentemente da juntada de cópia do contrato de prestação de serviços advocatícios.

5. Recurso especial parcialmente provido. (Resp 659293/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 24.04.2006)

A questão foi também examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.194-4, que teve como objeto, dentre outras normas, o parágrafo único do art. 21 e o parágrafo 3º do art. 24, ambas da Lei n.º 8.906/94. Na oportunidade, por maioria, assinalou-se que o recebimento dos honorários de sucumbência é disponível, de sorte a permitir o ajuste contratual entre o advogado e o cliente sobre as referidas verbas. Calha, por relevante, transcrever passagens do voto do Ministro Maurício Corrêa nesse sentido:

22. Toda argumentação da requerente cai por terra ante o disposto nos artigos 22 e 23 do Estatuto da Advocacia, que, encerrando a discussão acerca da titularidade da verba em face da redação do artigo 20 do CPC, assegurou expressamente que o advogado tem direito aos honorários de sucumbência. Em que pese a constitucionalidade de tais preceitos ter sido objeto também desta ação direta, a questão não pôde ser apreciada em virtude da ilegitimidade ativa da requerente por impertinência temática. Pertencendo a verba honorária ao advogado, não se há de falar em recomposição do conteúdo econômico-patrimonial da parte, criação de obstáculo para o acesso à justiça e, muito menos, em ofensa a direito adquirido da litigante.

23. Ainda que se entenda que os honorários se destinavam a ressarcir a parte vencedora pela despesas havidas com a contratação de profissional de advocacia e nessa perspectiva pertencesse ao litigante, segundo uma das exegeses admitidas do artigo 20 do CPC, restaria clara sua revogação pelos artigos 22 e 23 do superveniente estatuto da OAB (LICC, artigo 2º, § 1º)

Uma vez assentado o direito dos advogados aos honorários de sucumbência, convém agora examinar se eles também se estendem aos membros da Advocacia-Geral da União. Frise-se, por oportuno, que as alterações promovidas pela Lei n.º 9.527/97, mencionadas alhures, referem-se tão somente ao Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94, vale dizer, aplicam-se apenas aos advogados empregados. Nessa linha, convém reproduzir as informações prestadas pelo Senado Federal ao Supremo Tribunal Federal, na ADI n.º 3.396 que analisa a constitucionalidade do art. 4º da Lei n.º 9.527/97:


Apesar de submetidos a um mesmo estatuto, no caso, o Estatuto da Advocacia, criado pela Lei n.º 8.906, de 1994, os advogados que ocupam cargo público em órgãos da Administração Direta, Autarquias e Fundações instituídas pelo Poder Público, sujeitam-se a um regime especial de trabalho. Trata-se do Regime Jurídico Único previsto na Lei n.º 8.112, de 1990, e nesta condição estão submetidos a um regime de direitos e deveres específicos, o qual não se confunde com o regime das empresas privadas, este aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista, que normalmente se submetem aos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Paralelamente a isso, não se pode esquecer que a exegese das leis é orientada pelo processo sistemático, porquanto as leis não são conglomerados de normas desconexas entre si. Ao revés, apresentam-se de modo coordenado, em feixes orgânicos, procurando formar unidade de sentido. Os seus elementos mantêm vínculo de inter-relação e interdependência12. Dessarte, os arts. 22 a 26 da Lei n.º 8.906/94, presentes no Capítulo VI, que versam sobre os honorários advocatícios, devem ser interpretados à luz do disposto no art. 3º, § 1º, do mesmo Diploma Legal, in verbis:

Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),

§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional. (Destacou-se)

Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.

§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.

§ 2º Na falta de estipulação ou de acordo, os honorários são fixados por arbitramento judicial, em remuneração compatível com o trabalho e o valor econômico da questão, não podendo ser inferiores aos estabelecidos na tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB.

§ 3º Salvo estipulação em contrário, um terço dos honorários é devido no início do serviço, outro terço até a decisão de primeira instância e o restante no final.

§ 4º Se o advogado fizer juntar aos autos o seu contrato de honorários antes de expedir-se o mandado de levantamento ou precatório, o juiz deve determinar que lhe sejam pagos diretamente, por dedução da quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este provar que já os pagou.

§ 5º O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de mandato outorgado por advogado para defesa em processo oriundo de ato ou omissão praticada no exercício da profissão.

Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

Sublinhe-se que as normas inseridas no Capítulo VI do Estatuto da Advocacia, em nenhum momento, restringem sua aplicação aos membros da Advocacia-Geral da União. Na atividade hermenêutica, como é cediço, não cabe ao intérprete definir o que o legislador não definiu, nem mesmo acrescer ao texto legal condição nela não existente. Assim, não há razão para se restringir o alcance das normas acima mencionadas.

Como se vê, em homenagem ao método sistemático de interpretação, ressoa inequívoco o direito dos Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional e Procuradores Federais aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.

IV – Do Parecer GQ – 24.

Sem embargo das considerações até aqui lançadas, cumpre assinalar que a questão já foi examinada pela Advocacia-Geral da União, por meio do PARECER nº GQ – 24, vinculante, que adotou para os fins do art. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73/93, o Anexo PARECER Nº AGU/WM-08-94. Na oportunidade, restou assentado que os arts. 22 a 25 da lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam aos membros da Instituição, veja-se:

EMENTA: A disciplina do horário de trabalho e da remuneração ínsita à Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, é específica do advogado, na condição de profissional liberal e empregado, sem incidência na situação funcional dos servidores públicos federais, exercentes de cargos a que sejam pertinentes atribuições jurídicas.

(…)

4. É induvidoso que os servidores dos órgãos da Administração Federal direta, das autarquias e das fundações públicas federais,a cujos cargos correspondam as atividades de advocacia, se submetem ao regime instituído pela Lei 8.906 (cfr. O § 1º do art. 3º), mas são regidos pelas normas estipendiárias e pertinentes às cargas horárias e específicas dos servidores públicos federais.

9. Há que se realçar a prevalência de comando ínsito à Lei Complementar n. 73, de 1993, estratificado no sentido de que a remuneração dos membros da Advocacia-Geral da União se fixa em “lei própria”, condição que se não considera atendida com as normas concernentes ao Estatuto da Advocacia, em comento.

13. A mantença das regras a que são submetidos especificamente os advogados, servidores federais estatutários, decorrente se sua compatibilização coma lei nova, se justifica pelo fato de esse pessoal encontrar-se inserido no contexto do funcionalismo federal, regido por normas editadas unilateralmente pelo Estado, a fim de estabelecer o regramento da relação jurídica que se constitui entre ele e o servidor, de modo a que o Poder Público disponha de um sistema administrativo capaz de atender à sua finalidade, consistente em proporcionar à coletividade maior utilidade pública, essência das realizações da Administração. Face a esse desiderato, é atribuída ao Estado a faculdade de estabelecer e alterar, de forma unilateral, as regalias originárias do funcionalismo, adequando-as às suas peculiaridades e necessidades, inclusive as orçamentárias, mas sem inobservar os comandos constitucionais. Tanto assim é essa especificidade que o art. 61 da Carta insere na competência privativa do Presidemte da República a iniciativa de leis que cuidem sobre aspectos de regime jurídico do servidor público deferal, incluída a remuneração.

14. Essa linha de raciocínio aproveita à inaplicabilidade do regramento dos adicionais de sucumbência aos mesmo servidores: as características dessas normas (arts. 22 a 25 da Lei n. 8.906) indicam o alcance, tão-só, das atividades de advocacia desenvolvidas pelos profissionais liberais e advogados empregados, no que couber. Induzem a essa lição inclusive o aspecto de que os honorários, incluído os de sucumbência, pertencem ao advogado, que pode, de forma autônoma, executar a sentença, nesse particular (art. 23), direito que se não compatibiliza com a isonomia de vencimentos preconizada nos arts. 39, § 1º, e 135 da Constituição. Em relação a esse honorários a que façam jus os advogados empregados, há também disciplina específica no art. 21 do mesmo Diploma Legal, inexistindo a dos servidores estatutários do Estado, cujas peculiaridades também reclamariam normas especiais.

15. O Estatuto da Advocacia se estende aos servidores da área jurídica federal. Porém, por imperativo seu, impõe-se a observância do “regime próprio a que se subordinam” (art. 3º, § 1º), que, via de regra, não prevê esse adicional retributivo. Para contemplar esse pessoal, haveria de ser regulado em lei, em vista do princípio da legalidade esculpido no art. 37 da Constituição.

III

16. O exposto admite se acolha o resultado interpretativo de que os advogados submetidos ao regime jurídico instituído pela Lei n. 8.112, de 1990, continuam sujeitos ao disciplinamento vigente à época da edição do novo Estatuto da Advocacia, no que respeita à carga horária e à remuneração, porquanto não foram alcançados, no particular, pela lei nova.


A referida manifestação fundamenta-se, basicamente, no disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93, que exige lei própria para fixação do vencimento e remuneração dos membros das carreiras da Advocacia-Geral da União.

O grande problema é que esse argumento poderá trazer graves consequências, especialmente se o utilizarmos para o exame de importantes leis afetas à Advocacia-Geral da União, publicadas nos últimos anos, senão vejamos:

a) O subsídio dos cargos das carreiras da Advocacia-Geral da União foi instituído pela Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006. Sucede, todavia, que os referidos atos normativos não se enquadram no conceito de “lei própria”, eis que disciplinam, a um só tempo, as carreiras de Procurador da Fazenda Nacional, Advogado da União, Procurador Federal, Defensor Público, de Procurador do Banco Central do Brasil, Policial Federal e da reestruturação dos cargos da Carreira de Policial Rodoviário Federal. Em razão disso, indaga-se: estaria a Lei n.º 11.358 violando o disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?

b) De igual modo, o último aumento remuneratório das carreiras da Advocacia-Geral da União deu-se, por meio da Medida Provisória n.º 440, de 2008, convertida na Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008. Todavia, assim como o exemplo anterior, as referidas normas não se enquadram no conceito de “lei própria”, uma vez que abrangem inúmeras carreias do Poder Executivo Federal, tratando não só de remuneração, bem como de reestruturação. Pergunta-se: estaria a Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008 contrariando o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?

c) Se o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 exige que o vencimento e a remuneração das carreiras sejam tratados em “lei própria”, estariam os Advogados Públicos Federais isentos do pagamento da contribuição anual à OAB, prevista no art. 46 da Lei n.º 8.906/1994, porquanto se trata de matéria que, em última análise, encontra-se umbilicalmente relacionada à remuneração e vencimentos dos membros da carreira?

Por outro lado, deve-se destacar que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.652-6, que examinou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 1413 do Código de Processo Civil, o Ministro Relator Maurício Corrêa assinalou, em seu voto, que os advogado públicos sujeitam-se às prerrogativas, direitos e deveres do advogado, estando submetidos à disciplina própria da profissão, nos seguintes termos:

2. Com efeito, seria mesmo um absurdo concluir que o legislador tenha pretendido excluir de ressalva os advogados sujeitos a outros regimes jurídicos, além daquele instituído pelo Estatuto da OAB, como ocorre, por exemplo, com os profissionais da advocacia que a exercem na condição de servidores públicos. Embora submetidos à legislação específica que regula tal exercício, também devem observância ao regime próprio do ente público contratante. Nem por isso, entretanto, deixam de gozar das prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão, artigos 3º, § 1º; e 18.

Ora, se os honorários de sucumbência não pertencem aos membros da Advocacia-Geral da União, em razão dos argumentos aduzidos no Parecer GQ – 24, a quem são devidos? À União? Com base em que fundamento legal? A propósito, desconhece-se, s.m.j., qualquer lei que autorize a União a receber tais verbas. Não é preciso gastar rios de tinta para perceber que essa realidade viola, no mínimo, o princípio da legalidade administrativa, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal.

Outro ponto que deve ser levantado é o de que o referido Parecer vinculante foi elaborado sob uma realidade jurídica distinta dos dias atuais, de sorte a não mais tratar a contento as questões afetas à matéria, notadamente se levarmos em consideração que, posteriormente, à sua publicação, consoante já mencionado, sobreveio a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, afastou a incidência das normas presentes no Capítulo V do título I à Adminsitração Pública direta da União, às autarquias, às fundações públicas instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, esvaziando, assim, parte do seu conteúdo.

Além disso, foi publicada a Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006, que criou o subsídio dos cargos da carreira da Advocacia-Geral da União, conforme relatado no item 42, a, desta manifestação.

Por derradeiro, mas não menos importante, assinale-se, a título de informação, que os membros de boa parte das Procuradorias dos estados14 e dos municípios recebem honorários de sucumbência.

Por todo o exposto, sugere-se, com fundamento no art. 4º, X, da Lei Complementar n.º 73/93, que o Parecer GQ – 24 seja revisado pela Advocacia-Geral da União.

Conclusão

Ao término dessa exposição, torna-se possível sintetizar algumas das suas proposições mais importantes:

  • as atribuições de assessoramento jurídico ao Poder Executivo Federal são exclusivas da Advocacia-Geral da União. Ainda que as consultas tenham por objeto causas de interesse afetas à própria Instituição, seus membros não poderão se eximir de examiná-las, sob o fundamento de eventual suspeição ou impedimento;
  • Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio;
  • A Lei n.º 8.906/94 confere aos membros da Advocacia-Geral da União o direito aos honorários de sucumbência;
  • Todavia, o Parecer GQ – 24, aprovado pelo Presidente da República, adota entendimento diametralmente oposto, no sentido de que os arts. 22 a 25 da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam às carreiras da Advocacia-Geral da União, haja vista que a matéria deveria ser tratada em “lei própria”, em observância ao disposto no parágrafo único do art. 26 da lei Complementar n.º 73/93;
  • A fundamentação utilizada no referido Parecer, s.m.j., dificulta a defesa da constitucionalidade de leis que versam sobre matérias de considerável importância para Instituição. Assim sendo e levando-se em consideração o advento de novas normas sobre a matéria, assim com os questionamentos e informações mencionados alhures, recomenda-se, com fundamento no art. 4, X, da Lei Complementar n.º 73/93, a sua revisão.

Referências bibliográficas.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

CAHALI, Yussef Said. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94.


MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003.

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Honorários Advocatícios e Pode Público. Boletim de Direito Administrativo: BDA. São Paulo: NDJ, Ano XXII, n.º 3, março de 2006.

Guedes, Jefferson Guarús; Hauschild, Mauro Luciano (Coordenação).Nos limites da história: a construção da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos. Brasília: UNIP, UNAF, 2009.

Sítios Eletrônicos pesquisados:

http://www.stf.jus.br.

http://www.stj.jus.br.

http://www.casacivil.planalto.gov.br.


Notas

  1. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. 2ª Ed. P. 1143.
  2. Guilherme Peña de Moraes. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Pág. 122/123.
  3. Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
    § 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
  4. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2003. 16ª ed. P.450.
  5. In BDA – Boletim de Direito Administrativo – Março/2006. P. 276.
  6. Art. 65 (VETADO). A lei especial objeto do art. 26 desta Lei Complementar deve disciplinar a remuneração dos integrantes dos órgãos previstos no art. 2º., dos titulares de seus cargos efetivos e de confiança, bem como a dos dirigentes, vedando-lhes a participação na arrecadação de tributos, contribuições sociais e multas, o recebimento de honorários de sucumbência e a percepção de valor pro labore.
  7. Passagem extraída da obra: “Nos Limites da história: a contrução da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos/ Coordenação de Jefferson Garús Guedes e Mauro Luciano Hauschild. Brasília: 2009. Pgs. 75/76.
  8. Art. 99. Se o advogado fizer juntar aos autos, até antes de cumprir-se o mandado de lavramento ou precatório, o seu contrato de honorários, o juiz determinará lhe sejam estes pagos diretamente, por dedução de quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este prover que já os pagou.
    § 1º Tratando-se de honorários fixados na condenação, tem o advogado direito autônomo para executar a sentença nessa parte podendo requerer que o precatório, quando este for necessário, seja, expedido em seu favor.
    § 2º Salvo aquiescência do advogado, o acordo feito pelo seu cliente e a parte contrária não lhe prejudica os honorários, quer os convencionais, quer os concedidos pela sentença.
  9. Art. 20 A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.
  10. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94, pp. 376/378.
  11. Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
    § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
  12. Uadi Lammêgo Bulos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Editora Saraiva, 2008. 2ª Edição. P. 335.
  13. 13 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participaram do processo:
    Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.”
    No exame da referida ADI, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, julgou procedente o pedido formulado na inicial da ação para, sem redução de texto, emprestar à expressão “ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB”, interpretação conforme a carta, a abranger advogados do setor privado e do setor público.
  14. É o caso dos estados do Espírito Santo, de São Paulo e Minas Gerais. Poderia estender a lista, mas para não tornar a leitura cansativa, limito-me a tais exemplos.

Autor

Paulo Fernando Feijó Torres Junior

Advogado da União em Brasília (DF).

NBR 6023:2002 ABNT: JUNIOR, Paulo Fernando Feijó Torres. Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3106, 2 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20765>. Acesso em: 16 jan. 2012.


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Entre outras medidas tendentes a garantir o reajuste remuneratório, o SINPROFAZ ingressou, no último dia 24 de novembro, com ação judicial contra a União.


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Jurisprudência comentada: A inconstitucionalidade da contribuição previdenciária incidente sobre a produção rural dos empregadores pessoas naturais (Recurso Extraordinário nº 363.852/MG)

Autor: Fabrício Sarmanho de Albuquerque, Procurador da Fazenda Nacional, Professor de Direito Constitucional Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL e pela Universidade Castilla La Mancha, na Espanha.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

I – INTRODUÇÃO

A questão aqui abordada é, sem dúvida, de grande repercussão jurídica e econômica para o direito brasileiro, em especial por trazer reflexos imediatos no equilíbrio do sistema previdenciário.

A área rural durante muito tempo deixou de recolher contribuições sociais que eram recolhidas pelo setor urbano. Isso se deve a diversos motivos: política de incentivo do setor, dificuldade de fiscalização, informalidade da atividade e falta de consciência acerca da solidariedade do sistema e da necessidade de manutenção do equilíbrio atuarial.

Com a edição da Lei nº 8.212/91 todos os empregadores e empregados passaram a contribuir para a seguridade social, inclusive aqueles que atuam na área rural.

Diversos problemas práticos podem ser indicados em relação à contribuição previdenciária rural. Primeiramente, a informalidade do setor acaba levando à inexistência de folha de salários. Em segundo lugar, as grandes distâncias a serem percorridas para se fiscalizar um pequeno número de empregadores findam por dificultar a fiscalização tributária. Por fim, a operacionalização da cobrança gera uma burocracia difícil de ser dominada pelo setor rural, muitas vezes desenvolvida por pessoas sem grande instrução formal ou acesso a serviços de apoio à empresa, como serviços contábeis ou de assessoramento tributário.

Todas essas dificuldades levaram o Congresso Nacional a substituir a contribuição sobre a folha de salários pela contribuição em percentual bem inferior, incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção. Essa contribuição é vulgarmente chamada de FUNRURAL, em alusão ao tributo que anteriormente incidia sobre o setor.

A Lei nº 8.540/92 trouxe diversos benefícios:

  1. simplificou a forma de cobrança;
  2. viabilizou a fiscalização, pois ela passou a concentrar-se nos pontos de comercialização, como as empresas de beneficiamento;
  3. reduziu a carga tributária, substituindo a contribuição de 20% sobre a folha de salários pela contribuição de 2% sobre a receita bruta.

Com a inovação da Lei nº 8.540/92 e das supervenientes Leis nº 9.528/97 e 10.256/2001, o art. 25 da Lei nº 8.212/91, que cuida do custeio da Seguridade Social, passou a ter a seguinte redação:

Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de:

  1. 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção;
  2. 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho.

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 363.852/MG, mais conhecido como “Caso Mataboi S/A”, foi discutida a constitucionalidade da nova sistemática de tributação dos empregadores rurais pessoas físicas. O Supremo Tribunal Federal entendeu por declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.540/92, nos seguintes termos.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário para desobrigar os recorrentes da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por sub-rogação sobre a “receita bruta proveniente da comercialização da produção rural” de empregadores, pessoas naturais, fornecedores de bovinos para abate, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos os ônus da sucumbência. Em seguida, o Relator apresentou petição da União no sentido de modular os efeitos da decisão, que foi rejeitada por maioria, vencida a Senhora Ministra Ellen Gracie. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, com voto proferido na assentada anterior. Plenário, 03.02.2010.

O acórdão recebeu a seguinte ementa.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRESSUPOSTO ESPECÍFICO – VIOLÊNCIA À CONSTITUIÇÃO – ANÁLISE – CONCLUSÃO. Porque o Supremo, na análise da violência à Constituição, adota entendimento quanto à matéria de fundo do extraordinário, a conclusão a que chega deságua, conforme sempre sustentou a melhor doutrina – José Carlos Barbosa Moreira –, em provimento ou desprovimento do recurso, sendo impróprias as nomenclaturas conhecimento e não conhecimento.

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – COMERCIALIZAÇÃO DE BOVINOS – PRODUTORES RURAIS PESSOAS NATURAIS – SUB-ROGAÇÃO – LEI Nº 8.212/91 – ARTIGO 195, INCISO I, DA CARTA FEDERAL – PERÍODO ANTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98 – UNICIDADE DE INCIDÊNCIA – EXCEÇÕES – COFINS E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PRECEDENTE – INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR. Ante o texto constitucional, não subsiste a obrigação tributária sub-rogada do adquirente, presente a venda de bovinos por produtores rurais, pessoas naturais, prevista nos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com as redações decorrentes das Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97. Aplicação de leis no tempo – considerações. (grifos apostos)

O acórdão supra não transitou em julgado, tendo em vista que foram opostos embargos de declaração pela União ainda não julgados até a data de elaboração deste estudo. De qualquer forma, diversas inconsistências podem ser facilmente apontadas no julgamento, talvez um dos mais recheados de inconsistências na história da Corte.

Cuidaremos neste estudo de apontar quais foram as falhas técnicas cometidas pela Suprema Corte ao julgar o caso em tela.

II – PRIMEIRA CRÍTICA: FALSA PREMISSA DE DUPLA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

O primeiro passo para se entender a tributação em estudo é saber diferenciar a contribuição que se paga como segurado daquela que se paga como empregador. Também é importante lembrar que pessoas físicas não são tributadas pela COFINS.

Uma das premissas adotadas no acórdão recorrido diz respeito à suposta dupla incidência tributária sobre o contribuinte empregador rural pessoa física. Alega-se que que não seria possível fazer incidir mais de um tributo sobre a mesma hipótese de incidência constante no art. 195 da Constituição Federal. Verbis:

Então, o produtor rural, pessoa natural, fica compelido a satisfazer, de um lado, a contribuição sobre a folha de salários e, de outro, a COFINS, não havendo lugar para ter-se novo ônus, relativamente ao financiamento da seguridade social (fl. 1889 do acórdão)

O Sr. Ministro Cezar Peluso incorre no mesmo equívoco, pois entende que o produtor rural seria punido quando, aumentando a produção, passa a ter empregados, pois começa a contribuir, além da folha de salários, sobre a comercialização da produção. Não existe essa dupla incidência de contribuições sobre o art. 195, I, b, da Constituição Federal e nem mesmo uma dupla cobrança de contribuições sobre o empregador rural. A uma, porque a contribuição sobre folha de salários dele não é recolhida, já que foi substituída pela contribuição sobre o resultado da comercialização (texto expresso do art. 25 da Lei nº 8.212/91). A duas, porque não incide COFINS sobre pessoas físicas, que não possuem receita e nem faturamento.


Se é certo que os empregadores rurais pagam duas contribuições, mais certo ainda é que essas contribuições possuem fundamentos diversos. Uma é paga na condição de segurado (art. 12, V, “a”, da Lei nº 8.212/911) e outra é recolhida na condição de empregador (art. 25 da lei nº 8.212/91).

A primeira, recolhida na condição de segurado, visa ao custeio de seu benefício pessoal de aposentadoria e a segunda, recolhida na condição de empregador, visa a fazer frente aos benefícios de seus empregados.

Outra premissa equivocada lançada no acórdão, como dito anteriormente, diz respeito à suposta incidência de COFINS sobre a mesma hipótese de incidência. Em verdade, não há a cobrança dessa contribuição sobre empregador rural, pessoa física. As pessoas naturais não possuem tributação sobre a receita bruta e nem mesmo faturamento sob o aspecto contábil. A receita bruta da produção rural é equiparada à renda e, assim, apenas é contabilizada para efeito de imposto de renda.

As Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97 vieram à lume em medidas de desoneração da produção rural. As leis que foram declaradas inconstitucionais por esta Corte em verdade reduziam o valor efetivamente cobrado dos empregadores rurais pessoas naturais, posto que pelo regime até então vigente tais empregadores contribuíam sobre a sua folha de salários.

III – SEGUNDA CRÍTICA: INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

Aponta o julgado para a existência de ofensa à isonomia, sob a alegação de que o empregador rural receberia tratamento diferenciado em relação ao empregador urbano.

Na verdade, se alguém poderia alegar ofensa à isonomia seria o empregador urbano, que paga um valor bem maior de contribuição. A norma visava trazer um tratamento desigual àqueles que sejam desiguais, tendo em vista as peculiaridades de alta informalidade do setor rural.

IV – TERC EIRA CRÍTICA: FALTA DE ESCLARECIMENTO DA RAZÃO DE DECIDIR DA CORTE

O julgamento objeto deste estudo não demonstrou qual das inúmeras teses levantadas em Plenário consistiu na razão de decidir do colegiado. Ademais, a ementa entra em choque com o extrato de ata.

Seria importante que o Supremo Tribunal Federal demonstrasse o que foi considerado causa de decidir e o que seria mero obter dictum, já que há diversos argumentos do Pleno que foram acolhidos por alguns Ministros, outros que simplesmente não foram analisados pelos demais Ministros e outros que foram refutados por determinados ministros, como no caso do Sr. Ministro Eros Grau, que refutou a suposta inconstitucionalidade por ofensa à isonomia.

O acórdão surge a partir de um consenso do Plenário, o que sempre fez com que essa Corte reconhecesse que fundamentos suscitados isoladamente conduzem à existência de mero obter dictum, e não a uma causa de decidir. E no presente caso há até mesmo um novo elemento difícil de superar, que consiste no fato de as inconstitucionalidades apontadas no pronunciamento do julgamento não coincidirem com a conclusão exarada na ementa.

Por exemplo, se a causa de decidir foi a ausência da EC nº 20/98, que separou em incisos as hipóteses de incidência constantes do art. 195 e fez inserir a possibilidade de cobrança sobre receita bruna, uma lei ordinária posterior, inclusive a Lei nº 10.256/2001, poderia regularizar a cobrança, como ressalta o voto do Sr. Ministro Relator (“até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos os ônus da sucumbência”).

Se, porém, se entender que mesmo com a edição da EC nº 20/98 a cobrança de contribuição sobre a comercialização da produção seria feita por meio de técnica residual, somente uma lei complementar poderia regularizar a cobrança. Essa é a tese do Sr. Ministro Cezar Peluso, que entendemos ter restado vencida, posto que não acolhida no pronunciamento do Relator e nem dos demais ministros que se manifestaram expressamente.

Por fim, se inconstitucionalidades materiais isoladamente suscitadas, como a ofensa ao princípio da isonomia ? que assentaram-se em premissas falsas que somente não foram esclarecidas na tribuna porque não foram discutidas na origem ?, também foram determinantes para a decisão do Plenário, nenhuma nova medida legislativa poderia ser adotada e se ressuscitaria, com a decisão da Suprema Corte, o quadro de sonegação generalizada existente antes da substituição da folha de salários pelo resultado da comercialização.

A supressão dessa omissão não apenas orientará os futuros passos do Congresso Nacional na sua missão legislativa, como orientará as instâncias de origem, que vêm recebendo milhares de feitos nos quais se discute a contribuição em comento. Enfim, servirá de orientação para esta, que certamente é a causa que promete gerar maior repercussão na área tributária nos últimos tempos, evitando a multiplicação de discussões acerca da matéria.

V – QUARTA CRÍTICA: ACÓRDÃO QUE NÃO EXPLICITA O DIREITO APLICÁVEL À ESPÉCIE

Segundo a Enunciado 456 da Súmula do STF, “o Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”. Esse entendimento ganha ainda mais força com o surgimento do rito da repercussão geral, que faz com que os feitos representativos de uma matéria sirvam de paradigma para todo o Poder Judiciário, algo que se denomina objetivação do controle difuso.

No julgamento do RE nº 566.621/RS, por exemplo, no qual se julgava a constitucionalidade dos arts. 3º e 4º da Lei Complementar nº 118/2005, a Sra. Ministra Relatora, Ellen Gracie, que se pronunciou pela inconstitucionalidade do dispositivo, aproveitou para determinar, caso fosse vencedora, qual seria a normatização aplicável. Essa é a verdadeira tarefa da Suprema Corte, a de solucionar as controvérsias constitucionais como um todo.

Cabe lembrar o caráter objetivo do controle difuso em feitos representativos de uma controvérsia jurídica, que vem destacando o papel do Supremo Tribunal Federal na real solução dos litígios, com uma atuação sempre voltada a impedir a proliferação de processos repetitivos nas instâncias de origem.

O acórdão em estudo não agiu dessa forma. Não explicitou qual seria a norma aplicável ao empregador rural pessoa física após a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.540/92.

Após o pronunciamento da Suprema Corte acerca da inconstitucionalidade do “artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97”, milhares de contribuintes ajuizaram as mais diversas ações e, infelizmente, entendimentos equivocados têm levado à proliferação de liminares que extrapolam muito o que fora julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Os principais equívocos resultam da afirmação de que:

  1. os empregadores rurais pessoas físicas não têm obrigação de contribuir com a seguridade social, como se possuíssem alguma isenção que os diferenciasse dos demais empregadores; 
  2. os subrrogados (empresas que apenas retêm o tributo pago pelo empregador para repassar ao órgão arrecadador) têm direito de não repassar qualquer contribuição previdenciária sobre pessoas físicas, e não somente em relação aos empregadores pessoas físicas, mantendo-se a obrigação em relação aos segurados especiais, como seria correto.
  3. os subrrogados têm direito à repetição de indébito sendo que sequer são contribuintes do tributo. 
  4. os contribuintes têm direito à repetição de indébito, e não a um recálculo segundo a base de cálculo correta após a inconstitucionalidade da Lei nº 8.540/92, que é a folha de salários.
  5. é inconstitucional a contribuição sobre o total da produção até os dias atuais, sem considerar que a inconstitucionalidade foi suprida pela edição da Lei nº 10.256/2001. 

Quanto ao equívoco nº 1, seria interessante que o Tribunal demonstrasse de forma expressa que o que se declarou foi apenas a inconstitucionalidade da nova técnica de cobrança, que incide sobre o total da contribuição. Sendo assim, os empregadores rurais pessoas naturais devem continuar a recolher sobre sua folha de salários. A correção dessa omissão levaria também à correção do equívoco nº 4.


Essa discussão chegou a ser levantada pelo Sr. Ministro Sepúlveda Pertence em seu pronunciamento, mas não chegou a ser resolvida quando do veredicto. Na discussão a Suprema Corte confundiu empregador pessoa física com segurado especial e com o subrrogado, sendo que ao final não se explicitou que, afastada a contribuição sobre a comercialização, voltaria a incidir o tributo sobre a folha de salários.

Quanto ao equívoco nº 5, é importante lembrar que a previsão do acórdão (“até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição”) já foi cumprida, tendo em vista a edição da Lei nº 10.256/01, que deu a atual redação do art. 25 da Lei nº 8.212/98. Vejamos, acerca do tema o recente posicionamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região na APELAÇÃO CÍVEL Nº 2007.70.03.004958-9/PR, que declarou a constitucionalidade dessa norma e, consequentemente, a constitucionalidade da cobrança da contribuição rural após 2001:

TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL. PRODUTOR RURAL PESSOA FÍSICA EMPREGADOR. LEGITIMIDADE ATIVA. COMPENSAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUMULAS 512 DO STF E 105 DO STJ.

  1. A jurisprudência é uníssona no sentido de reconhecer a legitimidade ativa ad causam da empresa adquirente/consumidora/consignatária e da cooperativa para discutir a legalidade da contribuição para o Funrural.
  2. O substituto tributário carece de legitimidade para compensar ou repetir o indébito, porquanto o ônus financeiro não é por ele suportado.
  3. O STF, ao julgar o RE nº 363.852, declarou inconstitucional as alterações trazidas pelo art. 1º da Lei nº 8.540/92, eis que instituíram nova fonte de custeio por meio de lei ordinária, sem observância da obrigatoriedade de lei complementar para tanto.
  4. Com o advento da EC nº 20/98, o art. 195, I, da CF/88 passou a ter nova redação, com o acréscimo do vocábulo “receita”.
  5. Em face do novo permissivo constitucional, o art. 25 da Lei 8.212/91, na redação dada pela Lei 10.256/01, ao prever a contribuição do empregador rural pessoa física como incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção, não se encontra eivado de inconstitucionalidade.

Deveria a Suprema Corte deixar claro que as subrrogadas não possuem direito a repetição de indébito, já que não recolhem o tributo, servindo apenas de instrumento para o seu repasse. Além disso, é importante consignar que nunca deixaram de ser obrigadas a repassar o valor recolhido de segurados especiais, em relação aos quais a cobrança sobre o total da produção não possui qualquer vício. Essa explicitação evitaria os equívocos nº 2 e 3 de se perpeturarem.

VI – QUINTA CRÍTICA: ERRO NA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA CONTRIBUIÇÃO EM RELAÇÃO AO SEGURADO ESPECIAL E DA DECL ARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE TOTAL DO ART. 25, I E II DA LEI 8.212/91

Ao longo de todo o julgamento ficou explicitado que a instituição de contribuição sobre o total da produção somente seria constitucional em relação ao segurado especial, que atua em regime familiar, nos termos do art. 195, § 8º, da CF. Isso pode ser conferido nos seguintes trechos:

Vale frisar que, no artigo 195, tem-se contemplada situação única em que o produtor rural contribui para a seguridade social mediante a a plicação de alíquota sobre o resultado de comercialização de produção, ante o disposto no § 8º do citado artigo 195 – a revelar que, em se tratando de produtor, parceiro, meeiro e arrendatários rurais e pescador artesanal bem como dos respectivos cônjuges que exerçam atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, dá-se a contribuição para a seguridade social por meio de aplicação de alíquota sobre o resultado da comercialização da produção. A razão do preceito é única, não se ter, quanto aos neles referidos, a base para a contribuição estabelecida na alínea “a” do inciso I do artigo 195 da Carta, isto é, a folha de salários. Daí a cláusula contida no § 8º em análise “… em empregados permanentes…”. (Min. Marco Aurélio, fl. 1888)“De acordo com o artigo 195, § 8º, do Diploma Maior, se o produtor não possui empregados, fica compelido, inexistente a base de incidência da contribuição – a folha de salários – a recolher percentual sobre o resultado da comercialização da produção (Min. Marco Aurélio, fl. 1889)

Ora, a contribuição sobre o resultado da comercialização da produção rural do art. 195, § 8º, existe precisamente porque seu destinatário – o produtor rural sem empregados permanentes – não pode, é obvio, contribuir sobre folha de salários, faturamento ou receita, já que não dispõe de empregados, nem é pessoa jurídica ou entidade a ela equiparada.

Logo, é imediata a conclusão de que o sujeito passivo objeto pela parte inicial do art. 25 não se enquadra na exceção do art. 195, § 8º, reservada, em caráter exclusivo, ao segurado especial, que recebe proteção constitucional em vista de sua vulnerabilidade socioeconômica.

Não entrando na exceção do art. 195, §8º, subsume-se o empregador rural pessoa física à regra geral o art. 195, I, que estabelece a contribuição social devida pelo empregador sobre diferentes base de cálculo, notadamente a folha de salários – dentre os quais não se encontra, está claro, o “resultado” ou a “receita bruta proveniente da comercialização de sua produção. (Min. Cezar Peluso, fl. 1914-1915).

Ocorre, porém, que o artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, foi declarado inconstitucional sem ressalvas, o que acaba por tornar nula a parte do dispositivo relativa aos segurados especiais, que também consta do art. 25, I e II com a redação dada pela Lei nº 8.540/92. Transcreve-se a redação do dispositivo tido como inconstitucional:

Art. 25. A contribuição da pessoa física e do segurado especial referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta lei, destinada à Seguridade Social, é de:

  1. dois por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção;
  2. um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento de complementação das prestações por acidente de trabalho.

Poder-se-ia argumentar que a declaração da inconstitucionalidade, tal qual foi realizada, levaria à repristinação da redação anterior, que já previa a contribuição do segurado especial, o que não geraria problemas. Ocorre, porém, que a redação anterior trazia uma contribuição mais elevada, o que prejudicaria, de forma indevida, esses contribuintes.

A redação desse mesmo art. 25, dada pela Lei nº 8.398/1992, que voltaria a vigorar se a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92 for irrestrita é a seguinte:

Art. 25. Contribui com 3% (três por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção o segurado especial referido no inciso VII do art. 12.

O Segurado especial, se não corrigido o entendimento da Suprema Corte, deixará, sem qualquer motivo constitucionalmente extraído, de contribuir em dois por cento para voltar a contribuir em 3%. Ou seja, terá um aumento de 50% na sua contribuição.

Por isso, com base nos argumentos vencedores pelo Plenário, o correto seria declarar a inconstitucionalidade parcial do art. 25 da Lei nº 8.212/91, apenas na parte que diz respeito aos empregadores rurais pessoas físicas, mantendo hígido o dispositivo em relação aos segurados especiais, que nada tem a ver com a inconstitucionalidade apontada. 

O mesmo pode ser dito em relação ao artigo 30, IV da referida lei, declarado inconstitucional e que recebeu da Lei nº 8.540/92 a seguinte redação:

Art. 30. ……………………………….

  1. o adquirente, o consignatário ou a cooperativa ficam sub-rogados nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea a do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta lei, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento;

Ora, a sub-rogação em relação ao segurado especial não possui nenhuma inconstitucionalidade, motivo pelo qual seria interessante que esse dispositivo fosse mantido hígido em relação aos segurados especiais, já que seria contraproducente obrigá-los a contribuir individualmente, gerando ainda mais burocracia e gastos administrativos.

E nesse ponto, da sub-rogação, ainda há uma agravante. Com a edição de lei posterior à EC 20/98, que já foi inclusive considerada constitucional perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a contribuição sobre a produção dos empregadores rurais pessoas físicas foi retomada. Dessa forma, seria importante que fosse declarada a constitucionalidade da sub-rogação após a edição da lei nova a que se referiu o Relator em seu pronunciamento constante do acórdão.

Como é possível perceber da leitura do acórdão, a sub-rogação em si não possui nada de inconstitucional. Ela recebeu uma declaração de inconstitucionalidade por arrastamento, já que o Supremo Tribunal Federal entendeu ser desnecessária manter a sub-rogação se o tributo em si já não seria mais cobrado.

Ocorre que esse dispositivo não é desnecessário como se imagina. Muito pelo contrário, continua tendo utilidade prática em relação aos tributos recolhidos pelos segurados especiais e dos empregadores rurais depois da edição da Lei nº 10.256/2001, que adequou a técnica de tributação à nova redação constitucional.

Não havendo uma vírgula de argumento de inconstitucionalidade contra a fórmula da sub-rogação ao longo de todo o julgamento, não há razões para se declarar a inconstitucionalidade do art. 30, IV, da Lei nº 8.212/91.

Melhor seria que a Corte Suprema ao menos declarasse apenas a inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto, para excluir a incidência da norma em relação aos empregadores rurais pessoas física, exclusivamente no período de regência das Leis nº 8.540/92 e 9.528/97.

VII – CONCLUSÃO

Tendo em vista tratar-se de julgamento que ainda pode ser retocado pela Suprema Corte, ousamos apresentar algumas sugestões para que as incoerências apresentadas sejam evitadas. Seria interessante, por exemplo, que o Plenário esclarecesse os seguintes pontos:

  1. Como haveria uma dupla incidência tributária sobre os empregadores rurais pessoas naturais bem como ofensa à isonomia tributária, se estes não recolhem sobre a folha de salários e nem mesmo recolhem COFINS, sujeitando-se exclusivamente à tributação sobre a comercialização da produção?
  2. Quais seriam, de fato, as razões de decidir e qual seria o veredicto da Corte, o divulgado no acórdão ou aquele constante da ementa? A partir dessas razões, pode-se dizer que uma legislação ordinária idêntica, posterior à EC nº 20/98 seria constitucional? Mesmo após a edição da referida lei seria necessária a aplicação da técnica da tributação residual, que imporia uma lei complementar para a espécie?
  3. Se em todos os momentos foi afirmado que a contribuição dos segurados especiais é a única forma de cobrança sobre o resultado da comercialização constitucionalmente assegurada, porque foi declarada a inconstitucionalidade TOTAL do art. 25 da Lei nº 8.212/91, que trata tanto do segurado empregador quanto do segurado especial?
  4. Se a cobrança feita em relação aos segurados especiais é constitucional, nos termos do art. 195, § 8º, da CF, porque foi reconhecido o direito de a recorrida não permanecer na condição de subrrogada, ao invés de ser reconhecido apenas a inconstitucionalidade quando seja subrrogada em relação aos empregadores rurais pessoas naturais, permanecendo a obrigação quando adquira bovinos de segurados especiais que atuam em regime de economia familiar?
  5. Sendo inconstitucional a legislação editada antes da EC nº 20/98, seria constitucional a cobrança atualmente feita, com base na Lei nº 10.256/2001?

Um acórdão tecnicamente correto deveria, no nosso humilde ponto de vista, esclarecer que:

  1. nos termos da Súmula 456/STF, durante o período de regência das Leis nº 8.540/92 e 9.528/97, ante a sua inconstitucionalidade e consequentemente nulidade, ocorre a repristinação constitucional da redação original da Lei nº 8212/98, que remonta à tributação desses contribuintes sobre sua folha de salários.
  2. o artigo art. 25, incisos I e II, com a redação dada pela Lei nº 8.540/92 somente teve declarada sua inconstitucionalidade parcial, com redução do texto, no que tange às expressões “A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e” e “respectivamente, na alínea a do inciso V e”, mantendo-se, assim, a contribuição relativa ao contribuinte especial.
  3. o art. 30, IV, da Lei nº 8.212/91 somente deixa de ser aplicado nos limites da declaração de inconstitucionalidade.
  4. a novel legislação ordinária, arrimada no art. 195 da Constituição Federal na redação dada pela EC nº 20/98, ajusta a exação à interpretação constitucional dada pela Suprema Corte.

O princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário, inscrito no art. 5º, XXXV, da Constituição do Brasil não resta observado pelo simples fato de se emitir pronunciamento de mérito sobre as questões apresentadas. A emissão de decisões judiciais claras e fundadas em premissas corretas sob a ótica da lógica formal também é essencial para que se legitime a atividade jurisdicional.

Por isso, esperamos que este estudo conceda subsídios à atuação de todos os operadores do Direito envolvidos com o tema. Caso seja mantida a decisão original, restará às instâncias ordinárias resolverem os problemas práticos que certamente surgirão e que certamente voltarão à Suprema Corte pela via extraordinária.

Notas

1 “Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: […] V – como contribuinte individual: a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária, a qualquer título, em caráter permanente ou temporário, em área superior a 4 (quatro) módulos fiscais; ou, quando em área igual ou inferior a 4 (quatro) módulos fiscais ou atividade pesqueira, com auxílio de empregados ou por intermédio de prepostos; ou ainda nas hipóteses dos §§ 10 e 11 deste artigo; […]”;


Parecer PGFN/CRJ/Nº 492/2010

Autor: Luana Vargas Macedo, Procuradora da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

FORÇA – PERSUASIVA OU VINCULANTE – DOS PRECEDENTES JUDICIAIS DO STF/STJ. DESTINO DOS RECURSOS INTERPOSTOS CONTRA DECISOES FUNDADAS NESSES PRECEDENTES. APRESENTAÇÃO, OU NÃO, PELA PGFN, DE RECURSO E DE CONTESTAÇÃO. RAZÕES DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. REQUISITOS

  1. O precedente judicial, oriundo do STF/STJ, formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostenta uma força persuasiva especial e diferenciada, de modo que os recursos interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem possuem chances reduzidas de êxito. Assim, critérios de política institucional apontam no sentido de que a postura de não mais apresentar qualquer tipo de recurso (ordinários/extraordinários), nessas hipóteses, é a que se afigura como a mais vantajosa, do ponto de vista prático, para a PGFN, para a Fazenda Nacional e para a sociedade. Nessa mesma linha, também não há interesse prático em continuar contestando pedidos fundados em precedentes judiciais formados sob a nova sistemática.
  2. Diante da força persuasiva inferior que marca os precedentes judiciais, oriundos do STF/STJ, não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, não há parâmetros suficientemente seguros para se afirmar se os recursos interpostos contra as decisões que os aplicarem tendem, ou não, a obter êxito, sendo certo que fatores das mais diversas ordens poderão influenciar/ determinar o resultado do julgamento desses recursos. Assim, razões de política institucional apontam no sentido de que não é conveniente a adoção, pela PGFN, da postura de deixar de interpor qualquer espécie de recurso contra decisões judiciais proferidas em consonância com tais precedentes, já que não se pode antever se a adoção dessa postura traria mais vantagens do que desvantagens.
  3. Em se tratando, especificamente, de RE/RESP´s interpostos contra acórdãos proferidos em consonância com jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, o seu seguimento tem sido repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ); daí que, nesses casos, pode-se afirmar, com a segurança necessária, que os recursos extremos interpostos contra essas decisões possuem reduzida viabilidade de êxito, de modo que a PGFN não possui interesse prático em continuar insistindo na sua interposição.
  4. De igual modo, também é possível afirmar a baixa utilidade em continuar interpondo agravo regimental contra decisões monocráticas, proferidas por Relatores nos TRF´s, no STJ e no STF que, com respaldo em jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, seguida pela respectiva Turma, negam seguimento, nos termos do art. 557 do CPC, a recursos (agravos de instrumentos, apelações, RESP´s e RE´s).
  5. A aplicação prática das orientações ora sugeridas depende da verificação, pelo Procurador da Fazenda Nacional que atua no caso concreto, quanto ao atendimento dos requisitos listados por este Parecer; ainda como consideração de ordem prática, vale o registro de que a não apresentação, pela PGFN, de contestação/recurso, nas hipóteses sugeridas neste Parecer, deve, sempre, ser precedida de justificativa processual, a ser apresentada administrativamente pelo Procurador da Fazenda Nacional.

I Definição do objeto do presente Parecer

  1. O escopo do presente Parecer consiste, basicamente, em definir a postura a ser adotada pelas unidades da PGFN diante de decisões judiciais, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com jurisprudência oriunda do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nessas hipóteses, a PGFN deverá continuar interpondo recursos?
  2. Para que bem se resolva a questão acima mencionada, reputa-se relevante que, antes, sejam analisados, de forma sucessiva, os seguintes temas: (i) a força dos precedentes judiciais oriundos do STF e do STJ; (ii) destino dos recursos eventualmente interpostos contra decisões judiciais proferidas em consonância com esses precedentes. Examinados esses dois temas, será, então, possível retomar a questão acima referida para, finalmente, enfrentá-la em toda sua plenitude.

II A força dos precedentes judiciais oriundos do STF e do STJ

  1. Como se sabe, pertence à tradição do ordenamento jurídico brasileiro a regra segundo a qual os precedentes judiciais oriundos dos seus Tribunais Superiores possuem força apenas persuasiva, e não vinculante. Nesse ponto, a ordem jurídica pátria, identificada com o sistema da Civil Law (ou românico-germânico), distancia-se dos ordenamentos ligados à Commom Law (ou anglo-saxões), em que, de ordinário, vigora o sistema do stare decisis, caracterizado pela força vinculante dos precedentes judiciais provenientes de alguns dos seus Tribunais. Assim, no Brasil, com a ressalva das Súmulas Vinculantes e das decisões tomadas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade das leis, às quais foi conferido efeito vinculante, as demais orientações provenientes do STF ou do STJ não possuem esse efeito, de modo que, a rigor, a definição dada, por esses Tribunais, a determinada controvérsia jurídica tem caráter apenas persuasivo, não possuindo o condão de verdadeiramente vincular os demais órgãos do Poder Judiciário na resolução de demandas futuras que tratem dessa mesma controvérsia.
  2. Apesar disso, tem-se verificado, especialmente nos últimos anos, a paulatina e crescente introdução, no sistema processual civil brasileiro, de mecanismos destinados a, a um só tempo, conferir mais racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e promover a unidade da interpretação do direito, especialmente mediante o substancial incremento da força persuasiva dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais Superiores. Trata-se do fenômeno da “verticalização” das decisões do STF e do STJ ou da “commonlawlização”1 da ordem jurídica pátria, que tem o precedente judicial como o seu protagonista. As razões que justificam esse movimento foram bem sintetizadas pelo Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEXEIRA:
    1. a necessidade de tornar a Justiça mais ágil e eficiente, afastando milhares de ações desnecessárias e recursos meramente protelatórios, que, na maioria reproduzindo peças lançadas em computador, estão a congestionar os tribunais, agredindo o princípio da celeridade processual e tornando a jurisdição ainda mais morosa, com críticas gerais;
    2. não justificar-se a multiplicidade de demandas e recursos sobre teses jurídicas absolutamente idênticas, já definidas inclusive na Suprema Corte do País, sabido ainda que o descumprimento das diretrizes dessas decisões promana, em percentual muito elevado, da própria Administração Pública;
    3. a necessidade de prestigiar o princípio isonômico, o direito fundamental à igualdade perante a lei, eliminando o perigo das decisões contraditórias, muitas delas contraditórias inclusive a declarações de inconstitucionalidade, em incompreensível contra-senso;
    4. a imprescindibilidade de resguardar o princípio da segurança jurídica, assegurando a previsibilidade das decisões judiciais em causas idênticas.”2
    5. Dentre os dispositivos legais veiculadores de mecanismos processuais que, ao reforçar a importância dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais Superiores, pretendem atingir as finalidades mais acima elencadas, podem ser citados o art. 475, §3º (inexistência de remessa necessária quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em Súmula de Tribunal Superior), o art. 518, §1º (Súmula “impeditiva de recursos”), o art. 557 (inadmissão monocrática de recurso contrário à súmula ou à jurisprudência dominante do STF ou do STJ) e o art. 557, §1º (provimento monocrático de recurso em consonância com súmula ou jurisprudência dominante do STF ou do STJ), todos do CPC e, por fim, o art. 103-A da CF/88 (Súmula Vinculante), introduzido pela Emenda Constitucional n. 45, de 30 de novembro de 2004 (Emenda da “Reforma do Judiciário”). 

  1. Entretanto, embora esses mecanismos processuais tenham, inegavelmente, contribuído para o incremento da força persuasiva dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais Superiores, a experiência acabou demonstrando que os mesmos não eram suficientes para, efetivamente, atingir as finalidades acima elencadas (mais uma vez: conferir mais racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e promover a unidade da interpretação do direito); assim, apesar da existência desses mecanismos, na prática, não raras as vezes, demandas múltiplas, referentes à mesma controvérsia jurídica, continuavam recebendo tratamento distinto pelos órgãos do Poder Judiciário, inclusive quando sobre aquela controvérsia já havia pronunciamento oriundo dos Tribunais Superiores. Essa situação refletia um inegável déficit de autoridade das decisões oriundas do STF/STJ, os quais, apesar de constitucionalmente destinados a proferir a última palavra em termos de interpretação constitucional/infraconstitucional, na prática, tinham seu relevante papel de intérpretes máximos diminuído em razão do indiscriminado desrespeito aos seus precedentes judiciais.
  2. Finalmente, com a introdução, no sistema processual civil pátrio, da sistemática de julgamento por amostragem dos recursos extremos repetitivos (Recurso Especial e Recurso Extraordinário), tal qual delineada pelos arts. 543-B e 543-C do CPC3, a força persuasiva dos precedentes judiciais oriundos do STJ/STF chegou a um nível bastante elevado, abaixo, apenas, da força – no caso, vinculante – de que os mesmos se revestem quando resultam em Súmulas Vinculantes ou quando provém de julgamentos realizados, pela Suprema Corte, em sede de controle concentrado de constitucionalidade das leis.
  3. Com efeito, diferentemente do que prevê o art. 103-A da CF/88, segundo o qual essas Súmulas terão “efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, não há, no modelo de julgamento por amostragem dos recursos extremos repetitivos, qualquer comando prevendo que, uma vez definida, pelos Tribunais Superiores, determinada questão jurídica na forma dos arts. 543-B e 543-C do CPC, essa definição deverá ser, necessariamente, seguida pelos demais órgãos do Poder Judiciário nas futuras demandas a respeito dessa mesma questão. Tampouco há, no novo modelo de julgamento, qualquer regra estabelecendo que os recursos eventualmente interpostos contra as futuras decisões judiciais proferidas no mesmo sentido da definição antes firmada pelo STJ/STF serão, necessária ou automaticamente, inadmitidos4.
  4. Entretanto, apesar de não ser, propriamente, vinculante, e de não ensejar a inadmissão automática dos recursos interpostos contra os futuros acórdãos que o aplicarem, é certo que os precedentes judiciais formados sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostentam uma força persuasiva especial e diferenciada, capaz, a um só tempo, de distingui-los dos outros precedentes judiciais, também oriundos do STF/STJ, mas que não resultaram de julgamentos submetidos a tal sistemática, e de tornar a sua aplicação praticamente impositiva às futuras demandas que tratem da mesma questão jurídica nele tratada, podendo essa aplicação ser superada, apenas, em hipóteses absolutamente remotas e excepcionais.
  5. E de onde advém essa sobredita força persuasiva especial e diferenciada dos precedentes judiciais formados sob a nova sistemática de julgamento? A resposta, segundo aqui se entende, é a de que a força persuasiva especial e diferenciada desses precedentes judiciais advém, basicamente, de dois fatores (que guardam entre si verdadeira relação de interdependência): primeiro, do procedimento, também especial e diferenciado, conferido ao julgamento dos recursos extremos repetitivos, tal qual delineado nos arts. 543-B e 543- C do CPC; segundo, da própria lógica do novo instituto, ou, ainda, da sua razão-de-ser.
  6. A respeito do primeiro fator acima referido, cabe registrar que ao novo modelo de julgamento, por amostragem, dos recursos extremos repetitivos, previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, foi conferido um rito processual absolutamente especial e destacado, inédito no sistema processual civil brasileiro, composto por fases e dotado de características bastante peculiares, tais como: (a) a possibilidade de que, diante da relevância da matéria, o STF/ STJ autorizem a manifestação de terceiros (pessoas, órgãos e entidades, com interesse na controvérsia), a respeito da repercussão geral, nos recursos extraordinários repetitivos5, e a respeito do mérito, nos recursos especiais repetitivos6; (b) possibilidade de que o STF/STJ solicitem, aos Tribunais estaduais e federais, informações a respeito da controvérsia7; (c) prévia oitiva do Ministério Público acerca da controvérsia, no processamento dos recursos especiais repetitivos8; (d) julgamento do recurso extremo paradigma pelo Pleno, no STF9, e pela Seção ou pela Corte Especial, no STJ10.
  7. Percebe-se que a feição dada ao julgamento dos recursos extremos repetitivos, previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, imprime aos precedentes judiciais dele decorrentes, inegavelmente, um grau de legitimidade excepcional, na exata medida em que, de um lado, a sua formação conta – ou pode contar – com a participação de múltiplos agentes (do Ministério Público e, mesmo de integrantes da sociedade, na figura de terceiros interessados na controvérsia), e, de outro lado, o seu julgamento é realizado pelos órgãos colegiados máximos ou qualificados do STF/STJ. De fato, nenhum outro precedente judicial, ainda que oriundo do STF/STJ, e mesmo que tenha dado origem a Súmula (não Vinculante), resulta de um procedimento tão legitimador quanto aquele previsto nos arts. 543-B e 543- C do CPC, pertinente ao julgamento dos recursos extremos repetitivos.
  8. Justamente por resultarem de procedimento tão especial e legitimador, os precedentes judiciais formados nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC revestem-se de um nível de definitividade e certeza diferenciado, quando comparado àquele ostentado pelos precedentes oriundos de julgamentos, ainda que do STF/STJ, não submetidos à nova sistemática. Com isso se quer dizer que a alteração, pelo STF/STJ, do entendimento contido em precedente judicial formado nos moldes da nova sistemática, embora possível, parece pouco provável, e, ao que tudo indica, apenas ocorrerá em casos excepcionais e extremos, quando, por exemplo, novos dados possam ser agregados à questão jurídica tratada no precedente de modo a demonstrar que a definição nele contida já não mais se apresenta como a melhor tecnicamente, ou, então, como a mais justa11; por outro lado, e diversamente, sabe-se que os precedentes oriundos do STF/STJ, não submetidos à nova sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, têm se mostrado especialmente sujeitos a oscilações e alterações determinadas pelos mais diversos fatores (p. ex., mudanças de entendimento decorrentes da alteração na composição das turmas julgadoras desses Tribunais).
  9. Nessa linha, pode-se afirmar, então, que: o procedimento especial e legitimador previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC faz com que os precedentes judiciais dele decorrentes ostentem um nível bastante elevado de certeza e definitividade; esses atributos, por sua vez, estando presentes em tais precedentes, são capazes de lhes elevar a força persuasiva, o que significa que a sua observância, pelos órgãos jurisdicionais inferiores, embora não seja obrigatória, dado o seu caráter não vinculante, certamente será a regra.
  10. Já no que pertine ao segundo fator acima referido, impende assinalar que a própria lógica do novo instituto, explicada, primordialmente, a partir das suas finalidades (como antes referido: conferir racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e unidade na interpretação do direito), impõe que os precedentes judiciais dele resultantes se revistam de uma força persuasiva realmente diferenciada, superável apenas excepcionalmente.
  11. De fato, a lógica subjacente à nova sistemática de julgamento certamente restaria desvirtuada caso o precedente judicial formado sob as suas vestes pudesse ser, simplesmente, e sem qualquer distinção, ignorado quando do julgamento das demandas futuras que tratem da mesma questão jurídica nele tratada, como se fosse um precedente judicial “normal” (ou seja, que não se sujeitou a tal sistemática especial), prestando-se a definir o destino, apenas, do conjunto restrito de recursos repetitivos que estavam sobrestados na origem aguardando o julgamento do recurso paradigma. Assim, quando determinada tese jurídica é apreciada, debatida e, enfim, decidida mediante o diferenciado e especial procedimento previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, o precedente daí decorrente, conforme visto acima, ostenta tamanho grau de certeza e definitividade que o seu descumprimento indiscriminado, pelos demais órgãos jurisdicionais e pelos próprios Tribunais Superiores, nos casos futuros e idênticos que lhes sejam submetidos, seria ir “na contramão” das próprias finalidades que alimentam e movem o novo sistema, e que lhe justificam a razão-de-ser.

  1. E esse descumprimento indiscriminado retiraria, do novo instituto, muito da sua utilidade, eis que demandas idênticas e múltiplas, que tratassem de controvérsia jurídica já detidamente analisada e definitivamente resolvida pelo STF/STJ, em julgamento realizado sob a sistemática prevista no art. 543-B e 543-C do CPC, continuariam recebendo tratamentos divergentes e, nessa linha, anti-isonômicos, pelos órgãos jurisdicionais inferiores. E mais: os recursos interpostos nos autos dessas demandas repetitivas e múltiplas continuariam aportando ao STJ/STF, contribuindo, dessa forma, para o abarrotamento desses Tribunais e, conseqüentemente, para a – tão indesejada – elevação dos índices de morosidade e de ineficiência na entrega da prestação jurisdicional.
  2. Assim, dos dois fatores acima referidos decorre a constatação de que o precedente judicial formado sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, a despeito de não possuir caráter vinculante, apresenta um “plus” em sua força persuasiva, sendo esta mais elevada do que a dos precedentes judiciais, ainda que oriundos do STF/STJ, não resultantes de julgamentos sujeitos à nova sistemática.

III Destino dos recursos interpostos contra decisões judiciais que aplicarem precedentes oriundos do STF/STJ.

  1. Diante do panorama acima delineado, parece correto se afirmar que, sob o critério da qualidade da força de que se revestem, existem, na ordem jurídica brasileira, três “espécies” de precedentes judiciais oriundos do STF/STJ: (i) precedentes do STF que ensejaram a edição de Súmula Vinculante ou que foram proferidos em sede de controle concentrado de constitucionalidade – possuidores de força vinculante; (ii) precedentes oriundos de julgamentos realizados nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC – possuidores de uma força persuasiva “qualificada”, explicada a partir dos dois fatores acima referidos; (iii) precedentes oriundos de julgamentos não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC – possuidores de uma força persuasiva “ordinária”, ou seja, comum.
  2. Os primeiros – que ensejaram Súmula Vinculante ou que tenham sido proferidos em sede de controle concentrado – possuem, como se sabe, o condão de vincular os demais órgãos do Poder Judiciário na resolução de demandas pendentes e futuras que versem sobre a mesma controvérsia jurídica nela tratada, de modo que os recursos eventualmente interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem serão, necessariamente e por força de lei, rejeitados.
  3. Os segundos, por sua vez, – formados nos moldes dos art. 543- B e 543-C do CPC -, ostentam força persuasiva bastante elevada, de modo que os recursos eventualmente interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem possuem chances remotas, bastante reduzidas, de êxito; e essa reduzida viabilidade de êxito se faz presente não apenas em relação aos recursos extremos (recursos extraordinário e especial) contrários ao precedente judicial formado sob a nova sistemática, verificando-se, também, em relação aos recursos ordinários (p. ex. apelação e agravo de instrumento) que ostentarem tal condição. É que, atualmente, o CPC alberga mecanismos processuais capazes de obstar, desde o início, o processamento dessas duas espécies de recursos (extremos e ordinários), sempre que os mesmos afrontarem a jurisprudência dos Tribunais Superiores. É o caso, por exemplo, do art. 557 do CPC, que estabelece que o Relator, no Tribunal a quo ou mesmo no Tribunal Superior, negará seguimento a recurso (apelação, agravo de instrumento, recurso extraordinário e recurso especial) contrário a “jurisprudência dominante” do STF/STJ.
  4. Por fim, quanto aos terceiros – não submetidos aos arts. 543- B e 543-C do CPC – , a realidade tem demonstrado que os mesmos ostentam uma força persuasiva inferior, evidenciada pelo inegável histórico de desrespeito indiscriminado a esses precedentes pelos órgãos jurisdicionais inferiores; trata-se do já antes referido fenômeno do “déficit de autoridade das decisões oriundas do STF/STJ”. Embora não se pretenda, neste Parecer, perquirir as – complexas e multifacetadas- causas desse fenômeno, não se pode deixar de referir que uma delas parece estar relacionada à própria instabilidade da jurisprudência do STF/STJ, ou seja, ao baixo grau de definitividade e certeza de que se revestem os seus precedentes, o que, certamente, estimula ou encoraja, ainda que de forma indireta, os órgãos jurisdicionais inferiores a julgarem em sentido diverso do encampado por esses Tribunais Superiores, sempre que assim determinar o seu entendimento pessoal sobre a questão levada a juízo.
  5. Assim, diante da força persuasiva inferior que marca os precedentes judiciais, oriundos do STF/STJ, não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, não há parâmetros minimamente seguros e estáveis para se afirmar se os recursos eventualmente interpostos contra as decisões que os aplicarem (se os aplicarem) tendem, ou não, a obter êxito12; aqui, fatores das mais diversas ordens poderão influenciar/determinar o resultado do julgamento do recurso, como, por exemplo, a jurisprudência firmada, no âmbito do próprio órgão julgador do recurso, a respeito da questão jurídica definida no precedente, o grau de estabilidade do entendimento firmado nesse precedente (o que, por sua vez, depende do fato de tal entendimento ser pacífico e reiterado ou isolado, ser recente ou antigo, ter sido proferido por Turma ou pelo órgão plenário do Tribunal), dentre vários outros.
  6. Entretanto, como verdadeira exceção ao afirmado no parágrafo anterior, tem-se verificado, na prática, de forma repetitiva, a adoção, pelos Presidentes e Vice-Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, da postura de, por ocasião do juízo de admissibilidade recursal, inadmitir recursos especial e extraordinário interpostos contra decisões proferidas em consonância com a jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ13 (formada, ou não, nos moldes da nova sistemática), invocando-se, para tanto, o disposto na Súmula 83 do STJ14. A mesma conduta tem sido assumida, pelo Presidente/Vice-Presidente do E. STJ, ao efetuar o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários interpostos contra acórdãos proferidos com respaldo em jurisprudência pacífica e reiterada daqueles dois Tribunais Superiores.
  7. Assim, nessa hipótese específica, pode-se afirmar, com um grau aceitável de segurança, – obtida mediante a análise da conduta reiteradamente assumida pelos Presidentes/Vices dos TRF´s e do STJ -, que os recursos extremos interpostos contra acórdãos fundados em jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ tendem a ser inadmitidos, independentemente do fato de tal jurisprudência derivar, ou não, do procedimento previsto no art. 543-B e 543-C do CPC.

IV Postura da PGFN diante de decisões desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com precedentes judiciais oriundos do STF/STJ

  1. Uma vez analisados, nas linhas anteriores, a força dos precedentes judiciais oriundos do STF/STJ e o destino dos recursos eventualmente interpostos contra decisões que os aplicarem, já se faz possível retomar a questão que efetivamente constitui o objeto do presente Parecer, a saber: qual deve ser a postura, adotada pela PGFN, diante de decisões judiciais, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com jurisprudência oriunda do STF/ STJ? Nessas hipóteses, a PGFN deverá continuar interpondo recursos?
  2. Preliminarmente, registre-se que a questão acima referida somente tem pertinência para aquelas hipóteses em que a decisão judicial, desfavorável à Fazenda Nacional, tenha sido proferida em consonância com precedente judicial, do STF/STJ, relativo à questão jurídica que ainda não foi objeto de Ato Declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, de Súmula ou Parecer do Advogado-Geral da União, de Parecer aprovado pelo PGFN ou por Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional, elaborados no mesmo sentido do pleito formulado pelo particular, ou, ainda, que não se enquadre em uma daquelas previstas no art. 18 da Lei n. 10522/2004. É que, em todas essas hipóteses, a postura da PGFN diante de decisões, desfavoráveis à Fazenda Nacional, que apliquem o precedente judicial – relativo à questão jurídica objeto de: Ato Declaratório do PGFN ou elencada no art. 18 da Lei 10522/2004; de Súmula ou Parecer do AGU; ou de Parecer aprovado pelo PGFN ou por Procurador-Geral Adjunto da PGFN – não poderá ser outra senão a de deixar de interpor recursos contra as mesmas, por força do que diretamente preconizam, respectivamente, o art. 19, incisos I e II, da Lei n. 10.522/2004, os arts. 43 e 40 da LC n. 73/03, e os arts. 72 e 73 do Regimento Interno da Fazenda Nacional (aprovado pela Portaria 257/2009).
  3. Feito esse registro inicial, impende esclarecer que a resposta ao questionamento acima lançado (recorrer ou não) irá variar, sensivelmente, conforme se esteja diante de decisão respaldada em precedente judicial (i) do qual resultou Súmula Vinculante ou que seja decorrente de julgamento proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade, (ii) oriundo de julgamento realizado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ou (iii) oriundo de julgamento, proferido pelo STF/STJ, mas não realizado nos moldes daquela nova sistemática.

  1. Caso se esteja diante de decisão judicial, desfavorável à Fazenda Nacional, proferida em consonância com o precedente judicial de que trata a alínea “i” acima referida, a resposta à questão objeto do presente parecer não apresenta qualquer dificuldade: é que, justamente como decorrência da qualidade da força que emana dos precedentes formados em sede de controle concentrado de constitucionalidade e das Súmulas Vinculantes, que a torna apta, segundo preconizam os arts. 102, §2º e 103-A da CF/88, a vincular a atuação de todos os órgãos da Administração Pública, a PGFN já se abstém de apresentar recursos contra decisões judiciais respaldadas nesses dois tipos de precedentes do STF. E mais: pela mesma razão, além de não interpor recursos, a PGFN também não apresenta contestação/impugnação contra pedidos respaldados em Súmula Vinculante ou em precedente formado em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
  2. Diversamente, maiores dificuldades exsurgem ao se buscar definir a postura a ser adotada pela PGFN caso a mesma esteja diante de decisão judicial, desfavorável à Fazenda Nacional, proferida em consonância com os precedentes judiciais de que tratam as alíneas “ii” e “iii” acima referidas, eis que os mesmos, como antes visto, ostentam força apenas persuasiva, e não vinculante. É precisamente dessas duas hipóteses que tratarão, de forma sucessiva, os dois próximos itens do presente Parecer (itens “a” e “b”).
  1. Apresentação, ou não, de recursos contra decisões proferidas em consonância com precedente judicial formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC.
  1. Nos tópicos anteriores, foi visto, em síntese, que o precedente judicial formado sob a sistemática de julgamento prevista nos arts. 543- B e 543-C do CPC possui uma força persuasiva especial, que o diferencia daqueles não submetidos a tal sistemática; daí que os recursos eventualmente interpostos contra futuras decisões judiciais proferidas em consonância com esse precedente possuem chances reduzidas de êxito. Foi visto, também, que tanto os recursos ordinários, quanto os recursos extremos (RE e RESP), se contrários a precedente judicial formado sob a nova sistemática de julgamento, estarão, em regra, fadados ao insucesso, tendo em conta a existência de mecanismos processuais aptos a encerrar o processamento de ambos.
  2. Assim, as cores de que se reveste o sistema processual civil vigente conduzem à constatação de que o recurso eventualmente interposto contra decisão proferida com respaldo em precedente judicial formado sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostenta pouca ou nenhuma utilidade prática. E é justamente diante dessa constatação que se mostra pertinente questionar se a PGFN deverá continuar interpondo recursos em tais hipóteses.
  3. Nesse ponto, vale esclarecer que se, até o presente momento, todos os temas lançados ao longo deste Parecer foram analisados sob um prisma estritamente técnico, sempre à luz das regras e princípios postos no ordenamento jurídico vigente, a questão de que ora se cuida, por outro lado, será examinada e resolvida a partir de considerações mais afetas à política institucional e à estratégia de defesa; com isso, afastase, de certo modo, e, é claro, na medida do possível, da Dogmática Jurídica estrita, em que o direito posto confere uma só solução válida às questões que lhe são apresentadas, para, então, adentrar no campo da Política, em que se faz escolhas racionais dentre opções legítimas e possíveis.
  4. E deste modo será feito, em primeiro lugar, por se entender que a própria natureza e conteúdo da questão objeto da presente análise assim exigem: de fato, a interposição, ou não, de recursos, pela PGFN, em que a viabilidade de êxito, embora existente, seja remota, é questão cuja resolução não se encontra previamente definida em regras existentes no Direito posto, devendo ser resolvida, assim, à luz de critérios de conveniência e oportunidade, aferíveis pela própria instituição; e, em segundo lugar, por se adotar aqui, como verdadeira premissa, o entendimento de que o conjunto de normas que conferem, à PGFN, a atribuição privativa para defender, judicialmente, os interesses da Fazenda Nacional, da qual decorre o dever de fazê-lo de forma correta e plena, não conduz – ao contrário do que sustentado ou imaginado por alguns – à obrigatoriedade de interposição de recursos em todo e qualquer caso, permitindo, antes, que a interposição, ou não, de recursos, mormente em situações, como a ora analisada, em que os mesmos possuem remota viabilidade de êxito, advenha de uma opção de política institucional, pautada em critérios racionais.
  5. Assim, admitindo-se, como aqui se admite, que a resolução da questão ora sob análise deva advir de uma opção de política institucional, a ser tomada pela PGFN, propõe-se, desde logo, que essa opção caminhe no sentido de não mais se apresentar recurso, quer ordinários (p.ex. apelação e agravo de instrumento), quer extraordinários (RE e RESP), contra as decisões judiciais, desfavoráveis à Fazenda Nacional, que se mostrarem consentâneas com precedente judicial formado sob a nova sistemática de julgamento prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC.
  6. E a racionalidade dessa opção se sustenta, primordialmente, na ausência de interesse, por parte da instituição, em continuar apresentando recursos contra decisões proferidas com respaldo em precedente formado sob a nova sistemática. Entretanto, cabe, aqui, fazer um breve parênteses para esclarecer que o interesse de que ora se cuida não diz respeito, propriamente, ao “interesse recursal”, ou seja, não se encaixa, a rigor e tecnicamente, na categoria processual de pressuposto recursal, cuja inexistência conduz à inadmissão do recurso interposto.
  7. De fato, tecnicamente, afirma-se que inexiste interesse recursal, sob o aspecto da utilidade (que, ao lado da necessidade, constitui uma das modalidades de interesse recursal), quando o provimento, ainda que em tese, do recurso interposto não é capaz de trazer ao recorrente situação mais vantajosa, do ponto de vista prático. Nas palavras de FREDIE DIDIER JR. e de LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, respaldadas em lição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “para que o recurso seja admissível, é preciso que haja utilidade – o recorrente deve esperar, em tese, do julgamento do recurso, situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que aquela em que o haja posto a decisão impugnada”15.
  8. Ora, na hipótese aqui analisada, pode-se afirmar que existe interesse, sob o ponto de vista técnico/jurídico, – aqui entendido, pois, como um dos pressupostos de admissibilidade recursal -, por parte da PGFN, em interpor recurso contra decisão proferida em desfavor da Fazenda Nacional e em consonância com entendimento plasmado pelo STF/STJ sob a sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C, eis que, a rigor, o julgamento desse recurso poderá lhe ensejar, na prática, uma situação mais favorável do que aquela trazida pela decisão recorrida. O que ocorre, aqui, é que, provavelmente (mas não necessariamente; lembre-se: os precedentes judiciais formados sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC não possuem força vinculante) esse recurso será improvido, ou seja, terá seu mérito julgado improcedente, mas essa expectativa de improvimento do recurso não leva à conclusão de que falta interesse em interpô-lo, sob o ponto de vista jurídico. Noutras palavras: não se pode dizer, ao menos não tecnicamente, que a parte não possui interesse recursal por que antevê que, provavelmente, seu recurso será improvido.
  9. Feita essa observação, breve e simples, mas necessária, passase a esclarecer em que sentido se pode afirmar, tal qual se fez em linhas anteriores, que a PGFN não possui interesse em continuar recorrendo contra decisões judiciais proferidas em consonância com precedente oriundo da nova sistemática.
  10. Na verdade, na situação aventada, o que a PGFN não possui é interesse prático em continuar interpondo recursos; é uma ausência de interesse que resulta da ponderação, feita à luz de critérios de política institucional, ligados a razões de conveniência e oportunidade da própria Administração, entre as vantagens práticas possivelmente decorrentes da adoção da postura de continuar interpondo recursos na situação acima referida (em que há remota ou quase nula viabilidade de êxito do recurso eventualmente manejado) e as vantagens práticas possivelmente decorrentes da adoção da postura de não mais recorrer na referida situação. É dessa ponderação, ou desse juízo político, que desponta a constatação de que não interessa à instituição continuar interpondo recursos, ordinários ou extraordinários, contra decisões proferidas em consonância com orientação firmada, pelo STF/STJ, em julgamento realizado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, eis que as vantagens decorrentes da adoção dessa postura superam, em muito, as vantagens que poderiam advir da adoção da postura contrária.

  1. De fato, a adoção da postura ora sugerida se encontra pautada em uma série de vantagens ou benefícios práticos, que podem ser examinados a partir de duas perspectivas primordiais: uma primeira, de feição mais restrita, em que analisados os benefícios que tal opção pode trazer à PGFN e à Fazenda Nacional; uma segunda, bem mais ampla, em que analisados os benefícios possivelmente gerados por essa opção em relação à efetividade do novo instituto previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC e, também, em relação à própria sociedade, ainda que, nesse último caso, de forma reflexa.
  2. Assim, sob a primeira perspectiva acima referida, mais restrita, voltada para a própria instituição, os benefícios decorrentes da adoção, pela PGFN, da postura de não mais recorrer contra decisões, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com precedente judicial formado sob a nova sistemática prevista, são, basicamente, os seguintes:
    (i) otimização na utilização dos recursos da instituição – trata-se, possivelmente, do benefício mais evidente. Ao deixar de insistir na defesa de teses jurídicas já definitivamente resolvidas pelo STF/STJ, em sentido desfavorável à Fazenda Nacional, a PGFN evita o desperdício dos seus recursos, sobretudo os humanos (p. ex. o tempo de trabalho de Procuradores e servidores) e os materiais (p. ex. estrutura das unidades da PGFN e sistemas de informação utilizados na elaboração de peças processuais), em demandas que possuem pouca, ou nenhuma, potencialidade de lhe trazer resultados positivos, “liberando” esses recursos para que os mesmos possam ser utilizados em demandas que possuam real viabilidade de êxito. Noutras palavras: os esforços (recursos humanos/intelectuais e materiais) da PGFN serão inteiramente concentrados naquelas teses jurídicas, de interesse da Fazenda Nacional, cuja definição ainda se encontra pendente no Judiciário, bem como nas teses jurídicas nascentes.
    (ii) aumento da credibilidade da instituição junto ao Poder Judiciário, imediatamente, e junto à sociedade, mediatamente – ao deixar de apresentar recursos sobre teses já resolvidas pelo STF/STJ, em sentido desfavorável à Fazenda Nacional, a PGFN passará a concentrar sua defesa em torno de teses mais críveis, o que, certamente, terá reflexos positivos em relação ao conceito, ou à imagem, que o Poder Judiciário, imediatamente, e a própria sociedade (no caso, os contribuintes), mediatamente, possuem em relação à instituição. O Poder Judiciário, num primeiro momento, e os próprios contribuintes, num segundo momento, saberão que as teses jurídicas que ainda estiverem sendo defendidas judicialmente pela PGFN são viáveis e críveis, e que essa defesa se dá de forma estratégica, consciente e direcionada, o que, certamente, elevará o “respeito” de ambos em relação à atuação da instituição.
    (iii) estímulo ao pensamento crítico dos Procuradores que integram os quadros da PGFN – ao deixar de apresentar recursos sobre teses já resolvidas pelo STF/STJ, passando-se a concentrar os esforços – antes esparsos, desperdiçados em processos inúteis – em demandas que tratem de teses jurídicas ainda em real disputa no Poder Judiciário, a PGFN estimulará os seus Procuradores a atuarem com ainda mais raciocínio crítico e compreensão acerca da matéria recorrida. Abandona-se, assim, a atuação mecanizada e repetitiva e passa-se para uma atuação que demandará a utilização de toda a capacidade intelectual dos Procuradores da Fazenda. Com isso, certamente, o grau de “engajamento” ou de “adesão” dos quadros da PGFN em relação às causas judiciais de interesse da Fazenda Nacional será ainda maior.
    (iv) minoração da condenação em honorários advocatícios – ao deixar de insistir na interposição de recursos sobre questões jurídicas já definidas pelo STF/ STJ, a PGFN estará dando ensejo à minoração do quantum das condenações em honorários advocatícios, sofridas pela Fazenda Nacional, nas demandas judiciais que tratem dessas questões.
  3. Note-se que os benefícios acima listados não são estanques, mas, antes, se interconectam, se retro-alimentam, enfim, se complementam. E, todos, juntos, parecem conduzir ao mesmo resultado: o aumento no grau de eficiência da instituição; atende-se, aqui, e de forma direta, ao princípio constitucional da eficiência administrativa. De fato, na medida em que se otimiza a utilização dos recursos da PGFN, em que se aumenta a sua credibilidade junto ao Poder Judiciário e aos contribuintes e em que se estimula uma atuação ainda mais crítica por partes dos Procuradores que integram seus quadros, a tendência é a obtenção de resultados mais exitosos nas demandas judiciais de interesse da Fazenda Nacional.
  4. De outra ponta, sob a segunda perspectiva acima mencionada, mais ampla e mais complexa, voltada, imediatamente, para o novo instituto do julgamento por amostragem de recursos extremos repetitivos e, mediatamente, para a sociedade como um todo, tem-se que os benefícios decorrentes da adoção, pela PGFN, da postura de não mais recorrer contra decisões que tratem de questão já definitivamente resolvida pelo STF/STJ, em sede de julgamento realizado nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC, são, basicamente, os seguintes:
    (i) maior efetividade do novo instituto – ao optar por deixar de recorrer nessas situações, a PGFN contribui para a consecução das finalidades subjacentes à nova sistemática de julgamento prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, as quais, como visto, consistem em conferir mais racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e promover unidade na interpretação do direito, mediante o incremento da força dos precedentes judiciais. E, na medida em que a Administração Pública (aí se incluindo, por óbvio, a PGFN) ostenta a condição de uma das maiores litigantes do país, reconhecidamente responsável por uma parcela significativa do número de demandas repetitivas que abarrotam o Poder Judiciário, percebe-se que essa atitude cooperativa, de sua parte, assume papel realmente decisivo na consecução dessas finalidades e, conseqüentemente, na obtenção da efetividade do novel instituto; sem essa atitude cooperativa, parece questionável, inclusive, se será viável, na prática, que o novo instituto realmente atinja as suas finalidades.
    (ii) alinhamento aos novos rumos tomados pela ordem jurídica brasileira – além disso, ao adotar tal postura cooperativa em relação à obtenção das finalidades do novo instituto previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, a PGFN estará se alinhando, a um só tempo, à nova feição assumida pelo processo civil brasileiro (influenciada, como visto anteriormente, por uma nítida tendência de “verticalização” das decisões do STF e do STJ ou de “commonlawlização” da ordem jurídica pátria) e aos escopos declaradamente pretendidos pelo “II Pacto Republicano”, dentre os quais se inclui “o aprimoramento da prestação jurisdicional, mormente pela efetividade do princípio constitucional da razoável duração do processo e pela prevenção de conflitos”. Na verdade, a PGFN, como órgão de Estado, integrado ao Poder Executivo, estará se juntando a outros órgãos vinculados aos demais Poderes, como, por exemplo, ao Conselho Nacional de Justiça, em prol da concretização dos ideais que marcam os novos rumos tomados pela ordem jurídica brasileira.
    (iii) desoneração da sociedade em relação aos custos envolvidos quando o Estado está em juízo – ao deixar de recorrer em matérias já definitivamente resolvidas pelo STF/STJ, a PGFN se afasta, gradualmente, da condição de uma dos maiores litigantes do país e, assim fazendo, atinge, de forma reflexa, a própria sociedade, que deixará de arcar com os altos gastos que necessariamente são despendidos quando o Estado vai a juízo.
    (iv) respeito ao cidadão brasileiro – ao adotar a postura ora sugerida, a PGFN dará ensejo a que o jurisdicionado alcance com maior celeridade a prestação jurisdicional solicitada ao Poder Judiciário, contribuindo, assim, para que seja reduzido o tempo do processo.
  5. Aduzidos os benefícios possivelmente decorrentes da opção, aqui proposta, de não mais recorrer contra decisões que tratem de questão jurídica já resolvida pelo STF/STJ, em sede de julgamento submetido à nova sistemática, impende elencar, por outro lado, e por honestidade intelectual, algumas vantagens que se pode imaginar como decorrentes da adoção da postura de insistir na interposição de recursos nas situações ora aventadas. E uma das possíveis vantagens parece se fundar no argumento de que a insistência na interposição de recursos, nessas situações, faria com que a PGFN continuasse tendo a possibilidade de reverter, a seu favor, a tese jurídica resolvida pelo STJ/STF; diversamente, adotando-se a postura de não mais recorrer, a PGFN estaria renunciando, de forma apriorística, à possibilidade de reversão da tese.

  1. Esse argumento, entretanto, não impressiona, e isso por duas razões primordiais. Em primeiro lugar, por que, uma vez analisada e definida determinada questão jurídica, pelo STF/STJ, em julgamento submetido à especial e diferenciada sistemática de julgamento prevista nos arts. 543- B e 543-C do CPC, as chances desses Tribunais Superiores alterarem seu entendimento são bastante remotas, conforme, inclusive, restou demonstrado em tópicos anteriores deste Parecer; daí que a possibilidade de reversão, pela PGFN, de entendimento firmado por esses Tribunais Superiores em sede de julgamento submetido à nova sistemática é, em igual medida, bastante remota. Note-se que, muito embora em tempos anteriores não fosse incomum a oscilação da jurisprudência dos Tribunais Superiores, a realidade atual tem demonstrado que o mecanismo previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC alterou de forma substancial esse antigo cenário, conferindo uma maior estabilidade às orientações firmadas pelo STF/STJ em julgamentos realizados sob as suas vestes. Prova disso é que, até o presente momento, passados quase três anos da entrada em vigor do art. 543-B, e um ano e quatro meses da entrada em vigor do art. 543-C, ambos do CPC, nem o STF, nem o STJ, alteraram qualquer dos entendimentos por eles firmados em julgamentos submetidos aos referidos dispositivos legais.
  2. Na verdade, na medida em que a orientação firmada pelos Tribunais Superiores em sede de precedente judicial formado sob a sistemática dos arts. 543-B e 543-C do CPC possui reduzidas chances de ser revertida, percebe-se, então, que a defesa, por parte da PGFN, daquelas teses jurídicas que ainda estiverem em disputa no Judiciário deverá ser ainda mais robusta e perfeita tecnicamente, assim como a sua participação na formação da jurisprudência dos Tribunais Superiores deverá ser cada vez mais ativa, numa linha crescente em relação ao que já ocorre atualmente. Ou seja, após a introdução, na ordem jurídica pátria, da nova sistemática de julgamentos dos recursos extremos repetitivos, o foco, por parte da PGFN, deverá recair, em regra (sendo certo que poderá haver exceções, conforme será visto no parágrafo seguinte), não nas teses jurídicas já definidas pelo STF/ STJ, – buscando-se, insistentemente, a sua reversão -, mas, sim, naquelas teses jurídicas pendentes de definição, que ainda não foram apreciadas nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC, envidando-se todos os esforços, especialmente junto aos Tribunais Superiores, no intuito de que as mesmas, quando e se submetidas à nova sistemática, sejam julgadas e definitivamente resolvidas em favor da Fazenda Nacional.
  3. Em segundo lugar, por que, conforme será ainda melhor analisado posteriormente, em momento mais oportuno, nada impede que a PGFN, diante de precedentes judiciais contrários à Fazenda Nacional, formados sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, pondere a viabilidade, no caso concreto, de revertê-los e, considerando viável tal reversão, oriente as unidades descentralizadas que, sobre aquele específico tema, continuem interpondo recursos. Isso seria feito caso a caso, de modo que a regra seria a não interposição de recursos a respeito de questões jurídicas já definidas pelo STF/STJ em sede de julgamentos submetidos à nova sistemática, enquanto que a exceção à regra, por sua vez, seria a apresentação de recursos nos casos em que, apesar da definição dada pelos referidos Tribunais, a PGFN considerasse viável a sua reversão.
  4. Outra vantagem que se pode imaginar como decorrente da adoção da postura de insistir na interposição de recursos nas situações ora aventadas parece se sustentar no entendimento de que os interesses da Fazenda Nacional estariam melhor protegidos, inclusive contra possíveis falhas daqueles que a presentam em juízo, se houvesse a obrigatoriedade de recorrer em todo e em qualquer caso (ressalvadas as hipóteses em que a matéria definida pelo STF/STJ seja objeto de Ato Declaratório, de Súmula Vinculante ou tenha sido decidida em sede de controle concentrado de constitucionalidade). Rejeita-se esse argumento por várias razões, sendo que a primeira delas decorre já da premissa, assumida pelo presente Parecer logo ao início deste item, segundo a qual se considera que as regras que conferem à PGFN atribuição para – bem e corretamente – defender a Fazenda Nacional em juízo não conduzem à obrigatoriedade de apresentação de recursos em qualquer hipótese; muito pelo contrário, parece incompatível com a ideia de “defender corretamente” a obsoleta prática de “defender de forma acrítica e indiscriminada”.
  5. Assim, entende-se, aqui, que a postura que ora se propõe é capaz de tornar a atuação judicial da PGFN mais efetiva, com potencialidade de trazer resultados mais exitosos à Fazenda Nacional. A verdade é que a nova feição assumida pelo processo civil brasileiro, as mudanças que ainda estão por vir (todas voltadas para um processo mais racional e célere), bem como o grau de desenvolvimento em que se encontra a comunidade jurídica e o próprio corpo social, parecem realmente exigir uma mudança no paradigma de atuação da Administração Pública, impondo que esta atuação se modernize, tornese mais ágil e menos burocratizada, mais qualitativa e menos quantitativa, mais crítica e menos mecanizada.
  6. Além disso, o alegado risco de que falhas ocorram por parte dos Procuradores da Fazenda Nacional, caso adotada a postura ora sugerida, não parece ser suficiente, por si só, para afastar a adoção dessa postura. Primeiro, por que tais falhas, – que, certamente, poderão ocorrer-, serão a exceção, e não a regra; segundo, por que o prejuízo delas decorrentes será muito pequeno diante do imenso rol de benefícios decorrentes da adoção da postura ora sugerida; e terceiro, porque nada impede, –antes, tudo recomenda -, que sejam criados mecanismos, além dos que já existem, a fim de evitar a ocorrência dessas falhas ou de minorar os prejuízos delas decorrentes.
  7. Assim, os argumentos que, pretensamente, fundamentam a adoção da postura de continuar recorrendo contra decisões proferidas em consonância com entendimento plasmado pelo STF/STJ, em julgamento realizado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, sustentam-se em bases pouquíssimo sólidas. Por outro lado, há vários benefícios efetivos que demonstram ser mais vantajosa, não apenas para a própria instituição e para a Fazenda Nacional, mas, também, ainda que reflexamente, para a sociedade como um todo, a adoção da postura ora sugerida, de não mais recorrer nas hipóteses acima aventadas. Daí por que se diz, tal qual feito anteriormente, que a PGFN não possui interesse, sob o ponto de vista prático, em continuar recorrendo em tais situações.
    a.1) Apresentação, ou não, de contestação/impugnação em face de pedidos respaldados em precedente judicial oriundo de julgamento submetido à nova sistemática, formulados nos autos de demandas judiciais ajuizadas contra a Fazenda Nacional
  8. Uma vez adotada a postura, na linha do que foi sugerido acima, de não mais apresentar recursos (apelação, agravo de instrumento, RE, RESP, etc) contra decisões judiciais proferidas em consonância com precedente judicial formado sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, desponta, naturalmente, a questão de saber se postura semelhante cabe ser adotada, pela PGFN, em relação aos pedidos eventualmente respaldados nesses precedentes, formulados em demandas judiciais ajuizadas contra a Fazenda Nacional. Ou seja: esses pedidos continuarão sendo objeto de contestação/impugnação por parte da PGFN16?
  9. O primeiro ponto que merece ser observado a fim de que se resolva a questão aqui analisada é o de que a apresentação de contestação/ impugnação, pela PGFN, na hipótese ora aventada, teria pouca ou nenhuma utilidade, na medida em que: (i) diante da força persuasiva especial e diferençada de que se revestem os precedentes judiciais formados nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, muito provavelmente os pedidos formulados com base nesses precedentes seriam acolhidos pela sentença; (ii) essa sentença, proferida em consonância com entendimento firmado pelo STF/STJ à luz da nova sistemática, sequer seria objeto de recurso por parte da PGFN, justamente face à orientação de não mais recorrer nesses casos; (iii) por fim, ainda que o magistrado de 1º grau, ignorando ou superando o precedente judicial formado sob a nova sistemática (o que, apesar de pouco provável, é possível dada a força não vinculante desses precedentes), proferisse sentença favorável à Fazenda Nacional, o recurso interposto pela parte autora contra essa sentença seria provido num momento subseqüente, se não já pelo Tribunal de 2º grau, certamente pelo Tribunal Superior de onde emanou o precedente. A atitude do magistrado de não aplicar o precedente apenas retardaria, para o autor, o seu êxito na ação e, para a Fazenda Nacional, a sua sucumbência.

  1. Dito isso, faz-se um brevíssimo parênteses para pontuar que continuar contestando/impugnando, nessas hipóteses, além de se revestir de pouca utilidade, revelaria uma postura um tanto quanto contraditória por parte da PGFN: é que, num primeiro momento, a contestação/ impugnação seria apresentada, expondo argumentos voltados a infirmar a pretensão deduzida pela parte autora, enquanto que, num segundo momento, quando essa pretensão fosse acolhida na sentença, – o que, a toda a evidência, seria a regra -, não haveria apresentação de recurso de apelação no intuito de reverter o entendimento nela firmado. Assim, o Procurador da Fazenda Nacional apresentaria contestação/impugnação já sabendo, de antemão, que não iria interpor recurso na hipótese, praticamente certa, de a contestação/impugnação antes apresentada não ter sucesso e a pretensão deduzida pelo autor ser acolhida na sentença.
  2. O segundo ponto que merece ser levado em conta, aqui, é o de que a análise da presente questão (contestar/impugnar, ou não, pedidos fundados em precedente judicial formado sob a roupagem dos arts. 543-B e 543- C do CPC), do mesmo modo que se fez quando da análise da questão enfrentada no item anterior do presente parecer (recorrer, ou não, contra decisões judiciais proferidas em consonância com esses precedentes), há de ser realizada a partir de considerações mais afetas à política institucional, ligadas a razões de conveniência e oportunidade aferíveis pela própria instituição, e não, propriamente, a partir de considerações estritamente técnicas.
  3. E assim deve ser feito pelas mesmas razões antes expostas quando da análise da questão enfrentada no item anterior do presente Parecer (item “a”), ou seja: primeiro, por que o deslinde da presente questão também não se encontra previamente definido nas regras existentes no Direito posto; segundo, por se adotar aqui, como verdadeira premissa, o entendimento de que o conjunto de normas que conferem, à PGFN, a atribuição privativa para defender, judicialmente, os interesses da Fazenda Nacional não conduz à obrigatoriedade de apresentação de contestação/impugnação em todo e qualquer caso (assim como não conduz à obrigatoriedade de interposição de recursos em todo e qualquer caso), permitindo, antes, que a decisão entre apresentar, ou não, contestação/impugnação, mormente em hipóteses como a presente, em que a mesma possuiria pouca utilidade, advenha de uma opção de política institucional, pautada em critérios racionais.
  4. Sendo assim, dada a pouca utilidade em se apresentar contestação/ impugnação contra pedidos respaldados em precedente judicial formado nos moldes da nova sistemática (primeiro ponto), bem como diante da constatação de que o deslinde da questão ora analisada deve se pautar em critérios de política institucional (segundo ponto), sugere-se a adoção, pela PGFN, da postura de não mais impugnar/contestar esses pedidos; é que a PGFN não possui interesse (prático) em fazê-lo.
  5. Com efeito, a adoção da postura de não mais apresentar contestação/impugnação, nessas hipóteses, mostra-se como a mais vantajosa, do ponto de vista prático, não apenas para a própria instituição e para a Fazenda Nacional, mas, também, para a sociedade como um todo. E as vantagens de que ora se cuida são, basicamente, aquelas mesmas já antes expostas no tópico anterior deste Parecer, decorrentes da postura de não mais apresentar recursos contra decisões judiciais fundadas em precedentes judiciais formados nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC; a diferença, aqui, é que essas vantagens certamente serão maximizadas caso a PGFN, além de não mais recorrer, também adote a postura de não mais contestar/impugnar, sempre que estiver diante de entendimento firmado pelos Tribunais Superiores no seio da nova sistemática prevista no CPC, acerca de determinada questão jurídica.
  6. De fato, a adoção conjugada dessas duas posturas fará com que cheguem ao seu grau máximo aqueles benefícios antes expostos, a saber, (i) a otimização na utilização dos recursos da instituição, (ii) o aumento da credibilidade da instituição junto ao Poder Judiciário, imediatamente, e junto à sociedade, mediatamente, (iii) o estímulo ao pensamento crítico dos Procuradores que integram os quadros da PGF, (iv) a minoração da condenação em honorários advocatícios, (v) mais efetividade ao novo instituto previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, (vi) alinhamento da PGFN aos novos rumos tomados pela ordem jurídica brasileira e, enfim, (vii) desoneração da sociedade em relação aos custos envolvidos quando o Estado está em juízo; (viii) respeito ao cidadão brasileiro.
  7. E essa maximização será ainda mais sentida em relação ao benefício referido no item “iv” acima, qual seja, a minoração da condenação em honorários advocatícios. É que a PGFN, ao deixar de apresentar contestação/ impugnação na hipótese ora aventada, estará deixando de resistir, por completo, à pretensão deduzida na demanda (o que reduz o seu grau de dificuldade a patamares mínimos), atuando, assim, de forma cooperativa em relação ao autor e ao próprio Poder Judiciário; e isso, certamente, será levado em conta pelo magistrado ao avaliar o cabimento, ou não, de condenação em honorários advocatícios17.
  8. Assim, por essas razões é que se diz que a PGFN não possui interesse, sob o ponto de vista prático, em continuar apresentando contestação/impugnação contra pedidos respaldados em precedente judicial formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC.
    b) Apresentação, ou não, de recursos contra decisões proferidas em consonância com precedente judicial, oriundo do STF/STJ, mas não formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC.
  9. Conforme visto anteriormente, diversamente do que ocorre com os precedentes, oriundos do STF/STJ, formados nos moldes dos arts. 543- B e 543-C do CPC, aqueles não submetidos à nova sistemática ostentam uma força persuasiva inferior, de modo que não se mostra possível afirmar, com um grau aceitável e suficiente de segurança, se os recursos eventualmente interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem tendem, ou não, a lograr êxito. Foi visto, ainda, que, apesar disso, em se tratando, especificamente, de recursos extremos (RE e RESP) interpostos contra decisões proferidas em consonância com jurisprudência pacífica e reiterada do STF/STJ, o seu seguimento tem sido repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ), por ocasião do juízo de admissibilidade recursal. Diante desse quadro, questiona-se: qual deve ser a postura da PGFN diante de decisões, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com precedente judicial, oriundo do STF/STJ, mas não resultante de julgamento realizados nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC? Nessas hipóteses, deve-se continuar recorrendo?
  10. Diga-se, desde já, que as razões que embasam a adoção da postura sugerida no item “a” deste tópico (não mais apresentar qualquer espécie de recurso – ordinários e extremos – contra as decisões proferidas em consonância com precedente formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC) não parecem estar presentes na situação examinada no presente item, de forma a conduzir à adoção da postura, por parte da PGFN, de não mais recorrer, em qualquer caso, contra decisões que aplicarem precedentes, do STF/STJ, não submetidos à nova sistemática de julgamento.
  11. Com efeito, ainda que pacífica a jurisprudência, no âmbito do STF/STJ, em torno de determinada questão jurídica, não há parâmetros suficientemente seguros para se afirmar se a mesma tende, ou não, a ser alterada por esses Tribunais Superiores, ou mesmo seguida pelos órgãos jurisdicionais inferiores; relembre-se, aqui, o que se disse anteriormente acerca da instabilidade dessa jurisprudência, bem

Direito tributário como instrumento de inclusão social: Ação afirmativa fiscal

Autor: Luiz Octavio Rabelo Neto, Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, em convênio com o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP e a REDE LFG. Procurador da Fazenda Nacional em Belém-PA.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – Este artigo pretende analisar a utilização do Direito Tributário como instrumento de inclusão social, mediante a adoção de políticas de ação afirmativa, notadamente através da previsão legislativa de concessão de benefícios fiscais aptos a servirem como estímulo à iniciativa privada para adoção de tais políticas, utilizando-se da função extrafiscal dos tributos, com o escopo de materialização dos direitos humanos. Tendo em vista o rol de valores e objetivos estatuídos em nível constitucional, não se admite uma postura inerte do Estado, exigindo-se, ao contrário, que este adote políticas públicas para consecução daqueles objetivos e valores, proporcionando desenvolvimento humano. Conclui-se que o poder-dever tributário está estritamente vinculado aos direitos humanos e, dessa forma, os benefícios fiscais são utilizados como instrumento das medidas de ação afirmativa, embora essa utilização ainda seja modesta.

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, pretende-se analisar, em linhas gerais, a utilização do direito tributário como instrumento de inclusão social, especialmente mediante a instituição de políticas de ação afirmativa, que consiste em uma ação pública ou privada que tem por escopos combater a discriminação e promover a igualdade substancial, conferindo tratamento diferenciado a indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis socialmente, incluindo-os na sociedade.

Os grupos vulneráveis são aqueles grupos de pessoas que mais facilmente têm seus direitos humanos violados, a exemplo das pessoas com deficiência, mulheres, idosos, crianças, minorias étnicas, etc. Em outros termos, a vulnerabilidade corresponde à situação da pessoa ou grupo que, por motivos pessoais ou em razão de fatores externos, estejam submetidos a tratamentos discriminatórios ou desigualitários. Contudo, a preocupação do estudo não se concentra em um grupo vulnerável determinado, uma vez que no conceito de grupos vulneráveis se incluem vários e diferentes grupos, os quais possuem tratamento diversificado pelo ordenamento jurídico pátrio. Ao reverso, procurar-se-á destacar a possibilidade de ampliar a utilização e discutir uma medida de ação afirmativa que não é habitualmente tratada pela doutrina.

Para promover a inclusão social desses indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis, propõe-se analisar o direito tributário como mecanismo de promoção de mudanças sociais. Como afirmou o assistente social Romeu Kazumi Sassaki, “Para incluir todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros”. 1

Dessa forma, a inclusão social é um processo que visa à alteração do meio ambiente social, a fim de proporcionar a participação de qualquer pessoa. O objetivo de inclusão social não se satisfaz apenas evitando a discriminação e a exacerbação das desigualdades sociais, mas também promovendo políticas que proporcionem a indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis uma participação ativa na sociedade, o que é consentâneo com as políticas de ação afirmativa, pois estas permitem uma postura ativa por parte do Estado e da iniciativa privada no combate à discriminação e às desigualdades existentes, colaborando para inclusão social de todos.

Pretende-se avaliar de que maneira o tributo pode servir como instrumento de inclusão social, pois, através de seu caráter de solidariedade, todos os membros da sociedade podem contribuir para o bem comum, para o custeio dos gastos públicos e para concretização dos direitos fundamentais.

Tal temática se insere em um contexto doutrinário interessado em compatibilizar o poder tributário do Estado com os direitos fundamentais do contribuinte, de forma que, ao mesmo tempo em que seja possível garantir os recursos necessários para o custeio da máquina estatal e para a implementação dos direitos humanos, possa o ente público promover mudanças sociais e desenvolvimento humano, utilizando o Direito Tributário como instrumento.

Isso porque a temática da implementação dos direitos humanos está estritamente ligada às questões orçamentária e fiscal, havendo quem alegue a necessidade de aplicação da cláusula da reserva do possível como limite à possibilidade de concretização dos direitos fundamentais sociais. Segundo referida cláusula, os recursos orçamentários são escassos e insuficientes para atender a todas as demandas sociais, razão pela qual seria possível ao Estado tutelar apenas o mínimo existencial de cada pessoa.

Abstraída, neste trabalho, a discussão acerca da correção dessa tese, o certo é que as prestações positivas do Estado encontram limites na riqueza nacional e na situação econômica de um país, uma vez que não se pode acreditar na utópica inesgotabilidade dos recursos públicos. 2

Por outro lado, reconhece-se que não existem direitos sem custos de efetivação. Todos os direitos são positivos, no sentido de que exigem gastos públicos para sua proteção, o que sugere uma reflexão sobre a legitimidade democrática da destinação dos recursos escassos, a transparência e a prioridade dessa destinação, além da questão moral e política da justiça distributiva como forma de concretização da igualdade.

Nesse sentido, Stephen Holmes e Cass Sustein demonstram que mesmo os direitos civis e políticos possuem altos custos que devem ser sustentados por toda a sociedade através da tributação. Logo, não são apenas os direitos sociais que necessitam de verbas públicas para sua implementação, mas também os direitos civis e políticos, assim como outras espécies de direitos fundamentais. Como afirmam Holmes e Sustein, “todos os direitos são custosos porque todos os direitos pressupõem o financiamento pelo contribuinte de mecanismos eficazes de supervisão para monitoramento e execução”.3

Isso torna claro o quanto estão relacionadas a questão da efetividade dos direitos fundamentais e as finanças públicas, realçando a importância da destinação inteligente dos limitados recursos públicos, evitando-se desperdícios.

Dessa forma, diante da normatividade dos princípios constitucionais, a postura do Estado não deve ser somente negativa, no sentido de não intervir em demasia na esfera de liberdade dos cidadãos. Ao reverso, a Carta Magna Brasileira de 1988 previu, já no preâmbulo, a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar, entre outras coisas, o exercício dos direitos fundamentais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, albergando, em seu bojo, uma série de valores fundamentais, inclusive com o reconhecimento de direitos de caráter econômico e social, que devem nortear a ação estatal em todas as suas esferas, inclusive na política tributária, como objetivos a serem perseguidos.

2 DESENVOLVIMENTO, IGUALDADE E AÇÃO AFIRMATIVA

Como defende o economista indiano Amartya Sen, o desenvolvimento de um país não pode ser medido apenas com enfoque no nível de renda de sua população, devendo ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, eliminando-se as privações que limitam as suas escolhas e oportunidades sociais.4

Por outro lado, a diversidade humana não pode ser ignorada no tratamento das políticas destinadas à expansão das liberdades e à promoção da igualdade, uma vez que o efeito de ignorar as variações interpessoais pode contrariar a própria igualdade, na medida em que oculta o fato de que para conferir igual consideração a todos pode ser necessário dar um tratamento desigual àqueles que estão em desvantagem.

É exatamente esse tratamento diferenciado com o objetivo de expandir liberdades e promover a igualdade que está no centro da fundamentação das políticas de ação afirmativa. Tal expressão, derivada da língua inglesa (affirmative action), foi empregada pela primeira vez em um texto oficial pelo Presidente norte-americano John Kennedy, ao editar a Executive Order n. 10.925, de 06.03.1963, segundo a qual os contratantes com o governo federal deveriam, além de não discriminar funcionários ou candidatos a funcionários por motivos de raça, credo, cor ou nacionalidade, adotar ação afirmativa para assegurar que essas pessoas fossem empregadas.5

Também designadas como “discriminação positiva”, referidas políticas são tentativas de concretização da igualdade substancial ou material, na medida em que proporcionam um tratamento prioritário ou preferencial com vistas à inclusão social de determinados grupos socialmente fragilizados ou vulneráveis. Em outras palavras, considerando que os tratamentos desiguais que impliquem a negação de direitos são inválidos por violarem o princípio da igualdade, as ações afirmativas visam exatamente facilitar o acesso a tais direitos, daí resultando a sua legitimidade.

Em monografia sobre o tema, Joaquim B. Barbosa Gomes assim define as ações afirmativas:

Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.6


Ao lado das normas que constituem o modelo repressor de combate à discriminação, que são pautadas na concepção de que o direito tem a função meramente negativa, utilizando-se de técnicas de desencorajamento, ganham destaque as normas que, utilizando-se da função promocional do direito, ao invés de se limitarem à proibição do tratamento discriminatório, têm o objetivo de combatê-lo e de eliminar ou atenuar os seus nefastos efeitos através de medidas de promoção social dos indivíduos discriminados. Trata-se do modelo de ação afirmativa, essencial para promoção da inclusão social desses indivíduos, proporcionando um alcance efetivo da igualdade material entre as pessoas. Nas palavras esclarecedoras de Flávia Piovesan:

Vale dizer, para garantir e assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. (…) O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a discriminação, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um persistente padrão de violência e discriminação. Nesse sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se as ações afirmativas. 7

Estimuladas pelo imperativo de atuação estatal positiva na tutela promocional dos direitos humanos e fundamentais e decorrentes do abandono da idéia de neutralidade estatal em questões sociais, que era típica do Estado liberal clássico, tais medidas afirmativas têm por meta atingir vários objetivos, dentre os quais se destacam os escopos de promover a igualdade material e o de combater a discriminação.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos argumenta que a regulação social da modernidade é constituída pelos sistemas da desigualdade e da exclusão/segregação, sendo o primeiro um fenômeno sócio-econômico produzido pela relação capital/trabalho e o segundo um fenômeno cultural e social, um fenômeno de civilização, tratando-se de um processo histórico através do qual uma cultura cria o interdito e o rejeita.8 Essa distinção pode ser utilizada para se defender que são objetivos da ação afirmativa, simultaneamente, combater a desigualdade sócio-econômica por políticas redistributivas de recursos, e combater a discriminação que proporciona a exclusão social de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis.

Segundo aduz Boaventura de Sousa Santos, deve-se buscar uma articulação entre as políticas de igualdade e políticas de identidade, devendo-se reconhecer que nem toda a diferença é inferiorizadora e que uma política de igualdade que desconhece e descaracteriza tais diferenças não inferiorizadoras, contraditoriamente, converte-se numa política de desigualdade. Em outras palavras, como salientou referido autor, “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.9

Com base nas lições do jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin a respeito das ações afirmativas10, podem ser destacados três critérios para utilização de tais medidas: justiça, adequação e eficiência.11 Tais critérios podem ser perfeitamente atendidos utilizando-se a função extrafiscal dos tributos como instrumento de ação afirmativa, especialmente no que atina à concessão de benefícios fiscais, como forma de implementar e estimular a adoção das políticas de ações afirmativas pela iniciativa privada.

Assim, a utilização de medidas de ação afirmativa só é justificável, ou seja, justa, quando houver uma situação de exclusão a ser corrigida; quando a medida for apta, isto é, adequada, em tese, a corrigir a situação de exclusão; e quando efetivamente provocar o fim ou a atenuação dessa exclusão.

Há perfeita compatibilidade das políticas de ação afirmativa com a Constituição Federal de 1988 e até mesmo a obrigatoriedade de o Estado promover essas medidas, haja vista os objetivos fundamentais da República definidos constitucionalmente. A Constituição de 1988, aliás, dispõe sobre algumas formas de ação afirmativa, assim como a prevista no art. 7º, XX, garantindo a proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, e no art. 37, VIII, que prevê a reserva de vagas para portadores de deficiência em concursos públicos.

O direito fundamental à igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional, pois é o centro medular de um Estado preocupado com o desenvolvimento social e com a garantia dos direitos fundamentais.

A par de outros dispositivos, o princípio da igualdade está disposto no art. 5º, caput, da Constituição de 1988.12 À primeira vista, parece que o princípio da igualdade foi previsto diversas vezes no mesmo dispositivo. Contudo, esclarece-se que o dispositivo protege duas dimensões da igualdade: a igualdade perante a lei, denominada de igualdade formal; e a igualdade na lei, chamada de igualdade material. 13

A igualdade formal ou perante a lei garante a aplicação uniforme da lei. Essa dimensão da igualdade corresponde à postura individualista que emergiu com o advento do Estado Liberal clássico do século XVIII, em que os direitos fundamentais eram vistos essencialmente como direitos negativos, isto é, como direitos de defesa do cidadão em face do Estado. Como acentua Daniel Sarmento, “na leitura estritamente individualista, a igualdade jurídica é a mera igualdade formal, com a recusa a qualquer pretensão de utilização do Direito para fins redistributivos”.14

A igualdade formal é insuficiente na medida em que a lei, mesmo sendo aplicada uniformemente a todos, pode trazer alguma discriminação arbitrária em seu conteúdo, além de ser insuficiente para os propósitos do regime constitucional de conferir uma vida digna a todos.

Essa constatação explica a expressão “sem distinção de qualquer natureza” constante no texto constitucional” acima transcrito, fazendo referência, nesse ponto, à igualdade na lei ou igualdade material. Ademais, a dimensão da igualdade material decorre de uma interpretação sistemática da Constituição como um todo, a qual institui um Estado Social promotor dos direitos fundamentais, de forma a buscar a efetiva igualdade substancial entre os cidadãos, no sentido de auxiliar a todos na criação de condições necessárias para viver a vida que desejarem, respeitando-se as escolhas pessoais de cada um.

Nesse contexto é que surgem as ações afirmativas, medidas que, promovendo a igualdade substancial ou material, são perfeitamente compatíveis com os objetivos da República brasileira traçados no art. 3º da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Além da compatibilidade com a Constituição, as ações afirmativas são previstas expressamente em tratados internacionais de direitos humanos, normas materialmente constitucionais, por força do texto constitucional brasileiro (§ 2° do art. 5º). A adoção de ações afirmativas está prevista, entre outros documentos internacionais, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, ambas ratificadas pelo Brasil.

3 DIREITO TRIBUTÁRIO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA

Segundo o magistério de Aliomar Baleeiro, “O tributo é a vetusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ele se projeta sobre o solo de sua dominação”.15 Isso significa que os tributos são fundamentais para a própria existência do Estado, que deles não pode prescindir para consecução dos seus objetivos constitucionais. No exercício de sua soberania, o Estado exige dos indivíduos os recursos que necessita e o faz usando o seu poder de império.

Deve-se observar, contudo, que a relação de tributação não é simples relação de poder de cunho autoritário, mas uma relação jurídica em que os indivíduos consentem, por seus representantes, na instituição do tributo, na limitação de sua liberdade em prol do interesse coletivo. 16

A tributação consentida foi um dos primeiros direitos humanos conquistados historicamente pelos cidadãos. Exemplo disso é que, segundo a narrativa de Alberto Nogueira, um dos pontos básicos da Revolução Francesa consistiu na eliminação dos privilégios fiscais da nobreza e do clero através da universalização do tributo, de tal modo que todos contribuiriam segundo suas possibilidades para a manutenção das despesas públicas. 17

Conforme lição de Ricardo Lobo Torres, “o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por eles é totalmente limitado”, significando que o Estado exerce o seu poder tributário sob permanente limitação dos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, o poder tributário exercido pelo Estado deve especial respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes e esse respeito não se refere apenas à observância das clássicas limitações constitucionais ao poder de tributar, mas também à utilização do direito tributário como instrumento de mudança social, de desenvolvimento humano, no sentido propugnado por Amartya Sen, através de um adequado manejo da tributação extrafiscal.


Essa constatação se deve ao fato de que o tributo não pode ser considerado tão somente uma relação de poder, na qual o Estado se sobrepõe aos seus súditos, ou mesmo como um sacrifício para os cidadãos. Pelo contrário, o tributo deve ser considerado como um dever fundamental, “como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado”. 18

Por sua vez e na mesma diretriz, Klaus Tipke e Douglas Yamashita lecionam que o dever de pagar impostos é um dever fundamental, porquanto se constitui em uma contribuição necessária para que o Estado possa cumprir suas tarefas no interesse da sociedade. Em razão disso, o Direito Tributário de um Estado de Direito não é Direito técnico de conteúdo qualquer, mas ramo jurídico orientado por valores, passando a exercer uma importância fundamental na realização dos fins estatais.19

O tributo não exerce, atualmente, unicamente a função de prover o Estado dos recursos necessários para a manutenção do aparato estatal ou para o financiamento dos direitos fundamentais e das necessidades públicas, função classicamente conhecida como função fiscal dos tributos. Mais do que isso, o tributo deve ser utilizado como forma de contribuir para consecução dos objetivos fundamentais da República brasileira, com a efetivação de uma justa distribuição de riquezas, para que o desenvolvimento sócio-econômico não seja uma prerrogativa de poucos e para que o bem-estar social seja uma garantia de todos, sem quaisquer discriminações odiosas.

A tributação extrafiscal decorre do intervencionismo do Estado, do abandono da tese de que os tributos devem ser neutros, tal como preconizava o liberalismo econômico, sob o entendimento de que a fazenda pública e a tributação deveriam se pautar por objetivos puramente fiscais, devendo se limitar ao mínimo possível, a fim de não provocar intervenções consideradas maléficas à economia. A tributação extrafiscal é fenômeno que caminha de mãos dadas com o intervencionismo do Estado, na medida em que é ação estatal sobre a sociedade, o mercado e a, antes sagrada, livre iniciativa.20

Ocorre que, na atualidade, já não se pode defender, seriamente, a limitação da tributação a objetivos meramente fiscais, em face das atribuições constitucionais que tem o Estado Democrático de Direito. António Carlos dos Santos destaca que a neutralidade é apontada por muitos como a principal norma de tributação. No entanto, tal doutrina não se sustenta, uma vez que, por definição, a fiscalidade é uma forma de intervenção do Estado. Como menciona o autor português, mais do que intervenção, em economias de mercado, a fiscalidade é uma condição de existência do próprio Estado, é algo imanente ao seu funcionamento.21

Conforme observação do citado jurista, até mesmo a experiência de tributação do liberalismo deslegitima uma visão radical da neutralidade, pois várias foram as formas de intervencionismo fiscal assumidas no período liberal, de fim econômico, social e moralizador, como as proteções aduaneiras; a tributação na hipótese de sucessão causa mortis como forma de redistribuição da riqueza, bem como a instituição de impostos sobre produtos nocivos à saúde.

Com efeito, inexiste neutralidade da tributação em termos absolutos, porque as normas tributárias indutoras, ao incentivarem certos comportamentos desejáveis, assumem a função de promover uma alteração no status quo, uma mudança em direção ao desenvolvimento econômicosocial. Essa perspectiva é condizente com a utilização dos tributos com finalidades extrafiscais, o que é uma evidência decorrente das finalidades atribuídas pelo moderno constitucionalismo aos tributos.

Na mesma diretriz, Raimundo Bezerra Falcão observa que mesmo sendo razoável falar em de uma tributação fiscal, “não se poderia, com êxito, cogitar da existência de uma fazenda neutral. Isso, ela nunca o foi. É ideal que, não obstante haja prosperado como tese, a prática se encarregou de fazer mirrar”. Citado autor anota um dado inegável: “a fazenda ‘neutral’ protege os favorecidos, deixando ao relento os desfavorecidos. É uma maneira de praticar um intervencionismo às avessas, pelo menos à luz da Justiça”.22

Com o advento do Estado social e dos direitos fundamentais prestacionais, conhecidos como direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão, a atividade fiscal do Estado foi intensificada, a fim de provê-lo dos recursos necessários para o financiamento de tais direitos. Dessa forma, o Estado experimentou uma série de transformações que afetaram as suas funções clássicas e, em conseqüência, seus instrumentos de atuação, a exemplo dos tributos, os quais ganharam nova configuração, sendo aptos a promoverem uma mudança social para melhor, proporcionando um combate à discriminação e à desigualdade de recursos, por intermédio de ações afirmativas.

Os tributos têm elevada potencialidade de proporcionar uma mudança social, o que ocorre, por exemplo, quando são utilizados como instrumentos de ação afirmativa, através da função extrafiscal destinada à promoção da igualdade. Segundo leciona Raimundo Bezerra Falcão,

Os diversos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro, já albergam propensões de utilização das potencialidades mudancistas da tributação, certamente em decorrência do convencimento de que é um – se bem que não o único – caminho importante na escalada do homem em busca de transformações o mais possível incruentas e que respeitem a dignidade e a vida do ser humano.

O jurista espanhol Juan Manuel Barquero Estavan explica a mudança na função dos sistemas tributários no âmbito do Estado Social:

el cambio más relevante tiene que ver justamente con las funciones que se asignan a esa Hacienda pública, que transcienden las puramente financieras, para incluir otras en consonancia con las asumidas por el Estado, de transformación o remodelación social y de dirección de la economía; a Hacienda pública aparece, en ese nuevo contexto, como uno de los más importantes instrumentos en manos del Estado para alcanzar esos objetivos.23

O tributo constitui um pressuposto funcional do Estado Social e Democrático de Direito, uma vez que, para poder desenvolver suas funções, o Estado inevitavelmente necessita extrair uma parte importante dos ingressos de seus cidadãos através dos tributos. Com isso, constatase que as funções do Estado prestacional e as funções do Estado fiscal constituem funções complementares no Estado social, pois os tributos deixam de ser um instrumento neutro e com finalidade exclusivamente financeira, para exercer, também, a função de ordenação econômica e social, ocupando um lugar central dentro do catálogo de instrumentos de política econômica e social. 24

Deve ser destacado que o sistema tributário justo é aquele que observa os princípios e valores constitucionais. A justa distribuição da carga tributária entre os cidadãos, por intermédio de leis fiscais éticas, é princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito. Se não existir política fiscal justa, não há espaço para política justa. 25

No que tange às técnicas de implementação das ações afirmativas, a doutrina indica que podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os benefícios fiscais como instrumento de motivação do setor privado. Nesse sentido, Joaquim B. Barbosa Gomes destaca:

De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.26

Considerando que o Direito Tributário sofre os influxos do Direito Constitucional, é inconteste a possibilidade de se falar em discriminações positivas em matéria tributária. Como afirmou José Ricardo do Nascimento Varejão, “A ação afirmativa em Direito Tributário reflete a dinâmica do tributo em atendimento a sua função social.” 27

Desde longa data Raimundo Bezerra Falcão já adotava entendimento que se coaduna com a utilização do direito tributário como instrumento de inclusão social, o que pode ser realizado mediante o uso de ação afirmativa. Segundo citado autor:

É tempo de reformular a idéia de que um Estado ditando normas gerais e iguais para todos. Já se pode pensar em contrabalançar a situação dos menos favorecidos, com leis que sejam iguais para os iguais, mas diferenciadas em favor dos menos afortunados. 28

Em relação ao sistema constitucional tributário, a norma proclamada no art. 150, II, da Constituição Federal, estabelece ser vedado o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Essa proibição da desigualdade se expressa sob as formas principais de proibição de privilégios odiosos e proibição de discriminação fiscal. 29


A proibição de privilégios odiosos indica que qualquer discriminação que leve à diminuição ou à exclusão da carga tributária, aumentando a desigualdade entre contribuintes está proibida. Por sua vez, as discriminações fiscais odiosas são desigualdades desarrazoadas que excluem alguém da regra tributária geral ou de um privilégio não-odioso, constituindo ofensa aos direitos humanos do contribuinte.

Ao utilizar a função extrafiscal do tributo, portanto, o Estado intervém nas relações sociais e na economia, o que configura um poderoso instrumento para promoção dos direitos fundamentais, em especial o direito à igualdade.

O Direito Tributário, historicamente, tem camuflado a realidade de que a figura do contribuinte tem sido usada como instrumento de apropriação do patrimônio (riqueza) de uns (os mais fracos) em proveito de outros (os mais poderosos).30 Segundo o exemplo narrado por Alberto Nogueira, na dinâmica da Revolução Francesa, a burguesia assumiu a direção e o controle, deixando para trás os demais interlocutores e companheiros de luta, impondo também na área dos tributos seus interesses e sua vontade.31

Em contraposição a esse uso histórico do direito tributário, é necessária uma “reconstrução dos Direitos Humanos da Tributação” 32, razão pela qual se sustenta aqui a utilização desse ramo do Direito para a promoção de políticas públicas com a finalidade de alcançar o ideal de justiça social, a exemplo das ações afirmativas. Trata-se, primordialmente, de uma intervenção estatal por normas que induzem o comportamento dos particulares ou simplesmente os premiam: é a intervenção estatal por normas de indução, na classificação de Eros Grau. 33 Nessas espécies de normas, a sanção punitiva é substituída por um incentivo ou um prêmio, que pode ser um estímulo à iniciativa privada para adoção da política de ação afirmativa em contrapartida à concessão de benefícios fiscais.

O Direito Tributário, com sua função extrafiscal, já vem sendo utilizado no direito positivo de diversos países como instrumento das políticas de ação afirmativa. José Pastore informa que, ao lado do sistema de reserva de mercado para emprego de portadores de deficiências (cotas), instituídos na Europa ao longo do século XX com o objetivo de acomodar os ex-combatentes de guerra feridos, estabeleceu-se em diversos países, a exemplo da Alemanha, Áustria, França e Itália, um sistema de cotacontribuição, que estabelece a obrigatoriedade, para os empregadores que não conseguirem, por motivos justificados, preencher as cotas, da contribuição para um fundo público destinado à reabilitação profissional dos portadores de deficiência. 34

Segundo este autor, na Espanha as empresas recebem incentivos e subsídios para empregar portadores de deficiência, tais como redução de contribuições previdenciárias e deduções tributárias. Informa, também, que na América Latina muitos países têm previsão para concessão de incentivos e prêmios ao setor privado para contratação de pessoas portadoras de deficiência. Por exemplo, na Argentina, cita a Lei n. 24.465/95, que reduz em 50% as contribuições previdenciárias dos empregadores que contratam portadores de deficiência. No Peru, a Lei n. 23.285/82 concede benefícios tributários para empresas para contratação dessas pessoas. Na República Dominicana, as empresas têm reduções fiscais quando participam de planos de admissão de portadores de deficiência aprovados pelo governo.

Em Portugal, ainda segundo Pastore, há vários mecanismos de apoio financeiros às empresas. Por exemplo, a contribuição previdenciária é reduzida à metade (12,5%) na contratação de portadores de deficiência. No caso de contrato por prazo determinado, ou para trabalhos em casa, há reduções ainda maiores nas alíquotas das contribuições previdenciárias ou impostos.

No Brasil, ainda é modesta a utilização de benefícios fiscais como instrumento de ações afirmativas. Como exemplos do direito positivo pátrio, pode-se destacar que em diversas Constituições dos Estados-membros da federação tal instrumento é utilizado, em especial para estimular a inclusão de portadores de deficiência no mercado de trabalho, com a previsão de concessão de benefícios fiscais para as empresas que os empregam.

Há diversos exemplos, também no âmbito do direito estadual e municipal que aqui não serão citados, pela limitação deste trabalho. Contudo, no âmbito da legislação federal, merece destaque a isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados na aquisição de automóveis de passageiros de fabricação nacional por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas (art. 1°, IV, da Lei n° 8.989/95) 35; e a isenção de Imposto sobre Operações Financeiras nas operações de financiamento para aquisição de veículos por pessoas portadoras de deficiência (art. 72, IV, da Lei nº 8.383 de 30.12.91).

Há quem defenda que tais medidas afirmativas pudessem ser expandidas na legislação tributária federal, a exemplo da legislação do imposto de renda e proventos de qualquer natureza, que, permitindo o abatimento de verbas gastas em determinados investimentos, tidos como de interesse social ou econômico, poderia ser um campo fértil para o desenvolvimento de tais políticas de inclusão social. Essa técnica poderia, de lege ferenda, ser utilizada como ação afirmativa, permitindo-se a dedução de percentual da base de cálculo do IR para aquelas empresas que empregassem pessoas pertencentes a grupos vulneráveis, como afrodescendentes36, mulheres e portadores de necessidades especiais, ou que melhorassem as condições de trabalho dessas pessoas, contribuindo para uma maior inclusão social.

Américo Bedê Freire Júnior defende também a utilização de isenções fiscais condicionais para estimular as empresas à contratação de indivíduos discriminados, afirmando:

A empresa, então, que tiver determinado percentual de determinada categoria que sofreu discriminação terá um benefício fiscal. Ora, se a Constituição autoriza a adoção de isenções fiscais para a redução das desigualdades regionais, com muito mais razão é constitucional a adoção de isenções para diminuir as desigualdades vivenciadas pelos cidadãos brasileiros. Outra vantagem do regime é que a empresa precisaria manter esses percentuais de funcionários beneficiários sob pena de, se assim não proceder, não ter condições de continuar a usufruir da isenção. 37

Vale citar, também, programa de ação afirmativa, embasado em benefícios fiscais, na área da educação: o Programa Universidade para Todos (ProUni) institucionalizado pela Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, a estudantes que tenham cursado o ensino médio completo na rede pública de ensino ou em instituições privadas com bolsa integral; aos estudantes portadores de deficiência; e aos professores da rede pública de ensino, para determinados cursos destinados à formação do magistério da educação básica. Tal diploma legal, ainda, prevê que a instituição de ensino superior, ao aderir ao ProUni, adote um termo de adesão onde conste a cláusula da reserva de percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.

Nos termos do art. 8ª da supracitada lei, as instituições de ensino que aderirem ao ProUni ficam isentas de uma série de tributos federais, dentre eles: o IRPJ, a CSLL, a COFINS e Contribuição para o PIS.

Com essa aplicação da política de ação afirmativa, aumenta-se o comprometimento dos particulares com a não-segregação social de membros de grupos vulneráveis, bem como com a promoção dos direitos fundamentais. Isso porque uma das funções dos direitos fundamentais é propiciar um certo equilíbrio de forças entre partes conflitantes que não se encontrem em mínimas condições de igualdade38, sendo dever do legislador, com prioridade, a concretização dos direitos fundamentais. No Estado Democrático Social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades, mas também a sociedade participa mais ativamente do exercício do poder. Assim, os direitos fundamentais merecem proteção não apenas contra atos do poder público, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade39, devendo o Estado forçar o respeito pelos particulares aos direitos fundamentais, a exemplo do direito à igualdade, escopo das ações afirmativas.

O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que essa utilização da função extrafiscal dos tributos como política de ação afirmativa é compatível com o princípio da igualdade, quando do julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade em que se alegava ser inconstitucional a Lei nº 9.085/95, do Estado de São Paulo, que instituiu a concessão de incentivos fiscais para as pessoas jurídicas domiciliadas no Estado que, na qualidade de empregador, possuíssem pelo menos 30% (trinta por cento) de seus empregados com idade superior a 40 (quarenta) anos.

Vejamos a ementa desse julgado, ressaltando que a declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal em relação ao ICMS se deu em razão de uma questão formal na instituição do benefício:

Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assembléia Legislativa Paulista usou o caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia.


Procede a alegação de inconstitucionalidade do item 1 do § 2º do art. 1º, da Lei 9.085, de 17/02/95, do Estado de São Paulo, por violação ao disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal. Em diversas ocasiões, este Supremo Tribunal já se manifestou no sentido de que isenções de ICMS dependem de deliberações dos Estados e do Distrito Federal, não sendo possível a concessão unilateral de benefícios fiscais. Precedentes ADIMC 1.557 (DJ 31/08/01), a ADIMC 2.439 (DJ 14/09/01) e a ADIMC 1.467 (DJ 14/03/97).

Ante a declaração de inconstitucionalidade do incentivo dado ao ICMS, o disposto no § 3º do art. 1º desta lei, deverá ter sua aplicação restrita ao IPVA.

Procedência, em parte, da ação.40

Como se constata, a utilização da extrafiscalidade não se deu de forma compulsória aos particulares. Ao contrário, tratou-se de induzir o comportamento destes com vistas ao respeito do direito fundamental à igualdade, mediante a concessão de um benefício fiscal, isto é, uma forma de sanção premial. Nesse desiderato, podem ser utilizados os mecanismos de redução de alíquotas, de dedução de despesas na base de cálculo de tributos ou mesmo a concessão de isenções condicionais, sendo necessário salientar que toda renúncia fiscal deve ser tomada com responsabilidade fiscal, em atenção ao art. 165, § 6°, da Constituição Federal e aos artigos 5°, II, e 14 da Lei Complementar nº 101/2000.

4 CONCLUSÃO

Pretendeu-se, com essas breves palavras, analisar o problema de como o Direito Tributário pode ser útil para a implementação de políticas de inclusão social, em especial as ações afirmativas, que visam à inclusão social de grupos desfavorecidos e discriminados negativamente ao longo da história, bem como à promoção da igualdade material entre os cidadãos, no sentido de auxiliar a todos na criação de condições necessárias para viver a vida que desejarem, respeitando-se as escolhas pessoais de cada um.

A utilização da tributação com tais fins pode propiciar ao Brasil, algum dia, a qualificação de país desenvolvido, pois, para isso, como alertou Amartya Sen, não basta apenas um enfoque no nível de renda da população, mas também proporcionar aos cidadãos um nível mínimo de qualidade de vida, de dignidade, ou seja, o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, eliminando-se as privações que limitam as suas escolhas e oportunidades sociais.

Nesse contexto, a diversidade humana não pode ser ignorada no tratamento das políticas destinadas à expansão das liberdades e à promoção da igualdade, podendo ser necessário dar um tratamento desigual àqueles que estão em desvantagem, como ocorre com as ações afirmativas.

Essas políticas podem ser utilizadas não apenas no âmbito da Administração Pública, podendo o Estado induzir o comportamento dos particulares para fortalecer a adesão a tais políticas. O direito tributário, por intermédio da função extrafiscal dos tributos, pode ser útil nesse desiderato, através da possibilidade de previsão legislativa da concessão de benefícios fiscais aos contribuintes que facultativamente aderirem a essas políticas. Exemplos de uso dos tributos com a finalidade de inclusão social já existem no direito comparado e no direito pátrio, embora essa utilização ainda seja modesta.

A Constituição Federal de 1988 possui um nítido caráter democrático e uma explícita preocupação com o ideal de justiça social, albergando perfeitamente as medidas de ação afirmativa nos objetivos fundamentais estabelecidos pela República, o que reflete na tributação, de forma que, através da concessão de benefícios fiscais, essas medidas podem ser úteis para inclusão social de membros de grupos vulneráveis.

Notas

1 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 5. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2003. p. 41.
2 SILVA, Sandoval Alves da. Direitos Sociais: leis orçamentárias como instrumento de implementação. Curitiba: Juruá, 2007. p. 183.
3 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17.
4 MENEZES, Paulo Lucena de. A Ação afirmativa (Affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 88.
5 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: (o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40.
6 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 199.
7 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 280-283.
8 SANTOS, op. cit., p. 313
9 O autor trata sobre as ações afirmativas em três obras: Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 437-494; Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 343-369; e A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 543-607.
10 No mesmo sentido: BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Ação afirmativa: fundamentos e critérios para sua utilização. Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, nº 98, v. 50, p. 7-16, 2006.
11 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
12 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008.p. 74-75.
13 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 63.
14 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6. ed. rev. e atualizada por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 1.
15 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 29.
16 NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 68.
17 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. III. Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 14.
18 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Livraria Almeidina: Coimbra, 1998. p. 185. 19 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15.
20 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 47.
21 SANTOS, António Carlos dos. Auxílios de Estado e Fiscalidade. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p. 354.
22 FALCÃO, op. cit., p. 44.
23 BARQUERO ESTEVAN, Juan Manuel. La función del tributo en el Estado social y democrático de Derecho. Cuadernos y debates n.º 125. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 21-22.
24 Ibidem, p. 37-38.
25 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 28.
26 GOMES, Joaquim B. Barbosa. O debate constitucional sobre as Ações Afirmativas. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=33. Acesso em: 21 abr. 2010.
27 VAREJÃO, José Ricardo do Nascimento. Princípio da Igualdade e direito tributário. São Paulo: MP, 2008. p. 173.
28 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981, p. 161.
29 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 78-82.
30 NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 111.
31 Ibidem, p. 77.
32 Ibidem, p. 78.
33 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 150.
34 PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTr , 2000. p. 157-176.
35 O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 567.873-MG, 1ª Turma, Relator Min. Luiz Fux, DJ de 25.02.2004, tratou sobre o tema sob a ótica das ações afirmativas, conferindo interpretação extensiva à citada isenção para conceder o benefício ao deficiente físico impossibilitado de dirigir.
36 Veja-se o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR (Decreto Federal n° 6.872, de 04.06.09), em que se prevê no anexo, eixo 1 (trabalho e desenvolvimento econômico), item VIII, como objetivo do Plano, propor um sistema de incentivos fiscais para empresas que promovam a igualdade racial.
37 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Ação afirmativa e isenções tributárias. Disponível em: http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0128.pdf. Acesso em 24 out. 2008.


38 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 109.
39 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 401.
40 STF, ADIn 1276/SP, Relatora Min. Ellen Gracie, julgamento em 29.08.2002, DJ de 29.11.2002.

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Forum Nacional engajado na Marcha Contra a Corrupção

A Diretora Tesoureira do Forum e presidente da ANPPREV, Meire Monteiro, representou o Forum em reunião preparatória da próxima Marcha.


Direito financeiro e educação. O FUNDEB: Natureza jurídica, regime de fiscalização e fixação de competências

Autor: Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, Estudos de pós-doutoramento na Universidade de Boston. Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Consultor da União. Professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília. Procurador da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

Resumo – O ensaio aproxima Direito Financeiro e Educação a partir de análise relativa ao modelo do Fundeb, no que se refere à definição da natureza jurídica do fundo, bem como no que se refere ao regime de competências para sua efetiva fiscalização.

1 Introdução e contornos do problema

O presente ensaio tem por objetivo inventariar problema recorrente de Direito Financeiro enquanto instrumento para fomento da educação. Neste contexto, pretende-se investigar a natureza do repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação-Fundeb, bem como explicitarse um regime de fixação da responsabilidade pela fiscalização dos aludidos recursos. A preocupação principal consiste em se identificar a quem compete a fiscalização e acompanhamento do modelo do Fundeb, especialmente no que se refere à malversação dos recursos do fundo, em tema de responsabilização administrativa (improbidade) e penal. A questão é discutida no Supremo Tribunal Federal, suscita consequências importantíssimas para o Tribunal de Contas da União, a par de exigir da Advocacia-Pública a determinação de algumas posições, de natureza institucional.

No presente texto defende-se que a natureza jurídica do repasse de recursos do Fundeb é de feição constitucional, processando-se de modo automático, o que não se confunde com a natureza do fundo propriamente dito, que é um fundo contábil. A fiscalização dos referidos recursos é do Tribunal de Contas da União, em colaboração com os Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, e também do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos Estaduais, do Distrito Federal e dos Territórios. Tem-se competência fiscalizatória concorrente, na qual o interesse da União não é apenas econômico.

Para tais fins, estuda-se, em primeiro lugar, o papel do Fundeb no contexto educacional brasileiro, especialmente com fundamento e referência no Plano Nacional de Educação. Nesse sentido, verificase o núcleo do problema: trata-se de questão muito simples que reflete as imperfeições de nosso federalismo fiscal, e seus desdobramentos no âmbito do federalismo educativo1.

Em seguida, avalia-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, caudalosa no assunto. O STF julga recorrentemente conflitos de competência entre o Ministério Público Federal e várias projeções de Ministério Público Estadual, a propósito da fixação de competência para o monitoramento de recursos do Fundeb, especialmente em matéria penal. Ainda menos do que dilema de Direito Público a questão é também significativo problema de Ciência Política. E por ter como pano de fundo a repartição de valores decorrentes da cobrança de tributos, é de interesse de todos quantos atuamos em favor da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2 O Fundeb no contexto do modelo educacional brasileiro

Prognósticos e possibilidades referentes ao modelo e ao financiamento da educação no Brasil qualificam a Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprovou o Plano Nacional de Educação2 e deu outras providências. O referido plano, fixado em documento anexo à lei, estende-se por período de dez anos, isto é, alcança até o ano de 2011 (art. 1º). Dispôs-se que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deveriam, com base no plano, elaborar planos decenais correspondentes (art. 2º). Determinou-se que a União, em articulação com os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e a sociedade civil, procederia a avaliações periódicas da implementação do referido plano (art. 3º).

Determinou-se que o Poder Legislativo, por intermédio das Comissões de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados e da Comissão de Educação do Senado Federal, acompanharia a execução do plano (§ 1º do art. 3º). Fixou-se que a primeira avaliação realizar-se-ia no quarto ano de vigência da lei, cabendo ao Congresso Nacional aprovar as medidas legais decorrentes, com vistas à correção de deficiências e distorções (§ 2º do art. 3º). À União caberia instituir Sistema Nacional de Avaliação e estabelecer os mecanismos necessários ao acompanhamento das metas constantes do plano (art. 4º).

Tem-se que os planos plurianuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios seriam elaborados de modo a dar suporte às metas constantes do Plano Nacional de Educação e dos respectivos planos decenais (art. 5º). Instituiu-se o ‘Dia do Plano Nacional de Educação’, a ser comemorado, anualmente, em 12 de dezembro, por força da Lei nº 12.012, de 2009. Principia-se o anexo com histórico relativo aos planos de educação, a partir da instalação da República entre nós.3 Lembrou-se que a educação começou a se impor como condição fundamental para o desenvolvimento do País a partir do momento em que o quadro social, político e econômico do início do século XIX começou a se desenhar4.

Pensou-se um conjunto de prioridades5. Entre elas, a garantia do ensino fundamental obrigatório de oito anos a todas as crianças de 7 a 14 anos, assegurando-se o ingresso e permanência delas na escola, bem como a conclusão do ciclo. Era também prioridade a garantia do ensino fundamental a todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria ou que não o concluíram. É o tema da erradicação do analfabetismo. Ainda, o conjunto de prioridades sugeria a ampliação do atendimento nos demais níveis de ensino – a educação infantil, o ensino médio e a educação superior.

E, especialmente, no que se refere ao financiamento do modelo, basicamente, para o ano de 1999, os recursos eram originários da rubrica manutenção e desenvolvimento do ensino – art. 212 da Constituição – (34,5%), do salário-educação (6,7%), da contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas (4,8%), da contribuição social para a seguridade social (6,3%), do então fundo de estabilização fiscal (19,4%), de recursos diretamente arrecadados (2.2%), bem como de outras fontes, não objetivamente nominadas (15,9%)6.

Registrou-se também que, em 1997, os gastos com a educação, por esferas federativas, era de 23,6% por parte da União, de 47,1% por parte dos Estados e de 29,3% por parte dos Municípios. Explicitou-se, inclusive, a origem, a natureza e o modelo do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF7, não mais existente, no sentido de que este era

[…] constituído por uma cesta de recursos equivalentes a 15% de alguns impostos do estado (FPE, ICMS, cota do IPI-Exp.) e dos Municípios (FPM, cota do ICMS, cota do IPI-Exp), além da compensação referente às perdas com a desoneração das exportações, decorrentes da Lei Complementar n° 87/96. Os núcleos da proposta do FUNDEF são: o estabelecimento de um valor mínimo por aluno a ser despendido anualmente (fixado em 315 reais para os anos de 1998 e 1999); a redistribuição dos recursos do fundo, segundo o número de matrículas e a subvinculação de 60% de seu valor para o pagamento de profissionais do magistério em efetivo exercício. Se o fundo, no âmbito de determinado estado não atingir o valor mínimo, a União efetua a complementação. Em 1998 esta foi equivalente a cerca de 435 milhões (Tabela 23). Para o exercício de 1999 a previsão é de que a complementação da União seja de cerca de 610 milhões (Portaria nº 286/99-MF)8.

A composição do FUNDEF, no ano de 1998, fora de 13,9% do Fundo de Participação dos Municípios, de 12,4% do Fundo de Participação dos Estados, de 66,3% do ICMS, de 1,8% do IPI-Exportação, bem como de um complemento da União, de 3,2%, a par de outras receitas. Posteriormente, o financiamento da educação no Brasil contará com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica-Fundeb, criado em 2007, e que em 2009 alcançou quase 80 bilhões de reais. Os valores são pulverizados entre as redes estaduais e municipais de ensino. Os números de distribuição são fracionados por aluno. Há piso que, uma vez não alcançado, será suplementado pela União Federal. O Fundeb é responsável pela elevação dos investimentos da educação, calculados em relação ao PIB.

O financiamento da educação resulta, e reflete, diretamente, o arranjo fiscal do modelo federativo brasileiro, especialmente no que se refere à repartição de receitas9. Conseguintemente, deve-se admitir que qualquer tentativa de se alterar o regime de responsabilidades educacionais, por parte do Estado, enfrenta constrangimento de interpretações simplistas relativas ao modelo federativo brasileiro.

Por exemplo, a União que, entre outros, cuida da educação pública de terceiro grau, conta com recursos ordinários do Tesouro (decorrentes dos impostos em geral, isto é, dos tributos não vinculados), inclusive com vinculação de 18% de tais receitas para as rubricas educacionais. A União também conta com aportes de várias contribuições sociais, e refiro-me à quota federal do salário-educação, a valores de contribuição social sobre o lucro líquido, sobre a seguridade social, receitas brutas de concursos de prognósticos, a valores do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, a par, e talvez principalmente, da aplicação do salário-educação, em quota federal, do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação-FNDE.


Aos Estados, a quem compete o gerenciamento da educação de nível médio, garante-se a vinculação de receita de impostos (25%), transferências de salário-educação, a aplicação de quotas de salário-educação, em sua dimensão estadual, além, naturalmente de recursos do FNDE. Aos Municípios, a quem se fixa responsabilidade pela educação infantil, há também a aplicação de receita de impostos (25%), subvinculações do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da Valorização dos Profissionais da Educação-Fundeb, fundo de natureza contábil, e que foi instituído pela Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006. Municípios também contam com recursos oriundos de transferências de salário-educação, a par de outras fontes do próprio FNDE.

Leva-se em conta, também, as diretrizes da Lei nº 11.494, de 2007, na forma prevista no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Definiu-se que a fiscalização do cumprimento, pela União, da aplicação do mínimo de 18% da receita resultante de impostos federais na manutenção e desenvolvimento do ensino, prevista no art. 212 da Constituição Federal, deverá ser realizada mediante inspeções, auditorias e análise de demonstrativos próprios, relatórios, dados e informações pertinentes. De fato, tem-se modelo de competência fiscalizatória concorrente.

Quanto ao Fundeb, dispôs-se que deverão ser encaminhados ao Tribunal de Contas da União, a cada exercício, vários dados, a serem utilizados na distribuição dos recursos do referido fundo. Definiu-se também que deverão ser encaminhados ao Tribunal de Contas da União, a cada exercício, por meio de arquivo eletrônico, vários dados, relativos ao exercício imediatamente anterior, especialmente, até 15 de março, pelo Ministério da Fazenda, os valores da arrecadação efetiva, em cada Estado e no Distrito Federal, dos impostos e das transferências de que trata o art. 3º da Lei nº 11.494, de 2007, demonstrados por fonte de receita; e, até 31 de março, pelo Ministério da Educação, o demonstrativo do ajuste anual da distribuição dos recursos do Fundeb previsto no art. 6º, § 2º, da Lei nº 11.494, de 2007, contendo os valores e os fundos beneficiários.

No que se refere à fiscalização da aplicação, no âmbito de recursos federais oriundos da complementação da União, definiu-se que esta será realizada mediante inspeções, auditorias e análise de demonstrativos próprios, relatórios, dados e informações pertinentes. E ainda, determinouse que a fiscalização a cargo do Tribunal de Contas da União será exercida inclusive junto aos órgãos estaduais e municipais incumbidos da aplicação dos recursos do Fundo, em conformidade com a programação prevista em seus Planos de Auditoria ou por determinação dos Colegiados ou Relatores; que compete à Unidade Técnica em cuja clientela esteja incluído o Ministério da Educação, bem como às Secretarias de Controle Externo nos Estados, no âmbito de suas respectivas atribuições, a execução dos trabalhos de fiscalização. No caso de indicação de ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiro, bens ou valores públicos, o Tribunal de Contas da União examinará em cada caso a relevância das irregularidades identificadas e a materialidade dos prejuízos causados ao Fundeb, para decidir se determina a instauração ou conversão do processo em tomada de contas especial.

E assim, ao decidir, o Tribunal remeterá cópia da documentação pertinente ao respectivo Tribunal de Contas Estadual ou Municipal (no caso de São Paulo, por exemplo) para conhecimento e providências de sua alçada, bem como aos Ministérios Públicos da União e dos Estados para as medidas que entenderem necessárias quanto ao ajuizamento das ações civis e penais cabíveis.

E o plano, concretamente, realiza-se prioritariamente mediante a aplicação de recursos do Fundeb, de onde, conclusivamente, a percepção de que o mau uso dos recursos é um problema de todos, sem exclusão, e não apenas do Estado ou do Município que inadequadamente usou dos valores.

3 A natureza do Fundeb e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

A classificação dos fundos tem sido recorrentemente um problema para a Administração Pública, especialmente no que se refere aos efeitos práticos de qualquer iniciativa definitiva de taxonomia. Em âmbito federal a questão preocupa, principalmente, o Tesouro Nacional, a quem incumbe, efetivamente, o controle dos fluxos dos altíssimos valores envolvidos. Neste sentido, há previsão de fundos de gestão orçamentária, de gestão especial e de natureza contábil. O Fundeb se encontra no último grupo. Ao que consta, os fundos de gestão orçamentária realizam a execução orçamentária e financeira das despesas orçamentárias financiadas por receitas orçamentárias vinculadas a essa finalidade. De acordo com o Tesouro Nacional entre os fundos de gestão orçamentária se classificam o Fundo Nacional da Saúde, o Fundo da Criança e Adolescente e o Fundo da Imprensa Nacional, entre outros.

Os fundos de gestão especial subsistem para a execução de programas específicos, mediante capitalização, empréstimos, financiamentos, garantias e avais. Exemplifica-se com o Fundo Constitucional do Centro-Oeste, com o Fundo de Investimento do Nordeste, com o Fundo de Investimento da Amazônia. Os fundos de natureza contábil instrumentalizam transferências, redefinem fontes orçamentárias, instrumentalizam a repartição de receitas, recolhem, movimentam e controlam receitas orçamentárias (bem como a necessária distribuição) para o atendimento de necessidades específicas. É o caso do Fundo de Participação dos Estados, do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundeb, especialmente.

O fundo é uma mera rubrica contábil. Não detém patrimônio. Não é órgão. Não é entidade jurídica. Não detém personalidade própria. É instrumento. Não é fim. Propicia meios. Eventual inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (no caso de alguns fundos) é determinação que decorre da necessidade da administração tributária deter informações cadastrais. Em outras palavras, segundo documento do Tesouro Nacional, a criação do CNPJ não interfere na execução orçamentária e financeira […] o fundo que contratar e receber notas fiscais utilizando o CNPJ do próprio fundo, terá apenas as obrigações tributárias decorrentes de seus atos.

A fiscalização dos recursos do Fundeb, bem como o acompanhamento, controle social e comprovação é objeto de extensa regulamentação normativa, a saber, em primeiro lugar, conforme o disposto no capítulo VI da Lei nº 11.494, de 2007.

Há extensa previsão relativa a instrumentos de controle e de fiscalização. Verifica-se determinação para ação prioritária do Ministério da Educação, a quem compete atuar, principalmente, no monitoramento da aplicação dos recursos dos fundos, por meio de sistema de informações orçamentárias e financeiras e de cooperação com os Tribunais de Contas dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Além, naturalmente, da fiscalização que o Ministério da Educação é submetido ao Tribunal de Contas da União.

A norma de regência explicita também competências de órgãos de controle interno no âmbito da União, bem como de órgãos de controle interno no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Há também determinação para atuação dos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a par da fiscalização pelo Tribunal de Contas da União, no que tange às atribuições a cargo dos órgãos federais, especialmente em relação à complementação da União.

Deve-se levar em conta que as fontes de recursos do Fundeb têm as mais variadas origens. Recursos federais oxigenam o Fundeb, direta e indiretamente. Nesta última hipótese, via fundos de participação estaduais e municipais, bem como por intermédio de quotas partes de ITR. Na primeira hipótese, nos casos de recursos diretos, a título de complementação da União. Assim, em tese, e em princípio, limitar-se a participação da União, quanto à fiscalização de recursos, apenas nas hipóteses de complementação, seria tomar-se a parte pelo todo. E não deve ser o caso.

A quem cabe a fiscalização dos recursos do Fundeb? A matéria é exaustivamente discutida em âmbito de Supremo Tribunal Federal (e o era desde a época do FUNDEF) por força dos contornos de constitucionalidade que o problema coloca, a propósito, especialmente, da fixação de critérios funcionais para o federalismo educativo.

Por exemplo, ainda em contexto do antigo FUNDEF, o Supremo Tribunal Federal, no HC 80867/PI, relatado pela Ministra Ellen Gracie, em julgamento de 18 de dezembro de 2001, na Primeira Turma, decidiu que o desvio de verbas do FUNDEF, qualificaria interesse da União a ser preservado, pelo que a competência fiscalizatória era do Tribunal de Contas da União, bem como eventual crime seria apurado junto à Justiça Federal.

No entanto, na ACO 1156/SP, relatada pelo Ministro Cezar Peluso, e julgada em 1º de julho de 2009, na composição plena do Tribunal, em tema de conflito de competências entre Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual, decidiu-se que a competência é do Ministério Público Estadual, quando não se tenha complementação de verbas federais, bem entendido, em matéria de ação civil de reparação de dano ao Erário, por conta de improbidade administrativa.

Não foi este, porém, o entendimento que prevaleceu na ACO 1151/MG, relatada pelo Ministro Joaquim Barbosa, em julgamento de 12 de agosto de 2010, que se reportou a precedentes do STF no sentido de que, tratando-se de crimes envolvendo recursos do FUNDEF, a atribuição investigatória é do Ministério Público Federal, ainda que eventuais desvios ou irregularidades tenham sido praticados, em tese, por Prefeito Municipal.


Há tendência também consolidada, no sentido de se qualificar o interesse da União, na hipótese do desvio de verbas, especialmente do Fundeb (embora o julgado em seguida fora produzido em discussão de FUNDEF). É o caso do decidido no RE 464621/RN, relatado pela Ministra Ellen Gracie, em julgamento da Segunda Turma, em 14 de outubro de 2008.

Relevante também o conteúdo do MS 27410/DF, relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa, julgado em 13 de agosto de 2010, quando se decidiu que o Tribunal de Contas tem competência para fiscalizar contas de Prefeito, por força de dispositivos constitucionais (art. 71, II e VI), bem como de disposição de Lei Orgânica do TCU (art. 41, IV, da Lei nº 8443, de 1992).

Na ACO 1319/SP relatada pelo Ministro Dias Toffoli em julgamento de 17 de junho de 2010, fixou-se a tese que o presente ensaio abraça, no sentido de que a matéria sugere competência fiscalizatória concorrente, e que recursos da União (ainda que não em sua forma de complementação) exigem a intervenção da União. Isto é, a questão envolve o Ministério Público Federal, a Advocacia-Geral da União, o Tribunal de Contas da União. É o que o interesse da União não é apenas financeiro. Transcende para os interesses da sociedade, que devem ser tutelados, da matéria mais eficiente possível. No que interessa:

Observo, todavia, que o FUNDEF é composto por verbas do Fundo de Participação do Estado e dos Municípios (FPE e FPM); por receita gerada com a arrecadação do imposto sobre produtos industrializados (IPI) proporcional às exportações do Estado; e por verbas federais destinadas a compensar a perda dos Estados com a desoneração do ICMS sobre as exportações determinada pela Lei Complementar nº 87/96 (art. 1º, § 1º, da Lei n° 9.424/96). Assim, mesmo que não contribua a título de complementação, a União destina recursos ao referido fundo, seja por meio da receita do IPI ou de parcela que compensa a perda com a arrecadação do ICMS nos Estados. Por esse motivo, o desvio de verbas do FUNDEF, embora atinja interesses econômicos local, atrai a competência da Justiça Federal e a conseqüente atribuição do Ministério Público Federal. De qualquer forma, tenho É verdade que o ensino fundamental compete prioritariamente aos Estados e Municípios, conforme dispõe o art. 211, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal. No entanto, tal previsão não exclui o papel da União na promoção do ensino básico, tanto é que o caput do dispositivo prevê que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.10

A questão, então, deve ser enfrentada e resolvida em face dos seguintes problemas. A) Em âmbito penal, quem detém competência para fiscalizar malversação de recursos do Fundeb, no caso de desvio estadual ou municipal? A Justiça Federal ou a Justiça Estadual? B) De igual modo, a quem compete a posição de dominis litis, o Ministério Público Federal ou o Ministério Público Estadual? C) No que se refere à posição do Tribunal de Contas, no mesmo caso, a quem incumbe a fiscalização, ao Tribunal de Contas da União ou aos Tribunais de Contas Estaduais? Bem entendido, as questões são colocadas nas hipóteses nas quais não se tenha complementação de recursos federais. Neste último caso, indiscutível a presença da União.

No que se refere à competência para apreciação da matéria em seus aspectos penais, especialmente, dispõe o inciso I do art. 109 da Constituição que aos juízes federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de infortunística e as sujeitas à Justiça Eleitoral e Justiça do Trabalho. E ainda, dispõe também o inciso IV do art. 109 da Constituição que é competência da Justiça Federal julgar infrações penais praticadas em detrimento de interesse da União, excluídas as contravenções. Deve-se, assim, definir-se o conteúdo do interesse da União. A matéria foi tratada no julgado pelo Ministro Dias Toffoli no precedente acima reproduzido, quando se entendeu que o interesse de que menciona o texto constitucional não é apenas de fundo econômico. Além do que, há vários recursos que compõem o Fundeb que tem origem federal, ainda que não se fale em modelo de complementação.

A matéria é de competência da Justiça Federal, o que, por via de consequência, assinala para a competência do Ministério Público Federal e, ainda, para a Advocacia-Geral da União. Deve-se, tão somente, verificar hipóteses de concursos de crimes, bem como eventuais foros privilegiados dos réus, de modo a, eventualmente, e nos exatos limites dos casos levados a juízo, alterar-se o regime de competências.

O interesse é da União. Primeiro, porque há transposição de recursos que decorrem da capacidade de arrecadação do ente central. Segundo, porque há hipóteses de complementação de valores estaduais e municipais por parte dos cofres da União. Terceiro, porque se trata de educação, em sua dimensão nacional, isto é, de diretrizes e bases da educação nacional, matéria de competência legislativa privativa da União, nos termos do disposto no inciso XXIV do art. 22 da Constituição Federal, nada obstante ser matéria de competência legislativa concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e ao Distrito Federal a fixação de normas sobre educação, cultura, ensino e desporto.

A matéria é de competência fiscalizatória primordial do Tribunal de Contas da União. O assunto é de matriz constitucional. O inciso II do art. 71 da Constituição Federal dispõe que é competência do Tribunal de Contas da União julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, bem como julgar as contas de quem derem causa a irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

Recursos públicos exigem fiscalização do Tribunal de Contas, ainda que geridos por ente privado, conforme o Supremo Tribunal Federal há decidiu no MS 21.6.444, relatado pelo Ministro Néri da Silveira, em julgamento do Plenário de 4 de novembro de 1993, quando se assentou que embora a entidade seja de direito privado, sujeita-se à fiscalização do Estado, pois recebe recursos de origem estatal, e seus dirigentes hão de prestar contas dos valores recebidos; quem gere dinheiro público ou administra bens ou interesses da comunidade deve contas ao órgão competente para a fiscalização.

Não há fiscalização do Tribunal de Contas da União em relação aos Estados quando os recursos sejam originários dos próprios Estados, a exemplo de valores oriundos da exploração de recursos naturais da plataforma continental, como definido pelo Supremo Tribunal Federal no MS 24.312, relatado pela Ministra Ellen Gracie, em julgamento de Plenário de 19 de fevereiro de 2003.

O inciso IV do art. 41 da Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992 dispõe que é competência do Tribunal de Contas da União fiscalizar, na forma estabelecida no Regimento Interno, a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município.

E o problema não é semântico. É prático, utilitário, pragmático. Não há, de fato, convênio, e nem acordo, e muito menos ajuste. No repasse de verbas do Fundeb o que se tem é o cumprimento de disposição constitucional, pormenorizada em lei federal, e ajustada pelo próprio Tribunal de Contas e pelo Ministério da Educação.

A locução outro instrumento congênere é de amplo uso, sugere horizonte de sentido que deve ser focado à luz de critérios de filtragem constitucional, a exemplo do contexto no qual se desenha o Tribunal de Contas, bem como de superiores princípios que sugerem a educação como valor superlativo a ser perseguido numa sociedade de informação, e de inspiração democrática.

O Tribunal de Contas da União alcança os responsáveis pela aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a estado, ao Distrito Federal ou a município, como disposto no inciso VIII do art. 5º do Regimento Interno daquele Sodalício. Como já assinalado, deve-se conferir à locução outros instrumentos congêneres um sentido que lhe dê uma máxima eficácia, isto é, a concepção é de ampliação dos recursos e motores de regimes de fiscalização.

E ainda que por entendimento próprio o Tribunal de Contas da União deduzisse forma distinta, dispondo, de modo endógeno e autopoiético (a usarmos expressão bem ao sabor da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann) não se deve prestigiar o entendimento, sem maiores digressões, bem entendido. Como argumentado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, quando se discutiu o problema do FUNDEF relativo ao Município de Rosana, na ACO 1161/SP, relatada pelo Ministro Dias Toffoli, e julgada em 8 de março de 2010, os atos normativos internos do TCU, dispondo sobre o exercício deste mister, que sequer é exclusivo, não se prestam nem têm força para determinar a competência jurisdicional. A matéria é de Constituição. E é de lei. E não de construção pretoriana.

Na referida ACO 1161/SP o Ministro Dias Toffoli decidiu que havia competência tanto do Ministério Público Federal quanto do Ministério Público Estadual. Àquele compete conduzir a ação penal, a este último a ação civil, no que se refere à apuração e responsabilização por improbidade administrativa.


Em matéria de Fundeb as competências devem ser exercidas de modo conjunto e ordenado. Tratando-se de competência fiscalizatória concorrente, deve-se zelar por atuação conjunta entre o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual, entre o Tribunal de Contas da União e o Tribunal de Contas dos Estados. E não se deve restringir a competência do Tribunal de Contas da União pelo fato de que há mais de 5.500 municípios no Brasil. A questão é de gerenciamento, e não de tangenciamento da realidade por intermédio de interpretação legal. E por matéria de acompanhamento concorrente ao que é federal imputa-se a fixação das diretrizes gerais. Até porque, segundo a lei, o acompanhamento e o controle social sobre a distribuição, a transferência e a aplicação dos recursos dos Fundos serão exercidos, junto aos respectivos governos, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por conselhos instituídos especificamente para esse fim.

4 Conclusões

Conclui-se que a natureza jurídica do repasse de recursos do Fundeb é de feição constitucional, processando-se de modo automático, o que não se confunde com a natureza do fundo propriamente dito, que é um fundo contábil. A fiscalização dos referidos recursos é do Tribunal de Contas da União, em colaboração com os Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, a par do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos Estaduais, do Distrito Federal e dos Territórios, respeitando-se também as competências fixadas no Capitulo VI da Lei nº 11.494, de 2007, no que toca à composição dos vários conselhos lá indicados. Tem-se uma competência fiscalizatória concorrente, na qual o interesse da União não é apenas econômico. Por isso, não se pode negar a preocupação da União nas causas referentes à malversação dos recursos do Fundeb, ainda que não se tenha complementação de recursos federais.

Notas

1 A questão toda sugere uma discussão do modelo federalista. Conferir, para os propósitos de uma teoria do federalismo educativo, Rui de Britto Álvares Afonso Pedro Luis Barros e Silva, – vários autores, Federalismo no Brasil – Desigualdades Regionais e Desenvolvimento. São Paulo: Fundap, 1995, e dos mesmos autores, Reforma Tributária e Federação. São Paulo, Fundap, 1995. José Alfredo de Oliveira Baracho, O Princípio da Subsidiariedade – Conceito e Evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, bem como Teoria Geral do Federalismo, Rio de Janeiro: Forense, 1986. Gilberto Bercovici, Dilemas do Estado Federal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. Michael Bothe, Federalismo, um Conceito em Evolução. São Paulo: Fund. Konrad-Adenauer, 1995. Levi Carneiro, Federalismo e Judiciarismo. Rio de Janeiro: Alba Officinas Graphicas, 1930. Dalmo Dallari, O Estado federal. São Paulo: Ática, 1986. Sérgio Ferrari, Constituição Federal e Federação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. Peter House, Modern federalism – An Analitical Approach, Lexington, 1982. Janice Helena Ferreri Morbidelli, Um Novo Pacto Federativo para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos, 1999. Dircêo Torrecillas Ramos, O Federalismo Assimétrico. Rio de Janeiro: ed. Forense, 2000.
2 Conferir, para abordagem geral dos presentes desafios da educação brasileira, Colin Brock e Simon Schwartzman, Os Desafios da Educação no Brasil, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. O volume conta com excelentes ensaios sobre vários assuntos, a exemplo da qualidade e da equidade na educação brasileira, do problema da educação técnica, da bifurcação da educação superior em publica e privada, dos desafios da pós-graduação, entre tantos outros.
3 Maria Lúcia de Arruda Aranha. História da Educação e da Pedagogia- Geral e do Brasil, São Paulo: Moderna, 2006, especialmente p. 294 e ss.
4 Conferir Paulo Ghiraldelli Jr. História da Educação Brasileira. São Paulo: Cortez, 2009.
5 Para um mapeamento do problema das prioridades da educação no contexto da América Latina, Simon Schwartzman e Cristián Cox (eds.). Políticas Educacionais e Coesão Social, uma Agenda Latino- Americana. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
6 Plano Nacional de Educação, anexo, p. 51.
7 Recursos do fundo, hoje Fundeb, vinculam-se diretamente a políticas de formação de professores. Conferir Cristina Helena Almeida de Carvalho. Política Econômica, Finanças Públicas e as Políticas para Educação Superior: de FHC (1995-2002) a Lula (2002-2006). In Margarita Victoria Rodriguez e Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Políticas Educacionais e Formação de Professores em Tempos de Globalização, Brasília: Liber Livro Editora, 2008. p. 191 e ss.
8 Plano Nacional de Educação, anexo, p. 52.
9 Conferir, especialmente, Fernando Rezende. Federalismo Fiscal: em Busca de um Novo Modelo. In Romualdo Portela de Oliveira e Wagner Santana (orgs.). Educação e Federalismo no Brasil: Combater as Desigualdades, Garantir a Diversidade, Brasília: UNESCO, 2010. p. 71 e ss.
10 Supremo Tribunal Federal, ACO 1319/SP relatada pelo Ministro Dias Toffoli em julgamento de 17 de junho de 2010.

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Proteção do contribuinte e fazenda contra atos contraditórios e modificação de jurisprudência em direito tributário

Autor: Tiago da Silva Fonseca, Procurador da Fazenda Nacional. Mestrando em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da UFMG.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

Resumo – Para garantir a segurança jurídica do contribuinte, a instituição ou majoração das obrigações tributárias dependem de lei expressa, as leis tributárias que agravam a sua situação não retroagem e têm a eficácia diferida para pelo menos noventa dias da publicação da norma. A efetivação da segurança jurídica vai além das limitações constitucionais expressas ao poder de tributar. A doutrina e a jurisprudência passam a desenvolver teses a partir de princípios implícitos que também são necessários para afirmar a segurança jurídica, como a confiança legítima e a boa-fé objetiva. A necessidade de previsibilidade e de estabilidade, bem como a garantia de expectativas, devem ser estendidas à Administração Tributária. Como a doutrina majoritária afasta a aplicação da confiança das pretensões fazendárias, é mister que se recorra a fontes alternativas de proteção do Fisco.

1 Introdução

O Estado de Direito está fundado em três valores estruturantes: a liberdade, a igualdade e a segurança jurídica. A Constituição, como dimensão básica que subordina o Estado de Direito, vai, de forma imediata ou mediata, buscar a concretização e efetivação desses valores estruturantes em todas as suas normas.

A segurança jurídica requer a previsibilidade, a estabilidade, a fiablidade, a clareza, a racionalidade, a transparência dos atos dos Poderes constituídos do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), de modo que o cidadão tenha um mínimo de precisão e determinabilidade da ordem jurídica a que está submetido.

A expectativa de durabilidade e permanência da ordem jurídica e dos atos estatais, com a devida proteção do cidadão para os casos de mudanças normativas necessárias para o desenvolvimento das atividades dos poderes públicos, garante não só as situações jurídicas assentadas, mas também permite a paz social. Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida1.

No Direito Tributário, a segurança jurídica do contribuinte é garantida precipuamente pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, submetidas sobretudo através da legalidade, irretroatividade das leis que instituam ou agravem obrigações tributárias e não-surpresa. Quando os princípios constitucionais tributários expressos são insuficientes para concretizar a segurança jurídica do contribuinte, torna-se necessário proteger expectativas legitimamente criadas, através dos princípios da confiança e boa-fé subjetiva.

As idéias de previsibilidade, estabilidade, clareza, transparência, fiabilidade e racionalidade, todavia, transbordam os contornos da segurança jurídica, que é garantia do cidadão e contribuinte, para orientar a atuação e para também atender às expectativas da Administração Tributária. Se o contribuinte é resguardado contra atos contraditórios pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, pela confiança legítima e boa-fé objetiva, a Fazenda deve exigir que as declarações e comportamentos dos particulares não configurem abuso de direito ou violação ao dever de lealdade.

Outrossim, as modificações de jurisprudência que impliquem em impactantes perdas fiscais devem constatar se a Fazenda atuava nos limites de entendimento pacificado anterior, sendo surpreendido por reviravolta de jurisprudência consolidada. Nesse caso, os efeitos da nova norma judicial devem ser modulados, em observância a princípios como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal e o planejamento estatal.

2 A previsibilidade e esta bilidade da relação tributária: a confiança legítima dos contribuintes e a garantia da Fazenda contra o abuso de direito

A previsibilidade necessária à segurança jurídica em matéria tributária é garantida, sobretudo, pela legalidade. De acordo com a definição legal expressa no art. 3º do Código Tributário Nacional, tributo é a prestação pecuniária compulsória, que não constitua sanção de ato ilícito, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Entretanto, ainda que a atividade seja plenamente vinculada, a aplicação da lei não consiste na mera subsunção da norma ao fato. A complexidade social faz com que mesmo a lei tributária, que conta com a predominância de conceitos determinados e não de tipos fluidos, seja insuficiente para regular corretamente casos situados numa “zona cinzenta” e não numa “zona de certeza”.

No conceito de discricionariedade proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, a lei consigna um limite de aplicação, dentro do qual pode existir um conjunto de interpretações legítimas, consistindo a aplicação da lei ao caso concreto na escolha de uma única alternativa pelo aplicador (seja o Poder Executivo ou Judiciário):

Discricionariedade é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente2.

Logo, é possível que o aplicador escolha uma alternativa que, não obstante esteja inserida no limite estabelecido pela lei, crie norma formalmente legítima, mas que materialmente vá de encontro ao Direito, considerando que a legitimidade jurídica não se restringe à legalidade.

Nessa perspectiva, a aplicação legítima da lei tributária depende de outros princípios que garantem a previsibilidade para o contribuinte, como a proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva.

O princípio da confiança legítima é criação do Direito Europeu, como instrumento de manutenção e atendimento das expectativas criadas no passado frente às alterações normativas do futuro. Preservar o passado, pela confiança legítima, faz todo o sentido em países como Alemanha, Portugal, Espanha e França, que só consagraram constitucionalmente o princípio da irretroatividade para leis penais e sancionadoras e não para as leis em geral, como no Brasil.

Na Europa, especialmente na Alemanha, o princípio da confiança legítima surge como justificação de vinculação de declarações, acordos, contratos e expectativas contra modificações futuras, nas relações de Direito Civil, para as quais não havia nenhuma previsão contra a irretroatividade.

O princípio certamente ganhou maior repercussão a partir do modelo de Claus-Wilheim Canaris, que associou a necessidade de preservação da confiança à teoria da aparência e à proibição do venire contra factum proprium. Como substrato ético-jurídico, a confiança legítima garantiria as situações aparentes, contra mudanças contraditórias, constituídas mediante declarações, documentos idôneos ou comportamentos concludentes. A estabilização das situações por meio da confiança se daria de forma positiva, mantendo-as conforme as expectativas criadas, ou de forma negativa, modificando-as com a contraprestação de indenização por danos.

A confiança legítima a ser protegida depende de três requisitos:

  1. ação ou omissão de uma parte, apta a gerar expectativas em outra, que representa uma situação de acordo com uma declaração, documento ou comportamento;
  2. boa-fé daquele que confiou;
  3. mudança contraditória da situação representada, gerando a imputação da responsabilidade pela confiança para aquele que agiu de forma contrária às expectativas que induziu.

Incorporando as teorias alemãs, a doutrina civilista portuguesa também é rica de estudos acerca da confiança nas relações entre particulares. Carneiro da Frada3 dá à confiança papel de destaque na estrutura normativa, situando-a em patamar posterior ao dos princípios e valores, como instrumento de justiça corretiva. Os atos contraditórios em prejuízo à confiança alheia seriam causa para a responsabilidade civil, devendo o defraudador restaurar a situação representada ou indenizar aquele que confiou, como forma de restauração do equilíbrio da relação. Menezes Cordeiro, diferentemente de Carneiro da Frada, que situa a confiança num campo axiológico, defende a sua força regulativa, como ponte entre a boafé subjetiva e objetiva, ao mesmo tempo em que está assentada em ambas.

No sentido proposto por Niklas Luhmann, a confiança é meio para redução da complexidade social, uma vez que antecipa o futuro, que determina as ações do presente como se o futuro fosse certo. Assim, a confiança torna-se instrumento para garantir a coerência e previsibilidade do presente, ante os antecedentes alternativos do passado e das diversas possibilidades do futuro. A confiança fundamenta as ações de uma parte tomando por base as ações que espera de outra, que toma decisões acreditando que as suas expectativas darão origem às conseqüências esperadas. É uma forma importante para organizar as relações, para não tornar caótico os sistemas em que é garantida a liberdade e a autonomia particular de todos os indivíduos.


A sua generalidade fez com que a confiança, portanto, deixasse de ser uma garantia das relações civis, para alcançar relações onde o Estado seria uma das partes. O princípio da proteção da confiança no Direito Público passou a garantir os cidadãos em face de declarações e comportamentos contraditórios ou expectativas criadas pelo Estado. Sobretudo, quando o Estado age de forma discricionária, em que há várias alternativas legítimas e possíveis, dentro dos limites fixados pela lei. Mas mesmo quando o Estado age de forma vinculada, em que sobressai a atuação de acordo com a estrita legalidade, podem ocorrer situações que escapam ao princípio, já que a criação da norma concreta não se limita à mera subsunção da norma ao fato, de modo a surgir a necessidade de se recorrer ao princípio da confiança, como forma de se fazer ou de se preservar a justiça.

No Direito Administrativo, Hartmut Maurer noticia leading case do Tribunal Administrativo Superior de Berlim, vinculando a declaração e comportamento do Estado em favor da confiança legítima do administrado:

A primeira invasão nessa concepção jurídica firme resultou por meio de uma decisão do Tribunal Administrativo Superior de Berlim de 14.11.1956 (DVBL. 1957, 503). Tratava-se do seguinte caso: a demandante, uma viúva de um funcionário, transladou da República Democrática Alemã de então para Berlim-Leste depois de lhe haver sido prometido, por ato administrativo, a concessão de rendimentos de pensão. Um ano depois a autoridade competente comprovou que os pressupostos jurídicos para a concessão, porém, não existiam, os rendimentos de pensão, portanto, haviam sido concedidos falsamente. Em consequência, ela retratou o ato administrativo, suspendeu os pagamentos e exigiu da demandante a restituição dos rendimentos pagos a mais. Isso correspondia, sem mais, à jurisprudência de então. O Tribunal Administrativo Superior de Berlim decidiu, todavia, a favor da demandante. Ele comprovou que, no caso concreto, deveria ser observado não só o princípio da legalidade, mas também o princípio da proteção à confiança. A demandante confiou na existência do ato administrativo e, em conformidade com isso, alterou decisivamente suas condições de vida. Como, no caso concreto, seu interesse da confiança preponderava, o ato administrativo não deveria ser retratado. O Tribunal Administrativo Federal confirmou a sentença do Tribunal Administrativo Superior de Berlim (BVerwGE 9, 251) e, na época posterior, desenvolveu, em numerosas decisões, uma doutrina de retratação ampla e diferenciada4.

A confiança legítima no Direito Administrativo funciona como garantia do administrado, que planeja a sua atuação conforme declarações e comportamentos do Estado, diante do poder da Administração Pública em criar normas ou em anular atos inválidos e revogar atos que se tornam incovenientes ou inoportunos.

Entre nós, Almiro Couto e Silva5 cuidou do tema da confiança do administrado diante de atos contraditórios da Administração com grande entusiasmo. Destaca o autor que as expectativas dos administrados devem ser preservadas contra modificações prejudiciais do direito positivo ou contra anulação de atos pelo Estado, ainda que ilegais, como os praticados pelos chamados “funcionários de fato”. Logo, a confiança do particular deve funcionar como limite de revisão de atos administrativos, ainda que eivados de ilegalidade.

No Direito Tributário, a proteção da confiança legítima é, para Misabel Derzi, princípio autônomo e não desdobramento de outros princípios, como legalidade, irretroatividade, propriedade, direito de personalidade, dignidade da pessoa humana ou igualdade. A confiança seria uma implícita limitação constitucional ao poder de tributar. A Administração Tributária é parte diferenciada da relação obrigacional, tendo em vista que tem a prerrogativa de constituir o crédito que vai exigir, administrativa ou judicialmente. Tal prerrogativa deixa a parte credora numa posição de vantagem em relação à devedora. Para equilibrar a relação que, apesar de ser uma relação obrigacional ex lege, não deixa de ser um vínculo obrigacional, a Constituição já delimita e direciona a atuação da Administração Tributária, através dos princípios expressos como limitações constitucionais ao poder de tributar.

A confiança seria mais uma dessas limitações constitucionais, cuja proteção se torna imperiosa quando a legalidade, a irretroatividade e a anterioridade não são suficientes para garantir a previsibilidade para o contribuinte. Partindo da premissa pela qual onde há domínio de informações não há confiança, portanto, o princípio seria meio de defesa atribuído somente ao contribuinte e nunca à Fazenda Pública.

Para Niklas Luhmann, “a confiança se apóia na ilusão6. Se existe certeza não há necessidade de confiança. A confiança deve servir como garantia para aquele que não tem a totalidade ou, pelo menos, a maior quantidade de informações, que representa uma situação, que age de acordo com a escolha de uma das probabilidades futuras, que acredita na expectativa que foi gerada ou fomentada.

Ainda na doutrina de Misabel Derzi, a confiança tem três características elementares: a permanência dos estados, a antecipação do futuro e a simplificação. Mas a autora não reconhece a confiança, onde existe supremacia sobre os eventos:

Onde há supremacia sobre os eventos/acontecimentos, a confiança não é necessária. Essa constatação é importante nesta tese: a confiança e proteção da confiança não se colocam do ponto de vista do Estado, como ente soberano. Isso porque, nas obrigações ex lege, o Estado tem supremacia sobre os eventos/acontecimentos que ele mesmo provoca, ou seja: as leis, as decisões administrativas e as decisões judiciais na modelação e cobrança dos tributos7

Como lado mais fraco do vínculo obrigacional tributário, o contribuinte que realiza um planejamento fiscal fundado não só nas leis e normas vigentes, mas também nas declarações e comportamentos da Administração Tributária, deve ser reparado se houver uma mudança repentina ou ato contraditório por parte do Fisco, em respeito à sua confiança.

Assim, a confiança do contribuinte deveria ser protegida, como acoplador estruturante e estabilizador do sistema jurídico e da relação tributária, especialmente nos casos de termos fixados com prazos legais (ex: isenções), mudanças de normas agravadoras dos deveres dos contribuintes, mudanças de atos administrativos (lançamentos) que onerem de forma mais intensa os contribuintes, declarações e respostas da Administração Tributária.

É evidente que qualquer reparação do contribuinte por ato contraditório da Administração Tributária depende da comprovação dos requisitos da responsabilidade pela confiança, isto é, depende da demonstração de um ato capaz de gerar expectativas legítimas, de boa-fé do particular e de investimentos decorrentes da declaração ou comportamento anterior.

Pela teoria da confiança, as declarações, documentos, normas e comportamento do Fisco o vincula perante o contribuinte, criando deveres que, se violados, geram a pretensão de reparação, seja através da manutenção da situação de acordo com as expectativas representadas, seja através de criação de regimes de transição conforme o grau de confiança gerada e de investimentos dispendidos, seja através de indenização por perdas e danos. Se adotarmos como modelos de reparação as teorias de responsabilidade civil, a indenização deve corresponder às perdas conseqüentes da quebra de confiança.

Existe considerável resistência da doutrina majoritária em admitir a confiança da Fazenda Pública em relação ao contribuinte, ainda que o particular aja de modo contraditório ou viole expectativas geradas no Fisco, em processos administrativos ou judiciais. Isso porque as declarações, documentos e comportamentos do contribuinte não lhes criam deveres perante a Fazenda Pública, porquanto os deveres na relação jurídica obrigacional tributária devem estar necessariamente previstos pela lei.

Ainda que reconheçamos a inaplicação do princípio da proteção da confiança em favor da Fazenda Pública, por estar a Administração Tributária em posição de vantagem na relação jurídica ou por considerar que as declarações e comportamentos dos contribuintes não criam deveres que sempre decorrem de lei, é mister que se reconheça a necessidade de garantia de estabilidade e previsibilidade tanto para o credor como para o devedor tributário.

Reprimir o abuso de direito e garantir expectativas de uma parte contra mudanças contraditórias de outra são preocupações do Direito em geral e não são máximas a serem aplicadas em casos isolados ou em relações jurídicas específicas.

A teoria do abuso de direito está fundada na evolução do conceito de direito subjetivo, que deixou de ser o poder irrestrito dado ao titular, isentando-o de quaisquer responsabilidades por danos decorrentes do exercício. O direito subjetivo passou a incorporar elementos como a liberdade, a consideração social, a cooperação, a função social, dentre outros.

Em estudo sobre a boa-fé, Menezes Cordeiro dá notícia dos primeiros julgados reconhecendo o exercício abusivo de direito, nos tribunais da França:

As primeiras decisões judiciais do que, mais tarde, na doutrina e na jurisprudência, viria a ser conhecido por abuso de direito, datam da fase inicial da vigência do Código de Napoleão. Assim, em 1808, condenouse o proprietário duma oficina que, no fabrico de chapéus, provocava evaporações desagradáveis para a vizinhança. Doze anos volvidos, era condenado o construtor de um forno que, por carência de precauções, prejudicava um vizinho. Em 1853, numa decisão universalmente conhecida, condenou-se o proprietário que construira uma falsa chaminé, para vedar o dia a uma janela do vizinho, com quem andava desavindo. Um ano depois, era a vez do proprietário que bombeava, para um rio, a água do próprio poço, com o fito de fazer baixar o nível do vizinho. Seguir-se-iam, ainda, numerosas decisões similares, com relevo para a condenação, em 1913, confirmada pela Cassação, em 1915, por abuso do direito, do proprietário que erguera, no seu terreno, um dispositivo de espigões de ferro, destinado a danificar os dirigíveis construídos pelo vizinho8.


Assim, ocorre o abuso de direito quando o titular exerce o seu poder seja sem utilidade própria, ou com a intenção de prejudicar alguém, ou de maneira injusta, ou com fins diversos daqueles atribuídos pela lei. O abuso de direito viola normas, éticas ou jurídicas, e acaba neutralizando e aniquilando o direito ilegitimamente exercido, transformando o ato abusivo em ilícito. Nas palavras de Menezes Cordeiro:

A admissão do abuso de direito tem sido fundada na necessidade de respeitar os direitos alheios, na violação, pelo titular-exercente, de normas éticas, na ocorrência por parte do mesmo titular, de falta e não consideração do fim preconizado pela lei, aquando da concessão do direito9.

Assim, ainda que não haja confiança legítima do Fisco a ser protegida na relação tributária, não é dado ao contribuinte agir de modo contraditório, violando expectativas criadas ou atuando em contrariedade aos fins dos direitos subjetivos que lhes são garantidos.

Os Tribunais pátrios já vêm admitindo casos de abuso de direito de contribuintes em face do Fisco, especialmente tipificados no postulado do venire contra factum proprium. As linhas de proibição do venire contra factum proprium, normalmente, têm o propósito de concretizar a doutrina da confiança. Todavia, podem ser abrangidos na figura da proibição do venire contra factum proprium comportamentos contraditórios originadores ou independentes da confiança, especialmente nos casos de relações jurídicas que se projetam no tempo e que requerem estabilidade e previsibidade.

Estão abrangidas no tipo venire contra factum proprium as situações em que o titular manifesta a intenção de não exercer um direito e depois exerce ou indica não tomar determinada atitude, mas acaba por assumíla. As declarações e comportamentos contraditórios podem impedir a constituição ou modificar direitos subjetivos, retirando do titular o poder potestativo de exercício.

Ainda que as construções acerca do abuso de direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium, tenham se dado no âmbito das relações privadas, proibir e coibir declarações e comportamentos contraditórios é função do Direito, que deve manter a estabilidade e previsibilidade dos vínculos entre os particulares, bem como entre as pessoas e o Estado.

Nesse contexto, Menezes Cordeiro dá conta daquela que foi considerada a primeira aplicação da proibição do venire contra factum proprium em situações de Direito Penal:

Ponto de partida foi a decisão do LG Kaiserlautern 14-Jul.-1995, JZ 1956, 182-183: o R. cometera o crime de estupro – § 182 StGB, na versão em vigor na altura – tendo posteriormente renovado várias vezes as relações com a ofendida, de catorze anos; em defesa, vem dizer que, na primeira vez, desconhecia a idade da ofendida e, que, nas vezes subseqüentes, embora tivesse obtido esse conhecimento, faltava já o requisito da virgindade, por parte da mesma ofendida. O LG Kaiserlaustern não aceitou este argumento, decidindo que o R. não podia recorrer à falta de um requisito que ele próprio suprimira10.

No Direito Tributário, a aplicação do instituto jurídico é até menos controversa, já que não é difícil vislumbrar condutas contraditórias, por parte dos contribuintes, capazes de imputar severos prejuízos à Fazenda Pública.

Utilizamos o parcelamento previsto na Lei 11.941/2009 como exemplo. A Lei 11.941/2009, de dificílima implementação por parte da Administração Tributária, previa nove modalidades de parcelamento. Não obstante, estabelecia iniciativas que em muito dificultavam a consolidação dos parcelamentos, tais como a inclusão no benefício de saldos remanescentes de débitos em outros Programas (REFIS, PAES, PAEX, etc), a inclusão de débitos decorrentes de aproveitamento indevido de créditos de IPI, a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido próprios.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) constataram que vários contribuintes efetuaram opções por modalidades de parcelamento em desconformidade com seus débitos. Diante disso, decidiram que, no momento da consolidação final do parcelamento, em que seria apurado o valor total da dívida a partir de todos os abatimentos, bem como o valor específico de cada parcela, seria dada a opção aos contribuintes para retificar as declarações feitas no momento da adesão.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 03, de 29 de abril de 2010, determinou que os contribuintes que possuíssem pedido de parcelamento validado nos termos da Lei 11.941/2009, deveriam se manifestar sobre a inclusão ou não da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento para as quais havia feito a adesão. A manifestação dos contribuintes consistia em etapa preliminar para a consolidação do parcelamento e servia como fundamento para justificar a suspensão de exigibilidade dos débitos abrangidos pelo benefício.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 11, de 24 de junho de 2010, por seu turno, determinou que os contribuintes que antes haviam se manifestado pela não inclusão da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento previstas pela Lei 11.941/2009 deveriam indicar, de modo pormenorizado, quais os débitos seriam efetivamente incluídos no programa de regularização fiscal.

Como efeito imediato das Portarias, seja para os contribuintes que fizeram a opção por incluir todos os débitos no parcelamento, seja para aqueles que fizeram a opção por não incluir todos os débitos, mas que indicaram os que deveriam ser parcelados, todos os débitos inscritos no parcelamento ficaram com a exigibilidade suspensa. Ou seja, para os débitos incluídos no parcelamento, passaram a ser expedidas as certidões de regularidade fiscal, a ser obstados os ajuizamentos de créditos inscritos em dívida ativa, a ser suspensos os atos de cobrança administrativa, a ser interrompidos os procedimentos de execução judicial, inclusive com a liberação de penhoras realizadas em momento posterior ao da adesão.

Diante desse breve histórico das etapas de consolidação do parcelamento previsto na Lei 11.941, suponhamos que um contribuinte tenha feito a opção por não incluir a totalidade de seus débitos no benefício e tenha indicado aqueles que efetivamente pretendia parcelar. Para os débitos incluídos no parcelamento, o contribuinte obteve certidões positivas com efeitos de negativas e teve bens anteriormente penhorados (dinheiro, imóveis, veículos, etc) liberados nas execuções fiscais nas quais era executado. Suponhamos que na oportunidade de retificação das opções, na etapa final de consolidação do parcelamento, o contribuinte desista de parcelar tais débitos, requerendo o aproveitamento dos pagamentos efetuados para outras dívidas.

Ora a suposição é um típico exemplo de venire contra factum proprium. É perfeitamente possível destacar uma conduta original do contribuinte (a declaração de inclusão de débitos no parcelamento), uma conduta posterior contraditória (a retificação da declaração, incluindo outros débitos) e os prejuízos decorrentes da mudança de comportamento (expedição de certidões, suspensão das execuções fiscais, liberação de bens penhorados).

A declaração e o comportamento contraditório do contribuinte cria para a Fazenda Nacional a pretensão de reparação dos danos provocados pela quebra das expectativas, incluindo a extinção do seu direito subjetivo de proceder à retificação abstratamente permitida.

Portanto, ainda que não haja confiança da Administração Tributária, pois não há criação de obrigações tributárias sem lei anterior que as institua, a previsibilidade e estabilidade da relação jurídica obrigacional e a coerência dos atos e declarações dos contribuintes perante o Fisco devem ser preservados. E um importante meio de garantia consiste na proibição do abuso do direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium.

3 As modificações de jurisprudência em Direito Tributário

Em tese onde expõe com precisão os possíveis efeitos de modificações de jurisprudência em Direito Tributário contra a segurança jurídica, a previsibilidade e a estabilidade das relações entre Fisco e contribuintes, Misabel Derzi alerta que, frente aos atos do Poder Judiciário, os princípios consagrados expressamente nas limitações constitucionais ao poder de tributar são escassos para proteger as expectativas legitimamente geradas nos contribuintes.

A tese da necessidade de proteção da confiança contra modificações de jurisprudência em Direito Tributário que agravem a situação dos contribuintes parte da conclusão de Carnelutti de que toda a decisão judicial veicula uma resposta particular e uma resposta geral. A resposta particular pode declarar a existência ou não de uma relação jurídica, pode constituir ou modificar direitos, pode condenar nos mais diversos tipos de obrigações. Já a resposta geral é dada a partir da análise da pretensão e da fundamentação de sua procedência ou improcedência.

Assim, a resposta particular, ou seja, o dispositivo da decisão, visa a pacificar e compor os conflitos de interesses do caso concreto e está voltada para situações que ficaram no passado. O mesmo não acontece com a resposta geral, que cria a expectativa de que aquele órgão julgador vai fundamentar o mesmo grupo de casos com as mesmas razões. Logo, a resposta geral, ou seja, a fundamentação da decisão, cria uma expectativa normativa voltada para o futuro e não para o passado.


A sentença seria, portanto, ato pluridimensional, já que é prolatada no presente, que julga conflitos de interesses ocorridos no passado, mas que cria expectativas para o futuro, de que casos semelhantes deverão ter a mesma solução, isto é, deverão ter idêntica resposta judicial.

Nessa perspectiva, se é dada uma resposta geral a uma pergunta geral, está criada uma jurisprudência. Posteriormente, se for dada uma resposta geral diferente para aquela mesma pergunta geral, está modificada a jurisprudência original. É para essa mudança repentina de entendimento, própria dos Tribunais Superiores, que modifica norma judicial anterior que gerou expectativas nos jurisdicionados, que deve estar assegurada o princípio da proteção da confiança.

A modificação de atos e normas, seja do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário, é imanente à rotina e ao exercício das prerrogativas do Estado. Normalmente, as mudanças de atos e normas acompanham e se adaptam às mudanças do mundo dos fatos. A tese de Misabel Derzi não questiona a possibilidade de mudanças de jurisprudência, tampouco defende uma higidez permanente ou imutabilidade dos julgados. Apenas busca conciliar as mudanças com as expectativas criadas nos contribuintes que pautaram as suas condutas e empreenderam os seus planejamentos nas declarações e comportamentos anteriores do Poder Judiciário.

Os princípios constitucionais da irretroatividade e não-surpresa se referem às leis e não aos atos do Poder Judiciário. Fragilizadas as limitações constitucionais ao poder de tributar para preservar a justiça no caso concreto, caberia ao princípio da confiança legítima proteger as expectativas normativas criadas pelo Poder Judiciário. Pelo princípio da irretroatividade, regra geral, as leis novas regulam situações futuras e não alcançam situações estabilizadas no passado. Para a jurisprudência, como não vale a irretroatividade, através da confiança legítima as modificações teriam efeito parecido. Assim se expressou a professora mineira:

Dois fatos foram muito importantes, como vimos, para a aplicação análoga do princípio da irretroatividade das leis às mutações jurisprudenciais: a aceitação de que o juiz não apenas aplica mas também cria Direito; e a constatação de que a jurisprudência consolidada é uma norma vinculativa, abstrata, genérica, similar às normas legais. Sem se confundir com as leis, a modificação de jurisprudência consolidada, que se impunha como norma observada por todos, é novo encontro do Direito, parecido com o advento de uma nova lei11.

Vale ressaltar, todavia, que a tese de proteção pela confiança contra modificações de jurisprudência somente garante expectativas dos contribuintes, já que a autora rechaça o alcance do princípio para a defesa de pretensões fazendárias.

Mas o Fisco também está exposto aos mesmos efeitos gravosos, decorrentes da modificação drástica de jurisprudência tributária em seu desfavor. A Administração Tributária também cria expectativas a partir de um entendimento consolidado dos Tribunais e, a partir disso, orienta toda a sua atividade de administração, fiscalização e cobrança de créditos tributários.

Ademais, na relação triangular processual, o Fisco e o contribuinte ocupam vértices opostos mas eqüidistantes do juiz, sendo que as suas decisões vinculam de modo idêntico ambas as partes. Na relação processual, não há privilégios da Administração, nem supremacia dos acontecimentos ou domínio de informações. Na relação processual, vigoram os princípios da imparcialidade do juiz, da igualdade, do contraditório, da liberdade das partes. Para as situações excepcionais em que a Fazenda Pública detém de prerrogativas processuais (como os prazos privilegiados e a ciência dos atos judiciais mediante vista dos autos), todas as ressalvas já estão determinadas pela lei, que é interpretada restritivamente. Portanto, na defesa do mérito das pretensões, vige a isonomia processual entre Fazenda e contribuintes.

Na prática, o que se vê é que essa diferença de forças, entre a Fazenda e contribuinte, geralmente é compensada ou ao menos minimizada pela observância dos princípios formadores do processo. O Poder Judiciário, para cumprir o seu encargo de efetivar a igualdade entre as partes, assume a responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar aquelas que existem entre Fazenda e contribuinte, no sentido empregado por Cândido Rangel Dinamarco:

A leitura adequada do art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, mostra que ele inclui entre os deveres primários do juiz a prática e preservação da igualdade entre as partes, ou seja: não basta agir com igualdade em relação a todas as partes, é também indispensável neutralizar desigualdades. Essas desigualdades que o juiz e o legislador devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo – fraquezas de toda ordem, como pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas fraquezas, fontes terríveis de desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala12 (grifos do autor).

Então, as expectativas da Fazenda perante entendimentos pacificados nos Tribunais não devem ser preteridas ou jogadas à própria sorte ou ao total desamparo. Se a confiança não serve para acolher pretensões fazendárias, é necessário recorrer a outros princípios, tais como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal, o planejamento estatal.

Utilizamos o RE 240.785/MG, ainda em tramitação no Supremo Tribunal Federal, como exemplo. O ICMS, que faz parte do preço das mercadorias e serviços sobre os quais recai o imposto estadual, sempre foi glosado como elemento da base de cálculo do PIS e COFINS, que incidem sobre o faturamento e receita bruta das sociedades devedoras.

A inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS é balizada inclusive por jurisprudência pacificada13 e sumulada14 no Superior Tribunal de Justiça, a quem compete decidir conflitos de interesses fundados em normas infraconstitucionais.

Os diversos precedentes em seu favor criam para a Fazenda Nacional a expectativa normativa de que os Tribunais Superiores dêem para a mesma pergunta geral (o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS?) a mesma resposta geral (por ser parte integrante do preço e por incidir o PIS e COFINS sobre faturamento e receita bruta da empresa, o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS).

Se vencida no STF a tese contrária e modificada a jurisprudência, é imperioso que a Corte proponha a modulação de efeitos da decisão. Se não em razão da confiança nos atos do Poder Judiciário, a modulação pode ter por base, além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99: a boa-fé do Fisco, ao agir em conformidade com a lei e com precedentes judiciais em seu favor; a perda de parte significativa de arrecadação, atentando contra o planejamento, a adequação e equilíbrio das despesas e receitas públicas; a socialização dos deveres e prejuízos decorrentes da solidariedade fiscal.

Contudo, reconhecendo a força vinculante ou persuasiva da jurisprudência dos Tribunais Superiores, admitimos que a quebra de expectativas a partir de modificação de jurisprudência, criando ou majorando obrigações para os contribuintes, ou causando graves prejuízos à atuação da Administração Tributária e aos cofres públicos, deve ser compensada pela modulação de efeitos da nova norma judicial criada.

4 Conclusão

A relação jurídica obrigacional tributária não prescinde da previsibilidade e estabilidade necessárias para a vida em sociedade e perseguidas como um dos fins mais relevantes para o Direito. Não obstante a Constituição brasileira ser uma das mais meticulosas na discriminação dos princípios tributários, há situações concretas em que a justiça fiscal pode escapar às normas constitucionais expressas.

Um cenário de justiça fiscal pressupõe uma correta divisão de bens, deveres e direitos, um dever genérico de não prejudicar, uma relação de lealdade e não de desconfiança entre Fisco e contribuintes. Como já advertiu Niklas Luhmann, a desconfiança tem um potencial imensamente destrutivo, para qualquer sistema. No Tributário, a desconfiança exige que a Administração Tributária aumente progressivamente a exigência e controle de informações dos contribuintes, criando uma infinidade de obrigações acessórias que acabam por aumentar a resistência ao tributo e por incentivar práticas evasivas e sonegatórias.

Nesse sentido, se por um lado a segurança jurídica do contribuinte deve ser otimizada pelos princípios da legalidade, irretroatividade, não surpresa e confiança legítima, a previsibilidade e estabilidade para a Administração Tributária devem ser aperfeiçoadas através da coibição do abuso de direito, especialmente no que tange às declarações e comportamentos contraditórios ou ao venire contra factum proprium.

Do mesmo modo que a atuação contraditória do contribuinte, a modificação de jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, sem alteração relevante das leis, pode causar graves prejuízos à Administração Tributária, requerendo a devida modulação de efeitos da decisão.


Além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99 como causas de restrição de efeitos ou de definição temporal da eficácia da decisão em sede de controle de constitucionalidade pelo STF, outros princípios podem ser invocados para justificar a modulação de efeitos, de modo a favorecer às legítimas expectativas do Fisco.

Notas

1 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 256.
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 936
3 FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
4 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. p. 70.
5 COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
6 LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996, p. 53.
7 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 328.
8 CORDEIRO, Antônio Manuel Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007. p. 671.
9 CORDEIRO, op. cit., p. 680-681.
10 CORDEIRO, op. cit., p. 753.
11 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. p. 550.
12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 208-209.
13 REsp 496.969/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 14/03/2005; REsp 668.571/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 13/12/2004;Resp 572.805/SC, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 10/05/2004; Ag 666.548/RJ, Rel. Min. Luiz Fuz, DJ de 14/12/2005.
14 Súmula 68: A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS. Súmula 94: A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do FINSOCIAL.

Referências bibliográficas

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.
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COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
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LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996.
MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.


O dever geral de vedação à elisão: Uma análise constitucional baseada nos fundamentos da tributação brasileira e do direito comparado

Autor: Daniel Giotti de Paula, Procurador da Fazenda Nacional em Itaboraí-RJ, pós-graduado em Direito Econômico e Empresarial pela UFJF, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, professor de Direito Constitucional no Rio de Janeiro.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – Atualmente, as bases da tributação são liberdade, igualdade e solidariedade. A livre iniciativa não pode implicar abuso das leis tributárias e condutas elisivas, violando a igualdade tributária, sobretudo em sua face de neutralidade fiscal entre os agentes econômicos, e o dever de solidariedade, requerendo de todos que paguem a quantia certa de tributos. O presente trabalho pretende analisar a norma geral antielisiva brasileira (o artigo 116, do CTN), investigando se ela deriva apenas de um dever geral de vedação a condutas elisivas com base nos princípios constitucionais tributários. Em seguida, busca-se uma nova abordagem da segurança jurídica, que seja adequada com a concepção de Sociedade de Risco de Ulrich Beck, na qual o direito, como técnica normativa, não mais é capaz de prever toda conduta humana e estipular para sua violação uma sanção. Ademais, o artigo testa como tem funcionado a aclimatação das doutrinas do propósito negocial e da substância sobre a forma no Brasil, partindose de uma perspectiva jurídica pós-positivista ou não-positivista. Ao final, mostra-se um modo dinâmico para se reconhecer condutas proibidas, utilizando uma interpretação das relações empresarias a partir dos critérios do tempo e contexto.

Introdução

Tive a grata oportunidade de participar do Seminário sobre Norma Geral Antielisiva , coordenado pela Receita Federal do Brasil, nos dias 04 e 05 de outubro de 2010, em Brasília. Palestrantes de renome nacional e internacional, autoridades públicas e professores universitários, ofertaram entendimentos e críticas sobre o tema.

Não é a primeira vez em que a Receita Federal do Brasil trata do tema, pois entre 06 e 08 de agosto de 2001 houve seminário internacional sobre elisão fiscal em Brasília, disponibilizado na forma de anais no sítio do órgão fazendário . Repise-se, inclusive, que houve tentativa de regular a matéria, por meio da Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 30.08.2002, cujos artigos 13 a 19, que tratavam da norma geral antielisiva, acabaram não sendo convertidos em lei.

No novo seminário realizado, que pretende dar subsídio para a fixação de parâmetros na regulamentação da norma geral antielisiva, alguns consensos foram firmados, segundo impressão pessoal: 1) a liberdade de conformação dos negócios privados pelo particular não está imune ao controle dos órgãos fazendários; uma vez que 2) o Direito Tributário não mais pode conviver com a tipicidade cerrada em um ambiente de solidariedade e neutralidade concorrencial da tributação; de modo que 3) deixar ao juízo exclusivo do Poder Executivo o estabelecimento do que seja ou não prática elisiva pode gerar insegurança e arbítrio.

A partir dessas premissas, das quais não me afasto, proponho estudo sobre a existência de um dever geral de repúdio a normas elisivas, fundamentada em tríplice base jurídico-normativa: solidariedade, isonomia tributária e neutralidade concorrencial da tributação e à segurança jurídica. Amparo-me, sobretudo, na experiência italiana, muito bem explorada por Marco Greggi, professor de Direito Tributário e Direito Tributário Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Ferrara durante o seminário, propondo uma leitura eminentemente constitucional do tema do planejamento tributário.

Sob esse viés, pretendo provar que não existe uma necessidade propriamente de ter sido inserida uma norma geral antielisiva no ordenamento jurídico brasileiro, estando ela dentro de uma visão nãopositivista do direito, que repele qualquer abuso nas formas jurídicas, ao tempo, porém, em que defende ser interessante, do ponto de vista jurídicoeconômico, estabelecer um procedimento claro de repúdio às condutas antielisivas, sobretudo no caso das pessoas jurídicas, cuja economia de tributação pode levar a conquistas de mercado. Segurança jurídica, sim, mas em termos pós-modernos, em uma sociedade de risco.

Por outro lado, repele-se qualquer tentativa antidemocrática e antirepublicana das autoridades fazendárias em fazer uso da norma geral antielisiva como expediente para aumento arrecadatório , ao mesmo tempo em que se critica postura que enxergue em pretensa liberdade negocial o espaço para que o dever de todos contribuírem com as despesas públicas seja desrespeitado.

No estabelecimento de critérios, deixa-se fixado que, no caso de práticas utilizadas por sociedades empresárias, mormente aquelas que atuem em campos altamente competitivos, que culminem na redução de pagamento de tributo, a análise do Fisco não pode desconsiderar os desequilíbrios gerados. No caso de uma prática elisiva cometida por uma pessoa física, embora a isonomia tributária seja afetada, pode-se graduá-la como menos lesiva juridicamente. Essa diferenciação, inclusive, pode levar a tratamentos diversos quanto às multas a serem aplicadas, a partir da lesão a bens jurídicos diversos.

Invade-se o campo aberto dos princípios, por óbvio, pois muitas vezes um princípio pode ser afastado em detrimento do outro. No entanto, optase aqui por se fazer um juízo duplo de proporcionalidade ou razoabilidade de medidas que possam constituir práticas abusivas, é dizer, estabelecem-se critérios apriorísticos na legislação tributária do que não seja vedado, embora no caso concreto se possa caracterizar uma prática como abusiva.

2 A liberdade , a igualdade e a solidariedade como fundamentos da tributação

O Direito atual, afastando-se do liberalismo político clássico, não trabalha mais no campo da liberdade absoluta. Discute-se, nos lindes do Estado Democrático de Direito, o status que a liberdade deve ter. Não que se esqueça da influência da filosofia contratualista na formulação do próprio conceito de Estado, concebido como um ente abstrato para garantir a segurança dos cidadãos, antes ameaçados por um ambiente no qual todos podiam tudo. Uma pretensa liberdade absoluta, sem limitações institucionais, escondia o risco de se instaurar uma guerra de todos contra todos (HOBBES, 2003: 109).

Liberdade e igualdade andam pari passu nesse sentido. Poder-seia argumentar que em uma sociedade sem Estado a igualdade tenderia à plena concretização, pois os bens estariam disponíveis ao alcance de todos. Mas isso nada mais é que a gramática ilusória da igualdade (VEIRA, 2006, p. 283), pois seria a institucionalização do monopólio da força, como o veículo próprio da conquista dos bens da sociedade.

A solução inicial, e aqui se está pisando sobre o terreno do Estado de Direito, foi conceber o Estado como um ente que garantisse a segurança, interferindo o menos possível no campo da autonomia privada dos agentes econômicos.

No que concerne à tributação, tinha-se uma visão individualistaprotetiva, de modo que se criaram normas jurídicas veiculando proibições ou restrições à atividade estatal. Falava-se aqui nos princípios da legalidade, irretroatividade, anterioridade e tipicidade (GRECO, 2009).

Dentre os princípios, o mais importante era o da legalidade tributária. Embora se possa associá-lo a movimentos anteriores às revoluções liberais do Século XVIII, como à Magna Carta de 1215, estreme de dúvidas que ele encontrou eco, sobretudo, nas constituições surgidas após as revoluções americana e francesa. Do princípio derivou a máxima no taxation without representantion, assumindo-se que como a tributação invadia a esfera de liberdade privada só o consentimento poderia levar à legitimidade do tributo (LODI, 2008: 216-217).

Com a criação de Estados Sociais, tentaram-se anular os reducionismos que a proposta liberal fazia da sociedade, que em essência mantinham uma gramática ilusória da igualdade, pois se contentavam apenas em mitigar a força física como critério justo de distribuição de recursos por outros tipos de força, mais veladas, como a força política, a força econômica, a força social etc.

O discurso de que com liberdade se garantia um campo próprio para a realização do homem escondia as relações de hipossuficiência que os momentos constituintes ignoravam.

Criaram-se, então, direitos econômicos, sociais e culturais, tentativas de o Estado equilibrar relações que, analisadas sob o prisma da realidade, já se regiam pela diferença e não pela igualdade. O direito de propriedade, por exemplo, não era mais visto como absoluto, devendo atender a uma função social . Essa tentativa de conciliar liberdade e igualdade gerou releituras em todo o Direito, não ficando o Direito Tributário infenso ao novo papel que se lhe atribuía.

A partir dessa nova perspectiva, os tributos deixam de ser excepcionais, passando a instrumentos de receita pública derivada, dos quais, continuadamente, o Estado se valia para atender aos objetivos assumidos na redução das desigualdades sócio-econômicas.

Nesse sentido, não bastava mais a observância de critérios formais para se chegar à juridicidade de um tributo, sendo importante a observância da capacidade de cada cidadão ou sociedade empresária para arcar com a tributação devida.


A dinâmica das relações sociais, porém, não se contentou com a pretensa conciliação entre liberdade e igualdade. Não bastava a mera preservação de um espaço próprio para a realização do ser humano, nem que as desigualdades fossem atenuadas por atuação do Estado ou de particulares, tornando-se premente um terceiro passo, dando-se concretude ao valor da solidariedade.

Na verdade, sem adotar a postura de que tributo é norma de rejeição social, parece que “é um fato cultural, histórico, desconfiar do Estado e ver a arrecadação dos impostos como ‘subtração’, ao invés de contribuição a um Erário comum” (SACHHETO, 2005: 14).

Além de se buscar igualdade material no ônus de suportar a carga tributária, enfatiza-se um dever geral de que todos arquem com o custeio das despesas públicas. O exemplo mais claro de país em que se adota, expressamente, a solidariedade como fundamento da tributação é a Itália, em cuja Constituição está estabelecido que “todos devem concorrer com as despesas públicas em relação com sua capacidade contributiva” (art. 53, da Constituição italiana).

Segundo o jurista italiano Claudio Saccheto, a mudança não é apenas semântica, significando, sim, que a prestação tributária deixa de ser entendida como “fruto de uma auto-imposição da comunidade organizada à vista da atuação dos valores compartilhados de liberdade e dignidade da pessoa humana, mas, ao contrário, como imposição heterônoma desarticulada das razões do vínculo social mais geral e abrangente, entre aqueles que se entrelaçam na comunidade politicamente organizada” (SACHETTO, 2005: 14).

A seguir, o tributarista pontua que a Constituição italiana fez uma opção pela solidariedade como “critério de avaliação primária do legislador quando tiver de decidir se os interesses que irá regular devem ser entregues à autonomia privada ou a disciplinas de natureza pública” (SACHETTO, 2005: 14).

Essa idéia, expressa na Constituição italiana, porém, não é meramente paroquial. No Brasil, entende-se que a solidariedade na tributação advém do próprio propósito que se tem com o Estado brasileiro de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, CF).

Infelizmente, os estudos sobre a solidariedade como fundamento da tributação, no Brasil, não têm o mesmo grau de sofisticação da doutrina italiana, que chega a diferenciar o tratamento fiscal dado a residentes e estrangeiros: os primeiros onerados em razão da solidariedade política; os outros, em razão da solidariedade econômica e social, muito embora se reconheça, por obvio, que o fundamento é um só – a solidariedade – e que a diferenciação entre uns e outros é de quantidade de obrigações advindas (SACHETTO, 2005: 19-20).

A partir dessa perspectiva, não há como se entender o tributo apenas radicado na liberdade, como se fora prestação correspectiva-comulativa diante da distribuição de vantagens específicas para o obrigado, mas como dever de concorrer para a própria subsistência do Estado (SACHETTO, 2005: 21).

Não se deve olvidar, portanto, que o tributo, embora originariamente vinculado às liberdades civis, atualmente, ganha contornos mais amplos. Prossegue sendo o preço da liberdade, segundo Ricardo Lobo TORRES (2005:567), com apoio na lição de Josef Isensee, mas tem algo mais, pois representa, a um só tempo, um dever fundamental e gera o direito de exigir a prestação de serviços públicos.

Se esse entendimento pode ser mais aceitável para os tributos vinculados, como as taxas e as contribuições, parcela considerável na doutrina, apegada a um textualismo jurídico, que erige legalidade e tipicidade como vigas-mestras do sistema tributário, tem dificuldades em ver essa característica nos impostos. Afinal, os impostos não têm destinação específica, é a lição dada pela doutrina tradicional.

Essa visão jurídica encontra eco na análise econômica da atuação dos agentes privados. Segundo o economista Luiz Arruda VILELLA (2002:33), embora coletivamente se perceba certo equilíbrio entre o que a sociedade paga a título de tributo e aquilo que recebe em contraprestação, o agente privado sabe que não existe essa correspondência unívoca entre o que paga e o que recebe. Essa postura se mostra racional economicamente, pois a ausência de recolhimento de tributo, encoberta por uma prática aparentemente lícita, não gera a suspensão dos benefícios estatais, afinal a máquina judiciária continuará a existir, os serviços públicos continuarão a ser prestados.

No entanto, além da questão de os impostos poderem ter parte de suas receitas constitucionalmente definidas, o que mais interessa marcar é que muitas vezes essa postura textualista, exigindo uma previsão cartesiana de quais condutas são ou não tributáveis, não se compatibiliza com o discurso que cobra do Estado a concretização de uma infinidade de direitos fundamentais que a pródiga Constituição brasileiro nos relegou.

Nega-se, portanto, a face oculta dos direitos fundamentais, que são os custos necessários para sua implementação (HOLMES; SUSTEIN, 1999), obtidos pelo Estado, sobretudo, pelo pagamento de tributos, falando-se, em um dever fundamental de pagar tributos.

Fique esclarecido que não só os direitos de segunda e terceira gerações , mas também as liberdades civis, envolvem custos, como é o caso da propriedade, cuja garantia se liga umbilicalmente à existência de um aparato repressor, como a polícia, e de um órgão capaz de afastar práticas lesivas ao patrimônio privado, como o judiciário.

Afasta-se, porém, o senso comum de que os deveres negativos não implicariam custos (SILVA, 2008: 591), de modo que nenhum direito persevera com o Tesouro vazio (HOLMES; SUSTEIN, 1999: 121).

O conceito contemporâneo de tributo, assim, não pode afastar o fundamento da solidariedade, embora deva ser temperado com os valores da liberdade e da igualdade, que não foram superados, por óbvio. Os direitos ligados à liberdade e à igualdade, classicamente, foram relidos a partir da solidariedade . O planejamento tributário, decorrente da liberdade de iniciativa dos contribuintes, é um exemplo dessa releitura.

3 Planejamento tributário e autonomia da privada a partir de uma leitura constitucionalmente adequada : leituras constitucionais possíveis por distintos órgãos estatais

Não se vive mais sob as hostes de um liberalismo político clássico, em que a liberdade ganha contornos absolutistas. Tampouco se espera, na atual quadra histórica, que se viva sob o manto de um Estado totalmente paternalista, o qual, pressupondo que os cidadãos não tenham a capacidade racional para realizar suas próprias escolhas, tente normatizar todos os âmbitos da vida (GARCÍA, 2005).

O Estado Democrático de Direito admite que haja um espaço próprio para a livre atuação dos indivíduos nas mais variadas esferas, entre as quais a econômica, por óbvio, mas, assumindo que a liberdade sem limites pode levar a uma situação de opressão de uns pelos outros, opta por colocá-la no mesmo plano de outros valores, como a igualdade e a solidariedade.

Essa opção por conjugar valores que podem, concretamente, conflitar entre si, levou a adoção também de normas jurídicas que, sob o prisma dogmático-jurídico, podem colidir, reclamando dos intérpretes juízos de ponderação.

Tratando especificamente da autonomia privada, se essa era louvada como a essência de um Estado liberal, ao qual caberia apenas se autoconter e conter os outros indivíduos para não agir em posição conflituosa contra a liberdade dos sujeitos de direito; nas Constituições dos Estados Sociais, que estabeleceram metas para a atuação do Estado e da sociedade e inseriram um catálogo de direitos econômicos, sociais e culturais, não mais tutelaram uma autonomia da vontade hipertrofiada, cobrando de todos atuação que vise à concretização das muitas promessas constituintes assumidas.

Essa equação ficou mais complexa, quando os Estados Democráticos de Direito incorporam direitos fundamentais novos, ligados à solidariedade, como a busca de um meio-ambiente equilibrado, paz mundial e tolerância entre os povos.

Nesse sentido, um direito classicamente erigido como liberal, que é o da propriedade, foi relido, primeiro para vedar que ela tivesse uma função puramente egoística, servindo a caprichos e, finalmente, para que, além de atender a interesses sociais, não colocasse em risco o meio-ambiente. Daí que hoje se fale em função sócio-ambiental da propriedade.

É que, segundo lição comezinha da dogmática constitucional, os direitos fundamentais não se sucedem em gerações, sendo conquista dos povos que merecem releituras conforme mudanças da própria sociedade.

Tal lição parece não ter sido compreendida em sua inteireza por parte da doutrina tributária que defende a possibilidade de um planejamento tributário absoluto. Marciano Seabra de Godoi coloca que essa postura parte de certos valores arraigados e que não mais se compatibilizam com o atual estado de arte da dogmática constitucional e tributária nacional, quais sejam,


o tributo visto como uma agressão ou um castigo que se aceita mas não se justifica; a segurança jurídica como um valor absoluto; a aplicação mecânica e não valorativa da lei como um mito sagrado; o individualismo e a autonomia da vontade sobrevalorizados e hipertrofiados, como se vivêssemos em pleno século XXI (GODOI, 2010: 4).

Frise-se que essa maneira de enxergar o problema, que parece retomar a liberdade em sua fase primeira, e por isso incompatível com a Constituição Federal de 1988, bem diversa das Constituições liberais do século XIX, não vem sendo aceita pelos órgãos fazendários . Ademais, essa perspectiva tem sido afastada por doutrinadores que se esforçam por encontrar um conceito constitucionalmente adequado para o planejamento tributário.

Proposta interessante é de Marcus Abraham (2007). O professor carioca erige como premissas necessárias para o entendimento adequado do problema: 1) a aproximação entre o Direito Público e o Direito Privado, instaurando-se mútua influência entre as normas de cada um deles; 2) a introdução de uma preocupação com o reflexo externo dos negócios particulares pelo Novo Código Civil, a partir dos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da ética social.

Daí que Abraham conclua que, como o Direito Tributário é um direito de sobreposição, na análise dos negócios particulares realizados pelos contribuintes, deve a autoridade administrativa, ao dar apreciação fiscal a esses fatos, atos e negócios jurídicos, considerar se o propósito econômico dos negócios é apenas o de reduzir a carga tributária, não havendo um motivo intrínseco ao próprio negócio, sob pena de declaração da nulidade.

Perceba, porém, que o valor que norteou um novo direito civil constitucional, no Brasil, foi a solidariedade, compatibilizando-se com estudos da doutrina tributária brasileira que colocam a solidariedade como fundamento da tributação.

Com base nessas poucas premissas, soa desnecessária uma norma geral antielisiva, podendo os próprios Tribunais Superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) como unificador da legislação federal, interpretando a apreciação pelo Fisco dos negócios jurídicos com fulcro nos parâmetros do novo direito civil brasileiro, e o Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião maior da Constituição Federal, fazendo juízos de ponderação entre livre iniciativa, capacidade contributiva e dever fundamental de pagar tributos, construir jurisprudência segura quanto ao planejamento tributário, adotando como parâmetro um dever geral de vedação a condutas elisivas.

Assim, têm atuado os tribunais italianos. Embora seja o exemplo, por excelência, de um direito estatutário, fez-se a opção por uma construção pretoriana ao tratar do tema, o que é muito válido nesses tempos em que a dinâmica das relações econômicas caminha mais rápido do que o processo legiferante, tema melhor explorado abaixo, quando se tratar da segurança na sociedade de risco.

A experiência constitucional italiana dá bons exemplos de como se deve entender a autonomia privada em termos de planejamento tributário. Consolidou-se que qualquer negócio empresarial ou decisão econômica, tomada com o propósito único ou principal de reduzir a carga tributária é uma violação do dever de solidariedade, que se traduz na capacidade e na obrigação de todos pagarem (o montante correto) de tributos.

Essa visada principiológica ao tema permite desmistificar a tese de que a fonte para a desconsideração de operações elisivas é diretamente legal, e não constitucional. Nesse sentido, ainda que não existisse uma norma geral antielisiva e normas de legislação tributária que apontassem pela vedação a práticas que visem exclusivamente a redução de carga tributária, os agentes fazendários e os juízos poderiam afastar condutas elisivas.

Isso leva à pergunta: existiria um dever geral de respeito às normas impositivas? O propósito negocial deve ser levado em conta? A substância sobre a forma pode ser invocada? Esse tema é constitucional ou de legislação infraconstitucional tributária?

4 O resgate dos fatos pelo direito e as teorias da argumentação: a construção de um dever constitucional de se afastar práticas elisivas

O artigo 116, parágrafo único, do CTN, gera celeumas das mais variadas. Já foi dito que ele introduziu uma norma geral antielisiva, antievasão, antielusão, antidissimulação. Apropriando-se de um termo de Nelson Azevedo JOBIM (2002: 93), a doutrina tributária sobre elisão é anárquica e parece um extraordinário caos de idéias claras. O que, afinal de contas, é elisão? Ela é lícita ou ilícita?

Há quem adote uma divisão tripartite quanto às condutas de planejamento jurídico, que poderia caracterizar evasão, elisão e elusão, utilizando na diferenciação critérios cronológico, causal, econômico e sistemático (CALIENDO, 2009: 237-238).

Não existe dúvida de que a evasão se realiza após a ocorrência do fato gerador, por meio de “conduta de má-fé do contribuinte, por ação ou omissão, de descumprimento direto, total ou parcial, das obrigações ou deveres tributários” (CALIENDO, 2009: 238).

Os dois outros conceitos, ao contrário, têm levado a enormes discussões na doutrina, embora haja predominância no entendimento de que elisão configura “uma conduta lícita em planejar os negócios privados de modo a produzir o menor impacto fiscal” (CALIENDO, 2009: 238), enquanto elusão seria “conduta em que o contribuinte modifica e distorce artificiosamente as formas jurídicas de sua atuação, com o objetivo de se colocar fora do alcance de uma norma tributária ou com o objetivo de se colocar dentro de um regime tributário mais benéfico criado pela legislação para criar outras situações” (GODOI, 2010: 2).

A opção do legislador brasileiro, porém, aponta para se entender que ao lado da evasão, sempre ilícita, existiria a elisão, que poderia ou não ser lícita. Assim, o artigo 116, do CTN, parágrafo único, quer evitar justamente a elisão considerada lícita, mas inoponível perante o Fisco (TROIANELLI, 2010: 47). Saber o que é elisão inoponível é um problema de difícil solução. Seria o abuso das formas jurídicas? A realização de negócios privados sem o propósito negocial?

Ainda não se tratará dessa questão, antes sendo necessário enfrentar a crítica de parcela considerável da doutrina, no sentido de que o dispositivo gera insegurança jurídica e depende de lei ordinária para ser aplicado. Mas será que os planejamentos tributários inoponíveis podiam ser feitos antes da Lei Complementar (LC) 104/2001 e agora estão vedados? Será, porém, que essa vedação ainda depende de leis ordinárias federais, estaduais e municipais fixarem procedimentos para que a autoridade fazendária possa “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”?

Por óbvio, qualquer planejamento tributário que envolvesse atos e negócios fraudulentos ou simulatórios pode ser desconsiderado por autoridades fazendárias ou por juízos e, aqui, muitas vezes, poderia resvalar o campo da ilicitude.

Na jurisprudência do STF, encontram-se julgados de fins da década de cinqüenta, em que o Tribunal desconsiderou contrato de seguro, resgatado prematuramente, apenas com o fito de o contribuinte fazer jus à dedução de imposto de renda. A decisão do Tribunal se deu sob a alegação de o ato do contribuinte ter fraudado a lei tributária, frustrando “a aplicação de normas a ele naturalmente aplicáveis”.

A construção da fraude à lei, criticada por muitos juristas, se antes poderia merecer uma reprimenda maior sob regimes constitucionais de feição liberal, não resiste a ordenamentos que apresentam uma feição social e deixam marcado o dever fundamental de pagar tributos, de modo a que todos arquem com os custos dos direitos.

Não pode soar natural, portanto, que uma lei tributária, prevendo determinada carga tributária, direcionada a todos contribuintes cujos atos se inseriram em determinada realidade econômica captada como hipótese de incidência, possa ser afastada por ardil.

Marco Aurélio GRECO (2009: 8), nesse sentido, coloca que a norma geral antielisiva, prevista no art. 116, CTN, apenas explicita algo “que já decorre do ordenamento jurídico, ou seja, não há proteção a condutas que visem neutralizar a eficácia ou a imperatividade de seus preceitos”.

É claro que não se veda a econômica de opção, é dizer, a escolha que se pode fazer entre se realizar ou não o fato gerador de um tributo (LAPATZA, 2006: 132). Como exemplo, entre optar pela aquisição de uma casa e de ações, pode o contribuinte fazer uma escolha por adquirir ações, sabendo que o ganho de capital não será tributado.

Antes de a doutrina tributária se perder na questão de se adotar ou não uma visão causalista no planejamento tributário ou ficar em estéril decisão sobre adotar o Direito Tributário uma tipicidade fechada – como se isso fosse possível em uma sociedade de risco -, vejo que a solidariedade como fundamento da tributação trouxe uma visada principiológica ao planejamento tributário, de modo que se entende que a liberdade de conformação dos negócios privados não pode frustrar a própria razão de ser da norma impositiva tributária, que é carrear recursos ao Estado para o atendimento dos direitos fundamentais.


Um princípio, portanto, pode vir a ser violado, sem que uma regra seja atacada. Duas pessoas que constituem uma sociedade, uma integralizando capital; outra, um imóvel, que, acaba sendo vendida para gerar pretenso fluxo de caixa para a pessoa jurídica. Se em espaço curto de tempo, a sociedade é desfeita, gerando ganho de capital para os dois sócios, evitando-se a tributação que o sócio deveria arcar, caso vendesse o imóvel como pessoa física, embora não se vislumbre a ofensa direta a alguma regra jurídica de direito civil – a venda foi realizada conforme as prescrições do Código Civil brasileiro –, de direito empresarial – a sociedade pode ser desconstituída pela livre vontade dos sócios a qualquer tempo – ou de direito tributário, vê-se que a causa do negócio foi elidir o pagamento de um tributo e não o exercício de uma atividade empresarial, afetando a capacidade contributiva, a igualdade tributária (ou no caso de pessoas jurídicas, a neutralidade concorrencial) e a solidariedade.

Claro que o fator tempo – a perenidade ou não do negócio praticado – não deve ser havido como critério absoluto de análise, pois circunstâncias empresarias podem levar a que uma sociedade seja desconstituída em pouquíssimo tempo. Um cotejo entre o que se obteve com a venda do imóvel e o efetivo investimento realizado no negócio pode deixar claro que havia apenas um propósito negocial, que foi frustrado pelo mercado.

Coibir práticas elisivas, portanto, não pode ser mera retórica, nem desculpa para aumentar arrecadação, inserido em um projeto maior de reaproximação da moral e do direito.

Não se contenta mais com o feitichismo da lei, como se os códigos pudessem tudo prever. Nem se toma a forma sobre a substância. Atualmente, valoriza-se a inquirição sobre os motivos e as intenções dos sujeitos de direito, mas sem cair em um subjetivismo, antes analisando as condutas a partir de um prisma de objetividade.

Nesse sentido, não se entende a insistência em defender que, como o Direito Tributário trabalha com tipos, não se poderia perquirir o propósito negocial dos atos segundo o ordenamento jurídico brasileiro. A doutrina do propósito negocial (business purpose) e da substância sobre a forma (substance over form), segundo Arnaldo Sampaio de GODOY (2010), foi fixada a partir de 07 de janeiro de 1935 pela Suprema Corte dos Estados Unidos (case Gregory v. Helvering).

Trata-se de postura jurisprudencial que pronunciou ser a substância negocial e, não a formatação jurídica do negócio, a demarcadora do alcance fiscal das transações (GODOY, 2010).

Hamilton Souza DIAS e Hugo FUNARO (2007: 63) defendem que o art. 109, CTN, atendendo o art. 146, III, CF, afastaria a possibilidade de a substância econômica prevalecer sobre a forma jurídica.

Trata-se de postura que pretende ler a Constituição pelas lentes do direito infraconstitucional, na medida em que se pretende fixar que apenas se existir lei complementar estabelecendo efeitos tributários para o abuso das formas de direito civil sem propósito negocial, poder-se-ia descaracterizar o negócio jurídico.

Lê-se, em tiras, a Constituição, desconsiderando que as ordens econômica, social e tributária devem ser interpretadas em conjunto e, mais que isso, sendo a solidariedade um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, não se pode admitir que haja uma liberdade absoluta no uso das formas jurídico-civis e empresariais, a ponto de frustrar princípios caros à tributação, como a capacidade contributiva e a isonomia.

Entender, portanto, que esses princípios se dirigiriam apenas ao legislador, e não ao intérprete (DIAS; FUNARO, 2007: 64), é desconsiderar uma nova perspectiva do direito nas sociedades contemporâneas, que não podendo ser extraído de uma única fonte social acaba sendo interpretado por vários atores sociais, a começar pelo próprio contribuinte que, previamente e analisando a jurisprudência administrativa e judicial, realiza a conduta que lhe parece adequada e menos onerosa do ponto de vista fiscal.

O pós-positivismo ou as teorias não-positivistas contemporâneas apostam que haverá muitos casos difíceis, cujas soluções não se encontrarão em regras prévias e claras, de modo que os juízes precisarão inventar novo direito sem seguir as fontes sociais (CALSAMIGLIA, 1998: 214), sobretudo a legislação, incapaz de acompanhar a complexidade das relações humanas.

Afastando-se a hegemonia do legislador, não se pode admitir que o administrador não possa definir condutas como elisivas.

Embora atreladas ao common law, as doutrinas do business purpose e substance over form tem aplicação em países de direito legislado, como é exemplo característico a Itália.

Na Sentenza 1465/2009 , a Corte Italiana definiu que à Administração Tributária incumbe a definição do que seja planejamento tributário lícito, ou na tradução literal do termo, poupança de imposto.

Veja que essa decisão revela um ponto que será explorado no próximo tópico, que é o de que a Administração Tributária teria maior expertise para definir práticas lícitas ou não de planejamento tributário. Isso, porém, não afasta a participação do legislador que pode, a partir da experiência sobre o tema, prever leis e do judiciário, que pode sindicar atos e decisões administrativas.

O Direito Tributário recuperou a análise da substância dos atos, perspectiva que vem sendo chancelada, tanto pela jurisprudência administrativa , quanto pelo Judiciário.

A verdade é que se tem uma nova dimensão de entendimento do direito, que admitindo a limitação cognitiva do homem que, seja como legislador, seja como julgador, seja como administrador, seja como contribuinte, não consegue tudo prever, não mais se fiando que apenas as regras jurídicas possam dar conta de todo o fenômeno tributário, como se fosse possível estabelecer todas as hipóteses de incidência para um tributo e quais as condutas do contribuinte se adéquam ou não ao fato gerador.

Não, por acaso, a legislação que regulamentou o artigo 116, parágrafo único, a MP 66/2002, que acabou não sendo reeditada, veio a colocar a falta de propósito negocial ou o abuso de forma como critérios na desconsideração do ato ou negócio jurídico (art. 14, parágrafo primeiro, MP 66/2002).

Essa maneira de encarar o fenômeno tributário, portanto, guarda pertinência com um novo modo de encarar o direito. O Direito não é mais um punhado de regras que tenta captar os fenômenos possíveis em sua completude, deixando uma discricionariedade forte para o juiz na hora de resolver as lacunas possíveis.

Nesse ponto, veja que o próprio Código Tributário Nacional tentou limitar a atuação dos magistrados e, nesse sentido, foi aquém da própria proposta do positivismo normativista.

Seja como for, não se admite mais que o Direito esteja reduzido a regras, recebendo influxo importante dos princípios que acabam por limitar a possibilidade de lacunas no ordenamento jurídico.

As teorias não-positivistas, dando força normativa aos princípios jurídicos, no entanto, não deixaram o terreno aberto para que se tivesse um decisionismo judicial exarcebado. Na verdade, dois dos maiores entusiastas da força normativa dos princípios, costuraram teorias que mostram estar o magistrado atrelado à discricionariedade fraca, seja porque existe apenas uma única decisão correta, na medida em que o magistrado deve estar circunscrito à jurisprudência firmada em observância aos princípios constitucionais e aos próprios valores morais de uma sociedade (Ronald DWORKIN, 1997 e 2003; FIGUEROA, 1998), seja porque existem concretizações de princípios jurídicos que os próprios legisladores fazem, ao editar as regras jurídicas, e a construção de sólida jurisprudência em tema de princípios constitucionais (Robert ALEXY, 2001 e 2008).

As duas propostas teóricas acabaram por oferecer base para a construção das teorias da argumentação jurídica, colocando ênfase especial na construção de argumentos racionais, construídos em ambientes de discursos livres, para se encontrar os sentidos consensuais dos textos jurídicos (ATIENZA, 2007).

Do ponto de vista puramente jurídico-normativo, sabe-se que na maioria dos Estados Democráticos de Direito, a motivação de atos decisórios é uma necessidade para a própria validade da decisão. Daí que o perigo de lidar com princípios redundar em mero decisionismo seja mitigado, construindo-se um ambiente em que para se afastar uma regra jurídica ou um precedente judicial exige-se um ônus argumentativo (BRANCO, 2009: 243).

É, por isso, que não se admite lógica a tentativa de se introduzir discussões sobre o abuso de formas jurídicas e o desrespeito ao propósito negocial para aferição da licitude de um planejamento tributário desnatura a tipicidade cerrada do Direito Tributário, que deve se utilizar apenas de regras claras e prévias na definição do fato gerador e de todos os outros elementos do tributo.

Além de o propósito negocial ter raiz no direito norte-americano, a fraude à lei e o abuso do direito serem construções que o próprio Estado liberal já repudiava, havendo jurisprudência das décadas de 50 e 60 do STF as vedando, fato é que a interpretação econômica não mais merece a reprimenda que teve pela doutrina tributária , fruto de um uso enviesado e ideológico realizado pela Alemanha nazista, pois hoje se deve evitar a tributação de uma situação econômica sem lei; a legalidade sem capacidade contributiva; a segurança jurídica sem justiça (TORRES, 2002: 194).


Parece-me que os avanços conquistados no âmbito da teoria do Direito, muito embora possa sempre haver algum excesso, devem afastar qualquer preconceitos quanto às análises substanciais das condutas dos contribuintes que visem, apenas e tão-somente, a uma redução ou eliminação de carga fiscal, com abuso de formas jurídicas.

Nesse sentido, abandona-se qualquer tentativa de se criar uma interpretação que seja unicamente jurídica e uma subserviência total do Direito Tributário ao Direito Civil, representada pela Escola Positivista do Direito Tributário brasileira, bem representada pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, como apontou o Ricardo Lobo Torres durante o 1º Seminário sobre Normal Antielisiva promovido pela Receita Federal do Brasil (TORRES, 2002: 193).

Nesse sentido, as normas antielisivas são fruto de um momento de pós-positivismo (ou anti-positivismo), e, embora aumentem a insegurança, refletem essa mudança rumo a um Direito Tributário que não admita elisão abusiva ou planejamento inconsistente (TORRES, 2005/2006: 5).

Entender o problema, porém, passa pela compreensão de um novo modelo de sociabilidade humana que foi instaurado pela sociedade de risco e que trouxe nova roupagem para a segurança jurídica, não tendo o planejamento tributário ficado ileso a essa mudança.

5 Segurança jurídica e planejamento tributário: o fator risco como mitigador da tipicidade cerrada e como critério de mensuração da multa por condutas elisivas

A história do surgimento do Estado pode ser contada como a gradual busca por segurança. Todavia, assim como todos os direitos fundamentais foram relidos durante os anos, a segurança que se objetiva, hoje, não é a mesma que se almejava nos albores do Estado de Direito liberal.

As teorias liberais se fiaram numa natureza humana invariável (ROUANET, 2003: 19), mostrando que, “arrancado de sua ligação umbilical com a natureza, o homem imaginado pela modernidade carrega um corpo que é pensado conforme a metáfora da máquina, e um psiquismo em última instância reduzido à consciência racional” (PLASTINO, 2008: 203).

Se como já dito o homem teme uma vida sem Estado, em que haveria guerra de todos contra todos, pode-se dizer que o medo é um constituinte importante da sociabilidade humana. O homem só avança vencendo seus medos, arriscando-se, como revela a evolução humana.

Riscos sempre houve e eram elementos importantes da constituição do individuo, a ponto de o burguês típico querer segurança nos mais variados aspectos de sua vida: contra concorrentes, que pudessem aniquilar seus negócios jurídicos; contra o Estado e seu ímpeto para a arbitrariedade; entre outros. Mas por que hoje se fala em uma sociedade de risco?

A resposta é que a sociedade atual vive sob o influxo de outros riscos. Segundo Ulrich BECK (1999), a aceleração do processo de globalização provocou, em nível mundial, um aumento das situações de risco, a ponto de se falar que vivemos numa sociedade de risco (Risikogesellschaft). Os riscos vêm de todos os lados. Verifica-se o risco de uma catástrofe ecológica, capaz de subverter os equilíbrios naturais do planeta; persiste o risco de uma destruição atômica que dizimaria a civilização; a instabilidades dos mercados financeiros pode levar a um colapso financeiro com efeito dominó imprevisível – e a crise econômico-financeira de 2008 corroborou o risco -; isso sem falar no risco do terrorismo, nome genérico e ambíguo a indicar um conjunto de complexas e globalizadas formas de violência.

Os riscos, assim como as riquezas, são distribuídos no interior da sociedade, constituindo posições de ameaça ou de classe. Mas ao contrário delas, que seguem uma lógica positiva de apropriação, eles são geridos por uma lógica negativa do afastamento pela distribuição (BECK, 2010: 31-32).

Fala-se, portanto, em sociedades de risco, marcada pela ambivalência, pela insegurança e pelo redesenho do relacionamento entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade (TORRES, 2005/2006: 6).

A ambivalência se dá com a impossibilidade de que se construam políticas públicas consensuais, já que várias medidas a serem tomadas pelo Estado, a par de gerarem benefícios para alguns, ensejam riscos a outros, que devem ser distribuídos.

Isso leva à modificação do próprio conceito de segurança. No Estado Liberal clássico, a segurança jurídica tinha por objetivo a proteção dos direitos individuais do cidadão (TORRES, 2005/2006: 6).

Na verdade, revela-se, acima de tudo, uma crença de que existe algo intrinsicamente bom na técnica normativa em que consiste o Direito, de modo que quando o poder político atua mediante normas prévias e conhecidas pelos destinatários, os sujeitos submetidos a ele tem a capacidade de prever o seu exercício e conformarem suas atitutdes. Essa previsibilidade acaba por dotar de certa legitimidade o poder jurídico e seu direito, independentemente do conteúdo das normas jurídicas (MANRIQUE, 1994: 247).

Assim, tinha-se a segurança jurídica como “a certeza a respeito do conteúdo das normas jurídicas vigentes e a respeito do fato de que as normas jurídicas vigentes são aplicadas de acordo com seu conteúdo” (MANRIQUE, 1994: 483), conceito capaz de atender propostas teóricas do direito tão dispares como as de Gustav Radbruch e de Hans Kelsen.

Esses autores, portanto, cujas teorias foram forjadas ainda sob um viés liberal, acreditavam que a segurança jurídica era apta a fomentar ou permitir a autonomia do individuo, valor tão caro ao homem moderno, pois lhe permitia adequar suas vontades pessoais aos comandos normativos (MANRIQUE, 1994: 486).

As normas jurídicas, em sociedades menos complexas, permitiam projeções seguras para o futuro, não sendo casual a ênfase que se dava na legislação como fonte social. Havia tempo para que o Legislativo analisasse a realidade e, a partir dela, estipulasse comandos genéricos e prospectivos sobre como a sociedade deveria atuar.

A sociedade de risco contemporânea, porém, marcada por acentuada complexidade, oferece outra realidade, de modo que não é possível prever todos os riscos existentes, o que desnatura um pouco a possibilidade de normas jurídicas serem genéricas, prévias e abstratas.

É que os riscos, mesmo aqueles que poderiam ser mensurados pelas ciências ditas naturais, baseiam-se num castelo de conjecturas especulativas, de modo que o risco pode esconder o ainda não-evento que desencadeia a ação (BECK, 2010: 36 e 39).

Há danos previsíveis e a crença num suposto amplificador de riscos. Captando isso para o Direito Tributário, Ricardo Lodi aponta que, na sociedade de risco, a segurança ainda se volta para o passado, mas não pode, em absoluto, ser garantida para o futuro, de modo que a “mutabilidade da lei tributária muitas vezes é exigida pela dimensão plural da Segurança Jurídica e na Igualdade da Repartição de Receitas” (RIBEIRO, 2010: 14).

Ricardo Lobo Torres vai mais longe e trata do chamado risco fiscal, mal que pode surgir tanto da atuação de agentes estatais pelo descontrole orçamentário, da gestão irresponsável de recursos públicos e da corrupção; quanto do contribuinte pela sonegação e pela corrupção no trato com os funcionários da Fazenda e pelo abuso da forma jurídica no planejamento dos seus negócios ou na organização de sua empresa (TORRES, 2005/2006: 8).

O risco fiscal, no que tange ao planejamento tributário, passa a ser problema de capital importância para se atender aos fundamentos contemporâneos da tributação: liberdade, igualdade e solidariedade.

Assim, quem advoga a necessidade de a lei ordinária regular previa e especificamente todos os atos passíveis de serem enquadrados como elisivos ainda está preso a uma visão eminentemente liberal, em um mundo homogêneo e sem grandes abalos. Se um dia essa foi a realidade, não é mais.

O Estado Democrático de Direito, assumindo o papel de gerenciar riscos, aumentou, de modo que “a necessidade de financiamento de tais atividades estatais coloriu com novas cores o fenômeno da tributação, trazendo consigo o risco da quebra do Estado e as nefastas conseqüências que daí adviriam” (GUERRA, 2006: 215).

Daí que se possa concordar com a insuficiência normativa do art. 116, parágrafo único, do CTN, mas o que não afasta essa proibição constitucional de que os planejamentos tributários encubram desrespeitos às normas jurídico-tributárias, que sempre chegam com um déficit natural, dada a impossibilidade de prever totalmente o futuro.

A tipicidade cerrada não pode mais ser abraçada como a essência do direito tributário. Fala-se, hoje, em diálogo institucional entre os órgãos políticos (MUNHÓS SOUZA, 2010: 17), tendo ficado claro que qualquer pessoa é um intérprete autorizado da ordem jurídica, muito embora essa interpretação possa sucumbir diante de uma orientação administrativa, da edição legislativa ou da decisão final de um órgão judicial.


Tomando de empréstimo uma idéia atual de como se enxergar a interpretação constitucional, no sentido de que todos podem participar da formação da verdade, a partir da busca de um consenso, é possível se pensar que, no que toca ao planejamento tributário, contribuintes, membros dos órgãos fazendários, legislativo e judiciário, cada qual a seu tempo e em rodadas procedimentais diferentes, formatarão um inventário de atividades permitidas e atividades elisivas.

Nesse sentido, é pertinente a proposta de Marco Aurélio Greco, no sentido de que o art. 116, parágrafo único, CTN, deva ser regulado por lei ordinária apenas no que tange a aspectos procedimentais (GRECO, 2001: 437), de modo a que haja um procedimento administrativo, com a possibilidade de contraditório, e que o contribuinte possa mostrar sua boafé em atender ao dever fundamental de pagar tributos, mas apresentando uma conduta que possa implicar redução lícita no montante a ser pago.

Assim, não se abandonou a legislação como fonte por excelência do direito tributário – pelo menos é essa a intenção constitucional, um pouco frustrada por cada vez mais o Parlamento se manter inerte sobre a matéria -, mas não se pode desconhecer que, muitas vezes, é a autoridade administrativa quem tem experiência para regular o assunto e pode ter contato mais direto com a matéria – afinal, ela sabe as brechas utilizadas – e, a partir daí, tentar formular padrões de conduta (VILELLA, 2002: 36).

A experiência jurisprudencial brasileira mostra que a legalidade tributária não é absoluta, pois se chancelou a possibilidade de autoridade administrativa fixar o grau de risco da atividade preponderante de uma sociedade empresária para fins de estabelecer a alíquota do Segura sobre Acidente de Trabalho (SAT) . Essa guinada do dogma liberal da tipicidade fechada para a juridicidade e legalidade da sociedade de risco, aplaudida por parte da doutrina (LODI, 2010: 46), revela que nem sempre manter exclusivamente na arena legislativa o monopólio da produção do direito tributário implica atender os fins constitucionalmente colimados à tributação, muito embora não seja impossível que o Parlamento, a partir de dados estatísticos coligidos, venha a criar outros graus de risco no caso do SAT.

Assim, contribuintes, agentes do fisco, legisladores e juízes podem ter atuação relevante na definição de ser ou não uma conduta específica elisiva. Trata-se de incorporar a um processo administrativo-tributário, consultando o arcabouço jurisprudencial administrativo e judicial, elementos que permitam aferir condutas do contribuinte. Não havendo mais a crença em uma segurança jurídica absoluta, buscam-se indícios de quais práticas sejam lesivas e a partir daí fixam padrões de conduta, embora provisórios, pois uma nova rodada procedimental (MENDES, 2008: 166) de discussão pode ser aberta no judiciário, o que inclusive pode motivar alguma correção legislativa da jurisprudência.

Esse trabalho de construção compartilhada da verdade, não mais aceita como uma correspondência entre fato e realidade, na esteira do essencialismo lingüístico, também afasta uma pretensa vulnerabilidade cognoscitiva do contribuinte (MARINS, 2009: 40), pois se é verdade que é difícil acompanhar a legislação tributária, não é menos verdade que a criatividade humana na tentativa de realização de economia de tributos é inabarcável e, muitas vezes, a complexidade se deve à tentativa de se criar justiça fiscal, coibindo práticas elisivas e pugnando por isonomia nas relações jurídico-tributárias.

Por outro lado, não se deve desconsiderar que as autoridades fazendárias, quando quiserem afastar um planejamento tributário, possuem duplo ônus de prova, não lhe bastando provar a finalidade de elidir, mas também de qual fato gerador efetivamente ocorreu (DI PIETRO, 2002: 117).

Ademais, adotando-se a complexidade como um fato marcante da legislação tributária , não se pode tolerar a tentativa de impor multa de ofício, qualificada, para qualquer tentativa de economia de tributo.

Um primeiro ponto que chama a atenção é que a conduta do contribuinte deve ser analisada à luz da jurisprudência firmada ao tempo do ato ou negócio celebrado. Se havia reiterados julgamentos administrativos ou judiciais apontando para a oponibilidade de sua conduta ao Fisco como um planejamento tributário lícito e eficaz, não há razão para que se tente censurar a conduta, ainda que seja possível modular efeitos da decisão, no sentido de que a partir de determinado momento não mais se admitirá a “economia de tributo”.

Isso gera problemas em saber o que seria a jurisprudência reiterada. Se pode haver alguma zona cinzenta, no caso de, por exemplo, entre dez decisões, verificar-se que seis são a favor da inoponibilidade e quatro a favor da oponibilidade, a medida em que aumenta a diferença, dentro de um certo quadro temporário, fica fácil aquilitar qual a jurisprudência. Ademais, os próprios Tribunais administrativos e judiciais, não raro, apontam em uma decisão paradigma que estão empreendendo mudança de orientação, o que serve para aquilitar o marco inicial da nova jurisprudência.

O segundo ponto foi bem captado por Gabriel Lacerda Troianelli. Na verdade, analisando o art. 44, parágrafo único, da LF 9.430/1996 e a referência que esse parágrafo fez a dispositivos da lei 4.502/64, concluiu pela impossibilidade de aplicar-se a multa agravada aos contribuintes que, “às claras e sem tentar ocultar a ocorrência do fato gerador ou de algum de seus elementos, praticar ou negócios que, embora líticos, tenham seus feitos tributários desconsiderados pelo Fisco” (TROIANELLI, 2010: 55).

Deve, no entanto, ficar provado cabalmente a ausência de propósito fraudulento e ainda verificar se não há norma que rotule a conduta, imputando-a alguma multa em percentual próprio, em exercício legítimo do legislativo para coibir condutas que afetam os pilares constitucionais da tributação, desde que observe, por óbvio, os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Embora aponte que os artigos 17 e 18 da MP 66/2002 , deixavam claro que não deveria haver multa agravada no caso dos planejamentos tributários inoponíveis com base na boa-fé dos contribuintes (TROIANELLI, 2010: 55), seria bom, de lege ferenda, determinar a aplicação de multas agravadas para manifesta má-fé, que pode ser dar, por exemplo, para o caso de contribuintes que defendem, no âmbito do CARF, que existiam, de fato, estruturas empresariais diversificadas, enquanto no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), por hipótese, defendem que determinado arranjo empresarial apenas serviu para propósitos fiscais.

Após as investigações realizadas, chega-se ao derradeiro passo: como se verificar real propósito negocial e não mera tentativa de economia de tributo?

6 Análise dinâmica e complexa dos negócios privad os: os fatores tempo e contexto como vetores impres cindíveis na análise de planejamentos tributários à luz da livre concorrência e outros princípios constitucionais

A tributação se presta, dizem os economistas, a uma transferência de recursos do setor privado para o setor público, que pode gerar distorções na economia, orientando conduta dos consumidores conforme o preço de produtos e serviços, afetados pelos preços, proporcionais aos custos que os tributos geram.

Isso seria um efeito não-intencional da tributação que merece ser evitado pelo direito.

Todo agente econômico, portanto, tentará evitar o tributo, o que é normal em um processo de aquisição de riqueza. Sem importar com os rótulos jurídicos para essa prática, se elisão ou evasão, Luiz Alberto Vilella assevera que as economias de escala obtidas por um agente econômico que recolher menos tributo ou deixa de recolhê-lo, gera distorções no mercado.

Na verdade, essas distorções dependem de duas variáveis importantes: o número de competidores envolvidos e o peso da carga tributária nos custos envolvidos (VILELLA, 2002: 32). Quanto menor o número de competidores e maior a carga tributária, mais a tributação pode influir na concorrência, de modo que se torna difícil para que um dos players, o qual esteja de acordo com a tributação na forma abstrata e genericamente prevista na legislação tributária, concorrer com aqueles que evitam ou evadem tributos, mesmo que seja mais eficiente.

É bem verdade que há estudos que indicam que o repasse ao contribuinte de fato, o consumidor, é uma realidade brasileira, ainda carente de uma reforma tributária e de mais cidadania fiscal, concretizando o comando constitucional que visa a informar o contribuinte sobre o quanto se paga de tributo em cada produto ou serviço, enfim, que trague transparência fiscal (art. 150, § 5º, CF).

De qualquer sorte, o problema dos efeitos tributários para a concorrência não passou desapercebido ao legislador constituinte reformado que, nesse sentido, institui o artigo 146-A, CF, constitucionalizando expressamente algo que adviria implicitamente de outros princípios constitucionais (PAULA, 2008).

A neutralidade fiscal, termo preferido pela doutrina tributária européia, vem sendo aplicado no âmbito do direito comunitário europeu, servindo como orientação na feitura e interpretação da legislação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), de modo a que ele seja um tributo neutro, e, no campo das estruturas negociais, tem-se a neutralidade como fundamento para diretiva que conduza a edição de legislação européia favorável a rearranjos societários, transformando empresas nacionais em “comunitárias”, sem que a taxação diferente entre os países possa obstaculizar a restruturação (NOVOA, 2010: 5).


Se, no Brasil, ainda não se tem uma construção teórica e aplicação prática da neutralidade fiscal nos moldes europeus, tampouco se pode falar na inexistência de literatura jurídica sobre as conseqüências não-intencionais na criação ou majoração de um tributo (CALIENDO, 2009: 100), já tendo o próprio STF utilizado a neutralidade concorrencial da tributação como vetor de interpretação em caso, no qual se discutia, justamente, o perigo alertado pelo economista Luiz Alberto Villela de o não pagamento de tributos leva à grave distorção concorrencial em mercado oligopólico.

A neutralidade concorrencial da tributação, decorrente da igualdade diante e perante a lei tributária, surge como um fundamento último para a existência de um dever geral de vedação a condutas com exclusivo propósito negocial, de modo que não se bloqueie “a atuação individualizada da fiscalização, mediante a alegação de que a norma geral [de tributação] não abrange o seu caso, devendo ela, no seu entendimento, ser aplicada indistintamente, apesar das diferenças do seu caso” (ÁVILA, 2008: 19).

Assim, sem tentar se substituir a órgãos que visam justamente à proteção da concorrência, mas atuando em sintonia com o CADE, o Ministério da Justiça e o Ministério Público Federal (MPF), o Fisco deve analisar se rearranjos societários e de estrutura têm propósito negocial ou servem para mera economia de tributo.

A doutrina, analisando a jurisprudência administrativa brasileira, tem chegado a critérios que indicam a ausência de propósito negocial, marcando possível ofensa à concorrência por meio de planejamentos tributários. Nesse sentido, Luís Eduardo SCHOUERI (2010: 19) verifica três elementos interessantes para se constatar ausência de propósito negocial:

  1. o elemento temporal, já que muitas vezes se verifica que o planejamento, em geral atividade pensada e preparada, é realizada às pressas, com a assinatura de vários documentos em um único momento, alguns desfazendo transações que se celebram no mesmo instante;
  2. a independência ou não das partes, eis que muitas fusões, cisões e incorporações se dão apenas como forma de alocar perdas e ganhos entre empresas de mesmo grupo, sempre visando à redução da tributação;
  3. ausência de coerência, quando se realizam transações que não se inserem na rotina da empresa ou na lógica empresarial.

Marco Aurélio GRECO (2009: 8), a seu juízo, pondera que seriam indícios de mera tentativa de economia de tributo:

a) operações estruturas em seqüência, em que uma etapa não tem sentido a não ser quando vista a partir do conjunto de etapas […]; b) operações invertidas, no sentido de serem realizadas ao contrário do que indica o juízo comum, por exemplo, a incorporação da controladora pela controlada; c) operações entre partes relacionadas, pois nestas é mais rigoroso o juízo sobre os critérios de eqüitatividade em que devem ser feitas certas operações quando comparadas com operações com terceiros; d) o uso de pessoas jurídicas para realizar determinadas operações, pois além de poderem configurar uma interposta pessoa, estas sociedades podem se apresentar como meros instrumentos de passagens de recursos destinados a terceiros (conduint companies) ou assumirem a condição de sociedade aparentes, fictícias ou efêmeras; e) operações que impliquem deslocamento da base tributável para o exterior, pois isto afeta a soberania e a imperatividade da norma tributária; f) as substituições ou montagens jurídicas em que as formas contratuais são construídas meramente para vestir determinado conteúdo sem que haja razões reais e efetivas que as justifiquem.

Perceba que os dois juristas reconhecem que dois vetores são imprescindíveis na análise de quais condutas serão ou não oponíveis ao Fisco: o tempo e o contexto dos atos e negócios privados.

O antigo Conselho Superior de Conselhos Fiscais já analisou a ausência de propósito negocial a partir do vetor tempo:

ocorreu a proximidade temporal dos atos (uma hora entre a integralização de capital com ágio de cerca de 98% e a incorporação do ágio ao capital, e cisão no dia subseqüente); não havia causa econômica (além da economia fiscal) para o aumento de capital, que foi usado apenas como degrau para a objetivada alienação de participação societária; e seus efeitos foram desfeitos com a cisão. A simulação é incontestável.

No entanto, é necessária alguma cautela quando se toma o vetor tempo. LAPATZA (2006: 318) traz exemplo didático nesse sentido. Fala de uma pessoa, A, que deseja adquirir de outra, B, uma casa. Para evitar o pagamento de tributo, porém, constituem os dois uma sociedade, um aportando dinheiro; e o outro, a casa. Ao minuto seguinte, porém, dissolvem a sociedade, de modo a que A fique com a casa e B com o dinheiro integralizado, mostrando típico caso de “conflito de normas”, instituo espanhol que aqui poderia ser identificado com os negócios privados inoponiveis ao Fisco.

Se, porém, a sociedade se dissolve, mas porque B descobre, no minuto seguinte à constituição da sociedade, que ela pegou fogo, necessitando de liquidez, a operação não deve ser desconsiderada.

A cautela também deve se verificar quando se pensa no contexto de realização do negócio.

Não basta olhar a legalidade apenas, de modo que se criou orientação jurisprudencial no sentido de que “o fato de cada uma das transações, isoladamente e do ponto de vista formal, ostentar legalidade, não garante a legitimidade do conjunto de operações, quando fica comprovado que os atos praticados tinham objetivo diverso daquele que lhes é próprio”

Destarte, tanto o vetor tempo, quanto o vetor contexto, devem ser analisados de forma dinâmica, de modo que se capte a realidade que se quer fotografar, na feliz expressão de Marco Aurélio Greco, em todos os seus quadros.

7 Conclusão

A liberdade, a igualdade e a solidariedade, como fundamentos contemporâneos da tributação em uma sociedade de risco e diante de uma visão não-positivista do direito, revelam que existe um dever geral de vedação a condutas com propósito exclusivamente de redução de pagamento de tributo e abuso de formas jurídicas. Esse dever geral se revela pelos fundamentos constitucionais da tributação: solidariedade, eficiência e isonomia.

Daí que o Fisco brasileiro venha, a par da ausência de regulamentação do art. 116, parágrafo único, do CTN, afastando atos e negócios privados.

Não obstante a desnecessidade de regras sobre o tema, sendo comum em vários ordenamentos jurídicos que a “norma geral antielisiva” seja construção pretoriana, extraída dos princípios constitucionais que regem a tributação, como o caso italiano, a regulamentação da maté


O propósito negocial e o planejamento tributário no ordenamento jurídico brasileiro

Autor: Miquerlam Chaves Cavalcante, Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual do Ceará.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – Pautado numa pesquisa bibliográfica da doutrina e das regras e princípios do ordenamento positivo nacional, o estudo identifica o propósito negocial como requisito para a validade jurídica de operações societárias em um ambiente de benefícios tributários delas decorrente. Fezse uma análise da legislação em vigor, seja sob a ótica de normas expressas, seja sob o prisma de princípios implícitos em nosso arcabouço jurídico. A pertinência da introdução de uma lei específica sobre o propósito negocial em nosso sistema jurídico não foi olvidada. Ponderamos as relações interdisciplinares de institutos, regras e princípios de direito constitucional, de direito civil e de direito tributário, que demonstraram a desnecessidade de alterações legislativas para uma correta solução de litígios em que se discute a ausência de propósito negocial. A importância da obra reside na identificação de critérios fático-jurídicos relevantes no julgamento de operações societárias que impliquem economia tributária, reduzindo-se, na medida do possível, o subjetivismo e a insegurança jurídica que permeiam o tema. Enunciamos finalmente alguns julgados no âmbito do contencioso administrativo fiscal que corroboram as conclusões de que a ausência de propósito negocial põe mácula em operações societárias levadas a termo para reduzir ou afastar a incidência tributária.

1 INTRODUÇÃO

A consolidação do Estado Democrático de Direito em nosso país, fruto do amadurecimento das instituições democráticas estabelecidas pela Constituição da República de 1988 – CF/88, tem promovido importantes e profundas mudanças nos diversos ramos do Direito.

Observa-se a cada dia a crescente influência dos princípios constitucionais de nosso direito positivo sob ramos até então impregnados por uma ótica privatista e patrimonialista. Os ventos constitucionais sopraram sobre o Direito do Trabalho, sobre o Direito do Consumidor e, notadamente, sobre o Direito Civil como um todo.

Especialmente no que se refere à interpretação de institutos clássicos do Direito Civil, a hermenêutica constitucional atribuiu nova roupagem, mais humana, mais democrática, enfim, mais social. Esse fenômeno recebeu conceituação própria. Trata-se da chamada “despatrimonialização” ou, como preferir, “constitucionalização” do Direito Civil (LENZA, 2008, p.3).

A nomenclatura sugere que o ponto central, ou seja, o destinatáriomor das normas civilistas passou a ser o ser humano, ao invés do patrimônio. Fala-se em constitucionalização pelo fato de a Constituição de 1988 calcar seus alicerces na dignidade da pessoa humana, e não no patrimônio.

Para Júlio César Finger (2000 apud LENZA, 2008, p.3):

Os princípios constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), que é sempre citado como um princípiomatriz de todos os direitos fundamentais, colocam a pessoa em um patamar diferenciado do que se encontrava no Estado Liberal. O direito civil, de modo especial, ao expressar tal ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida privada unicamente do ponto de vista do patrimônio do indivíduo. Os princípios constitucionais, em vez de apregoar tal conformação, têm por meta orientar a ordem jurídica para a realização de valores da pessoa humana como titular de interesses existenciais, para além dos meramente patrimoniais. O direito civil, de um direito-proprietário, passa a ser visto como a regulação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar o seu desenvolvimento com dignidade. Fala-se, portanto, em uma despatrimonialização do direito civil, como conseqüência de sua constitucionalização.

Muitas vezes, a alteração na interpretação de institutos se deu sem que tivesse havido uma correspondente alteração legislativa. Com efeito, a jurisprudência progrediu, porosa aos auspícios e princípios constitucionais, sem que o legislador promovesse a atualização legislativa desejada, ou, quando o fez, ela foi posterior à consolidação jurisprudencial dos institutos.

Cite-se como exemplo, na seara contratual, a evolução jurisprudencial dos institutos da boa-fé e da função social do contrato, que encontraram sede jurisprudencial antes mesmo de sua previsão expressa com o advento do Código Civil de 2002.

Não nos esqueçamos da união estável, cuja previsão no Texto Maior precedeu a normatização ordinária.

No mesmo caminho de uma interpretação impregnada de dignidade humana, assiste-se atualmente ao reconhecimento de direitos às pessoas em união homoafetiva. Mesmo a ausência de uma legislação específica sobre o tema não tem impedido o judiciário1 de assegurar direitos àquelas pessoas, sobretudo na esfera previdenciária2.

Cremos, entretanto, que o Direito Tributário tem-se mostrado refratário aos princípios constitucionais que tanto impregnam outros ramos. Seus operadores enrijeceram-se em conceitos clássicos e em preconceitos acerca da hipossuficiência dos contribuintes, mas que muitas vezes destoam de uma realidade fática.

O que se pretende nas próximas linhas não é uma defesa inconseqüente da tributação estatal muito menos um completo abandono de princípios basilares do direito tributário, como o da legalidade.

Buscar-se-á demonstrar situações em que o Fisco não se encontra em posição de supremacia ante o contribuinte. Ao contrário, há situações em que, por incrível que pareça, o lado mais frágil da relação parece ser o Estado, engessado em sua própria burocracia.

Nestes cenários, a interpretação dos atos jurídicos e das operações não se pode valer da máxima de hipossuficiência dos contribuintes frente ao todo-poderoso Estado, sob pena de se obstar a aplicação de outros princípios constitucionais. Como se sabe, com fundamento na melhor doutrina constitucional, a ponderação de princípios não pode conduzir à completa anulação de um princípio em favor de outro.

Alguns ensinamentos doutrinários sobre o choque entre princípios se destacam:

Intimamente ligado ao princípio da unidade da Constituição, que nele se concretiza, o princípio da harmonização ou da concordância prática consiste, essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 107).

O conflito entre princípios constitucionais é resolvido com a ponderação entre eles, sendo que um deles irá prevalecer no caso concreto sob análise. Isso não significa, diferentemente do conflito entre regras, que o princípio que não prevaleceu deva ser definitivamente repudiado.

Parece-nos que a análise de situações litigiosas envolvendo tributação, tanto no contencioso administrativo-tributário quanto no judicial, somente recentemente3 tem considerado a existência de princípios que podem, conforme o caso concreto, fazer frente àqueles que limitam o poder de tributar do Estado.

A exigência por uma conformidade entre as medidas jurídicas adotadas nos planejamentos tributários e a realidade fática que as fundamentam soa-nos como expressão da tendência constitucionalizante no âmbito do direito tributário.

O presente estudo procura, portanto, demonstrar que diversas normas e princípios de nosso ordenamento jurídico elevam o propósito negocial à condição de elemento condicionante da licitude e validade dos planejamentos tributários.

A partir de uma pesquisa bibliográfica, abordou-se inicialmente, no Item 2, a temática do Planejamento Tributário, estudando seus aspectos gerais, sob uma atual ótica constitucional. Abordou-se aqui a submissão dos contribuintes aos direitos fundamentais, bem como com as normas sobre a desconsideração de atos e negócios jurídicos adotados em planejamentos tributários.

No Item 3, tratou-se das origens do propósito negocial e dos elementos que permitem a identificação de sua presença em operações societárias. Abordou-se também a previsão do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

O cerne do trabalho foi atingido ainda neste Item 3, quando se analisaram normas constitucionais e infra-constitucionais que denunciam a exigência do propósito negocial como requisito de validade de negócios jurídicos no direito brasileiro. A essa análise somou-se a identificação de atual e representativa jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF – sobre o tema.

Por fim, no Item 4, chegou-se a uma conclusão acerca da tendência jurisprudencial na percepção do propósito negocial como elemento necessário ao reconhecimento da licitude de planejamentos tributários.


2 DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

O estudo do planejamento tributário aqui realizado busca um enfoque constitucional. A adoção de medidas jurídicas e comerciais com o intuito de recolher menos tributos, ou adiar a ocorrência do fato gerador, decerto encontra amparo em diversas regras e princípios constitucionais.

Por outro lado, há diversos outros princípios que podem ser tolhidos caso planejamentos sejam indiscriminadamente considerados válidos e legítimos tão-somente porque adotaram forma jurídica prevista em texto de lei.

O que se busca nas próximas linhas é a demonstração de que o atual estágio do nosso direito, sobretudo, do direito constitucional, não mais permite interpretações que ignorem a realidade fática, subjacente às formas jurídicas.

Defendemos aqui a existência de limites ao direito de se buscar alternativas para reduzir ou adiar a tributação. A existência de um propósito negocial que justifique as medidas jurídicas é elemento a ser perquirido na análise da validade dos planejamentos tributários.

Não olvidamos, entretanto, das diversas críticas doutrinárias quanto à aferição do propósito negocial em matéria de planejamentos.

Com efeito, questiona-se a introdução de um critério alienígena em um ordenamento jurídico, mormente quando o fenômeno (business purpose) formou-se a partir de uma evolução jurisprudencial e sem que tenha havido inovação legislativa que o embase. (SCHOUERI; FREITAS, 2010, p. 18).

Verificaremos, entretanto, que a crítica não resiste à uma análise sistemática, teleológica e, sobretudo, constitucional de nosso ordenamento em vigor.

Por essa razão, comecemos a discorrer sobre o planejamento tributário sob um enfoque constitucional, contribuindo para uma releitura desse fenômeno jurídico.

2.1 Aspectos Gerais sob uma Ótica Constitucional

O exercício da atividade empresarial e sua busca pelo saldo positivo entre os custos operacionais e as receitas exigem um foco especial na própria estrutura da empresa.

Em um cenário de ampla concorrência, como o que se verifica hoje na maioria dos setores da economia, o auferimento ou não de lucros é determinado, muitas vezes, na adoção de medidas interna corporis.

Uma correta estruturação societária e um bem planejado controle de custos são elementos indispensáveis para o sucesso empresarial. Se considerarmos que os tributos representam custos de significativo impacto no orçamento empresarial, veremos que as medidas para minimizar a carga tributária são de larga utilização pelas empresas e pelos contribuintes em geral.

O conceito de planejamento tributário aflora deste cenário, em que os contribuintes adotam determinadas medidas jurídicas no intuito de reduzir os custos tributários que incidem sobre sua atividade.

Para Andrade Filho (2007, p.728), “planejamento tributário ou `elisão fiscal´ envolve a escolha, entre alternativas válidas, de situações fáticas ou jurídicas que visem reduzir ou eliminar ônus tributários, sempre que isso for possível nos limites da ordem jurídica”.

É de extrema relevância para a discussão aqui travada a lição no sentido de que o planejamento tributário exige o manejo de duas linguagens: a do direito positivo e a dos negócios, não se restringindo, portanto, à descoberta de lacunas ou brechas legislativas. (Id., 2007, p.728).

De fato, conforme sustentaremos à frente, não merecem guarida jurídica os planejamentos tributários que não estão calcados em um propósito negocial, ou seja, sem as subjacentes razões fático-negociais que o permitam ou que o justifiquem.

Cremos que o constitucionalismo em vigor4 não mais permite a aceitação de planejamentos formalmente lícitos, vez que cumpridos fielmente preceitos legais, mas que não possuam qualquer suporte fático atinente à prática empresarial.

Há diversos princípios constitucionais que podem ser invocados para amparar o direito dos contribuintes de adotarem medidas para redução da carga tributária in concreto.

Notadamente, citem-se o Princípio da Livre Iniciativa (Art. 1º, IV) e o Princípio da Propriedade Privada (Art. 170, II), que garantem aos contribuintes o direito de organizar seus negócios da maneira que lhes convier. Se dessa estruturação decorre economia tributária, tanto melhor para a atividade desenvolvida.

Cite-se ainda o Princípio da Livre Concorrência (Art. 170, IV todos da CF/88), na medida em que admitir uma economia tributária àquele que melhor gere seus custos tributários é contribuir para o fomento da competição empresarial, salutar para o consumidor de seus produtos.

Não podemos deixar de mencionar todos os princípios ou limitações ao poder de tributar, veiculados nos artigos 150, 151 e 152 da CF/88, que pedimos licença para incluí-los sob a rubrica “Princípio da Ordem Tributária Justa”.

Existem, por outro lado, uma série de outros princípios, igualmente direitos fundamentais. Estes princípios devem servir de contraponto àqueles já mencionados em situações de planejamento tributário cujos contornos não estejam claros.

Antes de enunciar os princípios constitucionais que fundamentariam a exigência do propósito negocial como fundamento de validade dos planejamentos tributários, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a tributação como fonte de receita estatal.

Uma simples leitura do artigo 2º da Lei nº 12.214, de 26 de janeiro de 2010, Lei Orçamentária Anual de 2010, nos revela a importância das receitas tributárias como fonte de recursos para o custeio das políticas públicas estatais.

Decerto que as políticas públicas tem uma finalidade precípua, qual seja: assegurar a dignidade da pessoa humana.

Com efeito, o princípio previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 exprime a primazia da pessoa humana sobre o Estado e a sua consagração importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e promoção de seus direitos fundamentais. (SARMENTO, 2008, p. 87).

Sabendo-se que o foco do nosso ordenamento jurídico repousa na dignidade da pessoa humana, não é difícil concluir que as receitas tributárias constituem instrumento ímpar na consecução dos objetivos fundamentais previstos no Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Da mesma forma, não é difícil concluir que, para construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, enfim, para assegurar uma vida digna a todos os brasileiros, as receitas tributárias se apresentam como seu principal instrumento.

Neste cenário, determinado planejamento tributário que não guarde qualquer substrato de veracidade fática, ou seja, cujas medidas adotadas no campo jurídico-formal não tenham a menor repercussão na realização do objeto social proposto pela empresa, tal planejamento não encontra amparo na ordem constitucional atual.

Planejamentos cujo único e exclusivo objetivo seja a redução tributária ofendem princípios como, repita-se, a Dignidade da Pessoa Humana, na medida em que priva o estado de recursos destinados a assegurar a existência digna de seus cidadãos.

Ofendem, igualmente, a Função Social da Propriedade. A propriedade de uma sociedade empresária, ou de frações do seu capital, decerto deve observar sua função social. Respeito às obrigações trabalhistas de seus empregados, ao direito de seus consumidores e o pagamento dos tributos que lhes são cabíveis são formas de cumprir tal função.

E nem se alegue que a propriedade de sociedades empresárias não se submeteriam ao princípio da função social. Não procede o argumento de que a Constituição de 1988 teria apenas estipulado a função social da propriedade urbana (art 182, §2º) e da rural (art. 186). Ocorre que o inciso XXIII do artigo 5º fala em função social de toda e qualquer propriedade.

O Princípio da Isonomia é, da mesma forma, atingido. Se verificarmos que redução das desigualdades regionais e sociais é princípio da nossa ordem econômica (Art. 170, VII da CF/88) e que o rateios das receitas tributária obedecem a critérios que visam à redução dessas desigualdades5, a economia tributária indevida agrava a situação de antinomia e antagonismos entres as regiões do país.


Ao lado desses princípios, há uma série de bens jurídicos e de outros direitos assegurados constitucionalmente que são tolhidos em razão de planejamentos tributários cujo a única e exclusiva determinante é a economia tributária. Citem-se os direitos sociais (arts. 6º e seguintes), a seguridade social (art. 194 e seguintes, todos da Constituição Federal de 1988), dentre outros.

Passemos, portanto, às razões que justificam a aplicação desses princípios na interpretação e julgamento de operações societária e negócios jurídicos realizados em um contexto de planejamento tributário.

2.2 A Submissão dos Particulares (Contribuintes) aos Direitos Fundamentais . Limitações ao Direito de Pagar Menos Tributos

É preciso deixar claro, desde o início, que não pretendemos, com essa abordagem, minimizar a importância dos princípios e garantias constitucionais que protegem os contribuintes da ânsia arrecadatória do Estado.

Esses dispositivos, previstos no texto constitucional nos artigos 150, 151 e 152, são conquistas de nosso constitucionalismo que devem ser fortemente defendidas. Fala-se em eficácia vertical de direitos fundamentais quando, como neste caso, o constituinte prescreve direitos ou garantias aos cidadãos frente ao Estado.

A verticalidade reside no fato de o Estado encontrar-se em posição favorecida, ou seja, em superioridade com relação ao cidadão individualmente considerado.

Ocorre, entretanto, que vem sendo firmada cada vez mais na doutrina alienígena e nacional a concepção de que os direitos fundamentais não constituem comandos destinados apenas aos atores estatais.

Com efeito, o arcabouço constitucional irradia seus efeitos para além das esferas estatais, alcançando também as relações privadas. Sobre o tema, as lições de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.395) são esclarecedoras:

Para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na esfera jurídicoprivada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares. Essa temática, por sua vez, tem sido versada principalmente sob os títulos de eficácia privada, eficácia externa (ou eficácia em relação a terceiros) ou horizontal dos direitos fundamentais […]

Na mesma linha leciona Daniel Sarmento (2008, p. xxvii):

Fala-se em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, para sublinhar o fato de que tais direitos não regulam apenas as relações verticais de poder que se estabelecem entre Estado e cidadão, mas incidem também sobre relações mantidas entre pessoas e entidades não estatais, que se encontram em posição de igualdade formal.

Poder-se-á indagar: qual a relevância da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito do direito tributário, que veiculada normas cogentes entre Estado e cidadãos?

Ocorre que, inexoravelmente, o contexto dos planejamentos tributários gira em torno de relações jurídicas entre particulares que visam a influenciar na relação de um deles ou de ambos para com o Fisco.

Em outras palavras, os planejamentos tributários se constituem em negócios jurídicos, estruturações societárias ou em operações comerciais que se operam entre atores privados.

É propriamente nesta seara que as considerações aqui feitas quanto a aplicação de princípios fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal) irá atuar. Queremos, com isso, demonstrar que, ao lado dos direitos, há igualmente deveres fundamentais a serem observados pelos particulares.

Sob esse enfoque, é possível notar que o princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, pode fundamentar não apenas as vedações ao poder de tributar, evitando abusos estatais na tributação, mas também pode e deve ser utilizado para evitar que o ordenamento seja usado como escudo para uma economia tributária que não interessa à coletividade.

É oportuno lembrar que “a preponderância do interesse coletivo no direito dos tributos é evidente, daí derivando o caráter cogente de suas normas, inderrogáveis pela vontade dos sujeitos da relação jurídicotributária.” (AMARO, 2010, p. 27).

Ora, não ignoramos o fato de que a redução dos custos tributários decorrentes dos planejamentos tributários há de ser reconhecida. Podese inclusive falar em uma espécie de “direito de pagar menos tributos”, com fundamentos em princípios constitucionais já abordados acima (livre iniciativa, propriedade privada, etc.).

Ocorre que o exercício deste direito decerto encontra limites. O respeito a outros princípios da ordem constitucional é o primeiro limitador, sendo certo que a ponderação entre os valores em conflito será feita conforme o caso concreto.

E não se diga que a proposta aqui veiculada gerará alto grau de subjetivismo e de insegurança jurídica. A consideração acerca de peculiaridades de cada caso é inexorável em qualquer julgamento. Ademais, é plenamente possível identificar a formação de alguns standarts na jurisprudência sobre o planejamento tributário e o propósito negocial.

Entendemos, porém, que o principal limitador ao direito de pagar menos tributos é propriamente a co-existência de fatores extra-tributários que justifique a adoção de medidas elisivas.

Em nosso sentir, o planejamento tributário há de encontrar justificativa e suporte em fatores da atividade econômica das empresas. Há que buscar, ao lado da economia tributária, uma otimização ou uma melhoria da prática empresarial. Enfim, exige-se, para além de uma economia de tributos, um propósito negocial.

Veremos em momento oportuno (Item 3.4) algumas normas do ordenamento jurídico pátrio que permitem a conclusão de que a existência e um propósito negocial é determinante da validade de operações societária e negócios jurídicos levados a termo em planejamentos tributários. Antes disso, convém passarmos para algumas considerações acerca das normas aplicáveis na desconsideração de atos e negócios jurídicos realizados em planejamentos tributários.

2.3 A Desconsideração de Atos e Negócios Jurídicos no Contexto do Planejamento Tributários – Normas Aplicáveis

Alguns ramos do direito, como o direito do trabalho ou do consumidor, parecem mais porosos à utilização de princípios na interpretação de institutos ou na atualização de conceitos clássicos.

Cremos não ser o caso do direito tributário.

Não obstante, conforme vimos acima, há uma série de princípios constitucionais que possibilitam a desconsideração de atos, operações, negócios, estruturações societárias levadas a termos com exclusivo propósito de economia tributária.

Dentre tais princípios destaca-se a função social da propriedade. Com efeito, a propriedade de cotas ou ações de uma sociedade empresária insere o seu titular em um contexto que transcende os limites da empresa. Nascem obrigações para com a sociedade, na medida em que esta também contribui para a manutenção e perpetuação da entidade empresarial.6

No ordenamento infraconstitucional, destaca-se a previsão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional – CTN, segundo o qual a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

A celeuma em torno deste dispositivo refere-se à sua parte final, que remete a procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Cremos, entretanto, que uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico permite conferir alguma eficácia ao texto legal.

Neste sentido, ganha relevância o disposto no artigo 113 do Código Civil, que insere a boa-fé como vetor interpretativo dos negócios jurídicos. Ainda na seara civilista, merecem menção os artigos 421 e 422 do Código, que, respectivamente, condiciona a liberdade contratual à função social do contrato e elege a probidade e a boa-fé como princípios a serem seguidos pelos contratantes em geral7.

Convém ainda mencionar o repúdio do ordenamento jurídico ao enriquecimento sem causa, veiculado no artigo 884 do Código Civil. Com efeito, sob o ponto de vista contábil, ao se evitar um custo (pagamento de tributos), estar-se-á auferindo um ganho.

Ora, se a economia tributária não decorre de fatores extra-tributários que a justifiquem, sendo apenas um fim em si mesma, temos que ela constitui enriquecimento sem causa, em desfavor de toda a coletividade.


Merece destaque ainda o artigo 50 do Código Civil, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Podemos concluir que o ordenamento jurídico, analisado de forma sistemática e finalista, repudia os atos e negócios jurídicos adotados em planejamentos tributários que não encerram em si qualquer propósito negocial.

É oportuno adentrarmos, portanto, no estudo do propósito negocial.

3 DO PROPÓSITO NEGOCIAL

A abordagem constitucional feita acima, no que se refere ao planejamento tributário, nos permite afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro não mais tolera uma discrepância entre a realidade e a formalidade dos atos jurídicos.

A formalidade jurídica há de ser expressão fidedigna da realidade. Dessa forma, partindo-se da premissa de que as sociedades empresárias buscam o auferimento de lucros, não se concebe a adoção de medidas em que a busca, ainda que mediata, por lucros não seja considerada.

Podemos garantir que “economia de tributos” não é objeto social de nenhuma empresa. Assim, na condução dos negócios, não há dúvidas de que tal economia possa licitamente ocorrer, mas há que decorrer do cumprimento do objeto social da sociedade.

O propósito negocial diz respeito, portanto, à condução dos negócios da sociedade empresária segundo posturas previsíveis ou admissíveis se considerado seu objeto social e sua atividade econômica tendente ao auferimento de lucros.

3.1 Origens do Instituto

A doutrina do propósito negocial (business-purpose doctrine) tem origem nos Estados Unidos e nasceu em um contexto de reestruturações societárias. Dentre seus fundamentos primordiais, pode-se destacar que a simples concordância com a letra da lei tributária é insuficiente para embasar uma economia tributária válida. (HOGROIAN, 2002, p. 1, tradução nossa).

Embora a doutrina tenha se desenvolvido inicialmente na tributação do imposto de renda (income taxation), não tardou sua extensão para outros tributos.

Vale salientar que, no direito americano, a doutrina do propósito negocial é normalmente conjugada com outras doutrinas (economicsubstance doctrine; step-transaction doctrine; sham-transaction doctrine e phantomcorporation doctrine). (Id., 2002, p. 2).

Parece-nos que a conjugação de tais teorias não possui outro propósito senão o de afastar, ou seja, desconsiderar, os atos ou negócios adotados com exclusivo propósito tributário e promover a tributação devida.Cremos que o fato de o instituto ter suas fontes em país de tradição na common law não o tornar incompatível, só por este motivo, com o direito brasileiro. Como vimos acima, há uma série de princípios constitucionais que se compatibilizam com os enunciados da teoria do propósito negocial, configurando verdadeiras cláusulas de abertura do nosso ordenamento ao instituto.

Os críticos do reconhecimento do propósito negocial em nosso ordenamento falam ainda em uma necessária e desejável inovação legislativa que discipline o instituto. Ocorre, porém, como mencionamos anteriormente, há uma série de exemplos em nosso direito de institutos cujo reconhecimento jurisprudencial precedeu a previsão legal.

Ademais, em nome de uma suposta segurança jurídica, corre-se o risco de enrijecer o novel instituto. Ao contrário, uma interpretação principiológica, sistemática e teleológica garante seu constante amadurecimento e conformação com o ordenamento em vigor.

3.2 A Identificação do Propósito Negocial em Transações. Elementos Indiciários de sua Ausência

Para nós, a ausência de propósito negocial em transações comerciais no âmbito de planejamentos tributários configura ofensa à ordem jurídica posta.

Tal premissa nos leva a defender que a verificação da presença do propósito negocial se dá de forma negativa, ou seja, há que ser provada a sua ausência e não a sua presença. Isso porque o ordinário se presume, enquanto o extraordinário se prova.

Em outras palavras, há presunção de que as transações e operações societárias ocorridas na atuação empresarial da sociedade guardem correspondência com o seu objeto social e que, portanto, encerrem um propósito negocial. Assim, a fiscalização tributária, havendo indícios do contrário, deve produzir provas que afastem essa presunção.

Todavia, é preciso atentar para a existência de indícios que denotam a ausência daquele propósito.

Interessante estudo divulgado recentemente demonstrou que a jurisprudência administrativa do então Conselho de Contribuintes atribui maior relevância a alguns elementos no julgamento da existência ou não de propósito negocial (SCHOUERI; FREITAS, 2010, p. 19).

O primeiro desses elementos diz respeito ao lapso temporal entre as operações do planejamento. Não tem boa acolhida entre os julgadores o planejamento feito às pressas, com a assinatura de uma gama de documentos em um mesmo momento.

O indício da ausência de propósito negocial repousa na inexistência de tempo hábil para que decisões tomadas em um primeiro momento, em uma primeira rodada de operações, surtam efeito. Assim, passa-se uma segunda rodada de transações sem qualquer decurso de prazo, denunciando a mera formalidade das decisões.

Outro elemento que se sobressaiu na consideração dos julgadores administrativos refere-se à interdependência entre as partes envolvidas, ou seja, as operações ocorrem entre sociedades coligadas.

Nestes casos, o indício baseia-se na ausência de efeitos econômicos perante terceiros, ficando as operações limitadas a um mesmo grupo econômico. Vale ressaltar que o simples fato de a operação se realizar entre parte vinculadas não quer dizer que há afronta à lei tributária.

Há ainda outro elemento que gera desconfiança dentre os julgadores. Trata-se de operações anormais, ou seja, que destoam da rotina empresarial da sociedade. Aqui, há uma maior probabilidade de que os motivos da transação sejam exclusivamente tributários.

Embora não apontado no estudo citado, cremos que operações em que uma das partes se localize em país com tributação favorecida (paraísos fiscais8) não são vistas com bons olhos pelos julgadores.

Nunca é demais lembrar que uma correta e justa resolução de situações conflituosas, nessa temática, passa obrigatoriamente por uma análise aprofundada das peculiaridades do caso concreto, bem como pelo sopesamento dos princípios e bens jurídicos em oposição.

3.3 O Propósito Negocial e o Ordenamento Jurídico Brasileiro – A Medida Provisória 66, de 2002

Conforme adiantamos acima, não há previsão expressa em nosso ordenamento jurídico do instituto propósito negocial.

Isso não impede, consoante já defendemos nos itens anteriores, o seu reconhecimento e aplicação em nosso direito, tendo em vista uma série de regras e princípios que o confirma entre nós.

Não podemos nos furtar, entretanto, da menção à Medida Provisória n° 66, de 29 de agosto de 2002. Esse instrumento normativo previa expressamente o instituto do propósito negocial como elemento cuja falta justifica a desconsideração do ato ou negócio jurídico.

A exposição de motivos9 que acompanhou a proposição da MP nº 66, de 2002, assim justificava:

11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já oferece tratamento específico.


12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios jurídicos que são passives de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito negocial.

13. Os conceitos adotados no projeto guardam consistência com os estabelecidos na legislação tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal.

14. Os arts. 15 a 19 dispõem sobre os procedimentos a serem adotados pela administração tributária no tocante à matéria, suprindo exigência contida no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.

O item 14 da exposição de motivos evidencia, ao lado da leitura da parte final do parágrafo único do art. 116 do CTN (“observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”), que a exigência de lei ordinária recai apenas quanto ao procedimento para desconsideração de atos ou negócios.

Em nenhum momento o Código Tributário exige lei ordinária que defina “propósito negocial”. Isso apenas corroborando nosso entendimento de que o instituto já se faz presente em nosso ordenamento, seja por inferência lógica ou por interpretações sistemáticas e teleológicas.

No texto da Medida Provisória, o tema foi tratado da seguinte maneira:

PROCEDIMENTOS RELATIVOS À NORMA GERAL ANTI-ELISÃO

Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subseqüentes.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

§ 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:

  1. falta de propósito negocial; ou
  2. II – abuso de forma.

§ 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.

§ 3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.

Art. 15. A desconsideração será efetuada após a instauração de procedimento de fiscalização, mediante ato da autoridade administrativa que tenha determinado a instauração desse procedimento.

Art. 16. O ato de desconsideração será precedido de representação do servidor competente para efetuar o lançamento do tributo à autoridade de que trata o art. 15.

§ 1º Antes de formalizar a representação, o servidor expedirá notificação fiscal ao sujeito passivo, na qual relatará os fatos que justificam a desconsideração.

§ 2º O sujeito passivo poderá apresentar, no prazo de trinta dias, os esclarecimentos e provas que julgar necessários.

§ 3º A representação de que trata este artigo:

  1. deverá conter relatório circunstanciado do ato ou negócio praticado e a descrição dos atos ou negócios equivalentes ao praticado;
  2. será instruída com os elementos de prova colhidos pelo servidor, no curso do procedimento de fiscalização, até a data da formalização da representação e os esclarecimentos e provas apresentados pelo sujeito passivo.

Art. 17. A autoridade referida no art. 15 decidirá, em despacho fundamentado, sobre a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados.

§ 1º Caso conclua pela desconsideração, o despacho a que se refere o caput deverá conter, além da fundamentação:

  1. descrição dos atos ou negócios praticados;
  2. discriminação dos elementos ou fatos caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos foram praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária;
  3. descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas de incidência dos tributos;
  4. resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou negócios equivalentes referidos no inciso III, com especificação, por tributo, da base de cálculo, da alíquota incidente e dos encargos moratórios.

§ 2º O sujeito passivo terá o prazo de trinta dias, contado da data que for cientificado do despacho, para efetuar o pagamento dos tributos acrescidos de juros e multa de mora.

Art. 18. A falta de pagamento dos tributos e encargos moratórios no prazo a que se refere o § 2º do art. 17 ensejará o lançamento do respectivo crédito tributário, mediante lavratura de auto de infração, com aplicação de multa de ofício.

§ 1º O sujeito passivo será cientificado do lançamento para, no prazo de trinta dias, efetuar o pagamento ou apresentar impugnação contra a exigência do crédito tributário.

§ 2º A contestação do despacho de desconsideração dos atos ou negócios jurídicos e a impugnação do lançamento serão reunidas em um único processo, para serem decididas simultaneamente.

Art. 19. Ao lançamento efetuado nos termos do art. 18 aplicam-se as normas reguladoras do processo de determinação e exigência de crédito tributário.

Ocorre, entretanto, que a disciplina acima não foi mantida quando a Medida Provisória foi convertida na Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002.

Para muitos, isso significou uma completa impossibilidade de desconsideração de atos e negócios jurídicos, bem como uma vedação à utilização do propósito negocial como elemento determinante da validade jurídica de transações comerciais.

Não pensamos assim. A exigência do propósito negocial, repita-se, é decorrência de nosso ordenamento, não necessitando de definição legal expressa para que exista.

Ademais, a valoração de atos e negócios jurídicos pode conduzir perfeitamente ao seu afastamento ou desconsideração em sede de julgamento no contencioso administrativo tributário e, com maior razão, pelo judiciário, tendo em vista o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV).

A conclusão não pode ser outra senão a de que uma previsão expressa no ordenamento jurídico acerca do propósito negocial é despicienda, embora seja aconselhável, segundo alguns, de forma a balizar a atuação do Fisco.

3.4 Normas Autorizadoras do Reconhecimento do Propósito Negocial como Requisito de Validade Fático-Jurídica de Operações Societárias no Contexto do Planejamento Tributário

O reconhecimento do propósito negocial como requisito da validade jurídica do planejamento tributária diz respeito sobretudo à conformação entre a realidade fática das relações comerciais e a formalidade jurídica.

No atual estágio do nosso constitucionalismo, conforme abordamos acima, sobressai o entendimento de que os direitos fundamentais irradiam seus efeitos para as relações privadas (SARMENTO, 2008), falando-se em uma eficácia horizontal daqueles direitos (SARLET, 2007).


Os planejamentos se realizam com a adoção de atos e negócios jurídicos realizados entre particulares, cujos efeitos são apresentados à administração tributária no intuito de obstar ou adiar a ocorrência do fato gerador. Sob esse enfoque, é propriamente essas relações entre particulares que devem observância aos direitos fundamentais.

No âmbito constitucional, podemos vislumbrar a exigência do propósito negocial como condicionante das transações comerciais em princípios como a função social da propriedade, a isonomia e, principalmente, na interpretação constitucional dada a institutos de direito privado.

Tais princípios já encontram reverberação em dispositivos infraconstitucionais recentes. Exemplo disso são os artigos 421 e 422 do Código Civil de 2002.

O artigo 421 condiciona a liberdade contratual à função social do contrato, enquanto o artigo 422 elege a probidade e a boa-fé como princípios a serem seguidos pelos contratantes em geral. Cremos não haver dúvidas de que essas regras se aplicam, por exemplo, aos contratos ou estatutos sociais de sociedade empresárias.

Assim, contratos ou estatutos sociais de “empresas veículo”, criadas como o exclusivo propósito de propiciar economia tributária mediante sucessivas operações societária, podem ser impugnados e a operações correlatas desconsideradas em razão do descumprimento da função social, da probidade e da boa-fé.

É de se notar, neste caso, que a probidade e a boa-fé hão de ser consideradas não entre as partes da operação, via de regra coligadas e em conluio, mas sim perante a coletividade, tolhida de recursos tributários ordinariamente devidos.

A previsão do artigo 884 do Código Civil igualmente autoriza o reconhecimento da exigência do propósito negocial em nosso direito.

Com efeito, o artigo em destaque repúdia o enriquecimento sem causa. Ora, se o contrato social ou o estatuto social elenca o objeto social, ou seja, as atividades empresariais a que se propõe a sociedade, é naqueles instrumentos que se encontra a forma (ou causa) para a geração de riquezas.

Como afirmamos acima, desconhecemos qualquer empresa que nomeie dentre seu objeto social “economizar tributos”. Assim, operações pautadas nesse único propósito fogem da normalidade empresarial listada em seu objeto social e, portanto, carecem de causa jurídica.

Considerando que, sob o ponto de vista contábil, a redução de um custo (pagamento de tributos) representa um ganho, a conclusão não pode ser outra senão que a economia tributária auferida em operações que não apresentem fatores extra-tributários, constitui enriquecimento sem causa.

Com isso, defendemos que a vedação ao enriquecimento sem causa contribui para o reconhecimento do propósito negocial em nosso ordenamento.

Por fim, em um exercício de interpretação sistemática do nosso ordenamento jurídico, vislumbra-se ainda autorização para o reconhecimento do propósito negocial como requisito de validade de operações societárias (fusões, cisões, incorporações) adotadas em planejamentos em normas que versam sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Citem-se aqui os artigo 50 do Código Civil e o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, a desconsideração da personalidade jurídica é possível ante a ocorrência de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, bem como quando houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Podemos concluir, portanto, pela existência de um robusto arcabouço jurídico que permite a aplicação do instituto do propósito negocial em nosso direito. O fato de sua constatação decorrer de fundamentação principiológica e sistemática não lhe retira a eficácia jurídica.

3.5 Da Jurisprudência Administrativa sobre o Tema

A jurisprudência administrativa sobre o tema parece estar sensível à interpretação constitucional na valoração e julgamento de planejamentos tributários.

Com efeito, os julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF10 tem demonstrado uma tendência pelo afastamento de planejamentos tributários que encerrem propósitos exclusivamente fiscais.

O julgado abaixo bem demonstra essa inclinação:

INCORPORAÇÃO DE EMPRESA. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO. NECESSIDADE DE PROPÓSITO NEGOCIAL. UTILIZAÇÃO DE “EMPRESA VEÍCULO”. Não produz o efeito tributário almejado pelo sujeito passivo a incorporação de pessoa jurídica, em cujo patrimônio constava registro de ágio com fundamento em expectativa de rentabilidade futura, sem qualquer finalidade negocial ou societária, especialmente quando a incorporada teve o seu capital integralizado com o investimento originário de aquisição de participação societária da incorporadora (ágio) e, ato contínuo, o evento da incorporação ocorreu no dia seguinte. Nestes casos, resta caracterizada a utilização da incorporada como mera “empresa veículo” para transferência do ágio à incorporadora.

(Data da Sessão: 05/12/2007; Relator: Aloysio José Percínio da Silva; Decisão: Acórdão 103-23290)

A falta de propósito negocial é ressaltada também no seguinte julgado:

IRPF – GANHO DE CAPITAL – ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS – SIMULAÇÃO – Constatada a desconformidade, consciente e pactuada entre as partes que realizaram determinado negócio jurídico, entre o negócio efetivamente praticado e os atos formais de declaração de vontade, resta caracterizada a simulação relativa, devendo-se considerar, para fins de verificação da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, o negócio jurídico dissimulado. A transferência de participação societária por intermédio de uma seqüência de atos societários caracteriza a simulação, quando esses atos não têm outro propósito senão o de efetivar essa transferência. Em tal hipótese, é devido o imposto sobre ganho de capital obtido com a alienação das ações.

(Data da Sessão: 25/05/2006; Relator(a): Pedro Paulo Pereira Barbosa; Nº Acórdão: 104-21610)

O repúdio ao descompasso entre a realidade fática e o mero formalismo jurídico pode ser apreendido no seguinte acórdão:

INCORPORAÇÃO DE SOCIEDADE. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO NA AQUISIÇÃO DE AÇÕES. SIMULAÇÃO. A reorganização societária, para ser legítima, deve decorrer de atos efetivamente existentes, e não apenas artificial e formalmente revelados em documentação ou na escrituração mercantil ou fiscal. A caracterização dos atos como simulados, e não reais, autoriza a glosa da amortização do ágio contabilizado.

(Data da Sessão: 28/05/2008; Relatora: Sandra Maria Faroni; Decisão: Acórdão 101-96724)

Nesta mesma linha, destacam-se os acórdãos:

DESPESAS COM REMUNERAÇÃO DE DEBÊNTURES. Restando caracterizado o caráter de liberalidade dos pagamentos aos sócios, decorrentes de operações formalizadas apenas “no papel” e que transformaram lucros distribuídos em remuneração de debêntures, consideram-se indedutíveis as despesas contabilizadas. DECORRÊNCIA. A decisão relativa ao lançamento principal (IRPJ) aplica-se, por decorrência, à exigência de CSLL.

(Data da Sessão: 19/05/2005; Relator(a): Sandra Maria Faroni; Nº Acórdão: 101-94986)

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO – Não se qualifica como planejamento tributário lícito a economia obtida por meio de atos e operações que não foram efetivas, não apenas artificial e formalmente revelados em documentação e/ou na escrituração. DECADÊNCIA – Decorridos mais de cinco anos do fato gerador, operou-se a decadência. Recurso voluntário provido e recurso de ofício negado em razão da decadência.

(Data da Sessão: 23/03/2006; Relator(a): Sandra Maria Faroni; Nº Acórdão: 101-95442)

Não se deve pensar que o CARF tem infirmado e afastado indiscriminadamente toda e qualquer operação que tenha propósitos elisivos. Há uma série de julgados reconhecendo a licitude, ou seja, a conformidade fático-jurídica de transações que representaram economia tributária.


Cite-se, a propósito, o seguinte julgado:

LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. SIMULAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. INOCORRÊNCIA. – Presente a relação negocial entre as partes contratantes, do que resulta celebração de negócio jurídico efetivo, afastada está a figura to jurídico simulado. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. RECURSO EX OFFICIO – Tendo o Julgador a quo ao decidir o presente litígio, se atido às provas dos Autos e dado correta interpretação aos dispositivos aplicáveis às questões submetidas à sua apreciação, nega-se provimento ao Recurso de Ofício.

(Data da Sessão: 16/10/2002; Relator(a): Sebastião Rodrigues Cabral; Nº Acórdão: 101-93983)

Com efeito, o que tem sido rechaçado pelos Conselheiros do CARF são planejamentos tributários com fortes indícios de descompasso entre a formalidade jurídica apresentada e o cursor corrente dos negócios das empresas.

Destaca-se, conforme afirmamos acima, a análise de indícios que demonstram tal descompasso. A proximidade temporal das operações, conforme abordado no Acórdão 103-23290, transcrito acima, a ligação societária entre as empresas envolvidas e a normalidade das atividades levadas a termo são exemplos dos indícios ponderados pelos julgadores.

A decisão a seguir destaca a anormalidade das operações adotadas pela empresa, destoando de sua prática comercial corriqueira:

IRPJ. CUSTOS E DESPESAS OPERACIONAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE CONTRATOS FUTUROS DE TAXAS DE CÂMBIO DE CRUZEIROS REAIS POR DÓLAR COMERCIAL. RESSARCIMENTO POR DESISTÊNCIA DE CONTRATO. Quanto uma empresa assina 150 contratos de promessa de compra e venda de dólar comercial, com empresas que não tem qualquer posição naquela moeda e nem tem capacidade econômica e nem financeira (microempresas, empresas de pequeno médio porte) e empresas não identificadas e, ainda, desiste da compra ou venda do dólar comercial e paga o ressarcimento (multa contratual) por desistência de contrato, estas operações não preenchem os requisitos de necessidade, normalidade e usualidade para serem apropriados como custos ou despesas operacionais, independentemente da imputação da simulação de contratos.

(Data da Sessão: 21/05/2002; Relator(a): Kazuki Shiobara; Nº Acórdão: 101-93826)

A análise da jurisprudência do CARF nos leva a concluir que seus julgadores parecem atentos à conformação entre a realidade comercial das empresas e a formalidade jurídica adotada em planejamentos tributários, exigindo a presença do propósito negocial para que estes sejam considerados hígidos.

Vemos com bons olhos essa inclinação jurisprudencial, na medida em que reflete a principiologia constitucional em vigor, que, decerto, irradia seus preceitos a todos os ramos jurídicos e a todos os atores estatais, públicos ou privados.

4 CONCLUSÃO

O atual estágio de nosso constitucionalismo, que tem como vértice o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, não mais permite o esvaziamento das promessas e tutelas feitas pelo texto constitucional.

Apontamos neste estudo a importância das receitas tributárias na realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Considerando que as políticas públicas visam à realização daqueles objetivos precípuos, que, afinal, buscam assegurar dignidade a todos, percebe-se a relevância das receitas oriundas da tributação como financiadora da promoção dos valores e bens constitucionais.

Identificamos, da mesma forma, vários princípios (livre iniciativa, propriedade privada, livre concorrência) que dão suporte ao direito de os contribuintes, mormente as sociedades empresárias, conduzir seus negócios de uma forma que minimize o impacto tributário em seus custos.

Ocorre que o direito acima delineado sofre limitações na própria ordem constitucional e infraconstitucional. Com efeito, demonstramos que a economia tributária decorrente de planejamentos tributários encontra seu limite jurídico em princípios como o da função social da propriedade, o da isonomia, da dignidade da pessoa humana, etc.

Demonstramos, baseado em atual e relevante doutrina, que não só o Estado, mas também os particulares, devem observância àqueles princípios fundamentais em suas relações privadas. Trata-se da chamada eficácia horizontal das normas constitucionais.

Sob esse enfoque, os particulares devem guardar certos limites na condução de suas atividades. Assim, as relações, negócios e operações societárias adotadas no contexto de planejamentos tributários, para serem consideradas válidas, devem ter correspondência na realidade fática. Somente desta forma, essas transações não ofendem normas constitucionais e infraconstitucionais.

A principiologia constitucional, aliada a uma interpretação sistemática e teleológica de nosso ordenamento jurídico, demonstra que aquelas operações que conduzem a uma economia de tributos devem ter como fator determinante um propósito negocial.

Destacamos neste estudo que a ausência do propósito negocial em operações elisivas ofendem ainda diversos dispositivos do Código Civil, mormente os que versam sobre a função social dos contratos, a boa-fé, a probidade e sobre a vedação ao enriquecimento sem causa.

Nesta contextualização normativa, concluímos como sendo desnecessária uma previsão legal expressa acerca do propósito negocial. De fato, a ordem constitucional e o arcabouço infraconstitucional, analisado sistematicamente, garantem a perfeita aplicação do instituto em nosso direito, embora sua origem remonte ao direito norte-americano.

A ausência de propósito negocial em operações que conduzem a uma economia tributária é aferida por indícios.

Assim, operações societárias realizadas sucessivamente em lapso temporal exíguo (horas, minutos), transações entre pessoas jurídicas coligadas ou, ainda, operações que escapam da normalidade da prática comercial de determinadas empresas, enfim, todos esses são indícios que podem e devem ser considerados na análise da validade de um planejamento tributário.

Por fim, demonstrou-se que a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, tem-se inclinado, conforme aqui defendido, pela consideração do propósito negocial como elemento necessário à manutenção de planejamentos tributários.

Notas

1 A Administração Pública também tem-se mostrado sensível à esses princípios, como se verifica no Parecer 1.503/2010 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que autoriza casais homoafetivos a declararem o companheiro (a) como dependente na declaração de imposto de renda.
2 Por todos, cite-se Recurso Especial nº 395.904 – RS (2001/0189742-2), publicado no DJ 06/02/2006, p. 365.
3 Em item próprio (3.6), abordaremos a atual jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, que mostram uma salutar tendência em considerar aspectos outros, que não apenas os meramente formais, na interpretações de normas e institutos jurídicos no contexto do planejamento tributário.
4 Por “constitucionalismo em vigor” entenda-se não só o texto da Constituição Federal de 1988 mas também a evolução na interpretação constitucional realizada sobretudo pelo STF.
5 Exemplo disso é o rateios do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e do Fundo de Participação dos Municípios, cujos critérios de repartição dos recursos visa à superação de desigualdades sociais (Lei Complementar nº 62, de 28 de dezembro de 1989).
6 Em cenários de turbulência econômica se evidencia que o socorro estatal a empresas privadas é custeado por toda a sociedade. Fala-se em “privatização dos lucros” e em “socialização dos prejuízos”.
7 Aprofundaremos a análise destes artigos quando da abordagem das normas autorizadoras do reconhecimento do propósito negocial como requisito de validade de operações societárias (Item 3.4).
8 A lista dos países considerados como tal é dada pela IN RFB nº 1.037, de 04 de junho de 2010.
9 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2002/211-MF-02.htm. Acesso em: 19 ago. 2010
10 Antigo Conselho de Contribuintes, com novos contornos atribuídos pela Portaria MF n° 256, de 22 de junho 2009.


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Incentivos fiscais em tempos de crise: Impactos econômicos e reflexos financeiros

Autor: Matheus Carneiro Assunção, Bacharel em Direito pela UFPE, Bacharel em Administração pela UPE, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV, Pós-graduado em Direito Tributário pela USP, Mestrando na área de Direito Financeiro pela USP, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Procurador da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O presente artigo busca analisar os reflexos econômicos e financeiros dos incentivos fiscais concedidos pelo Governo Federal durante a crise internacional de 2008, bem como os impactos de tais medidas no federalismo fiscal brasileiro. O estudo também procura identificar a ligação entre os objetivos constitucionais que autorizam a intervenção do Estado sobre o domínio econômico e as desonerações tributárias realizadas no ápice dos efeitos da crise, quando ondas de incertezas no mundo geraram fortes retrações na produção e na demanda doméstica. Por fim, pretende evidenciar os reflexos das medidas anticíclicas adotadas entre 2008 e 2009 no sistema de repartição de receitas tributárias, especialmente os desequilíbrios nas finanças públicas de entes federados.

1 Introdução

A crise financeira desencadeada em 2008 empurrou os mercados globalizados em queda livre1. Atirado no mar de tormentas do capitalismo contemporâneo, o Brasil precisou adotar medidas céleres para conter os efeitos danosos da retração econômica, através da implementação de políticas anticíclicas. Nesse sentido, foram concedidos diversos incentivos fiscais pelo Governo Federal, no fito de fomentar a reconstrução das demandas domésticas negativamente afetadas, de maneira a garantir a continuidade do desenvolvimento nacional. A intervenção estatal, mais do que necessária, revelou-se vital.

Todavia, em função do modelo de repartição de receitas tributárias previsto na Constituição de 1988, as desonerações fiscais utilizadas para conter a crise acabaram produzindo reflexos financeiros negativos para os entes federados, comprometendo o equilíbrio de contas públicas e a continuidade de programas sociais, especialmente nos pequenos municípios.

O presente estudo busca analisar, de um lado, os impactos econômicos dos incentivos fiscais editados no contexto da crise internacional, identificando em que compasso podem ser empregados para promover o desenvolvimento nacional, bem como os parâmetros jurídicos que permitem o seu controle. De outro lado, pretende cotejar os reflexos financeiros dessas medidas no arranjo de partilhas característico do federalismo fiscal brasileiro.

Inevitavelmente, toda crise chega ao fim, mas não sem deixar marcas, tanto positivas quanto negativas. Algumas são claramente perceptíveis; outras exigem exames com lupas de maior alcance, não apenas focadas no campo da visão tributária, mas também econômica e financeira. Procuraremos, nas linhas seguintes, examinar algumas dessas marcas, com lentes multifocais.

2 Intervenção do Estado sobre o domínio econômico

O intervencionismo estatal é fenômeno concernente ao exercício de uma ação sistemática sobre a economia, “estabelecendo-se estreita correlação entre o subsistema político e o econômico, na medida em que se exige da economia uma otimização de resultados e do Estado a realização da ordem jurídica como ordem do bem-estar social”2. Pode ocorrer de forma direta ou indireta. Na intervenção direta, o Estado assume o exercício de atividades econômicas. Na indireta, age através da direção ou controle normativo3. A modalidade indireta, assim, configura uma “intervenção exterior, de enquadramento e de orientação que se manifesta em estímulos ou limitações, de vária ordem, à actividade das empresas”.4

Ensina Eros Roberto Grau5 que a intervenção do Estado pode se dar: (i) por absorção ou participação; (ii) por direção; (iii) por indução. A primeira hipótese representa uma intervenção no domínio econômico, ou seja, no âmbito de atividades econômicas em sentido estrito, atuando o Estado em regime de monopólio (intervenção por absorção) ou de competição (intervenção por participação). As duas outras hipóteses consubstanciam modalidades de intervenção sobre o domínio econômico, desenvolvendo o Estado o papel de regulador.

Através das normas de indução, o Estado “privilegia determinadas atividades em detrimento de outras, orientando os agentes econômicos no sentido de adotar aquelas opções que se tornarem economicamente mais vantajosas”6, mas não fixa sanções pela não-adesão à hipótese estimulada. Entretanto, o incentivo ao comportamento sugerido tende a ser bastante atrativo, na medida em que gera posições de vantagem no mercado para os agentes econômicos alcançados pelo comando normativo, o qual pode prever diferentes espécies e níveis de estímulos.

É no campo da intervenção por indução que o Estado pode se valer da política fiscal para alcançar finalidades específicas, “com a concessão de incentivos fiscais setoriais ou regionais, utilizando a maior ou menor incidência de carga tributária como mecanismo redutor de custos e estimulador de atividades econômicas”.7 Tais finalidades, porém, devem ter amparo na Constituição. Afinal, são nos valores por ela albergados que encontra ressonância a própria justificativa da intervenção estatal.

Vale ressaltar que a Constituição de 1988 prevê, em seu art. 170, que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social8. A ação do Estado sobre o domínio econômico, com efeito, não poderá olvidar tais fundamentos, e deverá pautar-se nos princípios e objetivos fixados no texto constitucional, dentre os quais a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inciso VII), a busca do pleno emprego (art. 170, inciso VIII) e a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II).

Embora referidos princípios e objetivos sejam dotados de elevado grau de abstração e generalidade, o que dificulta o controle finalístico da medida interventiva, constituem cânones a subsidiar o intérprete. Intervenções estatais despropositadas, em afronta à igualdade ou à proporcionalidade, não podem ser toleradas no contexto de um Estado Democrático e Social de Direito.

A face geralmente oculta da tributação – a desoneração fiscal – pode ser um eficiente instrumento de intervenção indutora do Estado, com vistas à promoção do desenvolvimento econômico. Mas cabe ressalvar: o uso desse instrumento deve atentar para as molduras traçadas pela Constituição, uma vez que a eficiência econômica, por si mesma, não legitima as ações estatais9.

3 Extrafiscalidade

Os tributos, além de terem a função arrecadatória de receitas para a manutenção do Estado, apresentam funções redistributiva e regulatória10. Podem, assim, oportunizar desde a redução de desigualdades sociais à regulação de mercados. Nesse sentido, a principal finalidade de muitos tributos “não será a de instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada”11.

Por meio da tributação (e da desoneração), possibilita-se ao Estado intervir sobre o domínio econômico de forma indireta, induzindo a adoção de determinados comportamentos. É a vertente da extrafiscalidade. Nas palavras de Geraldo Ataliba, a extrafiscalidade se configura pelo “emprego deliberado do instrumento tributário para finalidades não financeiras, mas regulatórias de comportamentos sociais, em matéria econômica, social e política”.12 Segue esta mesma linha o pensamento de Raimundo Bezerra Falcão, para quem “a extrafiscalidade é atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para o seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou re-ordenar a economia e as relações sociais”.13

Explica José Casalta Nabais14 que a extrafiscalidade pode ser traduzida no conjunto de normas que tem por finalidade dominante a consecução de resultados econômicos ou sociais, por meio da utilização do instrumento fiscal, e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas. De acordo com os ensinamentos de Roque Antonio Carrazza, a extrafiscalidade se caracteriza “quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir contribuintes a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”.15

As exações e desonerações tributárias, desse modo, se colocam como ferramentas para o incentivo ou coibição de condutas por parte dos destinatários normativos, contribuindo para a realização – ou até realizando diretamente – finalidades propugnadas pela Constituição Federal.16 Quando as exonerações são utilizadas para incentivar condutas que promovem a efetivação de objetivos constitucionais, com impactos no seio social, justifica-se a extrafiscalidade17. São esses objetivos e finalidades, em síntese, que legitimam a intervenção estatal.


Nota-se, porém, que o conceito de extrafiscalidade está relacionado a características não-arrecadatórias, isto é, não-fiscais, dos tributos. O próprio prefixo “extra” é indicativo dessa alusão “para além”, ou seja, de exceção ao padrão da simples fiscalidade. A distinção entre fiscalidade de extrafiscalidade, neste compasso, repousaria na finalidade da norma tributária. Tributos de cunho fiscal seriam instrumentos de arrrecadação, enquanto tributos extrafiscais seriam preponderantemente mecanismos de intervenção na ordem econômica e social18.

Todavia, conforme adverte Alfredo Augusto Becker19, na construção dos tributos não se ignora o finalismo extrafiscal, nem se esquece o fiscal, pois ambos coexistem: há apenas maior ou menor prevalência deste ou daquele finalismo. A presença de uma dessas finalidades não exclui necessariamente a outra. Mesmo tributos de caráter eminentemente arrecadatório, como o Imposto sobre a Renda, podem ser alterados com finalidades extrafiscais.

Com base na lição de Klaus Vogel, que identifica nas normas tributárias a função de distribuir a carga tributária (conforme critérios de justiça distributiva), a função indutora e a função simplificadora, Luís Eduardo Schoueri defende ser a extrafiscalidade gênero, do qual seriam espécie as normas tributárias indutoras20. Tais normas visam a alcançar determinadas finalidades, demandando do intérprete o cotejamento de elementos extratextuais, como o contexto histórico e econômico em que editadas. Daí a pertinência do método teleológico.

O método teleológico tem por escopo “apanhar a função de cada dispositivo legal dentro da estrutura da ordem jurídico-tributária e em seu relacionamento com as demais partes da ordem jurídica”21. Essa forma de interpretar o Direito parte da premissa de que é sempre possível atribuir um dado propósito às normas. Seu movimento interpretativo, conforme explica Tercio Sampaio Ferraz Jr., “parte das conseqüências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema”22. Nesse giro, considerações econômicas podem ser levantadas em sustentação do alcance de determinada finalidade pela norma jurídica tributária.

Com efeito, é possível afirmar que finalidades inerentes à estrutura de normas tributárias indutoras formam um substrato axiológico que não se pode ignorar. A circunstância de carecerem de positivação expressa não deve conduzir ao absurdo de negá-las23. Cabe ao intérprete avaliar, com base no método teleológico, a compatibilidade entre tais finalidades e o sistema constitucional.

4 Conceito, modalidades e efeitos dos Incentivos Fiscais

O Decreto n. 2.543A, de 05/01/1912, que estabelecia “medidas destinadas a facilitar e desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da maniçoba e da mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraída dessas árvores”, prevendo a isenção de impostos de importação, prêmios para aqueles que fizessem plantações regulares e inteiramente novas, além de outros incentivos, talvez tenha sido a experiência pioneira em da instituição de medidas de intervenção por indução no Brasil24. Já nesse momento se percebe a tendência de utilização de incentivos fiscais para o alcance de objetivos econômicos.

Desde tal antecedente histórico até os dias atuais, foram inúmeros os incentivos fiscais criados para viabilizar intervenções sobre o domínio econômico. Mas o que caracteriza esses instrumentos? Qual, afinal, a ideia por trás dos incentivos fiscais?

Numa concepção ampla, incentivos fiscais são medidas que estimulam a realização de determinada conduta25. Nesse sentido, “a concessão de incentivos fiscais se insere como instrumento de intervenção no domínio econômico a fim de que se possam concretizar vetores e valores norteadores do Estado”26.

De forma mais restritiva, parcela da doutrina entende que os incentivos constituem “medidas fiscais que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, aplicadas pelo Governo Central com a finalidade de desenvolver economicamente uma determinada região, ou um determinado setor de atividade”27. Seriam, portanto, incentivos fiscais “todas as normas que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, com a finalidade de estimular o desenvolvimento econômico de determinado setor de atividade ou região do país”28.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal seguiu esse conceito ligado à ideia de exclusão do crédito tributário, no julgamento dos Recursos Extraordinários n. 577.348 e 561.485, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandoski, o qual asseverou em seu voto condutor que “incentivos ou estímulos fiscais são todas as normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário”29.

Entretanto, não são apenas os casos de exclusão do crédito tributário30 que podem configurar incentivos fiscais. O conceito de incentivos fiscais abrange também outras formas de desoneração, como a redução de alíquotas ou mesmo a postergação do prazo de recolhimento de determinada exação.

A técnica da “alíquota zero” é ontologicamente diversa da isenção, e também se insere na categoria dos incentivos fiscais. Ao se estabelecer a alíquota de 0%, ocorre a nulificação do montante devido a título de tributo, em virtude de uma operação matemática de multiplicação. Isso não significa que o produto seja isento, mas apenas que sua alíquota foi fixada em valor nulificante. O resultado da conta, de qualquer modo, é notoriamente um incentivo.

Conforme definição de Rubens Gomes de Souza, um dos idealizadores do Código Tributário Nacional – CTN, a isenção é “favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido”31. Pressupõe, portanto, a existência de um “tributo devido”, de acordo com a lógica que guiou a redação do art. 175 do CTN.

Com a aplicação de alíquota zero, sequer chega a existir tributo devido, pois o valor resultante da incidência tributária é nulo. Na prática, o resultado financeiro é equivalente a uma isenção, porém as premissas teóricas são distintas. E é precisamente essa distinção que assegura a inaplicabilidade das restrições fixadas no art. 150, §6º, da Constituição Federal32 nos casos de alterações, pelo Poder Executivo, das alíquotas do Imposto de Importação, do Imposto de Exportação, do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, e do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos e Valores Mobiliários – IOF, com fundamento no art. 153, §1º, da Lei Maior33.

Enquanto a outorga de isenção de referidos tributos depende de lei específica, a alteração de alíquotas pode ser realizada por simples decreto do Poder Executivo, permitindo uma maior flexibilidade e agilidade normativa em matéria de regulação econômica através de políticas fiscais. Nesse mesmo viés, o art. 14, §3º, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal, exclui alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição da obrigatoriedade de estimativa prévia do respectivo impacto orçamentário-financeiro.

Tampouco se pode enquadrar a concessão de créditos tributários ou diferimentos de prazos para recolhimento na noção de “exclusão” de crédito. No entanto, é inegável que esses estímulos se amoldam à ideia de incentivo fiscal. Assim como ocorre com a redução da base de cálculo ou a concessão de isenção, o mecanismo de creditamentos gera para o particular, ao final, um saldo menor de despesas com o pagamento de obrigações tributárias. O adiamento do prazo para adimplemento de tais obrigações (moratória) também é uma espécie de vantagem operada no lado da arrecadação, pois o custo da postergação (juros e correção monetária) é assumido pelo Estado. Da mesma forma, anistias (perdão legal de infrações) e remissões34 (dispensa do pagamento de débitos tributários) podem ser adotados como espécies de incentivos fiscais.

Nessa perspectiva, pode ser considerado incentivo fiscal qualquer instrumento, de caráter tributário ou financeiro, que conceda a particulares vantagens passíveis de expressão em pecúnia, com o objetivo de realizar finalidades constitucionalmente previstas, através da intervenção estatal por indução. Essas vantagens podem operar subtrações ou exclusões no conteúdo de obrigações tributárias, ou mesmo adiar os prazos de adimplemento dessas obrigações. É possível, ainda, que autorizem transferências diretas destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, como acontece nas hipóteses previstas no art. 12, §3º, da Lei nº. 4.320/6435 (subvenções).

As subvenções e os subsídios, a nosso ver, configuram incentivos financeiros, implementados no lado das despesas do Estado, e não da arrecadação tributária. As demais hipóteses acima mencionadas se enquadram como incentivos tributários. De toda sorte, tais instrumentos (incentivos tributários e incentivos financeiros) são muitas vezes cambiáveis entre si, sendo um problema secundário a forma que adquirem. O que realmente acaba importando, seja para os agentes no mercado, seja para as finanças públicas, é a expressão pecuniária resultante do benefício, bem como sua eficiência para o sistema econômico36. Por representarem perda voluntária de receitas públicas, sua concessão deve estar devidamente lastreada em finalidades constitucionais, sob pena de malferir os próprios fundamentos da intervenção sobre a ordem econômica.

5 Parâmetros de controle

Incentivos fiscais se afirmam como instrumentos indutores de comportamentos voltados ao alcance de objetivos constitucionalmente estipulados como relevantes no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito. Nessa medida, sua utilização deve conciliar-se com a busca do bem comum, ditando-se por considerações de interesse coletivo, como a promoção do desenvolvimento econômico37.


O papel promocional dos incentivos fiscais, segundo a lição de Heleno Tôrres, consiste precisamente no “servir como medida para impulsionar ações ou corretivos de distorções do sistema econômico, visando a atingir certos benefícios, cujo alcance poderia ser tanto ou mais dispendioso, em vista de planejamentos públicos previamente motivados”A análise da legitimidade da concessão de benefícios fiscais fundamenta-se na verificação das finalidades da medida, e na sua pertinência com relação aos valores refletidos no texto constitucional. Será legítimo o incentivo fiscal concedido sob o amparo de desígnios constitucionais, como instrumento de promoção de finalidades relevantes à coletividade. Por via transversa, será ilegítimo (e, portanto, odioso) o benefício que se destinar a privilegiar pessoas ou situações específicas, em detrimento do princípio da igualdade; ou que não guarde pertinência com os objetivos constitucionais autorizadores da intervenção do Estado sobre a economia.

Com arrimo em Misabel Derzi, ressalta Schoueri38 que representam privilégios intoleráveis aqueles incentivos fiscais que, não fiscalizados em seus resultados, se estendem excessivamente no tempo, ou servem à concentração de renda ou proteção de grupos economicamente mais fortes, em detrimento da maioria da população, à qual são transferidos seus altos custos sociais.

O ordenamento jurídico, de fato, não se coaduna com privilégios odiosos. A concessão de incentivos fiscais que não sejam compatíveis com as finalidades constitucionais que fundamentam a intervenção estatal por indução é perfeitamente suscetível de controle jurisdicional. Contudo, quais parâmetros podem ser utilizados para avaliar essa compatibilidade?

A norma tributária indutora não pode ir além do ponto necessário para alcançar os objetivos constitucionais que a lastreiam. Tampouco deve ser editada sem prévia análise econômica da sua potencial eficiência na busca dos fins pretendidos pelo Estado. Precisa, enfim, observar a regra da proporcionalidade na intervenção econômica39.

O exame da proporcionalidade é realizado com base em três elementos, que se relacionam subsidiariamente entre si: (i) adequação; (ii) necessidade; (iii) proporcionalidade em sentido estrito. Um meio é considerado adequado quando for apto para promover o alcance de um determinado resultado40. Se implicar restrições a direitos fundamentais, somente será considerado necessário “caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”41. Por último, verifica-se a proporcionalidade em sentido estrito a partir de um juízo de ponderação acerca da intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da efetivação do direito que com ele colide, e que lastreia a adoção da medida42.

Além da proporcionalidade, a igualdade estrutural é também parâmetro para o controle da compatibilidade dos incentivos fiscais com o sistema constitucional. Para que haja observância ao princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal43), a medida de comparação eleita para realizar diferenciações deve manter relação fundada de pertinência com a finalidade que lastreia sua utilização, com base em suportes empíricos consideráveis44. Significa que se deve comprovar que o critério de distinção elegido fomenta a finalidade visada, em maior medida do que outros critérios possíveis. Essa finalidade precisa ser clara e coerente, já que é dever do Estado tratar a todos igualmente45, e apenas são admissíveis distinções se existirem motivos razoáveis.

Diante da necessidade de observância ao princípio da igualdade, o tratamento diferenciado em matéria tributária, decorrente da utilização de instrumentos extrafiscais, apenas será considerado legítimo quando: (i) não configurar irrazoável benefício individual; (ii) estiver ancorado em finalidade constitucional; (iii) decorrer de fator de discriminação e medida de comparação adequados.46

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é escassa no que tange a verificações aprofundadas dos critérios de controle das normas tributárias indutoras. Num primeiro momento, em precedentes da década de 1990, o STF evitou adentrar no mérito de medidas extrafiscais, afirmando serem atos discricionários do Poder Público. Na análise do Recurso Extraordinário n. 149.659, julgado em 1995, a Corte entendeu que a isenção “decorre do implemento de política fiscal e econômica, pelo Estado, tendo em vista determinado interesse social; envolve, assim, um juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo”47, não estando sujeita a controle material pelo Poder Judiciário. Nada obstante a premissa da discricionariedade do ato, já naquela época o Supremo Tribunal Federal consignou a necessidade de legitimação das isenções, que se destinam “a partir de critérios racionais, lógicos e impessoais estabelecidos de modo legítimo em norma legal, a implementar objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota da extrafiscalidade”48.

O STF também observou a via de mão dupla das normas tributárias indutoras, ou seja, a possibilidade de tais instrumentos serem utilizados para induzirem positiva ou negativamente comportamentos. Na hipótese de aumento de alíquotas de IPI sobre cigarros, destacou o Ministro Cezar Peluso a viabilidade da função inibidora, presente nos tributos de caráter extrafiscal proibitivo, refletido na elevada alíquota do IPI, com o nítido viés de desestímulo por indução na economia49.

De outra banda, examinando isenção fiscal de IPI sobre o açúcar de cana, concedida com base em critério espacial (art. 2º da Lei nº. 8.393/91), o STF reconheceu a ausência de conteúdo arbitrário na aludida norma tributária, afirmando que a sua concessão pela União Federal objetivou conferir efetividade ao art. 3º, incisos II e III, da Constituição da República. Ressaltou, ainda, que tal benefício pôs em relevo a função extrafiscal do IPI, “utilizado como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais”50. Tal precedente ilustra de forma clara a possibilidade de normas tributárias indutoras, como isenções sobre o IPI, serem utilizadas como instrumentos de promoção do desenvolvimento. O parâmetro de controle desses instrumentos acenado pelo STF seria a eventual arbitrariedade do Poder Público na sua concessão.

Todavia, pode ser tarefa extremamente difícil avaliar o grau de arbitrariedade de um benefício fiscal conjuntural. Por vezes, normas tributárias indutoras são empregadas com lastro em critérios de eficiência econômica, e não de justiça distributiva. Exemplos disto são os incentivos dirigidos a setores específicos durante a crise internacional, pautados em visões macroeconômicas sobre o comportamento da demanda doméstica e dos investimentos das empresas, e não na busca da equidade ou justiça social.

Tendo em vista que os incentivos fiscais se sujeitam rigorosamente aos ditames da Constituição, “devem ser concedidos a partir de análises técnicas da economia, que deve fornecer ao direito instrumentos úteis de busca das soluções para os problemas sociais”.51 Daí o papel de relevo do sistema econômico para o Direito Tributário. A partir de elementos objetivos da Economia é que se torna possível avaliar a adequação da intervenção indutora projetada, e consequentemente sua compatibilidade com o ordenamento constitucional. Essa adequação está relacionada à efetividade da medida jurídica, ou seja, à sua potencial capacidade de produzir os efeitos econômicos desejados. Quanto menor for a efetividade, menor o grau de adequação, e maior o desnível em relação ao objetivo constitucional que confere legitimidade à intervenção estatal. Caso esse grau de adequação revele assimetrias incompatíveis com os propósitos econômicos da intervenção, indicando a desproporção da medida adotada, a norma tributária indutora deverá ser retirada do sistema jurídico.

De modo semelhante, também deverá ser retirada do sistema a norma tributária indutora que viole o princípio da igualdade, concedendo benefício singular e irrazoável, ou elegendo medida de comparação ou fator de discriminação inadequados às finalidades constitucionais que fundamentam a indução econômica.

6 Impactos econômicos das medidas anticíclicas utilizadas pelo Governo

Em outubro de 2008, a economia americana desabou brutalmente, em virtude da total ruptura de confiança do mercado financeiro. Rapidamente, como um “efeito dominó”, o pânico se alastrou pelo mundo. Já não se podia acreditar na solidez dos bancos. Diante de um cenário de incertezas, o crédito tornou-se escasso, abalando o consumo.

Com a diminuição do consumo das famílias e dos investimentos das empresas, vigas estruturais do crescimento econômico, os números do Produto Interno Bruno – PIB são afetados, aumentando ainda mais o temor de recessões. Esse temor ocasiona efeitos prejudiciais na concessão de crédito. O resultado: menos dinheiro disponível, menos gastos, menos produção, menos crescimento, menos emprego. Os efeitos negativos de uma crise de confiança geram efeitos ainda mais negativos, e incertezas ainda maiores. É necessário agir rápido para evitar que esses efeitos não contaminem todos os setores da economia.

A redução da demanda doméstica tende a afetar bastante os setores industriais, principalmente o automotivo e o setor de bens de capital (relacionado a investimentos empresariais), os quais dependem diretamente da oferta de financiamentos. Em face do aumento do custo do crédito, provocado pelas incertezas da crise financeira, reduz-se o interesse pela aquisição de bens industrializados de alto valor, como os automóveis. De outra banda, empresas que dependem diretamente de financiamentos também passam a conter seus investimentos. A consequência é o abalo direto nos índices econômicos que medem o desempenho da indústria.


De fato, a crise intensificou a retração da indústria brasileira. No mês de dezembro de 2008, foi registrada desaceleração de 12,4% frente ao mês anterior, de acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sendo o pior resultado da série histórica, iniciada em 1991, influenciado principalmente pelo setor automobilístico, cuja produção caiu 39,7%52.

Diante desse cenário temeroso, medidas de estímulo à demanda interna são remédios indispensáveis. Dentre os instrumentos possíveis, a concessão de incentivos fiscais se destaca pela maleabilidade, celeridade e eficiência com que pode ser manejada pelo Poder Executivo, visando à retomada do crescimento econômico.

A possibilidade de estímulos na demanda agregada sob a forma de incentivos fiscais serem vistos como fonte de recuperação econômica foi analisada extensivamente por economistas norte-americanos após a crise de 1929. Pesquisas realizadas na década de 1940 já apontavam que a política fiscal revelou-se um efetivo instrumento de revigorar o fôlego da economia afetada pela crise53.

Uma das recomendações do Fundo Monetário Internacional, no tocante ao contorno da crise deflagrada em 2008, foi a promoção de medidas de estímulo fiscal até determinada data (como a redução de impostos sobre consumo durante um período certo)54. Instrumentos fiscais anticíclicos devem, a princípio, ter impacto transitório, sendo revistos tão logo a economia apresente os sinais de recuperação esperados.

Foi esse o principal caminho adotado pelo Brasil, por meio da redução das alíquotas de tributos com acento extrafiscal, notadamente o IPI e o IOF.

O IPI apresenta características que “o tornam adaptável às flutuações da política, das finanças, da conjuntura nacional e, até internacional”55. Pode ser manejado extrafiscalmente com bastante flexibilidade, em virtude previsão do art. 153, §1º, da Constituição.

Com o objetivo de aumentar a demanda interna os investimentos, evitando maiores retrações na produção industrial, as quais afetam o nível de emprego e as taxas de crescimento do país, foi promovida redução temporária (por prazo determinado) do IPI sobre veículos56, eletrodomésticos da linha branca, materiais de construção e bens de capital57. Paralelamente, reduziu-se a alíquota do IOF sobre crédito direto a pessoa física, no escopo de estimular a sua concessão58. Demais disso, alterouse a tabela do IRPF59, criando-se novas alíquotas, o que pragmaticamente implicou diminuições no valor final pago a título do imposto, aumentando de forma indireta o poder de consumo das famílias.

Se, por um lado, a redução de alíquotas do IPI apresenta função anticíclica típica, tendo sido concedida por tempo determinado e com gradual retorno após a verificação das condições econômicas que objetivavam promover, o mesmo não se pode afirmar com relação à alteração das faixas de incidência e novas alíquotas do IRPF, que configura medida anticíclica atípica, de efeitos permanentes.

A estimativa de renúncia de receitas tributárias decorrente de ações anticíclicas durante a crise, para o ano de 2009, foi inicialmente avaliada pelo Governo em 3.342 bilhões.60 As desonerações fiscais concedidas, destinadas a setores produtivos específicos e faixas de renda com capacidade de consumo, embora tenham gerado elevadas renúncias de receitas tributárias, contribuíram decisivamente para a frenagem dos efeitos negativos da crise no Brasil. A redução do preço final ao consumidor, em decorrência da aplicação de alíquotas menores do IPI (até zero), ocasionou um incremento nas vendas e, por conseguinte, na produção, evitando quedas acentuadas no nível de emprego. Nos meses de março e junho de 2009, quando os benefícios se encerrariam, houve intenso aumento nas vendas dos produtos alcançados pelas medidas indutoras. Automóveis e caminhões novos tiveram o melhor mês de março da história das montadoras no país, com um aumento de 36% em comparação com fevereiro de 2008, segundo dados da Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores61. Se não houvesse a desoneração, as quedas nas vendas de veículos provavelmente afetariam bastante a arrecadação dos Estados e Municípios, já que o volume do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores tenderia a ser significativamente menor.

Ademais, estima-se que a redução do IPI contribuiu para manter entre 50 mil e 60 mil empregos diretos e indiretos na economia brasileira no primeiro semestre de 200962. A demanda doméstica acabou sendo a indutora do crescimento em 2009 e no primeiro trimestre de 2010, principalmente pela menor afetação do consumo das famílias durante a crise, em face desonerações tributárias concedidas63.

As normas tributárias indutoras estruturadas durante a crise tiveram a importante função de estimular o crescimento econômico, por meio da redução do custo de impostos incidentes sobre o consumo, impulsionando a compra de bens de capital, automóveis e eletrodomésticos, de molde a incrementar os níveis da demanda doméstica. Contribuíram, assim, para a equalização das distorções provocadas no mercado em virtude da crise de crédito e da retração do consumo.

Percebe-se que, além de constituírem meios adequados (proporcionais) à promoção das finalidades constitucionais que embasaram a intervenção do Estado sobre o domínio econômico, as normas tributárias indutoras utilizadas pelo Governo para conter a crise se revelaram eficientes no alcance de seus objetivos. Tanto que geraram um aumento histórico da demanda nos setores alcançados pelos incentivos.

Por outro lado, constata-se que os benefícios concedidos não incorreram em afronta ao princípio da igualdade, uma vez que: (i) não denotam privilégios odiosos, pois foram destinados em caráter temporário, com objetivos de curto prazo claros e delimitados, aos setores mais prejudicados com a contração da demanda, e cujo impulso ocasionaria resultados econômicos potencialmente positivos; (ii) ancoram-se em finalidades constitucionais de promoção do desenvolvimento nacional e de busca do pleno emprego; (iii) elegeram fatores de discriminação e medida de comparação adequados a uma política fiscal anticíclica, que escalonou como metas prioritárias a retomada dos investimentos das empresas, o crescimento da demanda doméstica relacionada à indústria, e o estímulo ao crédito. O foco no setor automobilístico, de eletrodomésticos e de bens de capital se justifica em face dessas metas de curto prazo, de caráter políticoeconômico, e não a partir de considerações de justiça distributiva.

A compatibilidade com a regra da proporcionalidade e com o princípio da igualdade não significa, porém, a ausência de reflexos financeiros negativos das medidas adotadas pelo Governo Federal sobre o equilíbrio das finanças públicas dos entes subnacionais. Este equilíbrio, por sua vez, é fundamental para que possa ser garantido o desenvolvimento econômico nacional de modo harmônico na federação brasileira. Daí porque a correção de assimetrias financeiras negativas, decorrentes do uso de normas tributárias indutoras, se revela indispensável para a preservação da compatibilidade das medidas extrafiscais com as finalidades constitucionais que as lastreiam.

7 Reflexos financeiros dos incentivos fiscais concedidos durante a crise

Os incentivos fiscais oferecidos em virtude da crise financeira de 2008 alteraram substancialmente a arrecadação do IPI e do IR. Apenas em relação ao IPI, principalmente em virtude das medidas propostas pelo Governo no ano de 2009, houve decréscimo de aproximadamente 7,7 bilhões de reais na arrecadação líquida, 22% a menos do que em 200864. No primeiro trimestre de 2009, a diferença para o mesmo período do ano anterior foi cerca de 1,2 bilhões de reais a menos. Além disso, calcula-se a alteração da tabela de alíquotas do IRPF tenha gerado uma diminuição de quase R$ 520 milhões na arrecadação do primeiro trimestre de 2009, relativamente ao ano de 200865. De acordo com estudos do Ministério da Fazenda, as desonerações estimadas para o IRPF foram da ordem de 5 bilhões de reais66.

Essa diminuição abrupta da arrecadação tributária relacionada ao IPI e ao IR impactou sensivelmente nos valores das transferências constitucionais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. É que, conforme a previsão do art. 159 da Constituição Federal, parcelas do produto da arrecadação do IR e do IPI devem ser destinados aos entes subnacionais, mediante repasses aos chamados Fundos de Participação.

Segundo o texto constitucional, do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, quarenta e oito por cento devem ser entregues pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, da seguinte forma: a) 21,5 % ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE; b) 22,5% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM; c) 3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento; d) 1% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM.

Esse arranjo de partilhas de receitas tributárias é traço do modelo de federalismo fiscal cooperativo consagrado pela Constituição Federal de 1988. Nesse modelo, a repartição de receitas se coloca como um canal de coordenação que viabiliza a coexistência entre a descentralização de encargos e a centralização da arrecadação tributária67. Configura uma intrincada rede financeira que “cria para os entes políticos menores o direito a uma parcela da arrecadação do ente maior”68. Esta parcela visa a reduzir o descompasso entre os meios de arrecadação disponíveis e as necessidades de gastos dos entes federados, chamado de “brecha fiscal vertical” (vertical fiscal gap)69, e representa um importante mecanismo de equilíbrio das finanças das unidades subnacionais.


Com diminuição da arrecadação nacional do IPI e do IR, decorrente das desonerações fiscais realizadas pelo Poder Executivo, acabou sendo gravemente afetado o equilíbrio das finanças dos pequenos municípios, que dependem substancialmente das transferências constitucionais do FPM.

No mês de fevereiro de 2009, os repasses aos Fundos de Participação de que trata o art. 159 da Constituição Federal sofreram diminuição de 6,8%, comparativamente ao mês anterior. Em relação a fevereiro de 2008, houve decréscimo da ordem de 12% (cerca de R$ 485 milhões). Em março de 2009, tais repasses foram diminuídos em 20,1%, relativamente ao mês anterior, representando aproximadamente 11% a menos do que o mesmo período do ano de 2008. Por conseguinte, no primeiro trimestre de 2009, constatou-se diminuição de quase 750 milhões de reais nos montantes das transferências ao FPM, tomando como parâmetro o ano. Com o corte repentino nos valores dos repasses constitucionais, serviços públicos prestados à população de inúmeros Municípios passaram a ficar comprometidos, diante da inviabilidade financeira de arcar-se de forma autônoma com os custos de programas sociais.

Ainda em março de 2009, o presidente Luís Inácio Lula da Silva reconheceu a gravidade da situação dos Municípios, afirmando ser o problema “resultado de uma crise que não nasceu no Brasil, de uma crise que aconteceu nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, e que demorou mais para chegar aqui”, mas que não poderia permitir a paralisação das prefeituras70.

Evidenciou-se um conflito axiológico. De um lado, dispositivos tributários editados com a finalidade de estimular a demanda interna, de modo a garantir a manutenção do nível de empregos e o desenvolvimento econômico, valores constitucionalmente consagrados (artigos 3º, II, e 170, VIII). De outro, o reflexos de tais normas no sistema de repartição de receitas tributárias, ocasionando a diminuição brusca de repasses aos municípios, o consequente comprometimento de políticas públicas destinadas à efetivação de direitos fundamentais.

A percepção de que medidas eficientes para promover o crescimento econômico podem impactar negativamente na rede de artérias financeiras do federalismo fiscal e na efetivação de programas de melhorias sociais e investimentos em infraestrutura, os quais constituem pilares para o equilíbrio do desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos, remete à importância da compreensão de plenitude do desenvolvimento econômico.

O desenvolvimento econômico pressupõe não apenas o fator do crescimento, mas também melhorias no âmbito social. Para que essas melhorias sejam implementadas de modo eficiente no arranjo federativo brasileiro, é necessário garantir às unidades descentralizadas, mais próximas da população (municípios), recursos financeiros suficientes para fazer frente aos encargos públicos. Sem tais recursos, resta prejudicada a eficiência alocativa, um dos fundamentos para a descentralização de políticas públicas sociais.

No intuito de contornar o problema, após discussões no âmbito do Ministério da Fazenda, ocorreu a publicação da Medida Provisória nº. 462, de 14/05/2009, convertida na Lei nº. 12.058, de 13/10/2009, que dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos entes federados71.

Assim, a Lei nº. 12.058/2009, em seu art. 1º, previu o dever da União de prestar apoio financeiro, no exercício de 2009, aos entes federados que recebiam o FPM, mediante entrega do valor correspondente à variação nominal negativa entre os valores creditados a título daquele Fundo nos exercícios de 2008 e 2009, antes da incidência de descontos de qualquer natureza, de acordo com os prazos e condições nela previstos e limitados à dotação orçamentária específica para essa finalidade, fixada por meio de decreto do Poder Executivo.

As estimativas para os valores do apoio financeiro previsto na MP nº. 462/2009, correspondendo às diferenças negativas nos repasses do FPM apuradas no período de janeiro a março de 2009, em relação a igual período de 2008, atingiram a estimativa de R$ 755.008.284,5972, com creditamento em maio de 2009. O apoio prosseguiu nos meses subsequentes. Em junho de 2009, foram estimados R$ 197.827.847,7673; em julho, R$, 9.734.549,1874; em outubro, R$ 904.925.735,4275.

Por meio dessa compensação financeira, restou superado o risco de comprometimento da prestação de serviços municipais de interesse social e da continuidade dos projetos de investimento e demais políticas públicas voltadas à promoção do desenvolvimento econômico. Os efeitos das restrições reflexas, provocadas pelas desonerações tributárias editadas durante a crise, foram assim balanceados por normas financeiras de caráter corretivo, visando o retorno ao ponto de equilíbrio das finanças dos municípios e a harmonia do federalismo fiscal cooperativo. Tal equilíbrio é indispensável à garantia da forma federativa de Estado, cláusula pétrea constante do art. 60, §4º, I, da Constituição Federal de 1988.

Todavia, vale lembrar que os reflexos financeiros das reduções de alíquotas do IPI e das alterações de faixas do IR eram perfeitamente previsíveis, desde o momento em que foram cogitados como medidas de política fiscal anticíclica. Os instrumentos equalizadores tardaram a ser editados, dentro de um contexto emergencial. O próprio veículo adotado para a concessão do apoio financeiro (medida provisória, que pressupõe casos de urgência, a teor do art. 62 da Constituição Federal), evidencia que não houve planejamento prévio de compensação financeira concomitante à concessão dos incentivos.

O modelo de federalismo fiscal cooperativo adotado no Brasil, entretanto, não pode se reduzir ao apoio conjuntural da União. É preciso aprimorar mecanismos que garantam a autonomia financeira dos entes subnacionais mesmo em face de políticas fiscais anticíclicas, a fim de que evitar a dependência de auxílios emergenciais, sob liberalidade do Poder Executivo Federal. Sob esse prisma, o legado da crise traz novas oportunidades de repensar os atuais modelos de cooperação existentes, com vistas a um desenvolvimento econômico federativamente harmônico e sustentável.

8 Conclusões

As normas tributárias indutoras podem se revelar eficientes instrumentos de estímulo do comportamento dos agentes econômicos, promovendo o aumento da demanda, da produção, dos investimentos internos, e da oferta de emprego. Tais fatores são indispensáveis ao crescimento econômico, componente da equação geradora do desenvolvimento nacional.

Decerto, “o desenvolvimento depende da capacidade de cada país para tomar decisões que sua situação requer”76. À evidência, o Brasil demonstrou essa capacidade, reunindo condições para superar, com êxito, os efeitos problemáticos da crise internacional deflagrada em 2008. Parte desse sucesso decorreu da política de concessão de incentivos fiscais utilizados conforme critérios de eficiência, os quais se revelaram adequados aos objetivos fomentados pela intervenção do Estado na economia. A função equalizadora das desonerações tributárias indutoras pelo Governo Federal foi determinante para corrigir tendências de contração da demanda interna. Entretanto, essas medidas emergenciais, de curto prazo, não são suficientes para garantir a continuidade do desenvolvimento econômico.

Apesar das dificuldades e dos riscos, o Brasil soube nadar no mar caudaloso da crise internacional, mesmo tendo sido nele arremessado de súbito. Ferramentas eficientes de indução econômica instrumentalizaram a política fiscal anticíclica levada a cabo pelo Governo Federal. Mas distâncias muito maiores ainda precisam ser percorridas para que o país possa galgar uma posição no pódio das nações desenvolvidas. Para tanto, é preciso avançar no aprimoramento dos instrumentos jurídicos tendentes à promoção do desenvolvimento econômico em sua concepção plena, levando em consideração a realidade de profundos desequilíbrios regionais e sociais que marcam a federação brasileira.

A efetividade do art. 3º, II, da Constituição de 1988, para além do crescimento econômico (elemento quantitativo), depende de medidas coordenadas entre União, Estados e Municípios, tendentes a promover melhorias qualitativas no nível de bem-estar geral da sociedade, sem olvidar as peculiaridades do federalismo fiscal cooperativo. Nessa perspectiva, caso o emprego de normas tributárias indutoras pela União acarrete situações de desequilíbrio no arranjo de repartição de receitas com os entes subnacionais, deverão ser adotadas medidas de compensação financeira, suficientes para corrigir as assimetrias negativas geradas, preservando os pilares do federalismo fiscal. Do contrário, poderá restar desvirtuada a finalidade constitucional que embasa a própria intervenção econômica, malferindose a legitimidade da sua utilização, na medida em que for ameaçado o custeio de programas sociais a cargo dos municípios e o atendimento das necessidades da população. O poder do Estado de desonerar é amplo, mas não ilimitado, sujeitando-se às diretrizes normativas e valores contidos no texto constitucional, que balizam o controle das normas tributárias indutoras à luz da proporcionalidade, da igualdade e das finalidades nas quais se ancoram.

Os ventos econômicos que sopram promissoramente a favor do país no cenário de oportunidades pós-crise precisam, enfim, vir acompanhados de arranjos jurídicos de densidade axiológica e efetividade prática, compatíveis com os objetivos trazidos pela Constituição Federal de 1988, rumo a um desenvolvimento federativamente equilibrado e sustentável. 2008.77, 78.


Notas

1 Cf. STIGLITZ, Joseph E. Freefall: Free Markets and the Sinking of the Global Economy. London: Peguin Books, 2010.
2 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Congelamento de Preços: Tabelamentos Oficiais. Rio de Janeiro, Revista de Direito Público, p.76-77, jul./set. 1989.
3 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 100.
4 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 33. 5 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 148.
6 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 107.
7 CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Reflexões sobre o papel do Estado frente à atividade econômica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 1, n. 20. p. 73-74, 1997.
8 A respeito desse tema, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170”. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.950. Relator: Min. Eros Grau. julgamento em 03.11.05, Plenário, DJ de 02.06.06. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
9 Vale lembrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição.” In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 205.193. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 25.02.97, 1ª Turma, DJ de 06.06.97. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
10 Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Os Três Objetivos da Tributação. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p.8-11, São Paulo, 2008.
11 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623.
12 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966. p. 151.
13 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 196.
14 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 629.
15 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 106-107, nota de rodapé n. 66.
16 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 17. 17 Cf. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A Extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 47.
18 CORREIA NETO, Celso de Barros. Instrumentos Fiscais de Proteção Ambiental. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p. 142, São Paulo, 2008.
19 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623- 624.
20 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 27-34.
21 ZILVETI, Fernando Aurelio. O ISS, a Lei Complementar nº 116/03, e a Interpretação Econômica. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 104. p. 39, São Paulo, 2004.
22 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 289.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008. p. 524.
24 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 28.
25 Eis a lição de Pedro Herrera Molina: “incentivos tributarios son aquellas exenciones configuradas de tal modo que estimulan la realización de determinada conducta”. MOLINA, Pedro Herrera. La Execión Tributaria. Madrid: Colex, 1990. p. 57.
26 GADELHA, Gustavo de Paiva. Isenção Tributária: Crise de Paradigma do Federalismo Fiscal Cooperativo. Curitiba: Juruá, 2010. p. 98.
27 MOURA, Maria Aparecida Vera Cruz Bruni de. Incentivos Fiscais Através das Isenções. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (Coord.). Estudos de Problemas Tributários. São Paulo: José Bushatsky, 1971. p. 135.
28 CALDERARO, Francisco R. S. Incentivos Fiscais à Exportação. São Paulo: Resenha Tributária, 1973. p. 17.
29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 577.348 e Recurso Extraordinário n. 561.485. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em 13.08.09, Plenário, Informativo n. 555. Disponível a partir de: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
30 Código Tributário Nacional: “Art. 175. Excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia. Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela conseqüente.”
31 SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. p. 97.
32 “art. 150 […] § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativas a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, § 2º, XII, g. (Redação da EC 03/93)”
33 “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I – importação de produtos estrangeiros; II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III – renda e proventos de qualquer natureza; IV – produtos industrializados; V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI – propriedade territorial rural; VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar. § 1º – É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.”
34 CTN: “Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I – à situação econômica do sujeito passivo; II – ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III – à diminuta importância do crédito tributário; IV – a considerações de eqüidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V – a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.”
35 “§ 3º Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como: I – subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa; II – subvenções econômicas, as que se destinem a emprêsas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril.”
36 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência Fiscal Internacional: a Concessão de Incentivos Fiscais em face da Integração Econômica Internacional. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2009. p. 33.
37 Cf. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 70-71.
38 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 290.
39 Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 648.
40 Cf, ÁVILA, Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, n. 215. p. 172, São Paulo, 1999.
41 SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, n. 798. p. 38, São Paulo, 2002.
42 SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit.. p. 40.
43 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
44 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 61.
45 ÁVILA, op. cit., p. 69.
46 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 83.
47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 149.659. Relator: Min. Paulo Brossard. DJ de 31.03.1995. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.


48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 142.348. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 02.08.94, 1ª Turma, DJ de 24.03.95. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar n. 1.657-MC. Voto do Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento em 27.06.07, Plenário, DJ de 31.08.07. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 360.461. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 06.12.05, 2ª Turma, DJE de 28.03.08. Disponível em: http://www. stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
51 ELALI, André de Souza Dantas. Tributação e Regulação Econômica: um Exame da Tributação como Instrumento de Regulação Econômica na Busca da Redução das Desigualdades Regionais. São Paulo: MP, 2007. p. 117.
52 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u497886.shtml. Acesso em: 11 set. 2010.
53 Cf. SMITHIES, Arthur. The American Economy in the Thirties. The American Economic Review, vol. 36, 1946, pp. 11-27. Apud SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
54 SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. p. 8-9. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
55 BOTALLO, Eduardo Domingos. IPI: Princípios e Estrutura. São Paulo: Dialética, 2009. p. 22.
56 Vide Decreto nº. 6.687, de 11 de dezembro de 2008, e Decreto nº 6.743, de 15 de janeiro de 2009.
57 Vide Decreto nº. 6.825, de 17 de abril de 2009 e Decreto nº. 6.890, de 29 de junho de 2009.
58 Vide Decreto nº. 6.691, de 11 de dezembro de 200


O prazo para redirecionamento da ação de execução fiscal em face de terceiros responsáveis

Autor(a): Juliana Furtado Costa Araujo, Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Procuradora da Fazenda Nacional. Chefe da Divisão de Defesa em 2ª Instância da PRFN/3ª Região

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O presente artigo trata de um dos aspectos que envolvem o tema da responsabilidade tributária, que diz respeito à possibilidade de redirecionamento da ação de execução fiscal para fins de cobrança do crédito tributário por parte de um terceiro, enfocando o prazo em que tal ato processual poderá ser realizado. Inicialmente, identificaremos os dispositivos legais que autorizam a figura do redirecionamento, que serviram de baliza para o posicionamento jurisprudencial unânime sobre a questão, e as situações que levam a sua existência. Em seguida, analisaremos qual o prazo prescricional adequado para a realização desse ato de natureza processual, partindo das normas legais que tratam do tema, mais especificamente o artigo 174 do Código Tributário Nacional. Ao final, demonstraremos o posicionamento de nossos Tribunais Superiores sobre o tema, que diverge daquele que é por nós defendido, e a tendência atual de mudança deste entendimento.

1 Introdução

As discussões doutrinárias e jurisprudenciais que envolvem o tema da responsabilidade tributária são bem variadas e atuais e dentre estas podemos destacar a questão do redirecionamento dos feitos executivos a terceiros responsáveis e o prazo para que tal ato processual possa vir a ser efetivado.

Há cerca de cinco anos, tive a oportunidade de escrever artigo sobre o mesmo tema1 e agora o faço novamente diante da grande inquietação que esta problemática me traz, o que me permite lançar novas ideias sobre o tema, além de demonstrar relevante evolução jurisprudencial ocorrida recentemente.

É certo que se tornou muito comum a possibilidade de cobrança do crédito tributário de um terceiro que não realizou o fato jurídico tributário apenas quando já existe execução fiscal em curso, surgindo assim a figura do redirecionamento do feito executivo.

O que pretendemos demonstrar no presente artigo é o prazo que tem o credor para requerer este redirecionamento, enfocando a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores.

2 A possibilidade de redirecionamento do feito executivo em face de terceiros responsáveis

Atualmente, a maioria dos créditos tributários é objeto de lançamento por homologação, em que cabe ao contribuinte realizar todos os procedimentos para fins de sua constituição, informando ao final aquilo à fazenda pública interessada, nos termos do artigo 150 do CTN.

Assim, diante dessas informações e na ausência de pagamento, é extraído o título executivo extrajudicial, representado pela Certidão de Dívida Ativa, com posterior ajuizamento da ação de Execução Fiscal pelo órgão fazendário interessado contra a pessoa do contribuinte.

Existe, porém, a possibilidade de cobrança posterior de um terceiro, em face da comprovação, pelo fisco, de qualquer uma das hipóteses de responsabilidade presentes no CTN, sendo necessário que o representante da fazenda pública requeira junto ao juízo competente o redirecionamento do feito para a figura deste responsável.

Neste momento, surge a seguinte questão: existe fundamento jurídico para se redirecionar o feito executivo?

O cerne da questão que ora se coloca se restringe apenas àquelas hipóteses em que a hipótese de responsabilidade tributária é comprovada em momento posterior à constituição do crédito tributário, quando já se deu o próprio ajuizamento do feito executivo. Em outras palavras, a configuração da responsabilidade ocorre tardiamente, sendo necessária uma solução jurídica que permita que haja efetividade na cobrança do crédito tributário daqueles que passam a ocupar a posição de terceiros responsáveis.

A nosso ver, a solução reside na possibilidade de redirecionamento da ação de execução fiscal ao terceiro, caso a apuração de sua responsabilidade tributária não se dê no exato instante em que ocorre o fato jurídico tributário e que é introduzida no ordenamento a norma individual e concreta do lançamento ou autolançamento.

Nestes casos, com a cobrança do crédito tributário em fase de execução fiscal, cabe à fazenda pública o ônus de provar que é caso de responsabilidade tributária e que a configuração desta situação somente se deu neste momento processual, requerendo, como consequência, a alteração do polo passivo do feito executivo.

O fundamento legal para tal providência é processual, diante da distinção que o Código de Processo Civil faz entre a figura do devedor e do responsável tributário, em seu artigo 568, I e V, que assim dispõe:

Art. 568. São sujeitos passivos na execução:

I – o devedor, reconhecido como tal no título executivo;

[…]

V – o responsável tributário, assim definido na legislação própria.

Por este dispositivo, verifica-se que é permitido ao sujeito ativo incluir como sujeito passivo da execução qualquer responsável tributário, que não o devedor reconhecido sob essa condição no título executivo.

A razão de ser desta norma, que autoriza a execução manejada contra pessoa que sequer consta do título executivo, reside no fato de que há situações, como o caso da responsabilidade subsidiária ou por sucessão, em que ocorre verdadeira alteração do polo passivo, quando já em curso o feito executivo, seja pelo desaparecimento do contribuinte, seja por força de fato novo que implica a modificação da sujeição passiva.

Nos casos em que a hipótese de responsabilidade tributária se perfaz quando já existe execução fiscal em curso, a lei processual autoriza que haja a exigência do crédito desta terceira pessoa, ainda que não tenha participado do processo administrativo de constituição do crédito tributário. Ressalve-se aqui que caberá ao exequente fundamentar seu pedido de redirecionamento com as provas que demonstrem a hipótese de responsabilidade de um terceiro.

Assim, se a responsabilidade destes terceiros não está configurada quando do ajuizamento do feito executivo, sendo que no decorrer do processo de execução ela vem à tona, tal dispositivo confere legitimidade para que haja o redirecionamento da cobrança do crédito tributário, desde que comprovada a situação fática que enseja a aplicação da norma de responsabilidade.

O Superior Tribunal de Justiça segue este entendimento, diferenciando a relação de direito processual, que permite o redirecionamento da ação executiva, da relação de direito material, que enseja a responsabilidade tributária. Neste sentido, segue parte de ementa proferida no RESP n° 1096444, processo n° 200802176717, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, em 30/03/2009, que, embora diga respeito à hipótese de responsabilidade de sócio, nos termos do artigo 135 do CTN, apresenta fundamento de decidir que pode ser aplicável a qualquer outra hipótese de responsabilidade tributária.

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. DISSOLUÇÃO IRREGULAR. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO-GERENTE. ÔNUS DA PROVA. DISTINÇÕES.

1. Na imputação de responsabilidade do sócio pelas dívidas tributárias da sociedade, cumpre distinguir a relação de direito material da relação processual. As hipóteses de responsabilidade do sócio são disciplinadas pelo direito material, sendo firme a jurisprudência do STJ no sentido de que, sob esse aspecto, a dissolução irregular da sociedade acarreta essa responsabilidade, nos termos do art. 134, VII e 135 do CTN (v.g.: EResp 174.532, 1ª Seção, Min. José Delgado, DJ de 18.06.01; EResp 852.437, 1ª Seção, Min. Castro Meira, DJ de 03.11.08; EResp 716.412, 1ª Seção, Min. Herman Benjamin, DJ de 22.09.08).

2. Sob o aspecto processual, mesmo não constando o nome do responsável tributário na certidão de dívida ativa, é possível, mesmo assim, sua indicação como legitimado passivo na execução (CPC, art. 568, V), cabendo à Fazenda exeqüente, ao promover a ação ou ao requerer o seu redirecionamento, indicar a causa do pedido, que há de ser uma das hipóteses da responsabilidade subsidiária previstas no direito material. A prova definitiva dos fatos que configuram essa responsabilidade será promovida no âmbito dos embargos à execução (REsp 900.371, 1ª Turma, DJ 02.06.08; REsp 977.082, 2ª Turma, DJ de 30.05.08), observados os critérios próprios de distribuição do ônus probatório (EREsp 702.232, Min. Castro Meira, DJ de 26.09.05).

[…]


5. Recurso especial improvido.

Vista a possibilidade de redirecionamento da cobrança executiva nas hipóteses acima especificadas, surgem, neste momento, outras questões que serão respondidas no tópico seguinte: tal redirecionamento pode ser feito a qualquer tempo ou faz-se necessário respeitar algum lapso temporal? Nesta última hipótese, qual seria este lapso prescricional e a partir de que momento ele seria iniciado?

3 O prazo para redirecionamento do feito executivo

Como forma de dar efetividade ao princípio da segurança jurídica, o sujeito ativo da relação jurídica tributária possui prazo prescricional definido pelo artigo 174 para cobrança do crédito tributário, seja do contribuinte, seja do responsável.

Não há dúvidas de que o redirecionamento do feito executivo é possível, desde que realizado dentro do prazo de que dispõe a fazenda pública para cobrar seus créditos tributários.

Nos termos do artigo 174 do CTN, tal prazo é quinquenal e seu cômputo é iniciado a partir da constituição definitiva do crédito tributário2, sendo possível sua interrupção nas hipóteses descritas no seu parágrafo único. Referido dispositivo assim prescreve:

Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.

Parágrafo único. A prescrição se interrompe:

  1. pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal;
  2. pelo protesto judicial;
  3. por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
  4. por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.

Em um primeiro momento, poderíamos afirmar que, como o lapso temporal para cobrança do crédito tributário é de cinco anos, tal prazo se aplicaria tanto em relação ao contribuinte como ao terceiro responsável. Ocorre que não podemos esquecer que estamos tratando de hipótese em que não houve constituição do crédito tributário em nome do responsável por meio do lançamento ou autolançamento. O que ocorreu foi aplicação da regra processual, com o redirecionamento do feito executivo.

O prazo aqui a ser estabelecido é relativo ao redirecionamento, o que exige interpretação sistemática do caput e parágrafo único do artigo 174.

De sua análise, verifica-se que a prescrição da ação de cobrança do crédito tributário é, em regra, consumada, se entre a data da sua constituição definitiva e o despacho do juiz autorizando a citação transcorrer mais de cinco anos, inexistindo no seu curso causa de interrupção desse prazo como a realização de um parcelamento, por exemplo. Caso este lapso temporal não tenha se consumado, pode-se afirmar que a ação executiva foi proposta quanto ao sujeito passivo indicado no título executivo dentro do prazo legal, sendo este interrompido, dentre outras hipóteses, pelo despacho do juiz determinando a citação do executado.

Visto isto, poderíamos afirmar que, em sendo ajuizada a ação de execução fiscal dentro deste lapso temporal, não seria possível mais falar em extinção do crédito tributário por prescrição, considerando que o direito de ação já teria sido realizado, podendo, inclusive, o prosseguimento da execução durar indefinidamente.

Não é este, porém, o entendimento que deve prevalecer. Isto porque o prazo quinquenal a que se refere o artigo 174 do CTN diz respeito ao tempo que é colocado à disposição do sujeito ativo para viabilizar a cobrança de seu crédito, o que inclui todos os atos processuais necessários ao seu adimplemento, anteriores e posteriores ao ajuizamento, por exemplo, a inscrição em dívida ativa, a citação do executado, a penhora e leilão de bens etc.

Importante deixar claro, porém, que, se considerarmos que cabe ao Poder Judiciário o comando das pretensões aduzidas perante sua jurisdição, muitos desses atos independem da atuação do sujeito ativo. Daí porque a própria lei teve que criar mecanismos para impedir que este prazo corresse sem que houvesse inércia do credor, que é um dos requisitos para que se configure a prescrição.

A solução encontrada está disposta no parágrafo único do artigo 174 do CTN, ao prescrever as causas de interrupção desse prazo. Desta feita, a paralisação da contagem do prazo quinquenal nas hipóteses contempladas pela lei surge como forma de evitar que se decrete a prescrição, mesmo que não haja inércia por parte do credor. Afinal, a partir do momento em que a ação executiva é ajuizada, seu iter processual já não depende apenas do exequente.

Este prazo, todavia, pode recomeçar a correr desde seu início, caso seja configurada inércia do credor no manejo dos atos processuais que a ele são dirigidos.

A própria legislação tributária se incumbiu de indicar as hipóteses em que este lapso temporal volta a ser contado. A mais comum de todas está prescrita no artigo 40 da Lei nº 6.830/80. Por este dispositivo, é cabível a arguição da chamada prescrição intercorrente, de ofício pelo juiz da execução, caso a fazenda pública se mantenha inerte nas condições preceituadas. Referida norma assim preceitua:

Art. 40 – O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

§ 1º – Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.

§ 2º – Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.

§ 3º – Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.

§ 4o – Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.

§ 5º A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no § 4o deste artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda.

Caso no curso da cobrança do crédito tributário não seja encontrado o devedor ou bens capazes de garantir o pagamento do valor cobrado, caberá ao juiz determinar a suspensão do feito por um ano e, após este prazo, o arquivamento do processo.

Neste momento, o credor deve buscar meios para viabilizar a cobrança do crédito, sob pena de ser retomada a contagem do prazo quinquenal previsto no artigo 174 do CTN. Isto ocorre, pois os atos de cobrança a serem demandados somente dependem do credor, de forma que, em sendo configurada a inércia do exequente por cinco anos, a execução fiscal será extinta por prescrição intercorrente.

Interessante notar que o artigo 40 acima referido não especifica qual o prazo prescricional que enseja a declaração da prescrição intercorrente, exatamente porque este é o previsto no artigo 174, que se encontra, porém, interrompido por força que determina o seu parágrafo único, mas cuja retomada é autorizada, quando caracterizada a necessidade de o credor demandar o andamento da ação executiva.

O mesmo prazo se aplica ao redirecionamento do feito executivo nas hipóteses de responsabilidade de um terceiro. Aqui, a ação executiva foi ajuizada apenas em face do contribuinte. Em sendo demonstrada, todavia, a ocorrência da hipótese legal de responsabilidade tributária, cabe ao fisco viabilizar a cobrança do crédito do novo sujeito passivo. Assim, a partir desse momento, inicia-se novamente a contagem do prazo prescricional que estava interrompido, pois, a partir dessa constatação, a não inclusão do terceiro no polo passivo ensejará inércia e, portanto, possibilidade de extinção do crédito por prescrição.

Um exemplo pode melhor explicitar nosso entendimento, enfocando uma hipótese de responsabilidade tributária por sucessão empresarial, nos termos do artigo 133 do CTN. Suponha-se que houve o ajuizamento do feito executivo contra a sociedade A e houve o despacho do juiz autorizando sua citação. Neste momento, o prazo prescricional se interrompeu. Ato contínuo, houve a tentativa de citação via correios, sendo a resposta do aviso de recebimento negativa. Em seguida, há a citação por Oficial de Justiça, e este relata que a sociedade A passou por um processo de reorganização societária, sendo incorporada pela sociedade B. Até que esta notícia fosse carreada aos autos, não há que se falar em fluência de prazo prescricional, porque a fazenda pública estava tentando cobrar seus créditos, seguindo o iter procedimental permitido por lei. Entretanto, no momento em que se verifica que é outra pessoa quem deve ocupar o polo passivo, passa a correr novamente o prazo quinquenal para que o fisco requeira o redirecionamento do feito para o sucessor, sob pena de ficar inerte e ser decretada a prescrição.


Dito isto, resta claro que nos posicionamos no sentido de que o prazo para cobrança do crédito tributário do sucessor, mesmo nas hipóteses em que há pedido de redirecionamento do feito executivo, é de cinco anos, nos termos do artigo 174 do CTN. Este prazo, todavia, retoma seu curso, no caso do exemplo dado acima, com a caracterização da operação de reorganização societária ocorrida ou mesmo demonstração da aquisição de um estabelecimento empresarial. Desta forma, demonstramos a possibilidade de se aplicarem as normas jurídicas a cada situação fática, de acordo com as peculiaridades apresentadas.

Apenas reafirmando o que já foi dito, este prazo prescricional somente pode retomar seu curso do início, a partir do momento em que ficar caracterizada a ocorrência da hipótese de responsabilidade tributária. Isto porque a aplicação da norma de responsabilidade somente é possível quando todos os requisitos que ensejam seu uso estiverem devidamente configurados.

Neste caso, o cômputo inicial deste prazo terá que coincidir com o exato momento em que houve a configuração seja de uma operação de reorganização societária, seja da prática de um ato ilícito pelo representante da pessoa jurídica, dentre outras hipóteses, traduzida pela linguagem competente das provas, tendo em vista que, somente a partir deste instante, surge o direito de o fisco exigir do responsável o crédito tributário.

No exemplo acima dado, em que houve a incorporação de uma sociedade por outra, o prazo prescricional para inclusão do sucessor no feito executivo somente se inicia quando da certificação pelo Oficial de Justiça de que ocorreu a sucessão, caso tal evento não tenha sido anteriormente comunicado ao fisco por outro meio.

A partir deste momento, a Fazenda Pública terá o prazo de cinco anos para requerer a inclusão do sucessor empresarial no polo passivo do feito executivo.Este é o único entendimento que efetivamente não compromete o direito do fisco em ver seu crédito tributário satisfeito e resguarda a segurança jurídica aos administrados. O certo é que o sujeito ativo, por expressa disposição legal, somente pode se insurgir contra o sucessor empresarial na hipótese da efetivação de alguma operação de reorganização societária, de forma que, se o prazo prescricional não for contado a partir desta data, certamente estariam sendo colocados obstáculos intransponíveis à arrecadação do crédito tributário.

Pensemos na hipótese de uma sociedade empresarial adquirir vários ativos isolados de outra sociedade, com objetivo de mascarar uma aquisição de estabelecimento empresarial. Para isto, são avençados contratos de arrendamento, de compra de marca etc. É certo que a real operação realizada é de aquisição de estabelecimento, mas apenas com a produção de provas é que a aplicação do artigo 133 do CTN poderá ocorrer. Enquanto isto, a sociedade sucedida continua aparentando ser uma empresa ativa, entregando declarações que demonstram sua existência. É claro que as execuções fiscais serão ajuizadas contra esta sociedade, enquanto não forem produzidas provas que demonstrem a sucessão. Somente no momento em que tais provas forem carreadas aos autos é que surge a possibilidade do redirecionamento. Imaginar, então, que o prazo prescricional já poderia ter se iniciado é, sem dúvida, um pensamento que contempla a má-fé, o que é inadmissível.

Portanto, nosso entendimento reside na ideia de que somente é possível se iniciar o cômputo de um prazo prescricional, quando estiverem presentes as circunstâncias materiais necessárias que permitam a inclusão de um terceiro no polo passivo do feito executivo. Antes disso, se não é possível falar na própria responsabilidade, quiçá em contagem de prazo prescricional relativo à responsabilidade.

A partir da demonstração da hipótese de responsabilidade de um terceiro é que a desídia da exequente poderá implicar a perda de direito de redirecionar o feito executivo. Antes disso, impossível tal punição, até porque, quando se fala em fluência de prazo prescricional, presume-se o descaso com o exercício do direito, o que não se configura na hipótese, porquanto tal direito sequer existe.

Questão que aqui pode ser levantada diz respeito ao fato de que o início da contagem desse prazo prescricional estaria a critério do fisco, quando este decidisse carrear aos autos provas da responsabilização de um terceiro.

Em primeiro lugar, faz-se necessário distinguirmos duas situações e enfocaremos novamente aqui a hipótese de responsabilidade por sucessão empresarial: aquela em que a sucessão ocorre de forma regular, com comunicação formal à fazenda pública interessada do ato sucessório; outra hipótese, quando esta operação é mascarada, sendo necessário que o credor produza por ele próprio provas capazes de demonstrar que o realizador do fato jurídico tributário não mais pode responder pelo crédito tributário.

Na primeira hipótese, o lapso inicial para contagem do prazo prescricional é objetivo, iniciando-se no momento em que ocorre a comunicação da operação de reorganização societária ou da aquisição de estabelecimento ao fisco. Obviamente que a notificação da ocorrência de tais operações para fins de redirecionamento da ação executiva deve ocorrer somente na hipótese de existir crédito tributário passível de cobrança, que não tenha, por exemplo, sido atingido pela prescrição intercorrente.

Na segunda hipótese, é dever do fisco carrear provas que demonstrem a sucessão, o que realmente pode ensejar a dúvida acima levantada de que poderia o fisco estabelecer o termo inicial da contagem do prazo prescricional. É certo que cabe ao fisco produzir a prova da sucessão, mas este seu direito não é ilimitado no tempo. Isto porque se deve levar em consideração que o possível redirecionamento somente será autorizado, se não for caso de se aplicar ao feito executivo o artigo 40 da Lei nº 6.830/80.

Assim, o início da contagem do prazo prescricional para fins de redirecionamento não é determinado de acordo com a vontade do sujeito ativo, considerando que seu direito esbarra na necessidade de que o crédito tributário ainda seja exigível.

4 A posição do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão e os indícios de alteração de sua jurisprudência

O posicionamento tradicional do Superior Tribunal de Justiça é distinto do que é por nós defendido, embora já haja indícios de sua alteração, como veremos mais adiante. Para este Tribunal, o prazo prescricional para fins de redirecionamento do feito executivo é de cinco anos a contar da citação da pessoa jurídica, contra quem foi ajuizado o feito executivo. A ementa abaixo demonstra este posicionamento:

TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – REDIRECIONAMENTO CONTRA O SÓCIO – CINCO ANOS DA CITAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO.

O redirecionamento da execução aos sócios gerentes deve dar-se no prazo de cinco anos da citação da pessoa jurídica, de modo a afastar a imprescritibilidade da pretensão de cobrança do débito fiscal. Agravo regimental improvido.

(AGA 200802441915, HUMBERTO MARTINS, STJ – SEGUNDA TURMA, 31/08/2009).

Como já visto, somos contrários a este entendimento e nossa justificativa é muito simples: como poderemos iniciar a contagem de um prazo prescricional, se a situação jurídica que enseja o redirecionamento do feito executivo ainda não ocorreu? Além disso, inexiste uma explicação jurídica para que o marco para a contagem do prazo prescricional seja a citação da pessoa jurídica.

Com a citação da pessoa jurídica, somente é possível exigir dela o crédito tributário. Quanto ao terceiro, se ainda não foi comprovada a sua responsabilidade, não existe possibilidade de se exigir dele referido crédito. Somente podemos falar em prescrição, se houver inércia da pessoa contra quem tal prazo correr. No caso, não há inércia simplesmente porque as circunstâncias materiais para cobrança do crédito tributário do responsável inexistem.

Uma linha de entendimento mais recente segue o nosso posicionamento, no sentido de que o redirecionamento somente pode ocorrer, caso estejam configuradas todos os requisitos para fins de aplicação da norma de responsabilidade, sob pena de se iniciar a contagem do prazo prescricional sem que o próprio direito a redirecionar o feito executivo exista, o que implicaria ofensa ao princípio da actio nata. Neste sentido, o seguinte julgado:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO. CITAÇÃO DA EMPRESA E DO SÓCIO-GERENTE. PRAZO SUPERIOR A CINCO ANOS. PRESCRIÇÃO. PRINCÍPIO DA ACTIO NATA.

  1. O Tribunal de origem reconheceu, in casu, que a Fazenda Pública sempre promoveu regularmente o andamento do feito e que somente após seis anos da citação da empresa se consolidou a pretensão do redirecionamento, daí reiniciando o prazo prescricional.
  2. A prescrição é medida que pune a negligência ou inércia do titular de pretensão não exercida, quando o poderia ser.

  1. A citação do sócio-gerente foi realizada após o transcurso de prazo superior a cinco anos, contados da citação da empresa. Não houve prescrição, contudo, porque se trata de responsabilidade subsidiária, de modo que o redirecionamento só se tornou possível a partir do momento em que o juízo de origem se convenceu da inexistência de patrimônio da pessoa jurídica. Aplicação do princípio da actio nata.
  2. Agravo Regimental provido.

(AGRESP 200801178464, HERMAN BENJAMIN, STJ – SEGUNDA TURMA, 24/03/2009).

Mais recentemente, outro julgado do Superior Tribunal de Justiça também seguiu a linha por nós defendida. Sua ementa assim aduz:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/ STF. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO CONTRA O SÓCIO-GERENTE EM PERÍODO SUPERIOR A CINCO ANOS, CONTADOS DA CITAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. PRESCRIÇÃO. REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

  1. Não se conhece de Recurso Especial em relação a ofensa ao art. 535 do CPC quando a parte não aponta, de forma clara, o vício em que teria incorrido o acórdão impugnado. Aplicação, por analogia, da Súmula 284/STF.
  2. Controverte-se nos autos a respeito de prazo para que se redirecione a Execução Fiscal contra sócio-gerente.
  3. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o redirecionamento não pode ser feito após ultrapassado período superior a cinco anos, contados da citação da pessoa jurídica.
  4. A inclusão do sócio-gerente no pólo passivo da Execução Fiscal deve ser indeferida se houver prescrição do crédito tributário.
  5. Note-se, porém, que o simples transcurso do prazo qüinqüenal, contado na forma acima (citação da pessoa jurídica), não constitui, por si só, hipótese idônea a inviabilizar o redirecionamento da demanda executiva.
  6. De fato, inúmeros foram os casos em que as Execuções Fiscais eram arquivadas nos termos do art. 40 da Lei 6.830/1980, em sua redação original, e assim permaneciam indefinidamente. A Fazenda Pública, com base na referida norma, afirmava que não corria o prazo prescricional durante a fase de arquivamento. A tese foi rejeitada, diante da necessidade de interpretação do art. 40 da LEF à luz do art. 174 do CTN.
  7. A despeito da origem acima explicitada, os precedentes passaram a ser aplicados de modo generalizado, sem atentar para a natureza jurídica do instituto da prescrição, qual seja medida punitiva para o titular de pretensão que se mantém inerte por determinado período de tempo.
  8. Carece de consistência o raciocínio de que a citação da pessoa jurídica constitui o termo a quo para o redirecionamento, tendo em vista que elege situação desvinculada da inércia que implacavelmente deva ser atribuída à parte credora. Dito de outro modo, a citação da pessoa jurídica não constitui “fato gerador” do direito de requerer o redirecionamento.
  9. Após a citação da pessoa jurídica, abre-se prazo para oposição de Embargos do Devedor, cuja concessão de efeito suspensivo era automática (art. 16 da Lei 6.830/1980) e, atualmente, sujeita-se ao preenchimento dos requisitos do art. 739-A, § 1º, do CPC.
  10. Existe, sem prejuízo, a possibilidade de concessão de parcelamento, o que ao mesmo tempo implica interrupção (quando acompanhada de confissão do débito, nos termos do art. 174, parágrafo único, IV, do CTN) e suspensão (art. 151, VI, do CTN) do prazo prescricional.
  11. Nas situações acima relatadas (Embargos do Devedor recebidos com efeito suspensivo e concessão de parcelamento), será inviável o redirecionamento, haja vista, respectivamente, a suspensão do processo ou da exigibilidade do crédito tributário.
  12. O mesmo raciocínio deve ser aplicado, analogicamente, quando a demora na tramitação do feito decorrer de falha nos mecanismos inerentes à Justiça (Súmula 106/STJ).
  13. Trata-se, em última análise, de prestigiar o princípio da boa-fé processual, por meio do qual não se pode punir a parte credora em razão de esta pretender esgotar as diligências ao seu alcance, ou de qualquer outro modo somente voltar-se contra o responsável subsidiário após superar os entraves jurídicos ao redirecionamento.
  14. É importante consignar que a prescrição não corre em prazos separados, conforme se trate de cobrança do devedor principal ou dos demais responsáveis. Assim, se estiver configurada a prescrição (na modalidade original ou intercorrente), o crédito tributário é inexigível tanto da pessoa jurídica como do sócio-gerente. Em contrapartida, se não ocorrida a prescrição, será ilegítimo entender prescrito o prazo para redirecionamento, sob pena de criar a aberrante construção jurídica segundo a qual o crédito tributário estará, simultaneamente, prescrito (para redirecionamento contra o sócio-gerente) e não prescrito (para cobrança do devedor principal, em virtude da pendência de quitação no parcelamento ou de julgamento dos Embargos do Devedor).
  15. Procede, dessa forma, o raciocínio de que, se ausente a prescrição quanto ao principal devedor, não há inércia da Fazenda Pública.
  16. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.

(REsp 1095687/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 08/10/2010)

Este julgado bem demonstra que o entendimento de que a contagem do prazo prescricional para o redirecionamento a partir da citação da pessoa jurídica foi formado em um tempo remoto em que sequer se cogitava da prescrição intercorrente, que hoje é expressamente prevista pelo artigo 40 e parágrafos da Lei n° 6.830/80. Por meio desta linha de raciocínio se evitava que o fisco tornasse os créditos imprescritíveis, no momento em que não caberia a ele, depois de anos a fio do processo arquivado e caracterizada sua inércia, requerer o redirecionamento.

Com a possibilidade de extinção do feito por meio da decretação da prescrição intercorrente tal receio não existe mais, sendo necessário que se leve tal fato em consideração para que não se aplique indevidamente um entendimento já ultrapassado à hipótese do redirecionamento, cujo prazo para tanto somente pode ter seu início implementado no caso de inércia da fazenda pública credora.

Em resumo, este mais novo entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça bem demonstra nosso entendimento acerca da possibilidade de que, mediante a comprovação da hipótese de responsabilidade tributária, haja o redirecionamento do feito executivo para a figura do terceiro. Tal redirecionamento, porém, deverá obedecer a um lapso prescricional quinquenal, nos termos do artigo 174 do CTN, que, por sua vez, somente pode ter seu cômputo iniciado, quando estiverem presentes e devidamente traduzidas pela linguagem das provas as circunstâncias materiais necessárias que permitem a inclusão de um terceiro no polo passivo do feito executivo. A partir deste momento, é que a desídia do exequente poderá implicar a perda de direito de cobrar o crédito tributário.

Notas

1 ARAUJO, Juliana Furtado Costa. O prazo prescricional para o redirecionamento da ação de execução fiscal ao representante da pessoa jurídica.In: FERRAGUT, Maria Rita; NEDER, Marcos Vinícius (coords.). Responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2007.
2 No caso de tributos constituídos por meio do lançamento de ofício, a constituição definitiva do crédito tributário ocorre no primeiro dia seguinte ao encerramento do prazo de pagamento após a notificação ao sujeito passivo da norma individual e concreta produzida pela autoridade competente. No caso dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, a constituição do crédito tributário é feita pelo próprio sujeito passivo, no momento em que comunica ao fisco, por exemplo, com a entrega da declaração, qual é efetivamente o crédito tributário entendido como devido. Tal questão, porém, é complexa, podendo apresentar outras nuances, dependendo da situação fática apresentada.

Referências Bibliográfias

ARAUJO, Juliana Furtado Costa. O prazo prescricional para o redirecionamento da ação de execução fiscal ao representante da pessoa jurídica. In: FERRAGUT, Maria Rita; NEDER, Marcos Vinícius (coords.). Responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2007.
FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o código civil de 2002. São Paulo: Noeses, 2005.
PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado: Esmafe, 2005.
PEIXOTO, Daniel Monteiro. Responsabilidade tributária: aspectos gerais e particularidades nos atos de formação, administração, reorganização e dissolução de sociedades. 2009. Tese (Doutorado em Direito)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.


Coisa julgada em matéria tributária: Relativização ou limitação? Estudo de caso da COFINS das sociedades civis

Autor: Marcus Abraham,Procurador da Fazenda Nacional. Doutor em Direito Público – UERJ. Mestre em Direito Tributário – UCAM. Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A partir do julgamento proferido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 377.457 em 2008, instaura-se uma nova forma de pensar no cenário jurídico brasileiro que havia se consolidado de que a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis seria legítima. Passando a ser considerado constitucional o fim do benefício fiscal, e não havendo qualquer tipo de modulação dos efeitos, a decisão do STF ganha força ex tunc, gerando um conflito entre a dicção dos acórdãos transitados em julgado que entendiam inconstitucional a revogação da isenção e o teor daquele novo pronunciamento paradigmático pela Corte Suprema, provocando a busca por meios e formas legítimos para se reverter as situações consolidadas em sentido contrário. E é exatamente sobre uma forma de limitar os efeitos dos acórdãos transitados em julgado que este estudo vem apresentar.

I – Introdução

A partir do julgamento realizado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 2008, que declarou constitucional e legítima a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis introduzida pela Lei nº 9.430/961, inclusive com o reconhecimento da repercussão geral da matéria (art. 543-B, CPC) e a rejeição da modulação dos efeitos desta decisão (tendo, portanto, aquele pronunciamento eficácia ex tunc), surge uma nova controvérsia nesta questão: a da convivência de acórdãos transitados em julgado em sentido diametralmente oposto ao entendimento adotado pelo STF, por terem, à época dos seus julgamentos, declarado a inconstitucionalidade da supressão da isenção, desonerando as Sociedades Civis de profissão regulamentada da incidência do tributo.

A questão vem sendo colocada por alguns sob a ótica da relativização da coisa julgada, enquanto que para outros haveria mera limitação dos seus efeitos. Em qualquer dos casos, se pretende buscar a revisão daqueles julgamentos, a partir de persos argumentos. Primeiramente, apresentase a inteligência do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, que considera inexigível o título judicial fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. Sugere-se, ademais, que uma relevante alteração jurisprudencial, como a que ocorreu, ensejaria a modificação no suporte fático ou jurídico e a conseqüente limitação dos efeitos daqueles julgados. Suscita-se, ainda, a influência do fenômeno da “verticalização da jurisprudência dos tribunais superiores”, em que institutos processuais como os da súmula vinculante, do incidente de repercussão geral ou do recurso repetitivo passam a vincular o julgamento pelos tribunais. Aventa-se, além do mais, a constatação da “coisa julgada inconstitucional”, em que aqueles julgamentos contrários à posição do STF seriam inválidos por proferirem entendimento que se choca com a ordem constitucional.

Ao lado desses argumentos, ressurgem, com vigor, antigos questionamentos postos recorrentemente pela Fazenda Nacional. O primeiro, de que somente caberia ao Supremo Tribunal Federal apreciar a matéria de foro constitucional e declarar a sua validade ou não. O segundo, de que a Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça, que influenciou sobremaneira a consolidação da tese favorável à inconstitucionalidade do artigo 56 da Lei nº 9.430/96, teria se originado de uma lide de objeto perso da controvérsia da hierarquia de normas e que, portanto, seria inaplicável ao caso. O terceiro, de que aqueles acórdãos não observaram as conclusões proferidas pelo STF quando do julgamento da ADC-1/DF, que havia reconhecido na LC nº 70/91 a sua natureza de lei ordinária. E, finalmente, que as relações tributárias são de cunho continuativo, o que relativizaria a cláusula da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado.

É inegável a força axiológica do valor da segurança jurídica e da boa-fé dos contribuintes que obtiveram regularmente um pronunciamento judicial que lhes foi favorável e que ganharam a proteção da coisa julgada. Por outro lado, há que se reconhecer inadequada a manutenção de um pronunciamento judicial contrário ao ordenamento constitucional, sob pena de conferir à sentença ou ao acórdão autoridade superior à própria Constituição, além de tratar de maneira anti-isonômica os contribuintes que se encontram em situação equivalente.

Independentemente de analisarmos neste momento a razoabilidade, a validade e o cabimento destes argumentos que, de uma maneira direta ou mesmo apenas reflexa, podem atingir a coisa julgada regularmente constituída nos respectivos processos judiciais (e, desde já, registro que não advogamos pela santificação do dogma da imutabilidade da coisa julgada), propomos neste estudo a abordagem da questão sob outra ótica, que não é nova, e muito menos arrojada, pois já vem sendo, de longa data, acolhida pela doutrina e jurisprudência.

Pretende-se e buscar – respeitando a intangibilidade da coisa julgada existente – a identificação dos limites e dos contornos em que se constituíram os acórdãos que julgaram inconstitucional a revogação da isenção da COFINS, especialmente quanto ao que foi pedido no processo pelo contribuinte e o que foi decidido pelo tribunal, visando estabelecer uma limitação dos efeitos do acórdão transitado em julgado a partir da mudança legislativa superveniente, com a aplicação da cláusula rebus sic stantibus, na forma do que dispõe o artigo 471 do Código de Processo Civil.

II – Histórico da Controvérsia

Tudo começou quando o artigo 56 da Lei nº 9.430/962 revogou expressamente a isenção que a Lei Complementar nº 70/91 concedia às sociedades civis. Argumentava-se que a lei instituidora da COFINS seria uma Lei Complementar e que a norma que revogava a isenção por ela concedida viria em uma Lei Ordinária, razão da sua inconstitucionalidade, em face de uma suposta violação ao Princípio da Hierarquia das Normas.

De fato, a Lei Complementar nº 70/91, no seu artigo 6° isentava da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS3 as sociedades civis expressamente previstas no artigo 1° do Decreto-lei n° 2.397/87, norma que, por sua vez, discriminava as sociedades civis que gozavam do benefício da isenção: as sociedades civis de prestação de serviços profissionais, relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada.

Mas a discussão se tornou particularmente complexa e perdeu o seu foco, pois mesmo antes da edição da Lei nº 9.430/96 e do debate a respeito da legitimidade da revogação da norma isentiva, questionava-se o entendimento firmado pela Receita Federal à época de que a isenção concedida pela LC 70/91 só se aplicaria às sociedades que apurassem o Imposto de Renda com base nos ditames no aludido Decreto-lei nº 2.397/87, ou seja, as sociedades civis teriam que atender à condição do art. 2º, § 1º, do Decreto-lei nº 2.397/87 para poder fazer jus à isenção.

Argumentava-se, contrariamente ao entendimento fazendário, que a isenção independeria do regime tributário para fins do Imposto de Renda, pois a referência feita pelo artigo 6º da LC 70/91 era de cunho subjetivo, voltada apenas para identificar o beneficiário da isenção – as Sociedades Civis definidas no Decreto-lei nº 2.397/87 – e, em momento algum, condicionava o benefício isentivo somente às Sociedades Civis que apurassem o imposto de renda segundo o regime ali estabelecido.

E foi na esteira desta discussão – se o regime tributário adotado pela sociedade civil seria uma condição para o gozo da isenção – que se formou a Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça, ao prever no seu texto: “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário adotado”. Os julgamentos que deram origem à Súmula 276 do STJ, apesar de abordarem também a questão da revogação da isenção da COFINS feita pelo artigo 56 da Lei nº 9.430/96, não tinham este como objeto principal da lide, já que discutiam a inexistência ou não de condição legal para o gozo do benefício.

Esse verbete da Súmula 276 do STJ esclarecia, apenas, que a concessão do benefício tributário previsto no artigo 6º, II, da Lei Complementar 70/91 não levaria em conta o regime de tributação do imposto de renda escolhido pela sociedade civil, desde que esta preenchesse os requisitos previstos no artigo 1º do Decreto-Lei nº 2.397/87. Referia-se, pois, a momento anterior à edição da Lei Federal nº 9.430/96 que, por sua vez, revogou, para todas as Sociedades Civis de profissão regulamentada, a isenção da COFINS anteriormente instituída.

Portanto, a aplicação da Súmula 276 do STJ se adequava, apenas e tão somente, aos casos em que se tivessem questionando aquela suposta condição para o gozo da isenção. Porém, lamentavelmente, ela acabou sendo aplicada fora do seu contexto e além do seu objeto, exportada para o debate da revogação da isenção introduzida pela Lei nº 9.430/96, o que influenciou os rumos daquela discussão em todos os tribunais do país.

Enquanto vigeu a citada súmula do STJ4, inúmeras ações judiciais se aproveitaram da aplicação indiscriminada daquele verbete para influenciar os julgamentos e reafirmar a tese de que, com fulcro no Princípio da Hierarquia das Leis, uma Lei Ordinária não poderia revogar norma originária de Lei Complementar, sendo, portanto, ilegítima a revogação instituída pela Lei nº 9.430/96 da isenção conferida pela Lei Complementar nº 70/91 às sociedades civis de profissão regulamentada.

Neste contexto, quase que em “progressão geométrica” a tese proliferou e se solidificou, ensejando o surgimento em todos os Tribunais regionais do País, inúmeros acórdãos transitados em julgado, afirmando ser ilegítima a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis.


E como a discussão ainda não havia alcançado o Supremo Tribunal Federal, não sendo tratada a questão como matéria de foro constitucional, em um primeiro momento, a interposição de ação rescisória pela Fazenda Nacional encontrava resistência por força da orientação contida na Súmula 343 do STF5, que obstava o conhecimento da medida. E, quando superado este argumento, por se reconhecer o duplo viés na controvérsia (constitucional e infraconstitucional), os Tribunais Regionais Federais buscavam prestigiar o teor da Súmula 276 para não rescindir os julgados, acompanhando os Ministros do STJ que decidiam monocraticamente os recursos fazendários, inclusive, com aplicação de multa por litigância de má-fé (AgRg no Resp nº 529.654, DJ 2/2/2004, Relator Ministro José Delgado).

Pois bem, neste cenário pouco se podia fazer para combater os acórdãos que transitavam em julgado afastando a revogação da isenção da COFINS para as sociedades civis, até que, em 2008 o panorama muda com o pronunciamento do Plenário do STF.

III – O Julgamento pelo STF e o seu Efeito no Cenário Jurídico Estabelecido

Em 17 de setembro de 2008 o Pleno do Supremo Tribunal Federal julgou os Recursos Extraordinários nº 377.457 e 381.964 entendendo constitucional, por 08 votos a 02 (vencidos os Ministros Eros Grau e Marco Aurélio), o artigo 56 da Lei Ordinária 9.430/96, que revogou a isenção concedida às sociedades civis pela LC nº 70/91. Nesta mesma Sessão o Pleno do STF afastou o pedido de modulação dos efeitos da decisão e aplicou a metodologia do artigo 543-C do CPC, dando repercussão geral ao tema.

No julgamento, considerou-se a orientação fixada pelo STF na ADC nº01/DF (DJU de 16.06.1995), no sentido de que não haveria hierarquia constitucional entre lei complementar e lei ordinária – mas apenas âmbitos materiais de atuação distintos – e que seria inexigível o instrumento de lei complementar para disciplinar os elementos próprios à hipótese de incidência das Contribuições Sociais desde logo previstas no texto constitucional, como no caso da COFINS. Assim, para o STF, o art. 56 da Lei nº 9.430/96 seria dispositivo legitimamente veiculado por legislação ordinária para revogar dispositivo inserto em norma materialmente ordinária, no caso, a LC nº 70/91.

Em seguida ao julgamento do mérito, o Tribunal, por maioria, rejeitou pedido de modulação de efeitos. Muito foi dito a respeito da necessidade de se aplicar, por analogia, o disposto no artigo 27 da Lei nº 9.868/996 ao presente caso, visando garantir a segurança jurídica das situações já consolidadas e para respeitar a boa-fé dos contribuintes que, na dúvida, foram buscar o judiciário para obter um provimento que lhes assegurassem segurança e certeza quanto à tese por eles proposta – e muitos efetivamente obtiveram.

A controvérsia da matéria se revelou no julgamento desta questão de ordem, tendo havido manifestações em ambos os sentidos – contra e a favor da modulação dos efeitos. Importante, neste momento, destacar alguns votos que demonstram a dificuldade no consenso.

Para o Ministro Marco Aurélio, no seu voto a favor da aplicação da modulação dos efeitos, os cidadãos em geral “acreditaram que tudo quanto contido na Lei Complementar nº 70/91 estaria abrangido pela nomenclatura referida” (fls. 1.883) e “acreditando na postura do Estado, na segurança jurídica que os atos editados visam a implementar, deixaram de recolher a contribuição. Outros, em estagio suplantado posteriormente, atuaram procedendo a depósito e, considerada pacificada a matéria, vieram a levantar os valores” (fls. 1.885). Na mesma esteira, justificou a sua posição o Ministro Menezes Direito ao registrar que as pessoas atingidas pelo julgamento não seriam grandes, mas, sim, pequenos contribuintes (fls. 1.894). E, mais adiante, o Ministro Celso de Mello, com veemência, asseverou: “que há de prevalecer nas relações entre o Estado e o contribuinte, em ordem a que as justas expectativas deste não sejam frustradas por atuação inesperada do Poder Público… os cidadãos não podem ser vítimas da instabilidade das decisões proferidas pelas instâncias judiciárias ou das deliberações emanadas dos corpos legislativos” (fls. 1.906 e 1.907).

Mas em sentido contrário, votou o Ministro Carlos Brito, afirmando que “a confiança do contribuinte não chegou a ser abalada” porque o que o STF apenas confirmou uma teoria – da distinção entre lei complementar material e formal – que já vinha sendo aprofundada por doutrinadores como Souto Maior Borges, Geraldo Ataliba e Celso Ribeiro Bastos (fls. 1.900). O Ministro Gilmar Mendes corroborou este entendimento, manifestando-se contrariamente à modulação, pois, para ele, a matéria já era jurisprudência no Supremo Tribunal Federal na ADC 1/93, demonstrando, ademais, a sua preocupação no fato de sempre que houver uma reversão de um entendimento pela Corte, estar o STF obrigado a realizar uma modulação de efeitos. Finalmente, o Ministro Cezar Peluso, ao manifestar o seu juízo contrário à modulação, de maneira categórica justificou:

Primeiro, porque, realmente, como sustentei em meu voto, com o devido respeito, não vi densidade jurídica que justificasse uma confiança dos contribuintes a respeito dessa tese.

Segundo, penso que não podemos, vamos dizer, baratear o uso analógico da modulação para julgamentos no controle dos processos subjetivos, porque, se não, vamos transformá-la em regra: toda vez que alterarmos a jurisprudência dos outros tribunais, teremos, automaticamente, por via de conseqüência, de empresar a mesma limitação.

Em terceiro lugar, no caso concreto, parece-me que, como se afirma a constitucionalidade, no fundo o Tribunal estaria concedendo uma moratória fiscal, se limitasse os efeitos.7

O que se extrai do julgamento desta questão de ordem – com a rejeição à modulação dos efeitos da decisão – é a controvérsia e a dificuldade que os próprios Ministros do STF tiveram para se identificar e reconhecer se houve realmente uma efetiva mudança de posicionamento jurisprudencial capaz de violar a segurança jurídica do contribuinte e a ensejar a proteção da sua boa-fé a fim de impedir a cobrança retroativa do tributo.

De toda a forma, a partir do julgamento proferido pelo STF neste RE 377.457, instaura-se uma nova forma de pensar naquele cenário jurídico brasileiro que havia se consolidado no sentido de que a revogação da isenção da COFINS das sociedades civis seria ilegítima. Passando a ser considerado constitucional o fim do benefício fiscal, e não havendo qualquer tipo de modulação dos efeitos, a decisão do STF ganha força ex tunc, gerando um conflito entre a dicção dos acórdãos transitados em julgado que entendiam inconstitucional a revogação da isenção e o teor daquele novo pronunciamento paradigmático pela Corte Suprema, provocando a busca por meios e formas legítimos para se reverter as situações consolidadas em sentido contrário.

IV – A Coisa Julgada , sua Formação, seus Limites e Efeitos

Tendo feito este prévio reconhecimento de cenário, identificando as condições em que a controvérsia surgiu e como ela se consolidou, passamos a analisar o aspecto principal deste estudo, qual seja, a delimitação do instituto da coisa julgada, seus limites e conseqüências jurídicas, para que se possa estabelecer corretamente a amplitude e alcance dos efeitos que estão aptos a produzir os acórdãos transitados em julgado que declararam inconstitucional a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis de profissão regulamentada.

A coisa julgada é o instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, ao garantir ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda seja definitiva e que não possa mais ser rediscutida, alterada ou desrespeitada. Trata-se de uma garantia de segurança que impõe definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida.8

Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier9, “a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas uma qualidade que se agrega aos efeitos da sentença”. Expressões como imutabilidade, definitividade e intangibilidade são inerentes seu conceito e exprimem um atributo do objeto a que se referem.10

Portanto, com o resultado final de um processo judicial em que se confere um bem jurídico a alguém, estará definitivamente solucionada a controvérsia a partir das situações fáticas e jurídicas apresentadas nos autos, objeto da lide. A este resultado final – esgotados os meios recursais cabíveis – será agregado o efeito de imutabilidade ou intangibilidade que a coisa julgada representa.

Embora tenha status constitucional, as condições para a sua formação e produção de efeitos são definidas pelo legislador infraconstitucional. E são estas condições previstas no Código de Processo Civil que conferem os contornos à coisa julgada que precisamos conhecer e analisar.A coisa julgada contém dois aspectos que representam a sua estrutura fisiológica e identificam o seu perfil dogmático: a) os seus limites subjetivos, onde são identificadas aquelas pessoas ou partes que se submeterão aos seus efeitos; e b) os seus limites objetivos, pelos quais se estabelecem o objeto ou o conteúdo da decisão judicial que ganhará sua proteção e ficará acobertado por seus efeitos, indicando os pressupostos necessários para a sua formação.11

Em relação aos seus limites subjetivos, o direito processual brasileiro adotou a regra geral de que a coisa julgada produz efeitos apenas entre as partes (artigo 47212 do CPC). Há, entretanto, exceções que impõem efeitos ultra partes ou erga omnes, para atingir terceiros, tal como ocorre nos casos de substituição processual ou de legitimação concorrente, nos processos de usucapião, nas ações coletivas ou nas ações de controle concentrado, dentre outros. Todavia, este aspecto não é tão importante na nossa análise.


Já os limites objetivos, que estabelecem o objeto e os contornos de proteção da coisa julgada, se formam a partir da norma jurídica concreta e inpidualizada, criada pelo Poder Judiciário, a partir do pedido feito pela parte e o que lhe foi entregue no dispositivo da sentença ou acórdão que julgou a lide (artigo 46813 do CPC), ficando de fora do âmbito dos seus efeitos os motivos, as verdades dos fatos e as questões prejudiciais incidentais (artigo 46914 do CPC).

Barbosa Moreira identifica estes limites de maneira muito clara ao exemplificar a situação em que uma pessoa “X” ajuíza uma ação de despejo contra outra “Y”, tendo como motivo da rescisão contratual uma infração grave por ter o locatário danificado o imóvel alugado. Ainda que o pedido seja procedente, o motivo e os fatos (danos no imóvel) que deram ensejo a sentença não ficam cobertos pela autoridade da coisa julgada, pois em um novo processo, em que “X” venha a pleitear uma indenização contra “Y” pelos prejuízos sofridos decorrentes daqueles danos, estes fatos e motivos não são vinculantes ao juízo desta nova causa, pois o pedido poderá vir a ser rejeitado, entendendo o outro magistrado que não ficou provado o fato da danificação.15

Para a nossa análise do caso em concreto, é relevantíssimo identificar corretamente o que exatamente foi pedido pelo contribuinte (afastamento do ordenamento jurídico da norma que revogou a isenção), com a compreensão de que os motivos (violação ao Princípio da Hierarquia entre Leis) constantes da sua fundamentação que ensejaram os julgamentos não estão abrangidos pelos efeitos da coisa julgada, não produzindo reflexos prospectivos em face de mudança de legislação posterior.

Sobre esta afirmação, nos apoiamos na importante lição de Fredie Didier Jr:

É na fundamentação que o magistrado resolve as questões incidentais, assim entendidas aquelas que devem ser solucionadas para que a questão principal (o objeto litigioso do processo) possa ser decidida. Daí se vê que é exatamente aqui, na motivação, que o magistrado deve apreciar e resolver as questões de fato e de direito que são postas à sua análise. […]

Vale lembrar, ainda, que é também na fundamentação que o órgão jurisdicional deverá deliberar sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de ato normativo, acaso a questão seja suscitada pelas partes ou mesmo analisada de ofício – o que é possível, por se tratar, igualmente, de questão de direito. […]

As questões resolvidas na fundamentação da decisão judicial não ficam acobertadas pela coisa julgada material (art. 469, CPC). Por esta razão, tudo que aí é analisado pelo magistrado pode ser revisto em outros processos, que envolvam as mesmas ou outras partes, não se submetendo os julgadores desses outros processos às soluções alvitradas na motivação das decisões anteriores. A coisa julgada material, conforme se verá no capítulo próprio, torna intangível apenas o conteúdo da norma jurídica concreta estabelecida no dispositivo da decisão judicial.16

No caso específico da revogação da COFINS das Sociedades Civis, o contribuinte pleiteava ao Poder Judiciário – e obtinha – o afastamento da norma que revogou a isenção (art. 56, L.9.430/96) sob o motivo de que teria havido uma violação ao Princípio da Hierarquia de Leis. Assim, ainda que não se possa atingir o comando proferido pelo magistrado que afastou a norma revogadora da isenção do ordenamento jurídico, devido à proteção dada pela coisa julgada, os motivos que ensejaram aquela decisão não podem vincular e atingir fatos futuros, não impondo as razões que motivaram aquela decisão concreta às mudanças jurídicas supervenientes de maneira abstrata e geral. Portanto, a exigência da necessidade de Lei Complementar para revogar a isenção dada pela LC 70/91 (motivos) não atinge ou obsta os efeitos de legislação posterior que venha a alterar as circunstâncias jurídicas da tributação, ainda que esta tenha a forma de lei ordinária17. E, caso se queira impor a mesma ratio decidendi, deverá tal pretensão ser objeto de nova demanda judicial e aguardar que haja a mesma compreensão dada ao processo anterior.

V – A Cláusula Rebus Sic Sta nti bus no Processo Civil e as Relações Continuativas

As conclusões até aqui chegadas são especialmente relevantes nas ditas relações jurídicas de natureza continuativa, típicas nas matérias tributárias, cujas exigências ocorrem periodicamente, embora versadas a partir de um único texto legal, tal como é o caso da tributação da COFINS. Isto porque nestas relações, as obrigações objetos de questionamento judicial são homogêneas e de trato sucessivo, onde situações futuras estão vinculadas a situações presentes e as decisões judiciais – sentenças e acórdãos transitados em julgado – versam sobre uma relação jurídica que se projeta no tempo, atingindo, no caso da tributação, os vencimentos futuros de determinada espécie tributária, seja para confirmá-los ou para afastá-los.

A coisa julgada aqui formada se torna imutável e indiscutível, protegendo todas essas relações decorrentes do trato sucessivo, desde que não haja qualquer mudança nas circunstâncias de fato ou de direito. Isto porque a coisa julgada se forma – em qualquer demanda, inclusive nas relações continuativas – levando-se em consideração: a) um determinado pedido; b) uma determinada circunstância fática ou jurídica; e c) uma conclusão chegada – dispositivo da sentença – à luz dos fatos e do direito que foram objeto de apreciação judicial.

Enquanto as circunstâncias fáticas e jurídicas não se alterarem nesta relação continuativa, a coisa julgada estará produzindo efeitos sobre cada desdobramento. Todavia, a cláusula rebus sic stantibus se revela no momento em que houver qualquer modificação nos fatos ou no direito, já que a partir de então a coisa julgada não mais terá eficácia, ou melhor, sua eficácia estará limitada à situação original, pois o pedido feito originalmente referia-se a uma situação fática ou jurídica anterior, ainda não modificada. Para esta nova circunstância, há que se realizar nova demanda judicial, apresentando os novos fatos ou novo direito e, ao final, se obterá uma nova coisa julgada.

No julgamento do Recurso Especial nº 720.736-PE, em 13/11/2007, a Ministra Denise Arruda cita as lições do Ministro Teori Zavascki sobre a cláusula rebus sic stantibus e seus efeitos na coisa julgada, in verbis:

A sentença (proferida em relação jurídica de caráter sucessivo) tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. Se ela afirmou que uma relação jurídica existe ou que tem certo conteúdo, é porque supôs a existência de determinado comando normativo (norma jurídica) e de desta Contribuição Social. determinada situação de fato (suporte fático de incidência); se afirmou que determinada relação jurídica não existe, supôs a inexistência, ou do comando normativo, ou da situação de fato afirmada pelo litigante interessado. A mudança de qualquer desses elementos compromete o silogismo original da sentença, porque estará alterado o silogismo do fenômeno de incidência por ela apreciado: a relação jurídica que antes existia deixou de existir, e vice-versa. Daí afirmar-se que a força da coisa julgada tem uma condição implícita, a da cláusula rebus sic stantibus, a significar que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. (ZAVASCKI, Teori Albino. “Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional” – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001).

Esta lógica vem amparada no teor do artigo 471 do CPC que estabelece que: “Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”. Comentando o dispositivo supra, Luiz Guilherme Marinoni explica que:

A coisa julgada vincula em dado espaço de tempo. Enquanto persistir o contexto fático-jurídico que deu lugar à sua formação, persiste sua autoridade. Modificando-se, contudo, os fatos jurídicos sobre os quais se pronunciou o órgão jurisdicional, a coisa julgada não mais se verifica. É neste sentido que se afirma que a coisa julgada nasce gravada com a cláusula rebus sic stantibus.18

A conclusão a qual se chega é que não há qualquer violação da coisa julgada e nem o dispositivo acima analisado autoriza a sua mitigação, pois ela produzirá seus efeitos de maneira inatingível e imutável apenas enquanto as circunstâncias sobre as quais ela se formou permanecerem as mesmas. Daí a aplicabilidade da cláusula rebus sic stantibus. Assim é o que esclarece o Ministro Luiz Fux:

Essa imutabilidade que se projeta para fora do processo quando o decidido atinge a questão de fundo não sofre qualquer exceção, nem mesmo pelo que dispõem os incisos I e II do artigo 471 do Código de Processo Civil. É que, nessas hipóteses, o juiz profere “decisão para o futuro” e, por isso, com a cláusula de que o seu conteúdo é imodificável se inalterável o ambiente jurídico em que a decisão foi prolatada. […] Desta sorte, como a decisão de mérito provê para o futuro, permitese a revisão do julgado por fato superveniente que, por si só, afasta a impressão de ofensa à coisa julgada posto que respeitante a fatos outros que não aqueles que sustentaram a decisão trânsita.19

Registre-se que o comando contido no artigo 471-I do CPC não vem sendo interpretado – nem pela doutrina e nem pela jurisprudência – de maneira literal e estrita, a exigir sempre que, diante de mudanças nas circunstâncias fáticas ou jurídicas, a parte tenha que demandar judicialmente uma reforma do que foi decidido. Na realidade, a necessidade de uma ação revisional só se demonstra quando as mudanças fáticas ou jurídicas supervenientes não são suficientes para definir completamente as novas relações por elas instauradas, embora sejam suficientes para afetar o quadro anterior. É o que ocorre, por exemplo, no caso das ações de revisão de aluguel ou de alimentos, pois nestas relações, as partes dependerão do pronunciamento do juiz para determinar o novo valor da obrigação.


Já no caso da tributação, esta ação revisional não se faz necessária, pois ocorrendo mudança da legislação, ao estabelecer algum novo elemento do fato gerador da obrigação tributária, surgirá para o contribuinte uma nova obrigação tributária de trato sucessivo persa da anterior e que não foi objeto da lide onde a coisa julgada se formou anteriormente.

A legislação tributária superveniente poderá, eventualmente, fixar nova alíquota, nova base de cálculo ou mesmo um novo contribuinte, modificando algum elemento fundamental da obrigação tributária anterior, suficiente e necessário para criar uma nova relação tributária continuativa.

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou a este respeito, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 703.526- MG20, ao validar a incidência da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido prevista na Lei 7.689/88, considerada inconstitucional, em face de mudança superveniente do quadro normativo daquela contribuição, que foi posteriormente alterado pelas Leis 7.856/89, 8.034/90 e 8.212/91.

E é seguindo esta linha de raciocínio que propomos a reflexão, pois posteriormente a edição da Lei nº 9.430/1996, que revogou a isenção da COFINS das Sociedades Civis, o ordenamento jurídico-tributário brasileiro passou por persas modificações legislativas, alterando substancialmente o suporte jurídico da incidência daquela Contribuição Social, inclusive no que se refere ao aspecto subjetivo (contribuinte), como passamos a analisar.

VI – A Muda nça Superveniente da Legislação da COFINS

Como sabemos, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido foi instituída pela Lei Complementar nº 70/1991, que, nos seus artigos 1º e 2º, fixou expressamente os elementos subjetivos (contribuintes) e quantitativos (alíquota e base de cálculo) do seu fato gerador, e, mais adiante, no seu artigo 6º, concedeu a isenção do tributo para as Sociedades Civis, in verbis:

Art. 1º. Sem prejuízo da cobrança das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), fica instituída contribuição social para o financiamento da Seguridade Social, nos termos do inciso I do art. 195 da Constituição Federal, devida pelas pessoas jurídicas inclusive as a elas equiparadas pela legislação do imposto de renda, destinadas exclusivamente às despesas com atividades-fins das áreas de saúde, previdência e assistência social.

Art. 2º. A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza.

Art. 6º. São isentas da contribuição: […]

II – as sociedades civis de que trata o art. 1º do Decreto-Lei nº 2.397, de 21 de dezembro de 1987.

Em 1996 operou-se uma mudança na tributação da COFINS, especificamente em relação ao seu aspecto subjetivo (contribuintes). Assim, mantendo incólumes todos os demais elementos da obrigação tributária desta contribuição social, a Lei nº 9430 revogou aquela isenção da COFINS das Sociedades Civis que havia sido concedida pela LC 70/91, conforme dispôs categoricamente o seu artigo 56:

Art. 56 As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991.

Parágrafo único. Para efeito da incidência da contribuição de que trata este artigo, serão consideradas as receitas auferidas a partir do mês de abril de 1997.

Pois bem, em 1998 é realizada uma relevante alteração legislativa na alíquota e na base de cálculo da COFINS, conforme dispôs a Lei nº 9.718. Entretanto, a norma em comento não prescreveu apenas a majoração dos elementos quantitativos do tributo. Mencionou, também, expressamente no seu texto (artigo 2º), que a Contribuição Social é devida pelas “pessoas jurídicas de direito privado”, oferecendo, assim, um novo suporte jurídico para o elemento subjetivo do fato gerador, in verbis:

Art. 2º As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com base no seu faturamento, observadas a legislação vigente e as alterações introduzidas por esta Lei.

Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica.

Art. 8º Fica elevada para três por cento a alíquota da COFINS.

Outra alteração no suporte jurídico da COFINS se deu pela Lei nº 10.833/2003, que introduziu a metodologia da não-cumulatividade para este tributo e, mais uma vez, mencionou expressamente no seu artigo 5º o aspecto subjetivo do fato gerador, in verbis:

Art. 1º A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, com a incidência não-cumulativa, tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.

Art. 2º Para determinação do valor da COFINS aplicar-se-á, sobre a base de cálculo apurada conforme o disposto no art. 1º, a alíquota de 7,6% (sete inteiros e seis décimos por cento).

Art. 5º O contribuinte da COFINS é a pessoa jurídica que auferir as receitas a que se refere o art. 1º.

O que se percebe é que todas estas alterações legislativas, além de modificarem algum elemento específico da obrigação tributária em relação a COFINS, traziam no corpo do seu texto a menção expressa ao aspecto subjetivo da obrigação tributária, repetindo sempre que o seu contribuinte é a “pessoa jurídica de direito privado”, sem apresentar qualquer ressalva quanto às Sociedades Civis de profissão regulamentada, levando em consideração que se já encontrava revogada a isenção para as Sociedades Civis, razão pela qual não seria necessária nova revogação expressa.

De qualquer forma, esta generalização do aspecto subjetivo na incidência da COFINS já era suficiente para fazer incidir a contribuição social sobre todas as pessoas jurídicas de direito privado que obtiverem um faturamento mensal, na forma da legislação própria.

Aqui está, portanto, a mudança na circunstância jurídica, objeto da cláusula rebus sic stantibus, que limita os efeitos da coisa julgada que declarou ilegítima a revogação da isenção da COFINS. Estes acórdãos apenas afastavam do ordenamento jurídico o artigo 56 da Lei nº 9.430/96 e, a partir deles, a conseqüência lógica seria a isenção. Vindo, entretanto, nova legislação superveniente a afirmar categoricamente que a COFINS será devida por todas as pessoas jurídicas de direito privado, aquela isenção anteriormente mantida por força de um pronunciamento judicial cai por terra diante do novo suporte jurídico.

VII – O Acolhimento da Tese na Jurisprudência: TRF2 e STJ

Reconhecendo as mudanças legislativas supervenientes em relação a COFINS e dando efetividade à cláusula rebus sic stantibus, os Tribunais Regionais Federais do país e, até mesmo o Superior Tribunal de Justiça vêm se pronunciando pela incidência da contribuição social para as Sociedades Civis, limitando os efeitos dos seus acórdãos que declararam ilegítima a revogação do benefício fiscal pela Lei nº 9.430/96, a partir da entrada em vigor das normas anteriormente analisadas.

Neste sentido, afirmou o STJ:

STJ – RESP 200500540062 (REsp é 739.784) – Relator(a) MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA – DJE DATA: 27/11/2009

Ementa : PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. COFINS. SOCIEDADES CIVIS PRESTADORAS DE SERVIÇO. ISENÇÃO. LC N. 70/91. REVOGAÇÃO. LEI N. 9.430/96. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 10.833/03. RETENÇÃO NA FONTE PELOS TOMADORES DE SERVIÇO. ALTERAÇÃO DA SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. ART. 463 DO CPC. APLICAÇÃO. RELAÇÃO FÁTICO-JURÍDICA NOVA. OFENSA À COISA JULGADA. NÃO-OCORRÊNCIA, IN CASU. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA NOS MOLDES LEGAIS. […]

2. O mandado de segurança em testilha assegurou às sociedades civis de se eximirem do recolhimento da COFINS, com base na isenção concedida pela LC n. 70/91, em face da revogação promovida pelo art. 56 da Lei n. 9.430/96. Ou seja, a tutela judicial foi prestada com espeque nas razões desenvolvidas no writ, que foram articuladas sob determinado contexto fático para que fosse reconhecida a isenção da contribuição, em virtude de não ser possível a revogação de lei complementar por uma lei ordinária – entendimento decorrente do princípio da hierarquia das leis, não mais aplicável ao caso, segundo orientação consagrada pelo STF.


3. A despeito de cuidar da própria espécie tributária (COFINS), a superveniência da Lei n. 10.833/03 não pode ser alcançada pelos efeitos da coisa julgada que concedeu a segurança postulada, de modo a ampliar o objeto da lide, pois a controvérsia em tela foi decidida com base em moldes fáticos e jurídicos próprios do caso concreto, descabendo, neste momento, a pretensão formulada pela recorrente no sentido de garantir aos tomadores de serviços a isenção da retenção na fonte do recolhimento da contribuição, prevista no art. 30 da precitada lei. […]

5. Recurso especial não provido.

Mais recentemente, em 19 de outubro de 2010, a 3ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região julgou, por unanimidade, procedente o Agravo de Instrumento nº 2010.02.01.005953- 3, interposto pela Fazenda Nacional, que visava cassar a decisão do magistrado de 1ª instância que impedia a fiscalização, o lançamento e a cobrança da COFINS, com suporte em um acórdão transitado em julgado onde era concedido ao impetrante – Sociedade Civil – o direito a manutenção da isenção revogada pela Lei nº 9.430/96. No acórdão, foi expressamente destacada a cláusula rebus sic stantibus, onde se reconheceu a mudança do suporte jurídico da tributação da COFINS. Trasncrevemos os seguintes trechos do voto do Desembargador Federal José Ferreira Neves Neto (Fls. 450-453):

[…] É cediço que a coisa julgada material traz em seu bojo a idéia de segurança jurídica, ei que, após decidida uma determinada causa, a matéria que lhe é subjacente passa a ser indiscutível entre as partes. Dessa forma, a autoridade da coisa julgada se sustenta, sempre, no estado de fato e de direito que envolve a prolação da sentença. A rigor, a imutabilidade de qualquer decisão de mérito fica condicionada à observância da cláusula rebus sic stantibus. Nas relações continuativas, porém, esse limite da coisa julgada material avultam, pois é justamente essa espécie de vínculo jurídico que se sujeita, por se protrair no tempo, a alterações na realidade fática ou em seu regime jurídico. […]

Com efeito, a defesa da agravada se funda em decisão transitada em julgado que lhe concedera o direito de não ser compelida ao recolhimento da COFINS incidente “sobre os atos praticados pelas sociedades uniprofissionais, em razão da ilegitimidade da revogação do art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91, pela ei nº 9.430/96”, conforme dispositivo do voto que fundamentou o acórdão.

O ato apontado como coator pela agravada consiste na alegada violação à coisa julgada pela autoridade da Receita Federal do Brasil, tendentes a promover qualquer cobrança a título de COFINS, vez que ela ostenta a condição de isenta da referida contribuição, por força de decisão judicial.

A autuação da Autoridade Fiscal, consistente na apuração da COFINS, teve como suporte a alteração substancial do quadro normativo promovido pelas Leis nºs 9.718/98 e 10.833/03. Os referidos diplomas, que alteram a legislação tributária federal, criam e regulam novo suporte jurídico para a incidência da contribuição, fixando uma relação jurídica tributária distinta da anterior. […]

Assim, por ter sobrevindo modificação no estado de direito que acarretou o surgimento de uma nova relação jurídico tributária, não mais subsistia a coisa julgada material como cristalização do que fora decidido no processo originário.

Ademais, o princípio constitucional da igualdade impõe que casos idênticos sejam regidos pela mesma regra jurídica, ressalvadas, por lógico, diferenciações objetivas fundadas em situações inpiduais específicas; Pelo exposto, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento, para suspender a decisão agravada, a fim de que a Receita Federal do Brasil possa realizar as atividades de fiscalização, lançamento e cobrança da COFINS em relação à agravada, observada a legislação tributária em vigor.

É como voto.

VIII – Conclusão

É inegável reconhecer que a partir do julgamento realizado pelo Plenário do STF do RE 377.457 em 2008, declarando constitucional a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis feita pela Lei nº 9.430/96, a manutenção dos inúmeros acórdãos já transitados em julgado em sentido contrário se tornou insustentável, não apenas por representarem um pronunciamento de um Poder Público contrário à ordem constitucional, criando a denominada “coisa julgada inconstitucional”, mas, também, por criar uma situação anti-isonômica entre contribuintes em iguais condições – as Sociedades Civis – ao conferir um tratamento fiscal mais benéfico apenas aos contribuintes que obtiveram judicialmente um pronunciamento neste sentido.

Entretanto, sem querer, neste momento, adentrar em uma seara mais arenosa desta discussão, que envolve a análise dos efeitos da teoria da “verticalização da jurisprudência dos tribunais superiores”, pretendemos oferecer uma alternativa pautada na aplicação da cláusula rebus sic stantibus, inserta no artigo 471-I do Código de Processo Civil, para limitar temporalmente os efeitos destes acórdãos – sem se pretender desconstituílos ou relativizá-los – até o momento da entrada em vigor da legislação que tratou da COFINS e conferiu um novo suporte jurídico à sua incidência, que não foi objeto de apreciação daqueles julgados.

Finalmente, importante registrar que embora tenhamos escolhido para esta análise o caso concreto da revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis de profissão regulamentada, acreditamos que a metodologia que aqui se analisou possa ser igualmente aplicável a outros casos de similar enquadramento no Direito Tributário, cuja legislação é uma das mais dinâmicas do Direito brasileiro.

Notas

1 Recursos Extraordinários 377.457 e 381.964.
2 Lei nº 9.430/96 – Art. 56. As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991.
3 Lei Complementar nº 70/1991 – Art. 6° São isentas da contribuição: […] II – as sociedades civis de que trata o art. 1° do Decreto-Lei n° 2.397, de 21 de dezembro de 1987.
4 Julgando a AR 3.761-PR, na sessão de 12/11/2008, a Primeira Seção deliberou pelo CANCELAMENTO da súmula n. 276.
5 STF, Súmula 343: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
6 Lei nº 9.868/99 – Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
7 STF: Recurso Extraordinário 377.457-3 – Paraná – Data: 17/09/2008, folha 1.903.
8 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010. p. 408.
9 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p 19.
10 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 5.
11 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010. p. 417.
12 CPC – Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.
13 CPC – Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
14 CPC – Art. 469. Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; Il – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
15 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os Limites Objetivos da Coisa Julgada no Sistema do Novo Código de Processo Civil. In Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 93.
16 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, vol. 2. 5.ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010. p. 291-296.
17 Veremos, adiante, que normas como a Lei nº 9.718/1998 e a Lei nº 10.833/2003 alteraram substancialmente o regime jurídico da COFINS, oferecendo um novo suporte legal para a incidência desta Contribuição Social.
18 MARINONI, Luiz Guilherme. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.468.
19 FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 825.
20 TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. EFICÁCIA TEMPORAL DA COISA JULGADA.


SENTENÇA QUE DECLARA A INEXIGIBILIDADE DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO, COM BASE NO RECONHECIMENTO, INCIDENTER TANTUM, DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 7.689/88. EDIÇÃO DA LEI 7.856/89. ALTERAÇÃO NO ESTADO DE DIREITO. CESSAÇÃO DA FORÇA VINCULATIVA DA COISA JULGADA. 1. A sentença, ao examinar os fenômenos de incidência e pronunciar juízos de certeza sobre as conseqüências jurídicas daí decorrentes, certificando, oficialmente, a existência, ou a inexistência, ou o modo de ser da relação jurídica, o faz levando em consideração as circunstâncias de fato e de direito (norma abstrata e suporte fático) que então foram apresentadas pelas partes. Por qualificar norma concreta, fazendo juízo sobre fatos já ocorridos, a sentença, em regra, opera sobre o passado, e não sobre o futuro. 2. Portanto, também quanto às relações jurídicas sucessivas, a regra é a de que as sentenças só têm força vinculante sobre as relações já efetivamente concretizadas, não atingindo as que poderão decorrer de fatos futuros, ainda que semelhantes. Elucidativa dessa linha de pensar é a Súmula 239/STF. 3. Todavia, há certas relações jurídicas sucessivas que nascem de um suporte fático complexo, formado por um fato gerador instantâneo, inserido numa relação jurídica permanente. Ora, nesses casos, pode ocorrer que a controvérsia decidida pela sentença tenha por origem não o fato gerador instantâneo, mas a situação jurídica de caráter permanente na qual ele se encontra inserido, e que também compõe o suporte desencadeador do fenômeno de incidência. Tal situação, por seu caráter duradouro, está apta a perdurar no tempo, podendo persistir quando, no futuro, houver a repetição de outros fatos geradores instantâneos, semelhantes ao examinado na sentença. Nestes casos, admite-se a eficácia vinculante da sentença também em relação aos eventos recorrentes. Isso porque o juízo de certeza desenvolvido pela sentença sobre determinada relação jurídica concreta decorreu, na verdade, de juízo de certeza sobre a situação jurídica mais ampla, de caráter duradouro, componente, ainda que mediata, do fenômeno de incidência. Essas sentenças conservarão sua eficácia vinculante enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. 4. No caso presente: houve sentença que, bem ou mal, fez juízo a respeito, não de uma relação tributária isolada, nascida de um específico fato gerador, mas de uma situação jurídica mais ampla, de trato sucessivo, desobrigando as impetrantes de se sujeitar ao recolhimento da contribuição prevista na Lei 7.689/88, considerada inconstitucional. Todavia, o quadro normativo foi alterado pelas Leis 7.856/89, 8.034/90 e 8.212/91, cujas disposições não foram, nem poderiam ser, apreciadas pelo provimento anterior transitado em julgado, caracterizando alteração no quadro normativo capaz de fazer cessar sua eficácia vinculante.5. Recurso especial provido. (Julgamento em 02/08/2005, DJ 19/09/2005, p. 209)

Referências Bibliográficas

CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. I. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010.
FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
MARINONI, Luiz Guilherme. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os Limites Objetivos da Coisa Julgada no Sistema do Novo Código de Processo Civil. In Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1977.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003.
THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.


Temporalidade e segurança jurídica – Irretroatividade e anterioridade tributárias

Autor: Heleno Taveira Torres, Professor e Livre-Docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Doutor em Direito Tributário (PUC-SP). Presidente da Comissão de Graduação da Faculdade de Direito, Membro do Conselho Universitário e do Conselho de Graduação da USP. Vice-Presidente da International Fiscal Association – IFA e da Direção Executiva do Instituto Latinoamericano de Derecho Tributario – ILADT. Advogado.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A temporalidade das normas tributárias assume cada vez mais papel de preponderância na conformação de condutas do Fisco e dos contribuintes, dada a necessidade de previsibilidade e de contenção da retroação gravosa. Para proteger a previsibilidade, a confiança e a estabilidade no tempo, o ordenamento constitucional conta com as garantias, enquanto limites objetivos. A segurança jurídica e a certeza do direito conferem a todos o direito de sujeitarem-se unicamente à lei previamente existente, vedada qualquer retroatividade (lex prospicit, non respicit). Para tudo o que se possa considerar como “novo” conteúdo, deveras, aplicar-se-á o princípio de proibição da retroatividade, dos arts. 5.º, XXXVI, e 150, III, a, da CF. Lembrando as palavras de Canotilho: “os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial.”

1 A segurança jurídica da temporalidade no Sistema Constitucional Tributário brasileiro

O homem encontra no tempo a fonte das suas maiores inseguranças. Existir é coincidir em uma temporalidade contínua na qual somente por uma interpretação do “tempo” pode-se definir o “agora”, o “passado” e o “futuro”. O tempo interpretado equivale à constituição em linguagem daquela ontologia que é o “ser” no tempo”, pois, como diz Heidegger, só a “temporalidade possibilita a unidade da existência”.1 O direito organiza essa unidade de medida e, por cortes hermenêuticos, “cria” o “tempo público” e “ordena” o viver no tempo.

O tempo é um fato, um dado da realidade construída pela linguagem, mas o direito não se poderia aplicar sem o tempo “do” fato. Nesse processo heurístico e institucionalizante da temporalidade, o direito cria seus mecanismos para organizar a atividade do homem e do Estado ao longo desse contínuo marcado pelos fatos jurídicos.

A generalidade das normas jurídicas perfaz-se na temporalidade do direito2 e, por isso mesmo, tem sua duração definida pela vigência, seja esta ilimitada ou provisória. Os tipos abstratos contidos na generalidade positiva da norma permitem que o aplicador os oriente para qualquer ponto da temporalidade, segundo os fatos ocorridos, daí a necessidade de criação de critérios de definição quanto ao tempo do fato e certeza quanto à aplicabilidade da lei no tempo. Diz-se, costumeiramente, que toda norma deve ser irretroativa e que seus efeitos protraem-se para o futuro; com isso, qualquer retroatividade seria uma excepcionalidade.

Entretanto, vale atentar para o fato de que toda norma jurídica possui uma bidimensionalidade temporal, ou seja, pode ser aplicada tanto para disciplinar fatos futuros quanto para alcançar fatos passados, salvo nas hipóteses abrangidas pelas “regras de bloqueio” que vedem seus efeitos retroativos. Portanto, na falta dessas regras, somente construções amparadas na segurança jurídica ou no princípio de confiança legítima podem conter essa “disponibilidade” bidimensional da lei na regência do tempo.3 Dito de outro modo, na falta de “regras de bloqueio da retroatividade” expressas (v.g., art. 5.º, XXXVI, art. 150, III, a, da CF; disposição expressa da própria lei; LICC; art. 105 e 106, do CTN etc.), caberia ao sujeito afetado a possibilidade de alegar o princípio de confiança e estabilidade como proteção do estado de segurança que se exige do ordenamento, para conter a retroação normativa (regras de bloqueio da retroatividade implícitas). Esta “dominação” jurídica do tempo queda-se, assim, garantida pela segurança jurídica nas suas distintas formas de expressão.

Nesse processo de juridicização da temporalidade normativa, o direito prescreve o “decurso temporal” entre os “termos” inicial (a quo) e final (ad quem), qualifica o início da vigência, cria bloqueios normativos para retroações, estabelece efeitos para a datação do tempo público e gera ficções temporais. O próprio tempo legal é uma ficção do tempo como serem- si. E além desses aspectos, pertinentes ao tempo “no” sistema jurídico, não se pode olvidar do tempo “do” direito,4 que em tudo influi, no curso da sua historicidade e experiências da secularidade dos institutos, conceitos e aplicações do direito posto e do direito pressuposto.5 Nesse sentido, o direito constrói seu “tempo” na temporalidade que o faz presente.

As regras de anterioridade, anualidade e irretroatividade tem regime e eficácia típica de “garantia”. E ainda que o art. 150, caput, da CF, silenciasse sobre assegurar as garantias previstas, posto serem estes princípios que integram o conteúdo da garantia maior, que é a segurança jurídica, e pela função que estas exercem no sistema constitucional, de proteção de princípios de direitos e liberdades fundamentais, o regime de garantia teria preeminência sobre qualquer outro. Como já assentamos em passagem específica a respeito, nada impede que garantias possam se qualificar como princípios. A única diferença fica por conta da imponderabilidade, quando em eventual colisão com qualquer princípio. Neste caso, a garantia há de prevalecer, pelo efeito de proteção dos valores dos princípios que lhe são inerentes, como é o caso do princípio de não surpresa.

Somente princípios veiculam valores passíveis de preferibilidade. As garantias são princípios como “limites objetivos”6 e visam a proteger outros princípios que veiculam valores pertinentes a direitos ou liberdades fundamentais.

A estabilidade, estimabilidade, calculabilidade ou previsibilidade7 do direito integram a segurança jurídica na ordem temporal, pela previsão expressa das garantias de não-surpresa e de vedação de regulação ex post facto; e, assim, o respeito aos direitos adquiridos, à autoridade da coisa julgada, enquanto preservação da regra patere legem quam ipse fecisti, segundo a qual a autoridade deve suportar e respeitar a regra editada,8 além de determinação clara e objetiva de prazos de prescrição e decadência.

A segurança jurídica da norma tributária no tempo e do tempo da norma (estabilidade temporal) requer, ademais de todos os aspectos já assinalados, determinação objetiva quanto à frequência de exigibilidade dos tributos a cada exercício financeiro, por unicidade, renovação periódica, exigência provisória ou trato sucessivo; clara especificação quanto ao início da vigência das leis e tratamento da vacatio legis; a tipificação, tributo a tributo, incidência por incidência, do critério temporal da regra matriz de incidência, e, igualmente, toda a designação temporal dos atos ao longo dos procedimentos e processos de cobrança do tributo, a exemplo do lançamento, dos casos de extinção ou de suspensão da exigibilidade, inclusive quanto à decadência e prescrição, afora isenções, sanções aplicáveis ou obrigações formais.

Assim, o direito propõe-se regular as relações no tempo tanto como proibição da retroatividade do não benigno9, quanto em relação à vigência para o futuro.

Diante do amplo arquétipo de garantias constitucionais de estabilidade temporal em matéria tributária previsto na Constituição, e da própria norma geral em matéria de “legislação tributária”, que é o Código Tributário Nacional – CTN, especialmente pelos arts. 105, 106 e 146, confirma-se a vedação sistêmica do ordenamento brasileiro contra qualquer retroação de efeitos por atos legislativos, administrativos ou judiciais com efeitos erga omnes, excetuados unicamente os casos de fiscalizações sobre fatos não conhecidos pela Administração em lançamentos anteriores e as decisões em processos judiciais ou administrativos de casos concretos.

2 As garantias de irretroatividade , anua lidade e anterioridade no direito brasileiro

Para proteger a previsibilidade, a confiança e a estabilidade no tempo, o ordenamento constitucional conta com as garantias de irretroatividade, anterioridade e anualidade das leis tributárias. A garantia de irretroatividade do não benigno é princípio basilar da segurança jurídica. Mesmo nas constituições que não o contemplam expressamente, como na Alemanha,10 Itália,11 França,12 Espanha13 ou na Bélgica,14 ainda assim se aceita o postulado (teórico), confirmado em jurisprudência, da irretroatividade das leis tributárias.

Veremos que, no Brasil, são sobremodo relevantes os meios constitucionais adotados para afirmar a efetividade do princípio-garantia da segurança jurídica, por meio do art. 5.º, XXXVI, e do art. 150, III, da CF,15 para proteger os fatos e situações jurídicas consolidados no passado contra qualquer tentativa de modificação posterior; bem como para impedir inovação ou aumento de tributo sobre fatos anteriores tanto à publicação (irretroatividade) quanto à entrada em vigor da lei (anterioridade). Por conseguinte, como observa Tercio Sampaio Ferraz Jr., “a anterioridade, como a irretroatividade, é expressão do direito à segurança”.16 E acrescentamos: no Brasil, a certeza jurídica e a garantia de estabilidade de situações jurídicas asseguradas pela Constituição são o que nos diferencia de experiências alienígenas com significativa vantagem.

No cenário internacional, poucos países contemplam a irretroatividade tributária na Constituição, independentemente do princípio da proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito ou de uma cláusula de irretroatividade geral. Exemplos marcantes são Colômbia e Portugal. Outro país que assim o prevê é a Grécia, cuja Constituição traz em seu artigo 78, § 2 e 3, a previsão expressa de que um tributo ou qualquer outro ônus financeiro não pode ser cobrado por meio de lei retroativa, não obstante traga como hipóteses de exceção os impostos de importação, exportação e os impostos sobre o consumo.


Um grupo importante de países, porém, preferiu adotar a irretroatividade geral, com extensão às normas tributárias. Neste, encontram-se as Constituições da Bolívia, da Noruega, do México, do Paraguai e da Espanha. É bem verdade que este último país integra um subgrupo que adota a irretroatividade geral mitigada, pois o faz dentro de certas condições ou restrições materiais, como se vê no seu artigo 9(3), ou seja, restrita às disposições sancionadoras não favoráveis, restritivas de direitos individuais ou como arbitrariedade de autoridades.

Outro grupo de países integra-se por aqueles que possuem Constituições que não preveem explicitamente o princípio da irretroatividade, ainda que possa ser deduzido como corolário da legalidade. Este é o caso da Constituição do Peru, que dispõe sobre a tributação em seu artigo 74.

Na Alemanha, a Lei Fundamental de Bonn não trouxe uma regra expressa de proibição da retroatividade para as leis tributárias, limitandose ao direito penal, o que não é aplicável por analogia ao direito tributário, como explica Klaus Tipke.17 Diante disso, a Constituição transferiu para o Tribunal Constitucional a competência para definir diante do caso concreto as hipóteses de cabimento da irretroatividade das leis tributárias, o que somente seria possível a partir da segurança jurídica e do princípio do Estado de Direito.

Na nossa história constitucional, a garantia da irretroatividade das leis, em sentido amplo, aplicável a toda e qualquer matéria, veio expressa nas constituições de 1824 e de 1891, mantendo-se nas posteriores apenas para a lei penal.18 Em matéria tributária, a garantia de proibição da retroatividade das leis que instituem ou aumentam tributos19 só havia aparecido de forma expressa na Constituição de 1934.

Por outro lado, a garantia da anterioridade tributária, que assegura o princípio da não surpresa, ou seja, a segurança jurídica do tempo futuro,20 é fruto de considerável evolução ao longo da nossa história constitucional. No passado, esta garantia equivalia ao princípio da anualidade orçamentária, cuja finalidade era diversa, pois tinha como função autorizar os tributos a serem cobrados no exercício posterior.

Este foi o regime assentado nas Constituições de 1824, 1934, 1946 e 1967. Devia-se à noção de orçamento como “ato-condição” (Duguit) outrora adotado entre nós. Este modelo somente foi modificado com a Emenda 1, de 1969, para contemplar a continuidade das receitas exigíveis sem necessidade de autorização orçamentária anual.

Surge, assim, a anterioridade da lei tributária, sem prejuízo de a garantia da anualidade continuar a existir, agora, com renovadas funções, afora aquela da demarcação do exercício financeiro: para os fins de balizamento da própria anterioridade, quanto à publicação da lei (i) e para periodização dos tributos anuais, geralmente aqueles incidentes sobre propriedade de bens ou rendas (ii).

Na Constituição vigente, a anualidade, combinada com a irretroatividade e anterioridade das leis tributárias que instituem ou majoram tributos (art. 150 – III, da CF), adicionadas do regime geral de vedação da irretroatividade para modificar os atos aperfeiçoados no passado ou os direitos adquiridos, do art. 5.º, XXXVI, configuram o regime da segurança jurídica na função de estabilidade no tempo do nosso Sistema Constitucional Tributário.21

Reforça-se, assim, o estatuto constitucional do contribuinte, mediante substancial proteção a mudanças inopinadas, múltiplas cobranças anuais de tributos sobre patrimônio ou renda, retrospectividade de leis que instituam ou aumentam tributos, bem como daquelas que tenham por finalidade modificar atos ou direitos aperfeiçoados em tempos pretéritos. Com esse esforço de certeza jurídica, (a) contra modificações de situações jurídicas estabilizadas antes da vigência da lei e (b) contra tipificação de fatos tributários verificados no passado por leis novas que instituam ou aumentem tributos, poucas constituições estrangeiras oferecem regimes semelhantes.

Some-se a essas duas hipóteses o princípio de irretroatividade da lei penal (art. 5.º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina”), que surte eficácia em relação à tipicidade dos crimes contra a ordem tributária ou das sanções administrativas, dada a vinculação do art. 106, do CTN, com efeitos equivalentes para as normas instituidoras de regras tributárias sancionatórias ou mais gravosas.

3 A segurança jurídica esta bilizadora do passado: a garantia de irretroatividade das leis tributárias

A garantia da irretroatividade de leis que criem ou aumentem tributos consiste em vedação expressa para cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Segundo Gabba, o único direito adquirido, quanto à irretroatividade, é o de não suportar imposto maior do que aquele estabelecido pela lei atualmente em vigor.22 Contudo, isso precisa ser entendido em um sentido amplo que envolva todos os elementos da norma tributária, e.g., apuração de créditos, titularidade de sujeição passiva e outros. Como observado por Geraldo Ataliba: “O Estado não surpreende seus cidadãos; não adota decisões inopinadas que os aflijam”.23 Verdadeiramente, ao Estado deve impor-se uma ética legislativa coerente com a ordem constitucional e esta, por todos os princípios e garantias consagrados, veda, com firmeza, a surpresa e a retroação em matéria tributária. E a razão parece simples: somente manifestações de capacidade contributiva ao tempo da vigência da lei podem ser alcançadas para a incidência tributária.

O princípio da irretroatividade das leis na esfera tributária representa o respeito ao direito adquirido de ser tributado em relação a fatos geradores segundo os demonstrativos de capacidade contributiva no momento da sua constituição. Isso porque aquele que evidencia capacidade contributiva na ausência de previsão legal que a qualifique como passível de exação tributária ou que a alcance em certos limites, adquire o direito de não ser tributado em medida diversa daquela então vigente ao momento de aperfeiçoamento do fato jurídico tributário.

Não parece correto supor que a regra geral do ordenamento consiste na máxima de que toda lei gera efeitos apenas para o futuro (lex prospicit, non respicit), defeso a qualquer disposição normativa alcançar fatos anteriores à sua vigência. Mais do que um exercício de ontologismo, este aforismo jurídico dissolve-se na complexidade do direito. É preciso construir argumentos coerentes com os paradigmas, princípios e garantias adotados pelo direito positivo.

No caso do direito tributário brasileiro, para os demais casos (exclusive instituição ou aumento de tributo), o art. 105 do CTN veda a irretroatividade em geral, ao garantir a todos que a legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes.24 Os fatos pendentes, ao serem alcançados pelas leis novas, sofrem exclusão da proibição de retroatividade para aquelas situações jurídicas ou de fato iniciadas no passado e cujo fato material ainda não se tenha por aperfeiçoado. E isso valerá tanto para o fato jurídico tributário de obrigações principais (art. 113 do CTN) quanto para obrigações acessórias (art. 114 do CTN), ambos compreendidos nas hipóteses dos art. 116 e 117 do CTN, no que especifica as modalidades dos facta pendentia.

É verdade que, em termos literais, a redação do texto constitucional, aparentemente, não traz um impedimento absoluto à retroatividade das leis tributárias na sua totalidade de hipóteses. A vedação constitucional limita-se em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que houver instituído ou aumentado tributo(art. 150, III, a, da CF).

Contudo, numa interpretação sistemática, em combinação com o inc. XXXVI do art. 5.º, verifica-se que a aplicação da norma tributária tampouco poderá retroagir para agravar situações consolidadas no passado ou para modificação de critérios de aplicação de tributos, multas ou qualquer tipo de obrigação mais gravosa,25 como nos casos de regimes de fiscalização, das demais modificações de critérios da regra matriz de incidência, de sanções administrativas ou capitulações de ilícitos que sejam abrandados ou extintos et caterva (arts. 105 e 146 do CTN).26

O princípio da interdição de retroatividade veda tudo aquilo que consista em inovação de obrigações ou deveres mais gravosos para os contribuintes e se constitui como verdadeiro direito fundamental, que não se pode restringir, amesquinhar ao conteúdo de “instituição” ou de “aumento” de tributo, aplicando-se a tudo o quanto possa ser arbitrário e cause prejuízos ou danos de qualquer tipo ao contribuinte, como criação de obrigações acessórias, aumento de multas e outros.

A retroação do mais benigno (lex milior) vê-se admitida pelo ordenamento. Basta ver o que dispõe o art. 150, § 6º, da CF, ao autorizar que a lei possa instituir remissões, anistias ou modificações que sejam mais benignas ao contribuinte. Seria inconcebível que o direito não pudesse retroagir, até mesmo para corrigir situações de injustiça ou de técnicas inadequadas ao tributo aplicado.27

A partir desse quadro normativo e teórico de possibilidades, a garantia da irretroatividade tributária, decorrente do princípio de segurança jurídica, veda a retroação de efeitos ao não benigno. E o impedimento de retroação dos efeitos das normas tributárias impositivas retira do legislador, do juiz ou do agente da Administração28 a possibilidade de alcançar fatos anteriores ao início da vigência das leis tributárias que instituam ou aumentem os tributos já existentes (irretroatividade constitucional) ou de qualquer outro efeito em matéria tributária mais gravoso (garantia de estabilidade funcional no tempo do art. 105 do CTN). Não se poderia esperar menos do princípio da irretroatividade.29


Misabel Derzi postula a intercorrência de um “poder judicial de tributar”, no qual o princípio da irretroatividade para instituir ou aumentar tributos, em face da proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva, seria limitação inequívoca, com vistas a preservar o contribuinte contra mutações inopinadas de jurisprudência.30 Esse entendimento, ainda que em menor sofisticação, encontra-se também em Klaus Tipke,31 amparado no que chama de “base de confiança”, para fundamentar o que ele denomina de postulado de proibição de jurisprudência retroativa agravante, como tutela da confiança na “orientação” dos tribunais.

Como diz Canotilho, “os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial”.32 Neste passo, os atos legislativos, judiciais ou executivos não podem retroagir para agravar situações ou imputar obrigações, mas devem respeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido no passado. Igualmente, devem criar condições de certeza e estabilidade para o futuro. Deveras, a coisa julgada não pode ser ferida por ato de qualquer espécie, seja este judicial, administrativo ou legislativo.

Questão controvertida põe-se para as isenções tributárias. Em geral, isenções deverão ser sempre prospectivas, nunca retroativas. Qualquer isenção para o passado assumiria o caráter de típica remissão ou de anistia. Por isso, quando não atendidos os pressupostos para remissão ou anistia, esta retroatividade pode ser vista como espécie de privilégio odioso e inconstitucional.

No que concerne à anterioridade, a revogação de isenções dependerá de uma série de aspectos. Caso concedida com prazo certo, ao término deste, o tributo deve recuperar sua exigibilidade, sem qualquer restrição. Não há surpresa que justifique sua permanência. Diferentemente, a revogação de isenções sem prazo certo ou sob qualquer outra condição que permita ao beneficiário reconhecer sua cessação, ou, igualmente, o caso da revogação de isenções com prazo certo, mas antes que este seja esgotado, haverá sempre o efeito equivalente à “instituição” ou “majoração” de tributo, razão pela qual o princípio da anterioridade, segundo a espécie de tributo, deverá ser observado integralmente, como garantia de segurança jurídica.

4 Autorizações para retroatividade no direito tributário brasileiro e o princípio da coerência do ordenamento

Para preservação da segurança jurídica e da certeza do direito, a aplicação retroativa de leis tributárias é admitida em hipóteses excepcionais, as quais estão descritas no art. 106 e 112 do CTN33, como que em oposição à regra geral, segundo a qual a lei vigora e surte efeitos somente para o futuro (lex prospicit, non respicit). Uma máxima que supostamente labora a favor da segurança, mas que poderia revestir-se de notável insegurança caso não contemplasse hipóteses de reconhecimento da permissão para retroagir.

Basicamente, esse efeito de retroação está autorizado nos casos de leis interpretativas (i), de leis sancionadoras mais benignas (ii) e de atos de aplicação do direito tributário ainda não definitivamente julgados (iii).

As leis mais benignas, nessa hipótese, ganham espaço inconteste, ainda que não se admita sua qualificação com excessiva amplitude. O art. 112 do CTN estabelece que, em caso de dúvida, a lei tributária deverá ser interpretada de modo favorável ao contribuinte, especialmente quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão de seus efeitos (i) e à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação (ii), ademais da capitulação legal do fato (iii) e da autoria, imputabilidade, ou punibilidade (iv). Como ensina Antonio Roberto Sampaio Doria: “A exemplo das leis penais benéficas em sentido estrito, também as normas tributárias, definindo infrações tributárias simples e respectivas sanções, retroagem, se benéficas, para favorecer o infrator.” 34 Portanto, no âmbito da tipificação dos ilícitos, da imputação de responsabilidade ou da aplicação de sanções, a lei nova benigna amplianda poderá ser alegada, ainda que os fatos tenham ocorrido em período anterior, seguido de auto de infração ou emprego de medida coercitiva de qualquer espécie, o que se aplica inclusive aos responsáveis tributários.

E não poderia ser diferente, afinal, a proibição de retroatividade das leis tributárias restringe-se aos conteúdos gravosos, aqueles que acrescem dificuldades ou onerosidades, que suprimem vantagens ou restringem direitos dos contribuintes, enfim, aqueles que causam qualquer pertubação sobre a situação estabilizada pela confiança ao tempo de um “comportamento juridicamente relevante” (planejamento tributário, pagamento de tributo, cumprimento de condições para obtenção de direito ou de isenção etc). Portanto, a retroação das leis mais benignas não ofende qualquer princípio ou valor jurídico; antes, apresenta-se como medida de equilíbrio e de coerência sistêmica entre segurança jurídica e direitos fundamentais.

Ao lado destas hipóteses, para todos os demais casos, a lei nova mais benigna poderá ser aplicada em se tratando de ato não definitivamente julgado. Afasta-se, assim, a retroatividade do mais benigno daqueles casos onde não se tenha controvérsias. Assim, em atenção ao princípio de coerência do ordenamento jurídico, enquanto não julgado o caso que tenha em discussão determinada matéria jurídica contemplada em lei nova mais benéfica, esta se deve aplicar na sua integralidade.

Trata-se do disposto no art. 106, II, “b” do CTN, verbis:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:

b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;

A condição excepcional não abrange a ilicitude decorrente de fraude ou da falta do pagamento do tributo. Em qualquer outro caso, quando a lei nova exclui do ordenamento exigência que se havia ou expressa disposição que impunha conduta proibida ou obrigatória, o contribuinte terá direito de alegar essa regra em qualquer fase ou tipo de processo, administrativo ou judicial, e até mesmo no âmbito de recursos nos tribunais superiores. A jurisprudência Supremo Tribunal Federal é pacífica desde 1967 para admitir a aplicação retroativa da legislação mais benéfica ao contribuinte, nas hipóteses de atos não definitivamente julgados, enquanto perdurar a disponibilidade para arguir, em qualquer esfera, seu cabimento.35 O Superior Tribunal de Justiça também reconhece a aplicação retroativa de ato não definitivamente julgado, atendidos os requisitos do CTN.36

Por fim, nos casos das chamadas “leis interpretativas”, assim entendidas aquelas que não acrescem inovação mais gravosa ou benéfica aos contribuintes, estas terão equivalente efeito retroativo no nosso ordenamento, como já o reconheceu o STF em diversas oportunidades.37 Nesse particular, o CTN, assim dispôs: “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados.” Nesse particular, pelo princípio da coerência, as leis interpretativas somente podem ser aplicadas quando não prevejam tratamentos gravoso, pela vedação genérica do ordenamento à retroatividade do que for não benigno.

Como “lei” interpretativa (defeso o emprego desse sentido para atos administrativos normativos), sua eficácia permite que se possa aplicar retroativamente “em qualquer caso”, seja a que título for, quer dos elementos da estrutura fundamental da norma tributária quer sobre procedimentos, desde que coincida com o mesmo âmbito de competência e conteúdo material da lei interpretada, vedada qualquer inovação material ou formal.

A permissão de retroatividade das leis aplica-se às regras específicas do lançamento tributário. A partir da vigência, em conformidade com o art. 144 do CTN, o lançamento deverá reportarse necessariamente à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, no que concerne à matéria do fato jurídico tributário, ainda que posteriormente modificada ou revogada. Desse modo, não há qualquer retroatividade na aplicação do lançamento sobre fatos verificados no passado, para os fins do lançamento tributário, cujo tratamento jurídico e regime aplicáveis hão de ser aqueles em vigor ao momento do respectivo fato.

A exceção, prevista no § 1º do referido art. 144, autoriza a retroatividade das leis que aplicam ao lançamento novos critérios de apuração (i), introduzem novos processos de fiscalização, ampliados os poderes de investigação das autoridades administrativas (ii), ou outorgam ao crédito maiores garantias ou privilégios (iii), desde que não instituam gravames retroativos ou modifiquem a regra matriz de incidência dos tributos. Segundo Aliomar Baleeiro, por serem disposições de natureza processual, têm eficácia imediata para aplicação aos casos pendentes38 de lançamento, investigação e emprego de garantias ou privilégios.

É induvidoso que por “novos critérios de apuração” não se pode conceber os procedimentos inerentes à apuração da base de cálculo. Numa interpretação conforme a Constituição, presente a proibição de retroatividade das leis que aumentam tributos, resta defeso admitir que a “apuração” da base de cálculo possa ser objeto de lei retroativa. Nesse caso, somente tem cabimento falar em critérios formais de lançamento para a determinação da matéria tributável, sem qualquer modificação dos elementos de quantificação do tributo. Regras que modificam os critérios de apuração do lucro líquido, a formação das receitas ou da presunção de rendimentos não podem ter efeito retroativo; diversamente, o procedimento de atuação administrativa na formação do lançamento poderá ser objeto de retroatividade, por não significar câmbio de expectativas do contribuinte.


No conceito de processos de fiscalização e de poderes de investigação das autoridades administrativas devem ser considerados apenas aqueles tipicamente administrativos e que não signifiquem inovações de exigências condutas ou de obrigações acessórias retroativas contra o contribuinte. Nesse grupo, por exemplo, não podem ser inseridos os métodos de controle de elusão tributária, métodos de controle de preços de transferência ou introdução de exigências onerosas ou gravosas para o contribuinte, para os fins de aplicação retroativa. Limita-se, assim, aos poderes de acesso a documentos ou dados, como o sigilo bancário e outros.

De igual modo, as leis que outorgam ao crédito maiores garantias ou privilégios, ao tempo que não se convertem em modificação do regime aplicável ao fato jurídico tributário, podem perfeitamente aplicar-se ao crédito formado a partir do momento em que se aperfeiçoa o lançamento.

5 Considerações finais

Como visto, a segurança jurídica e a certeza do direito conferem a todos o direito de sujeitarem-se unicamente à lei previamente existente, vedada qualquer retroatividade (lex prospicit, non respicit). Para tudo o que se possa considerar como “novo” conteúdo, deveras, aplicar-se-á o princípio de proibição da retroatividade, dos arts. 5.º, XXXVI, e 150, III, a, da CF.

Nas palavras de César García Novoa, “la seguridad jurídica otorga al particular un derecho a la certeza, no un derecho al mantenimiento de una determinada tributación”.39 Esta excepcionalidade encontra-se nos mais recentes diplomas normativos, como nos “códigos tributários” (leis gerais ou estatutos dos contribuintes) de diversos países, a exemplo de Itália, Espanha, Portugal e outros.40 Não é simples uso ou tradição. Efetivamente, nada impede que a lei cumpra aquele papel que muitas vezes é deixado à regulamentação, para esclarecer ambiguidades ou situações causadoras de dúvidas que poderiam ensejar longos conflitos ou afetações à eficácia da lei, nos atos de sua aplicação. E como o regulamento não pode e não deve retroagir, somente à “lei” pode-se conferir este efeito.

A segurança jurídica exige o acertamento das situações previstas em lei quando do seu cumprimento.41 Essa é a razão pela qual, a título de preservação da confiança legítima dos contribuintes perante a Administração, autoriza-se o afastamento de multas, nos termos do art. 106, I, do CTN, nas hipóteses de “leis interpretativas”; bem como de multas e juros de mora, nos termos do parágrafo único, do art. 100, do CTN, se e enquanto perdurou “prática reiterada da Administração” suficiente para gerar o estado de confiança assinalado.

Em vista disso, é de admitir que a lei, e somente a lei – defeso este recurso a qualquer tipo de ato regulamentar de caráter administrativo, por expressa vedação constitucional e do próprio CTN –, possa “retroagir” e cumprir essa função especificadora ou interpretativa das leis anteriormente publicadas. Nenhum ato administrativo tributário, portanto, pode ter efeito retroativo prejudicial no ordenamento jurídico brasileiro. Somente a “Lei” pode retroagir, e dentro de condições muito limitadas, como estabelece o art. 106 do CTN.

Notas

1 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 11. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2004. v. 2. p.123 e ss.; para um estudo do tempo e o direito: OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2001; ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; ASKIN, I. F. O problema do tempo: sua interpretação filosófica. São Paulo: Paz e Terra, 1969; RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1997. t. III.
2 CAPOZZI, Gino. Temporalità e norma. 4. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 2000. p. 262 e ss.; HUSSERL, Gerhart. Diritto e tempo. Tradução de Renato Cristin. Milano: Giuffrè, 1998. p. 3-60.
3 Como enfatiza Juha Raitio, da Universidade de Helsinki: “The principle of non-retroactivity can be linked to the legitimate expectations of the citizens” (RAITIO, Juha. Legal certainty, non-retroactivity and periods of limitation in EC law. Legisprudence. Oxford: Hart Publishing, 2008, v. 2, n. 1, p. 4).
4 BRETONE, Mario. Diritto e tempo nella tradizione europea. Bari: Laterza, 2004. p. 33 e ss.
5 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
6 A diferenciação entre princípios que veiculam “valores” e princípios como “limite objetivo” adotada por Paulo de Barros Carvalho, é de fundamental relevância para a análise da matéria. Ainda que a noção de “garantia” tenha, neste estudo, funções de princípios como “limites objetivos”, diferenciase pelo caráter protetivo de outros direitos e liberdades fundamentais que lhe atribuímos, tanto mais naqueles casos referidos expressamente no âmbito do art. 150 da CF (garantias asseguradas ao contribuinte). Como alude Paulo de Barros Carvalho: “Entrevemos na consideração do signo ‘princípio’, distinguindo-o como ‘valor’ ou como ‘limite objetivo’, um passo decisivo, de importantes efeitos práticos. Isso porque, se reconhecermos no enunciado prescritivo a presença de um valor, teremos que ingressar, forçosamente, no campo da Axiologia, para estudá-lo segundo as características próprias das estimativas” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 159).
7 Diz Anne-Laure Valembois: “Stabilité et previsibilité sont en effet les deux exigences qu’implique la sécurité juridique dans sa dimension temporelle” (VALEMBOIS, Anne-Laure. La constitutionnalisation de l’exigence… cit., p. 201; cf. RAITIO, Juha. The principle of legal certainty in EC law. Dordrecht: Kluwer, 2003, p. 201 e ss.).
8 SCHERMERS, Henry G.; WAELBROECK, Denis F. Judicial protection in the European Union. Hague: Kluwer, 2001. p. 84.
9 Interessante observar que esta formulação foi acolhida por constituições mais recentes e de influência lusófona. O art. 207 da Constituição de Moçambique, de 1990, prevê que “as leis só têm efeito retroactivos quando beneficiam os cidadãos e outras pessoas jurídicas”. De forma menos incisiva, tem-se o art. 96 da Constituição de Cabo Verde, de 1992, como segue: “A lei fiscal não tem efeito retroactivo, salvo se tiver conteúdo mais favorável para o contribuinte”. Para um exame dessas diferenciações, veja-se: GOUVEIA, Jorge Bacelar. A proibição da retroactividade da norma fiscal na Constituição portuguesa. In: CAMPOS, Diogo Leite de. Problemas fundamentais do direito tributário. Lisboa: Vislis, 1999. p. 39 e ss.
10 Na Alemanha não há regra expressa que proíba a retroatividade das leis tributárias. Em vista disso, a doutrina esforça-se para construir esse princípio a partir daqueles do Estado de Direito, da segurança jurídica, da confiança legítima e da efetividade dos direitos fundamentais, ademais da retroatividade das leis penais. Cf. TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. v. 1. p. 247-259. TIPKE, Klaus. La retroattività nel diritto tributario. In: AMATUCCI, Andrea (Coord.). Trattato di diritto tributario. Padova: Cedam, 1994. v. 1, t. I, p. 437-447; BOZZA, Nadya. I principi e la tutela del contribuinte nell’abgabenordung e le esperienze pratiche. Il fisco, Roma: Il Fisco, 2003. n. 10. p. 61-76.
11 Na Itália, este princípio, no âmbito da interpretação constitucional, foi elaborado a partir da irretroatividade da lei penal e dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva, integridade do patrimônio e até mesmo da dignidade da pessoa humana. Cf. MICHELI, Gian Antonio. Corso di diritto tributario. 8. ed. Torino: Utet, 1989. p. 64; MELIS, Giuseppe. Interpretazione autentica, retroattività e affidamento del contribuente: brevi riflessioni su talune recenti pronunzie della corte costituzionale. Rassegna Tributaria, Roma: 1997. v. 45, n. 4, p. 864-880. SANTI, Giovanni Grottanelli de. Profili costituzionali della irretroattività delle leggi. Milano: Giuffrè, 1970. Recentemente, porém, o art. 3.º da Lei 212, de 27 de julho de 2000, que introduziu o “Statuto dei diritti del contribuente”, introduziu tanto o princípio da irretroatividade quanto aquele da anterioridade em matéria tributária: “1. Salvo quanto previsto dall’articolo 1, comma 2, le disposizioni tributarie non hanno effetto retroattivo. Relativamente ai tributi periodici le modifiche introdotte si applicano solo a partire dal periodo d’imposta successivo a quello in corso alla data di entrata in vigore delle disposizioni che le prevedono. 2. In ogni caso, le disposizioni tributarie non possono prevedere adempimenti a carico dei contribuenti la cui scadenza sia fissata anteriormente al sessantesimo giorno dalla data della loro entrata in vigore o dell’adozione dei provvedimenti di attuazione in esse espressamente previsti” (Cf. FANTOZZI, Augusto. Il diritto tributario. 3. ed. Torino: Utet, 2003, p. 199 e ss.; FALSITTA, Gaspare. Manuale di diritto tributario: parte generale. 6. ed. Padova: Cedam, 2008. p. 97-112; MASTROIACOVO, Valeria. I limiti alla retroattività nel diritto tributario. Milano: Giuffrè, 2005).
12 Na França prepondera a aplicação do regime civilístico ao direito tributário, mediante aplicação do art. 2.º do Código Civil: “La loi ne dispose que pour l’avenir; elle n’a point d’effet rétroactif”; com o que dispõe o art. 5.º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “La Loi n’a le droit de défendre que les actions nuisibles à la Société. Tout ce qui n’est pas défendu par la Loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas”. Ver: MALINVAUD, Philippe. L’étrange montée du contrôle du juge sur les lois rétroactives. 1804-2004, Le Code civil, un passé, un présent, un avenir. Paris: Dalloz, 2004. p. 671-692; DEBAT, Olivier. La rétroactivité et le droit fiscal. Paris: Defrénois, 2006. p. 146 e ss.; Commission des Finances du Senat – Cefep. Loi fiscale, rétroactivité et sécurité juridique: quelle conciliation? Revue de Droit Fiscal, n. 17, p. 622-629, Paris: Lexis Nexis, 1999; LEMAIRE, Fabrice. Actualité du principe de rétroactivité de la loi fiscale. RJF, n. 3. p. 186-190, Paris: Levallois Perret, 1999.
13 No direito espanhol a Constituição não comporta um princípio semelhante. Recentemente, a Ley General Tributaria 58, de 17 de dezembro de 2003, introduziu avanços significativos, mas ainda de reduzida segurança jurídica. Cf. art. 10. “Ámbito temporal de las normas tributarias. 1. Las normas tributarias entrarán en vigor a los veinte días naturales de su completa publicación en el boletín oficial que corresponda, si en ellas no se dispone otra cosa, y se aplicarán por plazo indefinido, salvo que se fije un plazo determinado. 2. Salvo que se disponga lo contrario, las normas tributarias no tendrán efecto retroactivo y se aplicarán a los tributos sin período impositivo devengados a partir de su entrada normas que regulen el régimen de infracciones y sanciones tributarias y el de los recargos tendrán efectos retroactivos respecto de los actos que no sean firmes cuando su aplicación resulte más favorable para el interesado” (NOVOA, César García. Los límites a la retroactividad de la norma tributaria en el derecho español. Tratado de derecho tributario. Lima: Palestra, 2003. p. 433-485).


14 Cf. o interessante estudo relativo à construção da jurisprudência belga quanto a esta matéria: KIRKPATRICK, John; GARABEDIAN, Daniel. Examen de Jurisprudence (1991 à 2007). Les impôts sur les revenus et les sociétes – principes généraux. Revue Critique de Jurisprudence Belge. p. 251-337, Bruxelles: Larcier, 2.º trim. 2008. 15 Como consta do voto do Min. Célio Borja: “O art. 150 da Constituição tornou explícito que a lei não pode impor obrigações tributárias a fatos ocorridos antes de sua vigência (inc. III, alínea a) nem, tampouco, a fatos ocorridos no exercício em que editada (inc. III, b)” (STF, Pleno, ADIn 513, rel. Min. Célio Borja, j. 14.06.1991.
16 .FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade… cit., p. 234.
17 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário cit., p. 247. Cf. MAURER, Hartmut. Contributos para o direito do estado. HECK, Luís Afonso (Trad.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 68.
18 Constituições brasileiras anteriores: Irretroatividade: Constituição Política do Império do Brazil de 1824: “Art. 171. Todas as contribuições directas, á excepção daquellas, que estiverem applicadas aos juros, e amortisação da Divida Publica, serão annualmente estabelecidas pela Assembléa Geral, mas continuarão, até que se publique a sua derogação, ou sejam substituidas por outras”. “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. […] III. A sua disposição não terá effeito retroactivo”. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891: “Art 11. É vedado aos Estados, como à União: […] 3.º – prescrever leis retroativas”. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934: “Art 17. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] VII – cobrar quaisquer tributos sem lei especial que os autorize, ou fazê-lo incidir sobre efeitos já produzidos por atos jurídicos perfeitos”. Anterioridade: Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937: “Art 68. O orçamento será uno, incorporando-se obrigatoriamente à receita todos os tributos, rendas e suprimentos de fundos, incluídas na despesa todas as dotações necessárias ao custeio dos serviços públicos”. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946: “Art 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 34. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967: “Art 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 29. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”. Emenda Constitucional 1 de 1969: “Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: […] § 29. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o impôsto sôbre produtos industrializados e o imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição”. Mais tarde modificado, nos seguintes termos: “§ 29 Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados e outros especialmente indicados em lei complementar, além do imposto lançado 8, de 1977).
19 CF, art. 150. “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] III – cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; […]”.
20 CF, art. 150, III: “[…] b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003) […] § 1.º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I. (Redação dada pela Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003)”.
21 Esta construção deve-se em muito à larga contribuição que Sacha Calmon e Misabel Derzi ofertaram ao exame do tema em nosso País. Cf. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 246 e ss.; sobre a segurança jurídica na aplicação da irretroatividade, ver: SANCHES, J. L. Saldanha. Manual de direito fiscal. Coimbra: Coimbra Ed., 2002. p. 75-97.
22 GABBA, C. F. Teoria della retroattività delle leggi. 2. ed. Torino: Unione Tipografica Editrice, 1884. v. 1, p. 266.
23 ATALIBA, Geraldo. Anterioridade da lei tributária, segurança do direito e iniciativa privada. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 50, p. 16, São Paulo: RT, 1983; como diz Eduardo Maneira: “O princípio da não surpresa da lei tributária é instrumento constitucional que visa a garantir o direito do contribuinte à segurança jurídica, essência do Estado de Direito, qualquer que seja a sua concepção” (Cf. MANEIRA, Eduardo. Direito tributário: o princípio da não surpresa. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 161).
24 Na combinação dos artigos 105 e 116 do CTN, a noção de fatos geradores pendentes revela que situações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor não são consideradas como “atos jurídicos perfeitos” e quedam-se passíveis de tributação com o adimplemento de condição (situação jurídica) ou com o aperfeiçoamento do suporte fático (situação de fato). Como observa Tercio Sampaio Ferraz Jr.: “Aqui toma sentido a noção de fatos geradores pendentes. Pendentes no tempo cronológico com sentido cultural, humano, os eventos só se completam quando termina o prazo, mas o término do prazo apenas lhes dá um sentido solidário, não os altera como fatos nem os anula. O princípio da anterioridade, assim, impede que os eventos componentes de um fato gerador, mesmo pendente de um momento final, sejam atingidos por uma lei publicada durante o período formador. Do contrário, romper-se-ia a solidariedade entre os eventos como um contínuo segmentado num tempo determinado” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade no campo tributário. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de direito constitucional tributário: estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 236). COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 257. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário cit., p. 175; RABELLO FILHO, Francisco Pinto. O princípio da anterioridade da lei tributária. São Paulo: RT, 2002.
25 Cf. RAMOS, Elival da Silva. A proteção aos direitos adquiridos no direito constitucional brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 150.
26 Como observa Federico Arcos Ramírez: “No parece posible elaborar un concepto abstracto de retroactividad que determine, de un modo más o menos exacto y apriorístico, lo que pueden o no hacer legisladores e intérpretes. Ello obedece, por un lado, a la dificultad para fijar una línea divisoria entre el pasado y el presente, distinción que en el plano jurídico resulta mucho más compleja de lo que pueda resultar en el devenir de la naturaleza; por otro, en que el problema no está en las leyes sino en las características de las situaciones sobre las que recaen que, por definición, son extraordinariamente variadas y merecedoras de una protección muy diversa frente a las normas innovadoras” (ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica. Una teoría formal. Madrid: Dykinson, 2000. p. 429).
27 “Uma absoluta proibição da retroactividade de normas jurídicas impediria as instâncias legiferantes de realizar novas exigências de justiça e de concretizar as ideias de ordenação social positivamente plasmadas na Constituição” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria… cit., p. 254). “Sólo la lege previa hace posible el cálculo de las repercusiones jurídicas de nuestras acciones, lo que resultaría del todo imposible si el Derecho actuara ex post facto. Por otra parte, no tanto la creación como la aplicación retroactiva de una ley abre un espacio a la arbitrariedad que socava todo sentimiento de confianza en el Derecho” (ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica… cit., p. 429; cf. PIZZON, Thommas. La sécurité juridique. Paris: Defrénois, 2009. p. 215).
28 É exigência de segurança jurídica que a irretroatividade seja vinculante para todos os poderes. São firmes as palavras de Geraldo Ataliba nesse sentido: “Ora, ou a prática constitucional encerra uma sólida promessa de segurança jurídica – a ser observada pelo legislador e pela Administração, e garantida pelo judiciário – ou torna-se ridículo e descabido falar-se em Constituição neste País” (ATALIBA, Geraldo. Anterioridade da lei tributária… cit., p. 12). Ou, na voz de Misabel Derzi: “O princípio da irretroatividade é direito e garantia fundamental de todos os cidadãos, que se impõe contra o Estado. Seja o Estado legislador, administrador ou juiz, a irretroatividade somente pode ser invocada em favor do contribuinte” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência… cit., p. 469).
29 “Alguns princípios, como o princípio da segurança jurídica e o princípio de confiança do cidadão, podem ser tópicos ou pontos de vista importantes para a questão da retroactividade, mas apenas na qualidade de princípios densificadores do princípio do estado de direito eles servem de pressuposto material à proibição da retroactividade das leis. Não é pela simples razão de o cidadão ter confiado na nãoretroactividade das leis que a retroactividade é juridicamente inadmissível; mas o cidadão pode confiar na não-retroactividade quando ela se revelar ostensivamente inconstitucional perante certas normas ou princípios jurídico-constitucionais.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria… cit., p. 254).
30 Em complementação, esclarece: “Enfim, o núcleo central deste trabalho limita-se ao exame da proteção da confiança, da boa-fé objetiva e da irretroatividade, em relação às modificações da jurisprudência, pondo em segundo plano os efeitos dos mesmos princípios em relação ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 607). A modificação de jurisprudência deve sempre motivar a adoção de efeitos prospectivos, como se vê em decisão do Min. Carlos Ayres Britto: “O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto” (STF, Pleno, Conflito de Competência 7.204/MG, rel. Min. Carlos Britto, j. 29.06.2005).


31 “A aplicação do Direito em matéria tributária pelos funcionários da Administração e adeptos da profissão de consultores tributários cumpre a função de orientar quanto a preceitos administrativos e a Jurisprudência. Se bem que preceitos administrativos juridicamente sejam dirigidos apenas a autoridades e sentenças façam coisa julgada apenas perante as partes processuais, os mesmos formam faticamente, em verdade, uma base de confiança para os sujeitos passivos e seus consultores” (TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário cit., p. 258-259).
32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 251.
33 NOVOA, César García. Los límites a la retroactividad de la norma tributaria en el derecho español. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Tratado de derecho tributario. Lima: Palestra, 2003. p. 433-485; Cf. MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. O princípio constitucional da irretroatividade da lei: a irretroatividade da lei tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
34 DORIA, Antonio Roberto Sampaio. Da lei tributária no tempo. São Paulo: 1968, s.l, p 310-338.
35 “Executivo fiscal. Aplicação de lei nova, com retroatividade benigna, admitida as questões fiscais, para situações jurídicas em curso. O lançamento administrativo foi examinado sob o prisma da legalidade. Recurso extraordinário indeferido e agravo não provido.” (AI 39394/SP, Relator Ministro Evandro Lins, j. 07.03.67, DJ 26.04.67, p. 1137). “Tributário. Beneficio da Lei 1.687-79, art-5. Redução da multa para 5%. Ato definitivamente julgado – Artigo 106 II, ‘c’, do CTN. Se a decisão administrativa ainda pode ser submetida ao crivo do Judiciário, e para este houve recurso do contribuinte, não há de se ter o ato administrativo ainda como definitivamente julgado, sendo esta a interpretação que há de dar-se ao art-106, II, ‘c’ do CTN. E não havendo ainda julgamento definitivo, as multas previstas nos arts. 80 e 81 da lei n. 4502/64, com a redação dada pelo art-2., alterações 22 e 23 do decreto-lei n. 34/66, ficam reduzidas para 5% se o débito relativo ao IPI houver sido declarado em documento instituído pela Secretaria da Receita Federal ou por outra forma confessado, até a data da publicação do Decreto-lei 1680-79, segundo o beneficio concedido pelo art-5. Da lei 1687/79. Acórdão que assim decidiu e de ser confirmado.” (RE 95900/BA, Relator Ministro Aldir Passarinho, j. 04.12.84, DJ 08.03.85, p. 2602).
36 “1. Posicionamento de ambas as Turmas que compõem a Primeira Seção deste Tribunal no sentido de reconhecer a retroatividade benigna (art. 106 do CTN) provocada pela revogação dos artigos 43 e 44 da Lei 8.541/92, que continham normas com caráter de penalidade e estabeleciam a incidência em separado do imposto de renda sobre o valor da receita omitida. 2. Precedentes citados: AgRg no REsp n. 716.208/PR, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 6/12/2009 e REsp n. 801.447/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 26/10/2009.” (AgRg no REsp 1106260 / PR, Ministro BENEDITO GONÇALVES, DJe 04/03/2010). Cf. ainda: AgRg no REsp 954521 / ES. Ministro JOSÉ DELGADO (1105) DJ 22/11/2007 p. 206.
37 “É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autentica. – as leis interpretativas – desde que reconhecida a sua existência em nosso sistema de direito positivo – não traduzem usurpação das atribuições institucionais do judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisao funcional do poder. – mesmo as leis interpretativas expõem-se ao exame e a interpretação dos juizes e tribunais. Não se revelam, assim, espécies normativas imunes ao controle jurisdicional. – a questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória editada pelo Presidente da Republica. – o princípio da irretroatividade ‘somente’ condiciona a atividade jurídica do estado nas hipóteses expressamente previstas ela constituição, em ordem a inibir a ação do poder público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao ‘status libertatis’ da pessoa (cf, art. 5º, Xl), (b) ao ‘status subjectionais’ do contribuinte em matéria tributaria (cf, art. 150, iii, “a”) e (c) a ‘segurança’ jurídica no domínio das relações sociais (cf, art. 5º, xxxvi). – na medida em que a retroprojeção normativa da lei ‘não’ gere e ‘nem’ produza os gravames referidos, nada impede que o estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. – as leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, ‘ordinariamente’, dispor para o futuro. O sistema jurídico- constitucional brasileiro, contudo, ‘não’ assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade. – a questão da retroatividade das leis interpretativas”. (ADI-MC 605-DF. Rel. Min. Celso de Mello. Julgamento: 23/10/1991).
38 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 794.
39 GARCÍA NOVOA, César. El principio de seguridad jurídica… cit., p. 193.
40 Cf. FANTOZZI, Augusto. Il diritto tributario. 3. ed. Torino: Utet, 2003. p. 199 e ss.; FALSITTA, Gaspare. Manuale di diritto tributario: parte generale. 6. ed. Padova: Cedam, 2008. p. 97-112; DEBAT, Olivier. La rétroactivité et le droit fiscal. Paris: Defrénois, 2006. p. 146 e ss.; MASTROIACOVO, Valeria. I limiti alla retroattività nel diritto tributario. Milano: Giuffrè, 2005; MELIS, Giuseppe. Interpretazione autentica, retroattività e affidamento del contribuente: brevi riflessioni su talune recenti pronunzie della corte costituzionale. Rassegna Tributaria, v. 45, n. 4, p. 864-880, Roma: 1997; TIPKE, Klaus. La retroattività nel diritto tributario. In: AMATUCCI, Andrea (Coord.). Trattato di diritto tributario cit., p. 437-447; GOUVEIA, Jorge Bacelar. A proibição da retroactividade da norma fiscal na Constituição portuguesa. In: CAMPOS, Diogo Leite de. Problemas fundamentais do direito tributário. Lisboa: Vislis, 1999. p. 39 e ss.; NABAIS, José Casalta. Direito fiscal. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 87.
41 Como anotara Fernando Sainz de Bujanda, “la seguridad, en su doble manifestación – certidumbre del Derecho y eliminación de la arbitrariedad – ha de considerarse ineludiblemente en función de la legalidad y de la justicia. Esta última y la seguridad son valores que se fundamentan mutuamente y que, a su vez, necesitan de la legalidad para articularse de modo eficaz” (SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Reflexiones sobre un sistema de derecho tributario español – en torno a la revisión de un programa. In: Hacienda y Derecho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos,


Crise do formalismo no direito tributário brasileiro

Autor: Marco Aurélio Greco, Advogado – Doutor em Direito Professor da FGV-DireitoGV

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

O leitor pode pensar que a frase acima foi retirada de um livro doutrinário sobre planejamento tributário ou, então, que se encontra em texto de Direito Constitucional, ou mesmo de Teoria Geral do Direito, onde se discute o tema da ponderação de valores consagrados na Constituição de 1988.

Ledo engano.

Trata-se de trecho de ementa de acórdão da 4ª Câmara do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda1 proferido à vista de Auto de Infração lavrado contra certo contribuinte em razão de determinada operação de reorganização societária que realizou.

Um Tribunal Administrativo formado por especialistas na matéria tributária, reconhecidamente preparados para examinar os mais intrincados temas ligados à aplicação das leis tributárias em si e em cotejo com aspectos de ordem contábil ou societária está a fazer uma ponderação de valores constitucionais para solucionar um caso concreto?

A perplexidade que a leitura da frase pode ensejar para quem teve uma formação formalista cresce quando o leitor se depara com o parágrafo imediatamente anterior da ementa, assim redigido:

O fato de cada uma das transações, isoladamente e do ponto de vista formal, ostentar legalidade, não garante a legitimidade do conjunto de operações, quando fica comprovado que os atos praticados tinham objetivo diverso daquele que lhes é próprio.

Novas perplexidades para o menos avisado: legalidade das transações isoladas não é suficiente? Que vem a ser esta “legitimidade” que o acórdão exige exista no conjunto de operações?2

Este é um bom exemplo para mostrar a mudança de eixo das discussões ocorrida nos últimos anos no âmbito do Direito Tributário brasileiro.

Recordo brevemente alguns pontos.

O Direito Tributário – como área de conhecimento sistematizado no campo jurídico – é recente. Embora o tributo em si exista há séculos, a reunião das normas e princípios que o regulam num conjunto circunscrito, objeto de exame específico não tem cem anos. O referencial histórico que pode ser mencionado a indicar o surgimento dessa preocupação encontrase na edição do Código Tributário Alemão de 1.919.3

No Brasil da primeira metade do Século XX, o estudo jurídico dos tributos aparecia no bojo da Ciência das Finanças e só a partir da obra e dos esforços de alguns estudiosos é que a partir da década de 40 passou a ganhar espaço o tratamento em separado dos tributos como objeto de preocupação científica.4

Nas décadas seguintes, os estudos receberam profundas influências oriundas de duas vertentes distintas: a vertente constitucional (com raízes explícitas na experiência norte-americana)5 e a vertente administrativa (com raízes da experiência continental européia) a ponto de a doutrina situar o Direito Tributário como capítulo do Direito Administrativo (ATALIBA, 1973, p. 33). Influências de caráter oposto, pois a constitucional prestigiava os direitos e garantias individuais enquanto a administrativa invocava como um de seus princípios fundamentais a supremacia do interesse público sobre o interesse particular.

O produto final deste conjunto foi o surgimento de uma concepção do Direito Tributário com inúmeros defensores e que pode ser resumida como o conjunto de normas protetivas do patrimônio individual e limitadoras das investidas do Fisco.6

Princípios constitucionais tributários – nesse contexto – eram as previsões que vedassem algo ao Fisco, seja em termos de instrumento (legalidade), do objeto alcançado (irretroatividade), em relação ao momento da cobrança (anterioridade) ou à dimensão da exigência (proibição do confisco).7 Princípios cuja formulação começava com um “não” (não pode cobrar sem lei; não pode cobrar em relação ao que já aconteceu; não pode cobrar antes de certa data; não pode confiscar etc.).

Uma relação historicamente conflituosa – como é a relação Fisco/ contribuinte – era vista da perspectiva da proteção ao cidadão viabilizada através de normas de bloqueio do exercício do poder. Neste contexto, a lei em sentido formal passou a ser o requisito indispensável para autorizar qualquer exigência pelo Fisco. Iniciou o que se pode designar por “idolatria da lei” vista, porém, como entidade virtual; ou seja, texto com vida própria que se destaca do contexto que levou à sua produção e daquele no qual será aplicada para assumir a condição de algo bastante em si. Uma forte influência platônica e idealista.

Acrescente-se que, a partir de 1964, o Brasil viveu o período da Revolução em que estavam em vigor os Atos Institucionais e as discussões de caráter substancial (isonomia, desigualdades sociais, distribuição de renda etc.) não encontravam espaço. Tanto é assim, que, ao ensejo da Emenda Constitucional n. 18, de 1965, que reformulou o sistema constitucional tributário – em grandes linhas até hoje vigente – encontra-se a revogação expressa do artigo 202 da Constituição Federal de 1946 que consagrava o princípio da capacidade contributiva. Suprimiu-se da Constituição o referencial substancial que servia de fundamento à tributação, para torná-la algo autodenominado de racional, mas que, na prática, mostrou-se mera expressão do exercício de poder.8

O modelo teórico de tratamento dos temas tributários ganhou importante avanço no início da década de 70 – por obra de Geraldo Ataliba no seu “Hipótese de incidência” (1973). Este Autor manifestava intensa preocupação com os fundamentos filosóficos de sua abordagem, basta ver que logo na terceira página do texto já invoca Juan Manuel Teran (jusfilósofo mexicano) e Lourival Vilanova.9 Este livro desenvolve um novo (à época) instrumental para análise da lei tributária, a partir da visão kelseniana dos âmbitos de validade da norma jurídica, que foram trazidos para o debate tributário como os “aspectos” (material, pessoal, espacial e temporal) da “hipótese de incidência” da lei tributária.

A partir deste estímulo, os estudos de Teoria Geral do Direito, aplicados ao campo do Direito Tributário, se desdobraram naquilo que era possível fazer dentro do contexto histórico então vivido que se mostrava reativo a discussões de caráter substancial. A discussão tributária a partir de então centrou-se na hipótese de incidência (=previsão abstrata) e, num segundo momento, na sua formulação legal.

A utilidade deste modelo é inegável, pois permite sistematizar o debate, da perspectiva formal e da hierarquia das normas; a meu ver, o modelo mais viável no contexto político então vigente. Mas trata-se de modelo insuficiente, pois a realidade jurídica e o fenômeno tributário não se esgotam nestes aspectos. Fato e valor também compõem a experiência jurídica.

Paralelamente (estou falando do início da década de 70), foram criados os Cursos de Pós-Graduação em Direito na PUC de São Paulo em cuja formulação Geraldo Ataliba e Celso Antonio Bandeira de Mello fizeram questão que as disciplinas Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito fossem obrigatórias para todos os alunos, quaisquer que fossem suas respectivas áreas de concentração.

Com isto, abriu-se espaço para as lições de Tércio Sampaio Ferraz Júnior no âmbito da disciplina de Filosofia do Direito para a qual foi convidado e passou a lecionar em 1973. Naquela oportunidade, o Professor Tércio trouxe para o debate uma visão pragmática do Direito (que supõe o exame da temática da função e, por conseqüência, dos fins para cujo atingimento contribui a própria dogmática) e introduziu nas discussões que a partir de então se travaram elementos oriundos da semiótica, em particular os três planos da linguagem (sintático, semântico e pragmático).

A preocupação com a linguagem começava a ganhar espaço; no início se apresentava quase como um desafio para descobrir termos mais elaborados a serem utilizados;10 disto caminhou-se para um aprofundamento do estudo da linguagem em si como objeto científico.

Neste momento, deu-se uma fusão que é importante referir para bem entender a evolução do debate no âmbito tributário: a variável política – que não permitia o debate de questões substanciais – levou a privilegiar as análises e discussões jurídicas que se concentrassem nos aspectos formais e lingüísticos do texto legal (aspectos da hipótese de incidência) o que tornava a utilização do instrumental vindo da semiótica (na sintática e na semântica), politicamente “aceitável”. Debater com a Autoridade no plano sintático e semântico e suscitar questões ligadas à hierarquia (das normas) era um porto seguro onde o questionamento do exercício da autoridade estatal (via tributação) podia se dar sem maiores riscos.

Discussões nestes dois planos (sintático e semântico) foram a tônica dos debates por mais de vinte anos, enquanto a pragmática e a análise da função ficaram na penumbra. A lição de BOBBIO (1977) que expunha a passagem da visão estrutural para a funcional e o novo papel do direito nas sociedades industriais modernas, assumiam, nesse contexto, um caráter quase que etéreo.


Isto é compreensível, pois o formalismo e o estruturalismo encontram espaço propício em contextos autoritários como instrumento de proteção de valores democráticos (CALABRESI, 2000, p. 482) ou conservadores em que não se pretenda dar espaço para discussões de caráter substancial quanto aos fatos sociais (LE ROY, 1999, p. 24).

No plano doutrinário, a “hipótese de incidência” desdobrou-se na “regra matriz de incidência” (na visão de Paulo de Barros Carvalho11); a “hipótese de incidência” foi o modelo teórico amplamente adotado para exame da constitucionalidade de um sem-número de exigências tributárias.

O debate no plano semântico repercutiu inclusive no Supremo Tribunal Federal, basta lembrar a questão da incidência ou não da contribuição previdenciária sobre pagamentos a trabalhadores autônomos e o debate sobre o sentido do termo “folha de salários” na redação original do artigo 195 da CF/88.12

Por outro lado, os debates sobre isonomia, capacidade contributiva, distorções de fato no plano da concorrência pela diversidade de entendimentos tributários, financiamento do Estado, funções do Estado e políticas públicas eram temas pouco ou nada examinados.

Infelizmente, o debate a nível pragmático ficou em segundo plano. Discussões mais abrangentes sobre a função social dos institutos, da propriedade, do tributo e mesmo da dogmática jurídica (como aponta o título da obra do Professor Tércio) não encontraram o mesmo desdobramento teórico e prático. Nem mesmo o debate sobre o procedimento como modo de agir do Poder Público encontrou tão ampla produção teórica como a relativa à hipótese de incidência.

Neste contexto, se por um lado a ação do Fisco era controlada por instrumentos formais, a ação do contribuinte também só encontrava limites formais. Vigorava a visão que prestigia uma liberdade absoluta do contribuinte para organizar sua vida, como bem lhe aprouvesse desde que o fizesse por atos lícitos, praticados antes da ocorrência do fato gerador e sem simulação. Restrições a essa liberdade só poderiam advir de lei expressa que vedasse certo comportamento (XAVIER, 2001). Não havia um controle material ou funcional do sentido e alcance do exercício da liberdade individual.

Diversas foram as conseqüências que resultaram deste contexto político, teórico e jurídico. Uma delas foi a idolatria da lei em si, que transformou a legalidade tributária que tinha a feição de uma “legalidade libertação” – por ser instrumento de bloqueio da ação do poder estatal – numa “legalidade dominação” com sucessivas restrições à liberdade do contribuinte (GRECO, 2008b).

Por outro lado, a liberdade absoluta do contribuinte levou a uma infinidade de estruturas negociais e reestruturações societárias que, com propriedade, foram consideradas meramente “de papel”. A prevalência da forma levou, da perspectiva da legalidade, à veiculação de praticamente quaisquer conteúdos desde que através de lei em sentido formal; e da perspectiva da liberdade de auto-organização ao surgimento de “montagens jurídicas” sem qualquer substância econômica, empresarial ou extra-tributária. Enquanto o modelo formal de abordagem do fenômeno tributário era levado à sua quintessência e privilegiava a forma – e não apenas esta, pois chegava até mesmo à idolatria da linguagem em que esta se apresentava – a realidade política, social e fática mudava profundamente.

A Constituição de 1988 assumiu o perfil de uma Constituição da Sociedade Civil, diversamente da Carta de 1967 que possuía o feitio de uma Constituição do Estado-aparato (GRECO, 2005). Esta mudança se espraia por todo seu texto a começar pelo artigo 1º que afirma categoricamente ser o Brasil um Estado Democrático de Direito e não apenas um Estado de Direito e seu art. 3º, I coloca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo fundamental da República. Isto implica colocar a variável social ao lado e no mesmo plano da individual e abre espaço para se reconhecer a solidariedade social como fundamento último da tributação (GRECO, 2005).

Note-se, também, que seu artigo 5º não assume o papel de um elenco de “direitos e garantias individuais” (como o art. 150 da CF/67 e o art. 153 na redação da EC-1/69) para contemplar os “Direitos e deveres individuais e coletivos”. Mudança relevante, pois seu inciso XXIII aponta na direção de a liberdade individual passar a ser condicionada a uma razão não meramente individual. Isto foi explicitado pelo artigo 421 do Código Civil de 2002 ao prever que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Vale dizer, a função social não é mero limite, mas também razão do exercício dessa liberdade, o que põe às claras a importância dos motivos que levam à celebração de determinado ato ou negócio jurídico (GRECO, 2008a, p. 505-514).

Especificamente em matéria tributária, a CF/88 colocou os antigos princípios constitucionais tributários (legalidade, anterioridade e irretroatividade) como “limitações constitucionais”, vale dizer, como regras de bloqueio ao exercício do poder, mas não como preceitos que consagrem um valor positivo prestigiado pelo ordenamento. Valor positivo é, por exemplo, a capacidade contributiva (art. 145, § 1º, 1ª parte).

Em suma, a variável política e filosófica encampada na Constituição mudou.

Por outro lado, a sociedade passou a ver nos direitos fundamentais e na eficácia jurídica das normas que os prevêem um canal relevante de reconhecimento e atendimento das demandas sociais.

Por fim, criou-se a consciência de que a criatividade deve ser prestigiada, mas é importante reagir contra a mera esperteza de quem quer levar vantagem como se o indivíduo vivesse isolado, tendo o mundo submetido à sua disposição ou predação.

A isto se acrescentem as lições de Ricardo Lobo Torres (2003) quando acentua a evolução ocorrida no plano teórico, pois passamos da jurisprudência dos conceitos, para a jurisprudência dos valores, inclusive no âmbito tributário.

A mudança política, social e fática levou a uma mudança de mentalidade que repercutiu no modo pelo qual devem ser compreendidas as condutas do Fisco e do contribuinte. Em relação à conduta do Fisco questionam-se as finalidades de sua ação, bem como a destinação e a aplicação dos recursos arrecadados e sua compatibilidade efetiva com as políticas públicas que devem subsidiar; em relação à conduta do contribuinte questiona-se a existência de um fundamento substancial que a justifique (razão ou motivo para o exercício da liberdade de contratar).

A própria idéia de quebra de igualdade tributária foi revista; se, no regime da CF/67, havia quebra de isonomia quando o tributo era exigido discriminatoriamente de alguém, no modelo da CF/88 o prestígio da capacidade contributiva como princípio tributário explícito aponta haver quebra de isonomia também quando o tributo não é exigido de alguém que manifestou a capacidade contributiva contemplada na lei. Daí os dois sentidos que podem ser extraídos do artigo 150, II da CF/88: (i) como proibição de exigências discriminatórias e (ii) como proibição de não exigir o tributo de todos que se encontrem em situação equivalente.13

Paralelamente, evoluiu o debate sobre as normas programáticas que – de uma simples recomendação (como eram vistas na década de 60), passaram a ver-lhes reconhecida a eficácia negativa de bloqueio de preceitos legais que as contrariassem (SILVA, 1968, p. 161), para alcançarem na CF/88 o reconhecimento de sua eficácia positiva de direcionamento da produção legislativa e jurisprudencial. Esta eficácia positiva das normas programáticas gerou reflexos não apenas no plano das prestações positivas pelo Estado, mas também, no plano da interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e tributárias em particular (PIMENTA, 1999, p. 237; GRECO, 2008a, p. 329).

É de se compreender porque textos como aquele em que defendi a possibilidade de existir abuso de direito por parte do contribuinte ao reorganizar sua vida para obter menor carga tributária (1996) foi execrado, e o que afirmava a eficácia positiva da norma de prevê a capacidade contributiva (1998) ser considerado “audaciosamente original” (XAVIER, 2001, p. 104). Alguns chegaram a dizer que instaurar um debate teórico sobre a justificação substancial da ação do contribuinte que vise pagar o menor tributo legalmente possível seria “abrir a caixa de Pandora”. Os fatos se mostraram mais fortes do que os modelos formais. O debate substancial está instaurado e, talvez para surpresa de alguns, isto não se deu predominantemente no âmbito do Poder Judiciário (onde o tema da ponderação de valores constitucionais encontra espaço propício), mas no âmbito da jurisprudência administrativa, como é exemplo o acórdão referido no início do presente estudo. Note-se como esse acórdão lida com os conceitos de legalidade e de legitimidade. Aquela ligada ao critério eminentemente formal, enquanto esta é atrelada a um valor prestigiado pelo ordenamento.

Pondera-se (mitiga-se) a liberdade com a isonomia e a capacidade contributiva. Exige-se um motivo para que a conduta do contribuinte seja fiscalmente aceitável. Passa a assumir relevância o conjunto de atos praticados e não cada um isoladamente; o filme e não apenas a foto; o fazer efetivo e não apenas o querer abstrato.

O debate tributário – com todas as letras – deixou de ser um debate formal. Não se trata de prevalência da substância sobre a forma, mas de coexistência; não se trata de sobre+por, mas de com+por valores.

A grande questão que agora se põe é de saber quais os parâmetros e critérios a serem adotados nesse novo contexto em que a substância é tão importante quanto a forma.

Neste momento, resgatar o debate sobre a perspectiva funcional e reavivar lições como as que permanecem latentes na obra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior é tarefa que certamente contribuirá positivamente para a construção da sociedade livre, justa e solidária que o artigo 3º, I da CF/88 alça a primeiro objetivo fundamental da República.


 

Notas

1 BRASIL. Ministério da Fazenda, Acórdão n. 104-21.675 da 4ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes, proferido na Sessão de 22.06.2006, Relator Nelson Mallmann, ementa disponível em: http://www.conselhos.fazenda.gov.br. Acesso em: 25.jun. 2008..
2 Embora sobre tema não tributário, a referência à “legitimidade” como parâmetro a ser considerado na análise de contratos, convênios etc., é também invocada no voto do Min. Cezar Peluso no MS-24.584 (STF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ-20.06.2008). A interpretação que me parece mais adequada é de entender que a legitimidade se encontra na sintonia com os valores consagrados no ordenamento, o que abre espaço para uma análise tridimensional do fenômeno tributário.
3 RUY BARBOSA NOGUEIRA expõe que o Código Tributário Alemão “… a partir de sua elaboração em 1919, foi o verdadeiro marco da sistematização científico-legislativa do Direito Tributário e provocou não só na doutrina, como na jurisprudência, avanço na forma e no conteúdo deste ramo do Direito, mas também irradiou conceitos e institutos a outros ramos jurídicos, ultrapassando fronteiras e repercutindo nas legislações e elaborações doutrinárias e jurisprudenciais tributárias de outros países.” (NOGUEIRA, 1978, p. XI).
4 Um dos primeiros autores de Direito Tributário no Brasil foi ALIOMAR BALEEIRO que, em 1951, publicou seu clássico Limitações constitucionais ao poder de tributar.
5 A ponto de o Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, ao criar o Supremo Tribunal Federal e disciplinar o processo no âmbito federal, estabelecer categoricamente que: “Art. 386. Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e commercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto. Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações juridicas na Republica dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e processo federal.” (grifei e realcei) Ou seja, na lacuna da legislação brasileira deveria ser aplicada a experiência norte-americana! . Disponível em: http:// www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66054. Acesso em: 19.11.2008).
6 MACHADO, 2004, p. 60.
7 Note-se que BALEEIRO (1951), sob a denominação de “limitações” examina os denominados “princípios” constitucionais tributários.
8 Para um exame da passagem do poder para a função no campo tributário, veja-se o meu “Do poder à função tributária”, no volume Princípios e limites da tributação 2, coord. Roberto Ferraz, São Paulo: Quartier Latin, 2009.
9 ATALIBA, 1973, p. 11.
10 “Calha à fiveleta” é um exemplo de expressão clássica que à época passou a ser freqüentemente utilizada.
11 Para um exemplo atual da aplicação deste modelo, veja-se CARVALHO, 2008.
12 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, RE-166.772, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ-16.12.1994.
13 Aqui talvez esteja a raiz da “ideologia da incidência” a que se refere o Min. Luiz Fux no seu voto proferido no REsp. 1.027.799, 1ª T. Rel. Min. José Delgado, DJ-20.08.2008.

Referências Bibliográficas

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Edição da Revista Forense, 1951.
BOBBIO, Norberto. Diritto e scienze sociali e Verso una teoria funzionalistica del diritto, in: Dalla struttura alla funzione, Milão: Edizioni di Comunità, coleção “Diritto e cultura moderna” n. 18, 1977, p. 43-62 e 63-88 respectivamente.
BRASIL. Ministério da Fazenda, Acórdão n. 104-21.675 da 4ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes, Sessão de 22.06.2006, Relator Nelson Mallmann. Disponível em: http://www.conselhos.fazenda.gov.br. Acesso em: 25.06.2008.
Supremo Tribunal Federal, MS-24.584, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ- 20.06.2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 20 jan. 2008.
Supremo Tribunal Federal, RE-166.772, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ- 16.12.1994. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 20 jan. 2008.
Superior Tribunal de Justiça, REsp. 1.027.799, 1ª T. Rel. Min. José Delgado, DJ- 20.08.2008. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em 20 jan. 2008.
Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, texto. Disponível em: http://www6. senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66054. Acesso em: 19 nov. 2008.
CALABRESI, Guido. Two functions of formalism, in The University of Chicago Law Review, vol. 67, n. 2. (Spring. 2000), p. 479-488.
CARVALHO, Paulo de Barros . A regra-matriz de incidência do Imposto sobre Importação de Produtos Estrangeiros. In Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas, coord. Eurico Marcos Diniz de Santi, São Paulo: Direito GV, Saraiva, 2008, p. 523-539.
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XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001.


A tributação da transmissão de bens nas partilhas desiguais


Sempre que houver desigualdade na partilha dos bens em razão do desfazimento da sociedade conjugal sem que haja qualquer forma de compensação ao cônjuge a quem coube a menor parte da meação, a transmissão se dará a título gratuito, devendo incidir o ITCMD sobre o valor que excedeu a meação.


A Constituição Federal em seu artigo 155, I, atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal competência para instituir o ITCMD, imposto sobre a transmissão causa mortis e sobre doação de quaisquer bens ou direitos.

O termo “transmissão causa mortis“constante da norma Constitucional é entendido como sinônimo de sucessão por causa de morte, devendo o ITCMD incidir sempre que houver transmissão sucessória (heranças e legados) decorrente da morte de uma pessoa natural.

Também é legítima a cobrança do ITCMD sempre que houver transmissão de bens por ato de doação, ainda que entre vivos (Súmula 328 do STF).

O artigo 156, II, por sua vez, atribuiu aos Municípios a competência para instituir e cobrar o ITBI, imposto sobre transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição.

Tanto o ITCMD como o ITBI tem função meramente fiscal, ou seja, a finalidade precípua desses impostos é a geração de recursos financeiros para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Da simples leitura do Texto Constitucional, verifica-se que a distinção entre a incidência dos referidos impostos é a causa da transmissão, se em virtude da morte ou por ato entre vivos, e a onerosidade ou gratuidade do ato de transferência. “Assim, se a transmissão é causa mortis, incide ITCMD;se é inter vivos, deve-se verificar se ocorreu por ato oneroso ou a título gratuito (doação). No primeiro caso, incide ITBI; no segundo o ITCMD”.[01]

No que se refere à transmissão de bens em virtude da dissolução da sociedade conjugal, cumpre tecer alguns comentários acerca dos regimes de bens entre os cônjuges.

Nos casamentos em que o regime de bens adotado é o da comunhão universal (comunicam-se todos os bens presentes e futuros dos cônjuges) ou o da comunhão parcial (comunicam-se os bens adquiridos pelo casal na constância do casamento), os bens que integram a comunhão são considerados pro indiviso, sendo cada cônjuge proprietário da metade ideal da massa matrimonial.

Insta trazer a baila os apontamentos de Silvio Salvo Venosa:

No regime da comunhão universal, há um patrimônio comum, constituído por bens presentes e futuros. Os esposos têm a posse e propriedade em comum, indivisa de todos os bens, móveis e imóveis, cabendo a cada um deles a metade ideal. Como conseqüência, qualquer dois consortes pode defender a posse e propriedade dos bens. Cuida-se de sociedade ou condomínio conjugal, com caracteres próprios.[02]

A separação judicial, consensual ou litigiosa, e o divórcio tem o condão de extinguir o regime de comunhão de bens eleito no momento da contração do matrimônio, tendo como principal consequência a partilha dos bens comuns do casal. Com a partilha, atribui-se a cada um dos cônjuges o bem ou os bens que lhe cabem na meação.

Assim, a meação dos bens do casal não é considerada uma modalidade de aquisição de bens, porquanto os bens já pertenciam ao casal quando do casamento, motivo pelo qual não deve incidir qualquer um dos impostos de transmissão patrimonial.

Sobre o tema, eis os ensinamentos de Sacha Calmon Navarro Coelho:

Se o varão tirar a metade que lhe cabe em bens mobiliários, significa que a meação da mulher, só em imóveis ou parte em imóveis, não dever ser tributada. Nada lhe será transmitido. A metade dos bens já era sua antes da separação dos corpos.[03]

Por outro lado, caso o patrimônio não seja dividido de maneira equânime entre os cônjuges separados, duas situações emergem: se o montante que exceder a meação for compensado por outras formas de transferência patrimonial, como o pagamento em dinheiro da diferença, o ato será oneroso, devendo incidir o ITBI; caso a partilha seja desigual sem qualquer forma de compensação, considera-se o ato como liberalidade, incidindo o ITCMD.

Configura-se, pois, hipótese de incidência do ITCMD a desigualdade das partilhas realizadas em processos de separação, divórcio, inventário ou arrolamento, quando não compensadas por outro ato de transferência, porquanto tais atos são considerados como transmissão de bens a título gratuito entre vivos.

Neste sentido é a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSO CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – PARTILHA DE BENS – INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA – OMISSÃO E CONTRADIÇÃO CORRIGIDAS.

  1. Na hipótese de um dos cônjuges abrir mão da sua meação em favor do outro, o direito tributário considera tal fato como doação, incidindo, portanto, apenas o ITCD (art. 155, I, CF).
  2. O STJ é Tribunal que julga as teses jurídicas abstraídas e não fatos, tendo sido corretamente aplicada a Súmula 7 desta Corte.
  3. Questão relativa ao estorno do ITBI pago indevidamente que não pode ser apreciada no presente agravo de instrumento, considerando que não se estabeleceu o contraditório em relação ao Município do Rio de Janeiro, devendo ser resolvida pelo juiz da causa, nos autos principais, ressalvando-se ainda a utilização de ação autônoma para fins de repetição do indébito.
  4. Embargos de declaração acolhidos, sem efeitos modificativos.

(EDcl nos EDcl no REsp 723.587/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/06/2006, DJ 29/06/2006, p. 178)


O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul segue o entendimento do STJ, vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIVÓRCIO. PARTILHA CONSENSUAL. IMÓVEIS. EXCESSO DE MEAÇÃO. INCIDÊNCIA DE ITCD. DECISÃO MANTIDA. 1. Correta a decisão que concluiu pela incidência de ITCD sobre o excesso de meação, não sendo possível cogitar de mera acomodação patrimonial que não configuraria hipótese de transmissão de bens. 2. O Decreto nº 33.156/89, que regulamenta o ITCD, dispõe no art. 30 que o imposto será pago na dissolução da sociedade conjugal, relativamente ao valor que exceder à meação transmitida de forma gratuita. Há, ainda, a Súmula nº 29 deste Tribunal de Justiça: “Na dissolução de sociedade conjugal, ocorrendo divisão desigual de bens por ocasião da partilha, incide o ITCD, se a transmissão se der a título gratuito, e o ITBI, se a título oneroso”. 3. A transmissão gratuita está equiparada à doação, por previsão específica da Lei Estadual nº 8.821/89, que instituiu o Imposto sobre a Transmissão “Causa Mortis” e Doação de quaisquer bens e direitos. 4. Demonstrado está que há sim fato gerador para incidência do ITCD por configurar hipótese com expressa previsão legal. POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO, VENCIDO O DES. RUI PORTANOVA. (Agravo de Instrumento Nº 70039622451, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 09/12/2010)

No que se refere à base de cálculo dos impostos de transmissão de bens, o artigo 38 do Código Tributário Nacional, que fixa normas gerais em matéria tributária, preceitua que será o valor venal dos bens ou direitos transferidos, competindo aos Estados e Municípios a regulamentação dos mencionados tributos.

Nos casos em que a partilha do patrimônio comum do casal se der de maneira desigual, o ITCMD deverá incidir sobre a fração dos bens transferidos acima da meação, consoante prescreve o artigo 38 da Resolução n.º 35, de 24 de abril 2007, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça, disciplinando a Lei n.º 11.441/2007.

Desta forma, no Estado de São Paulo, “a Lei n.º 11.154/91, em seu art. 2º, e o Decreto n.º 37.344/98, em seu art. 70. VI, preconizam que o imposto incidirá sobre o valor dos imóveis transmitidos acima da meação ou quinhão”.[04]

Assim também decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE SEPARAÇÃO CONSENSUAL. PARTILHA. DIVISÃO DESIGUAL DE BENS. INCIDÊNCIA DO ITCD. Ocorrendo distribuição desigual dos bens na partilha realizada por ocasião da separação consensual das partes, haverá incidência do ITCD, na parte que excedeu a meação, conforme disposto na Súmula nº 29 deste Tribunal de Justiça. Agravo desprovido. (Agravo de Instrumento Nº 70022804439, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 10/03/2008)”

Conclui-se, então, que sempre que houver desigualdade na partilha dos bens em razão do desfazimento da sociedade conjugal sem que haja qualquer forma de compensação ao cônjuge a quem coube a menor parte da meação, a transmissão se dará a título gratuito, devendo incidir o ITCMD sobre o valor que excedeu a meação.


Referências Bibliográficas

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. São Paulo: Método, 2007.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

VENOSA, Silvio de Salvo. O novo direito civil. São Paulo: Atlas, 2003.


Notas

  1. ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. São Paulo: Método, 2007, p. 572-573.
  2. VENOSA, Silvio de Salvo. O novo direito civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 187.
  3. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 431.
  4. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 984.

Autor

Luciana Vieira Santos Moreira Pinto

Procuradora da Fazenda Nacional. Pós-graduada em Direito Judiciário. Diretora do Centro de Altos Estudos da PGFN no Distrito Federal

NBR 6023:2002 ABNT: PINTO, Luciana Vieira Santos Moreira. A tributação da transmissão de bens nas partilhas desiguais. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2995, 13 set. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19985>. Acesso em: 17 jan. 2012.


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