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Aplicação prática da medida cautelar fiscal


A medida cautelar fiscal possibilita garantir o crédito tributário constituído ou por constituir, sabendo-se que no processo cautelar não existe lugar para decisão definitiva acerca da sujeição dos bens dos requeridos, discussão que é própria à ação de execução.


1. INTRODUÇÃO

Após a conclusão dos procedimentos fiscais pelo órgão fazendário, em face de pessoa jurídica, constitui-se o crédito tributário, mediante lavratura do respectivo auto de infração.

A existência de débitos tributários, em não havendo patrimônio conhecido da empresa, pode dar causa à propositura de ação cautelar, com base no procedimento fiscal instaurado, como veremos a seguir.


2. DO CABIMENTO DA AÇÃO CAUTELAR FISCAL

Plenamente cabível o ajuizamento de ação para resguardo dos interesses da Fazenda, dos seus créditos públicos de expressiva monta, de responsabilidade de empresas e seu sócio-administrador, a fim de evitar que ocorra ou prossiga o desvio de bens da sociedade, agravando-se ainda mais a situação.

A medida cautelar fiscal, no caso, encontra amparo no art. 2º, mais especialmente inc. VI e inc. IX, da Lei 8.137/1992:

Art. 2º A medida cautelar fiscal poderá ser requerida contra o sujeito passivo de crédito tributário ou não tributário, quando o devedor:

  1. sem domicílio certo, intenta ausentar-se ou alienar bens que possui ou deixa de pagar a obrigação no prazo fixado;
  2. tendo domicílio certo, ausenta-se ou tenta se ausentar, visando a elidir o adimplemento da obrigação;
  3. caindo em insolvência, aliena ou tenta alienar bens;
  4. contrai ou tenta contrair dívidas que comprometam a liquidez do seu patrimônio;
  5. notificado pela Fazenda Pública para que proceda ao recolhimento do crédito fiscal:
    1. deixa de pagá-lo no prazo legal, salvo se suspensa sua exigibilidade;
    2. põe ou tenta por seus bens em nome de terceiros;
  6. possui débitos, inscritos ou não em Dívida Ativa, que somados ultrapassem trinta por cento do seu patrimônio conhecido;
  7. aliena bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigível em virtude de lei;
  8. tem sua inscrição no cadastro de contribuintes declarada inapta, pelo órgão fazendário;
  9. pratica outros atos que dificultem ou impeçam a satisfação do crédito.

Disciplinando os requisitos probatórios necessários à concessão da medida cautelar fiscal, tem-se o art. 3º da Lei 8.137/1992:

Art. 3° Para a concessão da medida cautelar fiscal é essencial:

  1. prova literal da constituição do crédito fiscal;
  2. prova documental de algum dos casos mencionados no artigo antecedente.

Para os fins do art. 3º, inc. I, da Lei 8.397/1992, necessário que o crédito tributário seja constituído mediante a lavratura de auto de infração , formalizado em processo administrativo fiscal.

Acerca da prova da constituição do crédito tributário, elucidativo precedente do STJ:

“(…) Consoante doutrina o eminente Ministro José Delgado: ‘Há entre os pressupostos enumerados um que é básico: a prova de constituição do crédito fiscal. O inciso I do art. 3º da Lei nº 8.397/92 não exige constituição definitiva do crédito fiscal; exige, apenas, que ele encontre-se constituído. Por crédito tributário constituído deve ser entendido aquele materializado pela via do lançamento. A respeito do momento em que o crédito tributário deve ser considerado para o devedor como constituído, há de ser lembrado que, por orientação jurisprudencial, este momento é fixado quando da lavratura do auto de infração comunicado ao contribuinte.’ (Artigo Aspectos doutrinários e jurisprudenciais da medida cautelar fiscal, na obra coletiva Medida cautelar fiscal. Coordenadores: Ives Gandra da Silva Martins, Rogério Gandra Martins e André Elali. São Paulo: MP Editora, 2006, p. 79)“ (STJ, 1ª Turma, REsp 466.723/RS, rel. Min. DENISE ARRUDA, j. 06.06.2006, DJ 22.06.2006, p. 178).

Além disso:

Convém ressaltar que na ação cautelar fiscal não se exige o crédito tributário, mas apenas se resguarda futura e eventual ação de execução, em garantia do patrimônio público. A pendência de causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário não pode ser considerada como um impedimento absoluto à cautelar fiscal. De fato, se a própria Lei n. 8.397/92 admite o manejo da cautelar, em certas hipóteses, mesmo antes da constituição do crédito tributário, é inegável que a teleologia legal aí implícita é a de assegurar, tanto quanto possível, o futuro adimplemento das obrigações tributárias descumpridas e dos respectivos acessórios (TRF 3ª REGIÃO, 3ª Turma, AG 200703000109178/SP, rel. CECILIA MARCONDES, j. 24.10.2007, DJU 28.11.2007, p. 260).

E, ainda:

A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, por si só, não obsta a concessão de liminar em medida cautelar fiscal (TRF 4ª REGIÃO, 1ª Turma, AG 200704000086041/SC, j. 20.06.2007, D.E. 17.07.2007).


Aliás, mesmo que o débito estivesse parcelado – causa de suspensão de exigibilidade –, a ação cautelar fiscal poderia ser intentada:

O Fisco tem interesse jurídico na ação cautelar fiscal que visa à indisponibilidade dos bens do devedor, mesmo que ele tenha aderido ao REFIS, pois tal fato não é impeditivo da manutenção dos gravames efetuados no patrimônio do contribuinte em ações anteriormente ajuizadas. Está presente requisito para a decretação de indisponibilidade dos bens, pois há documentação nos autos a comprovar que a empresa possui débitos que ultrapassam trinta por cento de seu patrimônio conhecido (TRF 4ª REGIÃO, 1ª Turma, AC 200071000093900/RS, rel. VILSON DARÓS, j. 07.02.2007, D.E. 28.02.2007).

Ainda acerca do crédito tributário e da afetação que o início de sua constituição produz em face dos bens do devedor e responsáveis, mutatis mutandis, traz-se oportuníssimo precedente do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO:

(…) 8. Uma vez que o início do procedimento de fiscalização deflagra justamente a possibilidade de constituição do crédito tributário, sabendo o contribuinte que o fisco examinaria a escrita contábil e os livros fiscais, a fim de investigar o descumprimento de obrigações tributárias, não há falar em ausência do pressuposto central de admissibilidade da ação revocatória – a anterioridade do crédito aos atos de alienação que reduziram o devedor à insolvência ou ao estado de insolvência. Foi a previsibilidade do desenlace da ação fiscal que motivou a transferência dos bens a terceiros, transparecendo o propósito de malograr a satisfação dos créditos tributários. 9. (…). Não é possível exigir do fisco a mesma dinâmica que caracteriza os negócios, pois o lançamento tributário consiste em ato administrativo vinculado, cujos requisitos são notoriamente mais rigorosos que os atos de direito privado. (…). (TRF 4ª REGIÃO, 1ª Turma, AC 200171050018732/RS, rel. JOEL ILAN PACIORNIK, j. 02.05.2007, D.E. 22.05.2007).

À luz do disposto no inciso VI do art. 2º da Lei 8.397/1992, a medida cautelar fiscal é providência que se impõe para o devido resguardo dos direitos de cobrança do crédito.

Nesse contexto, esta ação serve para tornar indisponíveis tantos bens quantos bastem à satisfação do crédito ? inclusive do sócio-administrador de fato, no caso de inexistência de bens da pessoa jurídica ? tudo nos termos do art. 4º, caput e parágrafo primeiro, da Lei 8.397/1992. Nesse sentido, o inteiro teor do dispositivo legal:

Art. 4° A decretação da medida cautelar fiscal produzirá, de imediato, a indisponibilidade dos bens do requerido, até o limite da satisfação da obrigação.

§ 1° Na hipótese de pessoa jurídica, a indisponibilidade recairá somente sobre os bens do ativo permanente, podendo, ainda, ser estendida aos bens do acionista controlador e aos dos que em razão do contrato social ou estatuto tenham poderes para fazer a empresa cumprir suas obrigações fiscais, ao tempo:

  1. do fato gerador, nos casos de lançamento de ofício;
  2. do inadimplemento da obrigação fiscal, nos demais casos.

§ 2° A indisponibilidade patrimonial poderá ser estendida em relação aos bens adquiridos a qualquer título do requerido ou daqueles que estejam ou tenham estado na função de administrador (§ 1°), desde que seja capaz de frustrar a pretensão da Fazenda Pública.

§ 3° Decretada a medida cautelar fiscal, será comunicada imediatamente ao registro público de imóveis, ao Banco Central do Brasil, à Comissão de Valores Mobiliários e às demais repartições que processem registros de transferência de bens, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a constrição judicial.

A medida cautelar fiscal se afigura em instrumento jurídico que possibilita garantias consistentes para o crédito tributário constituído ou por constituir, sabendo-se que no processo cautelar não existe lugar para decisão definitiva acerca da sujeição dos bens dos requeridos, discussão que é própria à ação de execução.

Considerando-se ser a segurança (e não o bem propriamente dito) o cerne do processo cautelar, para a procedência da ação, somente é necessário que se demonstre a plausibilidade jurídica da tese alegada.

Ou seja, deve apenas haver fundada probabilidade (não se exigindo certeza) de que o patrimônio da pessoa jurídica e física requerida venha a ser chamado a suportar os ônus da execução.

As regras que presidem a cautelar fiscal, veiculadas inicialmente pela Lei 8.397/1992, com as posteriores alterações promovidas pela Lei 9.532/1997, permitem a constrição do patrimônio do devedor e, desse modo, a inibição de qualquer atitude que possa significar esvaziamento patrimonial que leve à insolvência.

Nesse sentido, falando genericamente sobre as tutelas jurisdicionais de cunho cautelar, HUMBERTO THEODOR JUNIOR ensina:

Consiste, pois, a ação cautelar no direito de provocar, o interessado, o órgão judicial a tomar providências que conservem e assegurem os elementos do processo (pessoas, provas e bens), eliminando a ameaça de perigo ou prejuízo iminente e irreparável ao interesse tutelado no processo principal; vale dizer: a ação cautelar consiste no direito de “assegurar que o processo possa conseguir um resultado útil” (Curso de Direito Processual Civil, v. II, 14ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 358)

No tipo de ação cautelar da qual aqui se trata, à luz da existência de regramento específico e próprio, despicienda qualquer demonstração, em separado, dos requisitos genéricos das ações cautelares ? fumus boni iuris e periculum in mora ?, eis que já devem ser tidos como atendidos apenas pela demonstração das situações fáticas que constam dos requisitos exigidos para propositura da ação prevista na Lei 8.397/1992, que autoriza as providências cautelares naquelas hipóteses que específica.

Importante destacar que “(…) havendo motivos suficientes, deve ser assegurada à Fazenda Nacional o cumprimento da obrigação tributária em aberto, por meio da cautelar fiscal e consequente constrição judicial de bens”, e também que “a lei permite a concessão de medida cautelar fiscal mesmo quando há suspensão da exigibilidade do crédito tributário” (TRF 4ª REGIÃO, 1ª Turma, AC 95.04.08588-1/RS, rel. JOSÉ LUIZ B. GERMANO DA SILVA, j. 21.03.2000, DJ 05.04.2000, p. 17).

De todo modo, o fumus boni iuris emerge de toda a fundamentação trazida na ação, ao passo que o periculum in mora restará evidente ao se comprovar que, se permanecerem os bens do devedor livres e desembaraçados, estes poderão ser transferidos, a qualquer título, inclusive a terceiros de boa-fé, inviabilizando a quitação do crédito público.

Importante salientar que a Lei 8.397/1992, em seu art. 7.º, caput, trouxe disposição autorizadora clara e expressa: “O Juiz concederá liminarmente a medida cautelar fiscal, dispensada a Fazenda Pública de justificação prévia e de prestação de caução”.



3. COMPETÊNCIA JUDICIAL

A competência do juízo para o processamento da ação é regida pelo artigo 5º da Lei 8.397/1992:

Art. 5° A medida cautelar fiscal será requerida ao Juiz competente para a execução judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública.

Parágrafo único. Se a execução judicial estiver em Tribunal, será competente o relator do recurso.


4. LEGITIMIDADE PASSIVA DO SÓCIO-ADMINISTRADOR

A responsabilidade pessoal pelo crédito tributário pode surgir pelo cometimento de ilícito tributário objeto de auto de infração.

Nesse sentido:

TRIBUTÁRIO. AÇÃO CAUTELAR FISCAL. LEI-8397/92 (06.01.92) ART-7. Se há fundado receio de inviabilidade da cobrança da dívida fiscal, por irregularidades praticadas na sociedade devedora, justifica-se o arresto de bens, inclusive do sócio-gerente (TRF 4ª REGIÃO, 1ª Turma, AG 97.04.05132-8/SC, rel. VLADIMIR FREITAS, j. 11.11.1997, DJ 24.12.1997, p. 112.538).

A base legal para a mencionada responsabilização pessoal encontra-se no art. 135, inc. III c/c art. 136, ambos do CTN. Colaciona-se precedente:

EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO DOS SÓCIOS. ARTIGOS 135 E 136 DO CTN. 1. Nos termos do art. 135 do CTN, respondem pessoalmente pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias os gerentes, administradores ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado quando agirem com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto. 2. A responsabilidade por infrações da legislação tributária não depende de culpa ou dolo do agente ou responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do dano. Art. 136, CTN. 3. Apelação improvida.” (TRF 3ª REGIÃO, 1ª Turma, AC 381.104, rel. OLIVEIRA LIMA, j. 14.08.2001. DJU 06.11.2001, p. 323)

Oportuno invocar, relativamente à matéria da responsabilização pessoal de sócios, também os arts. 124 e 128 do CTN ? constantes da Seção II (Solidariedade) do Capítulo IV (Sujeito Passivo) e da Seção I (Disposição Geral) do Capítulo V (Responsabilidade Tributária) ? a seguir transcritos:

Art. 124. São solidariamente obrigadas:

  1. as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
  2. as pessoas expressamente designadas por lei.

Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.

Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

Do art. 124, inc. I, do CTN, extrai-se que, quando duas ou mais pessoas estiverem ligadas por interesse comum ao fato gerador, dar-se-á a solidariedade legal presumida. Desta forma, e como também diz o art. 128 supra, qualquer pessoa que esteja vinculada ao fato gerador é devedora solidária em relação ao crédito tributário.

Ora, é óbvio que os sócios de uma empresa – especialmente o sócio-administrador – têm interesse comum na ocorrência do fato gerador. E também o têm os demais sócios, porquanto, é com base no conjunto de atos realizados, que dentre outras coisas se consubstanciam em fatos geradores tributários, que a empresa auferirá seus resultados e, muito especialmente, os lucros que beneficiarão os cotistas.

Todo e qualquer dirigente de empresa, na condição de gestor do negócio, ao deixar de recolher os tributos devidos por ela infringe a lei, pois ele deve administrar e cumprir regularmente as obrigações que contrai em nome dela, já que a personificação representada pela pessoa jurídica não lhe confere vida animada.

Em outras palavras, os atos da empresa são sempre praticados através da vontade de seus dirigentes, de seus representantes. Daí a solidariedade destes em relação às obrigações que contraem em nome daquela. A responsabilidade solidária em tal caso é presumida posto que a situação configurada na lei (art. 124, inc. I) é aquela em que todos os envolvidos ganham simultaneamente com o fato econômico (fato gerador). Em corroboração ao afirmado, claro precedente jurisprudencial:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – MC (FISCAL): INDISPONIBILIDADE DOS BENS DOS AGRAVANTES (EMPRESA E SÓCIO-GERENTE) PARA GARANTIA DE FUTURA EXECUÇÃO FISCAL – DÉBITO QUE ULTRAPASSA A 30% DO PATRIMÔNIO CONHECIDO – LEGITIMIDADE RECURSAL DAS PARTES LIMITADA (INDIVIDUALMENTE) À SUA SEARA ESPECÍFICA –RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR EXPRESSAMENTE PREVISTA NO ART. 4º, §1º, DA LEI N. 8.397/92 – AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO CONHECIDO QUANTO À INDISPONIBILIDADE DOS BENS DO CO-RESPONSÁVEL E NÃO PROVIDO EM RELAÇÃO À EMPRESA. 1 – O procedimento cautelar fiscal poderá ser instaurado após a constituição do crédito, quando o devedor possuir débitos, inscritos ou não em Dívida Ativa que, somados, ultrapassem trinta por cento do seu patrimônio conhecido (art. 2º, VI, da Lei n. 8.397/1992, na redação da Lei n. 9.532/1997). (…) 3 – Àquele que administra bens, ai entendida a administração da sociedade, é atribuída responsabilidade tributária solidária (subsidiária), por expressa determinação legal, aparada na letra do art. 128, que comete à lei a atribuição da responsabilidade tributária. 4 – Possibilidade de indisponibilização dos bens também do sócio-gerente da empresa à época da ocorrência dos fatos geradores dos débitos (art. 4º da Lei n. 8.397/92). 5 – Peças liberadas pelo Relator, em 28/05/2007, para publicação do acórdão. (TRF 1ª REGIÃO, 7.ª Turma, AG 200601000343250/BA, rel. LUCIANO TOLENTINO AMARAL, j. 28.05.2007, DJ 15.06.2007, p. 75)

A própria Lei 8.397/1992, que instituiu a medida cautelar fiscal, em seu art. 4º, parágrafo 1º, é clara ao permitir que a indisponibilidade patrimonial seja estendida aos bens do acionista controlador e aos dos que em razão do contrato social ou estatuto tenham poderes para fazer a empresa cumprir suas obrigações fiscais ao tempo do fato gerador e do inadimplemento da obrigação fiscal – sócio administrador de fato ou de direito.


A interpretação jurisprudencial acerca da legitimidade passiva em questão pode ser muito bem aferida pela leitura do seguinte precedente do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, que bem sintetiza os aspectos a ela relacionados:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. MEDIDA CAUTELAR FISCAL. INDISPONIBILIDADE DOS BENS. 1. Hipótese em que a dívida cautelar fiscal foi deferida contra a empresa, com fundamento no art. 2º, VI, da Lei nº 8.397/92, por ser o valor da dívida muito superior ao seu patrimônio conhecido e em razão dos seus sucessivos prejuízos, e extensivamente ao sócio, com apoio no art. 2º, VI, e art. 4º, ambos da Lei nº 8.397/92, e artigo 50 do Código Civil. 2. Havendo a possibilidade de evasão fiscal, aliado a outros fatores (interligação/confusão patrimonial entre sócio e empresa; possível simulação; doação formalizada após longo período de inadimplência fiscal, com o intuito de frustrar a execução de bens de raiz), é de ser mantida a indisponibilidade dos bens. 3. A indisponibilidade dos bens, por ser medida de cautela, objetiva assegurar eventual futuro redirecionamento, mas não se confunde com esse e, portanto, não implica constrição do patrimônio do sócio, que não fica privado de usar e fruir os bens, mas apenas deve observar a restrição ao direito de deles dispor, a fim de que se conservem como garantia, para o caso de eventual redirecionamento da execução. 4. Agravo de instrumento improvido. (TRF 4ª REGIÃO, 1ª Turma, AG 200604000113611/SC, rel. ARTUR CÉSAR DE SOUZA, DJU 12.07.2006, p. 848)


5. POSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO DE PEDIDOS TAMBÉM COM BASE NO PODER GERAL DE CAUTELA

No que diz respeito às medidas acautelatórias que podem ser determinadas no bojo da ação cautelar fiscal, tem a jurisprudência se inclinado a admitir que ? à luz de cada caso concreto ? podem ser as mais amplas possíveis, não estando o juiz adstrito, de forma extremamente rígida, apenas àquilo que a Lei 8.397/1992 preceitua.

Não se pode descartar a possibilidade de uso do próprio poder geral de cautela ? presente, por exemplo, no art. 615, inc. III ou no art. 798, ambos do CPC ? como embasamento jurídico para determinação de providências cautelares pontuais e mais abrangentes do que aquela inicialmente prevista na Lei 8.397/1992, úteis ao resguardo do futuro resultado do processo principal, em que se veiculará o interesse jurídico que se pretende por ora resguardar. Em corroboração do afirmado, traz-se, mutatis mutandis, elucidativo precedente jurisprudencial:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CAUTELAR FISCAL. IMÓVEL. INDISPONIBILIDADE. ALUGUÉIS. INDÍCIOS DE FRAUDE. 1. O deferimento do depósito dos aluguéis configura pedido diverso da indisponibilização do bem, decretada com base no art. 4º da Lei 8.397/92. Nesta hipótese, a indisponibilidade do bem não atinge, via de regra, seus frutos e rendimentos. O depósito dos aluguéis, por outro lado, pode ser deferido pelo Juízo, em face de seu poder geral de cautela, quando houver indícios de irregularidades ou fraudes na locação do imóvel, para o fim de ludibriar o Fisco. Precedentes da Segunda Turma desta Corte. 2. No caso em tela, há indícios que levam a crer que a empresa, por seus sócios, pretende esquivar-se ao pagamento dos tributos e dívidas existentes. Assim, em face do poder geral de cautela deve ser estendida a medida de indisponibilidade aos frutos civis decorrentes do aluguel de bem imóvel já indisponível. (TRF 4ª REGIÃO, 2ª Turma, AG 200504010418682/SC, rel. MARGA INGE BARTH TESSLER, D.E. 12.03.2008)

Com isso, se está afirmando que é perfeitamente admissível, por exemplo, o arresto de bens do sócio-administrador de fato das empresas devedoras, inclusive e muito especialmente porque não fazem parte do ativo imobilizado da empresa, não suficiente à satisfação dos créditos tributários.

Tais medidas não estariam sendo deferidas com base na Lei 8.397/1992, mas, sim, com base no poder geral de cautela aplicado em face das peculiaridades e da gravidade do caso concreto, em decorrência de pedidos que são veiculados ? até por questão de economia processual ? no bojo da própria ação cautelar fiscal.

Outro precedente do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, embasando-se em jurisprudência do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSJTIÇA, que vai nesse exato sentido:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MEDIDA CAUTELAR FISCAL. PESSOA JURÍDICA. EXTINÇÃO DE FATO E INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. BENS DO ATIVO NÃO PERMANENTE. INDISPONIBILIDADE. ART. 4º, § 1º, DA LEI Nº 8.397/92. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite que, em situações excepcionais, os efeitos da medida cautelar fiscal atinjam também os bens do ativo não permanente da empresa. Precedentes. 2. Situação excepcional demonstrada, face à extinção de fato da empresa e à insuficiência de bens para a garantia do crédito tributário, permitindo que a indisponibilidade recaia sobre outros bens e direitos não incluídos no ativo permanente. 3. Agravo de instrumento improvido. (TRF 4ª REGIÃO, 2ª Turma, AG 200604000193552/RS, rel. OTÁVIO ROBERTO PAMPLONA, j. 31.10.2006, DJU 22.11.2006, p. 414)


6. PEDIDO DE INDISPONIBILIDADE DE BENS AO LONGO DO CURSO DA AÇÃO

A indisponibilidade de bens, em sede de ação cautelar fiscal, pode se dar em qualquer fase da ação, em respeito à própria dinâmica inerente às movimentações patrimoniais, sem que isso possa ser interpretado como qualquer espécie de alteração de pedido ou coisa que o valha.

Em corroboração ao afirmado:

  1. Não se deu alteração de pedido, a viciar a relação processual: almejando a cautelar fiscal indisponibilidade de acervo, esta a pretensão, veemente que a identificação do(s) bem(ns) da vida a atingir possa se sujeitar ao dinamismo inerente às movimentações/localizações patrimoniais. (…) 4. Incumbe enfatizar-se sobre a índole do processo cautelar, o qual se traduz no mecanismo de obtenção de uma providência assecuratória da subsistência e conservação, material e jurídica, de um bem. 5. Realça-se o cunho provisório e instrumental da cautelar, pois dura até que fato superveniente a torne desnecessária ou que a medida definitiva a substitua, existindo não com finalidade própria, mas em função de outro processo (TRF 3ª REGIÃO, 2ª Seção (Turma Sup.), AC 96030519251/SP, rel. SILVA NETO, v.u. 25.10.2007, DJU 05.11.2007, p. 625).

O entendimento é correto, pois, porque, pela sua própria natureza e finalidade, a ação cautelar fiscal se destina à obtenção de indisponibilidade de acervo patrimonial, que encontrará limite apenas no montante do crédito existente.

Sendo assim, enquanto não garantido o montante total do crédito em questão, sempre que encontrados outros bens do requerido, poderão estes também ser tornados indisponíveis.



7. PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL

Finalizando, a execução fiscal do crédito tributário inscrito em dívida ativa deve ser proposta nos exatos termos do artigo 11 da Lei 8.397/1992, que determina que, “quando a medida cautelar fiscal for concedida em procedimento preparatório, deverá a Fazenda Pública propor a execução judicial da Dívida Ativa no prazo de sessenta dias, contados da data em que a exigência se tornar irrecorrível na esfera administrativa”.


AUTOR

Mauro Evaristo Medeiros Junior
Procurador da Fazenda Nacional lotado em Joaçaba (SC). Pós-graduado em Direito Civil pela PUC-MG.

NBR 6023:2002 ABNT:JUNIOR, Mauro Evaristo Medeiros. Aplicação prática da medida cautelar fiscal. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3267, 11 jun. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21965>. Acesso em: 12 jun. 2012.


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Autor: Tiago da Silva Fonseca, Procurador da Fazenda Nacional. Mestrando em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da UFMG.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

Resumo – Para garantir a segurança jurídica do contribuinte, a instituição ou majoração das obrigações tributárias dependem de lei expressa, as leis tributárias que agravam a sua situação não retroagem e têm a eficácia diferida para pelo menos noventa dias da publicação da norma. A efetivação da segurança jurídica vai além das limitações constitucionais expressas ao poder de tributar. A doutrina e a jurisprudência passam a desenvolver teses a partir de princípios implícitos que também são necessários para afirmar a segurança jurídica, como a confiança legítima e a boa-fé objetiva. A necessidade de previsibilidade e de estabilidade, bem como a garantia de expectativas, devem ser estendidas à Administração Tributária. Como a doutrina majoritária afasta a aplicação da confiança das pretensões fazendárias, é mister que se recorra a fontes alternativas de proteção do Fisco.

1 Introdução

O Estado de Direito está fundado em três valores estruturantes: a liberdade, a igualdade e a segurança jurídica. A Constituição, como dimensão básica que subordina o Estado de Direito, vai, de forma imediata ou mediata, buscar a concretização e efetivação desses valores estruturantes em todas as suas normas.

A segurança jurídica requer a previsibilidade, a estabilidade, a fiablidade, a clareza, a racionalidade, a transparência dos atos dos Poderes constituídos do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), de modo que o cidadão tenha um mínimo de precisão e determinabilidade da ordem jurídica a que está submetido.

A expectativa de durabilidade e permanência da ordem jurídica e dos atos estatais, com a devida proteção do cidadão para os casos de mudanças normativas necessárias para o desenvolvimento das atividades dos poderes públicos, garante não só as situações jurídicas assentadas, mas também permite a paz social. Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida1.

No Direito Tributário, a segurança jurídica do contribuinte é garantida precipuamente pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, submetidas sobretudo através da legalidade, irretroatividade das leis que instituam ou agravem obrigações tributárias e não-surpresa. Quando os princípios constitucionais tributários expressos são insuficientes para concretizar a segurança jurídica do contribuinte, torna-se necessário proteger expectativas legitimamente criadas, através dos princípios da confiança e boa-fé subjetiva.

As idéias de previsibilidade, estabilidade, clareza, transparência, fiabilidade e racionalidade, todavia, transbordam os contornos da segurança jurídica, que é garantia do cidadão e contribuinte, para orientar a atuação e para também atender às expectativas da Administração Tributária. Se o contribuinte é resguardado contra atos contraditórios pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, pela confiança legítima e boa-fé objetiva, a Fazenda deve exigir que as declarações e comportamentos dos particulares não configurem abuso de direito ou violação ao dever de lealdade.

Outrossim, as modificações de jurisprudência que impliquem em impactantes perdas fiscais devem constatar se a Fazenda atuava nos limites de entendimento pacificado anterior, sendo surpreendido por reviravolta de jurisprudência consolidada. Nesse caso, os efeitos da nova norma judicial devem ser modulados, em observância a princípios como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal e o planejamento estatal.

2 A previsibilidade e esta bilidade da relação tributária: a confiança legítima dos contribuintes e a garantia da Fazenda contra o abuso de direito

A previsibilidade necessária à segurança jurídica em matéria tributária é garantida, sobretudo, pela legalidade. De acordo com a definição legal expressa no art. 3º do Código Tributário Nacional, tributo é a prestação pecuniária compulsória, que não constitua sanção de ato ilícito, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Entretanto, ainda que a atividade seja plenamente vinculada, a aplicação da lei não consiste na mera subsunção da norma ao fato. A complexidade social faz com que mesmo a lei tributária, que conta com a predominância de conceitos determinados e não de tipos fluidos, seja insuficiente para regular corretamente casos situados numa “zona cinzenta” e não numa “zona de certeza”.

No conceito de discricionariedade proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, a lei consigna um limite de aplicação, dentro do qual pode existir um conjunto de interpretações legítimas, consistindo a aplicação da lei ao caso concreto na escolha de uma única alternativa pelo aplicador (seja o Poder Executivo ou Judiciário):

Discricionariedade é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente2.

Logo, é possível que o aplicador escolha uma alternativa que, não obstante esteja inserida no limite estabelecido pela lei, crie norma formalmente legítima, mas que materialmente vá de encontro ao Direito, considerando que a legitimidade jurídica não se restringe à legalidade.

Nessa perspectiva, a aplicação legítima da lei tributária depende de outros princípios que garantem a previsibilidade para o contribuinte, como a proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva.

O princípio da confiança legítima é criação do Direito Europeu, como instrumento de manutenção e atendimento das expectativas criadas no passado frente às alterações normativas do futuro. Preservar o passado, pela confiança legítima, faz todo o sentido em países como Alemanha, Portugal, Espanha e França, que só consagraram constitucionalmente o princípio da irretroatividade para leis penais e sancionadoras e não para as leis em geral, como no Brasil.

Na Europa, especialmente na Alemanha, o princípio da confiança legítima surge como justificação de vinculação de declarações, acordos, contratos e expectativas contra modificações futuras, nas relações de Direito Civil, para as quais não havia nenhuma previsão contra a irretroatividade.

O princípio certamente ganhou maior repercussão a partir do modelo de Claus-Wilheim Canaris, que associou a necessidade de preservação da confiança à teoria da aparência e à proibição do venire contra factum proprium. Como substrato ético-jurídico, a confiança legítima garantiria as situações aparentes, contra mudanças contraditórias, constituídas mediante declarações, documentos idôneos ou comportamentos concludentes. A estabilização das situações por meio da confiança se daria de forma positiva, mantendo-as conforme as expectativas criadas, ou de forma negativa, modificando-as com a contraprestação de indenização por danos.

A confiança legítima a ser protegida depende de três requisitos:

  1. ação ou omissão de uma parte, apta a gerar expectativas em outra, que representa uma situação de acordo com uma declaração, documento ou comportamento;
  2. boa-fé daquele que confiou;
  3. mudança contraditória da situação representada, gerando a imputação da responsabilidade pela confiança para aquele que agiu de forma contrária às expectativas que induziu.

Incorporando as teorias alemãs, a doutrina civilista portuguesa também é rica de estudos acerca da confiança nas relações entre particulares. Carneiro da Frada3 dá à confiança papel de destaque na estrutura normativa, situando-a em patamar posterior ao dos princípios e valores, como instrumento de justiça corretiva. Os atos contraditórios em prejuízo à confiança alheia seriam causa para a responsabilidade civil, devendo o defraudador restaurar a situação representada ou indenizar aquele que confiou, como forma de restauração do equilíbrio da relação. Menezes Cordeiro, diferentemente de Carneiro da Frada, que situa a confiança num campo axiológico, defende a sua força regulativa, como ponte entre a boafé subjetiva e objetiva, ao mesmo tempo em que está assentada em ambas.

No sentido proposto por Niklas Luhmann, a confiança é meio para redução da complexidade social, uma vez que antecipa o futuro, que determina as ações do presente como se o futuro fosse certo. Assim, a confiança torna-se instrumento para garantir a coerência e previsibilidade do presente, ante os antecedentes alternativos do passado e das diversas possibilidades do futuro. A confiança fundamenta as ações de uma parte tomando por base as ações que espera de outra, que toma decisões acreditando que as suas expectativas darão origem às conseqüências esperadas. É uma forma importante para organizar as relações, para não tornar caótico os sistemas em que é garantida a liberdade e a autonomia particular de todos os indivíduos.


A sua generalidade fez com que a confiança, portanto, deixasse de ser uma garantia das relações civis, para alcançar relações onde o Estado seria uma das partes. O princípio da proteção da confiança no Direito Público passou a garantir os cidadãos em face de declarações e comportamentos contraditórios ou expectativas criadas pelo Estado. Sobretudo, quando o Estado age de forma discricionária, em que há várias alternativas legítimas e possíveis, dentro dos limites fixados pela lei. Mas mesmo quando o Estado age de forma vinculada, em que sobressai a atuação de acordo com a estrita legalidade, podem ocorrer situações que escapam ao princípio, já que a criação da norma concreta não se limita à mera subsunção da norma ao fato, de modo a surgir a necessidade de se recorrer ao princípio da confiança, como forma de se fazer ou de se preservar a justiça.

No Direito Administrativo, Hartmut Maurer noticia leading case do Tribunal Administrativo Superior de Berlim, vinculando a declaração e comportamento do Estado em favor da confiança legítima do administrado:

A primeira invasão nessa concepção jurídica firme resultou por meio de uma decisão do Tribunal Administrativo Superior de Berlim de 14.11.1956 (DVBL. 1957, 503). Tratava-se do seguinte caso: a demandante, uma viúva de um funcionário, transladou da República Democrática Alemã de então para Berlim-Leste depois de lhe haver sido prometido, por ato administrativo, a concessão de rendimentos de pensão. Um ano depois a autoridade competente comprovou que os pressupostos jurídicos para a concessão, porém, não existiam, os rendimentos de pensão, portanto, haviam sido concedidos falsamente. Em consequência, ela retratou o ato administrativo, suspendeu os pagamentos e exigiu da demandante a restituição dos rendimentos pagos a mais. Isso correspondia, sem mais, à jurisprudência de então. O Tribunal Administrativo Superior de Berlim decidiu, todavia, a favor da demandante. Ele comprovou que, no caso concreto, deveria ser observado não só o princípio da legalidade, mas também o princípio da proteção à confiança. A demandante confiou na existência do ato administrativo e, em conformidade com isso, alterou decisivamente suas condições de vida. Como, no caso concreto, seu interesse da confiança preponderava, o ato administrativo não deveria ser retratado. O Tribunal Administrativo Federal confirmou a sentença do Tribunal Administrativo Superior de Berlim (BVerwGE 9, 251) e, na época posterior, desenvolveu, em numerosas decisões, uma doutrina de retratação ampla e diferenciada4.

A confiança legítima no Direito Administrativo funciona como garantia do administrado, que planeja a sua atuação conforme declarações e comportamentos do Estado, diante do poder da Administração Pública em criar normas ou em anular atos inválidos e revogar atos que se tornam incovenientes ou inoportunos.

Entre nós, Almiro Couto e Silva5 cuidou do tema da confiança do administrado diante de atos contraditórios da Administração com grande entusiasmo. Destaca o autor que as expectativas dos administrados devem ser preservadas contra modificações prejudiciais do direito positivo ou contra anulação de atos pelo Estado, ainda que ilegais, como os praticados pelos chamados “funcionários de fato”. Logo, a confiança do particular deve funcionar como limite de revisão de atos administrativos, ainda que eivados de ilegalidade.

No Direito Tributário, a proteção da confiança legítima é, para Misabel Derzi, princípio autônomo e não desdobramento de outros princípios, como legalidade, irretroatividade, propriedade, direito de personalidade, dignidade da pessoa humana ou igualdade. A confiança seria uma implícita limitação constitucional ao poder de tributar. A Administração Tributária é parte diferenciada da relação obrigacional, tendo em vista que tem a prerrogativa de constituir o crédito que vai exigir, administrativa ou judicialmente. Tal prerrogativa deixa a parte credora numa posição de vantagem em relação à devedora. Para equilibrar a relação que, apesar de ser uma relação obrigacional ex lege, não deixa de ser um vínculo obrigacional, a Constituição já delimita e direciona a atuação da Administração Tributária, através dos princípios expressos como limitações constitucionais ao poder de tributar.

A confiança seria mais uma dessas limitações constitucionais, cuja proteção se torna imperiosa quando a legalidade, a irretroatividade e a anterioridade não são suficientes para garantir a previsibilidade para o contribuinte. Partindo da premissa pela qual onde há domínio de informações não há confiança, portanto, o princípio seria meio de defesa atribuído somente ao contribuinte e nunca à Fazenda Pública.

Para Niklas Luhmann, “a confiança se apóia na ilusão6. Se existe certeza não há necessidade de confiança. A confiança deve servir como garantia para aquele que não tem a totalidade ou, pelo menos, a maior quantidade de informações, que representa uma situação, que age de acordo com a escolha de uma das probabilidades futuras, que acredita na expectativa que foi gerada ou fomentada.

Ainda na doutrina de Misabel Derzi, a confiança tem três características elementares: a permanência dos estados, a antecipação do futuro e a simplificação. Mas a autora não reconhece a confiança, onde existe supremacia sobre os eventos:

Onde há supremacia sobre os eventos/acontecimentos, a confiança não é necessária. Essa constatação é importante nesta tese: a confiança e proteção da confiança não se colocam do ponto de vista do Estado, como ente soberano. Isso porque, nas obrigações ex lege, o Estado tem supremacia sobre os eventos/acontecimentos que ele mesmo provoca, ou seja: as leis, as decisões administrativas e as decisões judiciais na modelação e cobrança dos tributos7

Como lado mais fraco do vínculo obrigacional tributário, o contribuinte que realiza um planejamento fiscal fundado não só nas leis e normas vigentes, mas também nas declarações e comportamentos da Administração Tributária, deve ser reparado se houver uma mudança repentina ou ato contraditório por parte do Fisco, em respeito à sua confiança.

Assim, a confiança do contribuinte deveria ser protegida, como acoplador estruturante e estabilizador do sistema jurídico e da relação tributária, especialmente nos casos de termos fixados com prazos legais (ex: isenções), mudanças de normas agravadoras dos deveres dos contribuintes, mudanças de atos administrativos (lançamentos) que onerem de forma mais intensa os contribuintes, declarações e respostas da Administração Tributária.

É evidente que qualquer reparação do contribuinte por ato contraditório da Administração Tributária depende da comprovação dos requisitos da responsabilidade pela confiança, isto é, depende da demonstração de um ato capaz de gerar expectativas legítimas, de boa-fé do particular e de investimentos decorrentes da declaração ou comportamento anterior.

Pela teoria da confiança, as declarações, documentos, normas e comportamento do Fisco o vincula perante o contribuinte, criando deveres que, se violados, geram a pretensão de reparação, seja através da manutenção da situação de acordo com as expectativas representadas, seja através de criação de regimes de transição conforme o grau de confiança gerada e de investimentos dispendidos, seja através de indenização por perdas e danos. Se adotarmos como modelos de reparação as teorias de responsabilidade civil, a indenização deve corresponder às perdas conseqüentes da quebra de confiança.

Existe considerável resistência da doutrina majoritária em admitir a confiança da Fazenda Pública em relação ao contribuinte, ainda que o particular aja de modo contraditório ou viole expectativas geradas no Fisco, em processos administrativos ou judiciais. Isso porque as declarações, documentos e comportamentos do contribuinte não lhes criam deveres perante a Fazenda Pública, porquanto os deveres na relação jurídica obrigacional tributária devem estar necessariamente previstos pela lei.

Ainda que reconheçamos a inaplicação do princípio da proteção da confiança em favor da Fazenda Pública, por estar a Administração Tributária em posição de vantagem na relação jurídica ou por considerar que as declarações e comportamentos dos contribuintes não criam deveres que sempre decorrem de lei, é mister que se reconheça a necessidade de garantia de estabilidade e previsibilidade tanto para o credor como para o devedor tributário.

Reprimir o abuso de direito e garantir expectativas de uma parte contra mudanças contraditórias de outra são preocupações do Direito em geral e não são máximas a serem aplicadas em casos isolados ou em relações jurídicas específicas.

A teoria do abuso de direito está fundada na evolução do conceito de direito subjetivo, que deixou de ser o poder irrestrito dado ao titular, isentando-o de quaisquer responsabilidades por danos decorrentes do exercício. O direito subjetivo passou a incorporar elementos como a liberdade, a consideração social, a cooperação, a função social, dentre outros.

Em estudo sobre a boa-fé, Menezes Cordeiro dá notícia dos primeiros julgados reconhecendo o exercício abusivo de direito, nos tribunais da França:

As primeiras decisões judiciais do que, mais tarde, na doutrina e na jurisprudência, viria a ser conhecido por abuso de direito, datam da fase inicial da vigência do Código de Napoleão. Assim, em 1808, condenouse o proprietário duma oficina que, no fabrico de chapéus, provocava evaporações desagradáveis para a vizinhança. Doze anos volvidos, era condenado o construtor de um forno que, por carência de precauções, prejudicava um vizinho. Em 1853, numa decisão universalmente conhecida, condenou-se o proprietário que construira uma falsa chaminé, para vedar o dia a uma janela do vizinho, com quem andava desavindo. Um ano depois, era a vez do proprietário que bombeava, para um rio, a água do próprio poço, com o fito de fazer baixar o nível do vizinho. Seguir-se-iam, ainda, numerosas decisões similares, com relevo para a condenação, em 1913, confirmada pela Cassação, em 1915, por abuso do direito, do proprietário que erguera, no seu terreno, um dispositivo de espigões de ferro, destinado a danificar os dirigíveis construídos pelo vizinho8.


Assim, ocorre o abuso de direito quando o titular exerce o seu poder seja sem utilidade própria, ou com a intenção de prejudicar alguém, ou de maneira injusta, ou com fins diversos daqueles atribuídos pela lei. O abuso de direito viola normas, éticas ou jurídicas, e acaba neutralizando e aniquilando o direito ilegitimamente exercido, transformando o ato abusivo em ilícito. Nas palavras de Menezes Cordeiro:

A admissão do abuso de direito tem sido fundada na necessidade de respeitar os direitos alheios, na violação, pelo titular-exercente, de normas éticas, na ocorrência por parte do mesmo titular, de falta e não consideração do fim preconizado pela lei, aquando da concessão do direito9.

Assim, ainda que não haja confiança legítima do Fisco a ser protegida na relação tributária, não é dado ao contribuinte agir de modo contraditório, violando expectativas criadas ou atuando em contrariedade aos fins dos direitos subjetivos que lhes são garantidos.

Os Tribunais pátrios já vêm admitindo casos de abuso de direito de contribuintes em face do Fisco, especialmente tipificados no postulado do venire contra factum proprium. As linhas de proibição do venire contra factum proprium, normalmente, têm o propósito de concretizar a doutrina da confiança. Todavia, podem ser abrangidos na figura da proibição do venire contra factum proprium comportamentos contraditórios originadores ou independentes da confiança, especialmente nos casos de relações jurídicas que se projetam no tempo e que requerem estabilidade e previsibidade.

Estão abrangidas no tipo venire contra factum proprium as situações em que o titular manifesta a intenção de não exercer um direito e depois exerce ou indica não tomar determinada atitude, mas acaba por assumíla. As declarações e comportamentos contraditórios podem impedir a constituição ou modificar direitos subjetivos, retirando do titular o poder potestativo de exercício.

Ainda que as construções acerca do abuso de direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium, tenham se dado no âmbito das relações privadas, proibir e coibir declarações e comportamentos contraditórios é função do Direito, que deve manter a estabilidade e previsibilidade dos vínculos entre os particulares, bem como entre as pessoas e o Estado.

Nesse contexto, Menezes Cordeiro dá conta daquela que foi considerada a primeira aplicação da proibição do venire contra factum proprium em situações de Direito Penal:

Ponto de partida foi a decisão do LG Kaiserlautern 14-Jul.-1995, JZ 1956, 182-183: o R. cometera o crime de estupro – § 182 StGB, na versão em vigor na altura – tendo posteriormente renovado várias vezes as relações com a ofendida, de catorze anos; em defesa, vem dizer que, na primeira vez, desconhecia a idade da ofendida e, que, nas vezes subseqüentes, embora tivesse obtido esse conhecimento, faltava já o requisito da virgindade, por parte da mesma ofendida. O LG Kaiserlaustern não aceitou este argumento, decidindo que o R. não podia recorrer à falta de um requisito que ele próprio suprimira10.

No Direito Tributário, a aplicação do instituto jurídico é até menos controversa, já que não é difícil vislumbrar condutas contraditórias, por parte dos contribuintes, capazes de imputar severos prejuízos à Fazenda Pública.

Utilizamos o parcelamento previsto na Lei 11.941/2009 como exemplo. A Lei 11.941/2009, de dificílima implementação por parte da Administração Tributária, previa nove modalidades de parcelamento. Não obstante, estabelecia iniciativas que em muito dificultavam a consolidação dos parcelamentos, tais como a inclusão no benefício de saldos remanescentes de débitos em outros Programas (REFIS, PAES, PAEX, etc), a inclusão de débitos decorrentes de aproveitamento indevido de créditos de IPI, a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido próprios.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) constataram que vários contribuintes efetuaram opções por modalidades de parcelamento em desconformidade com seus débitos. Diante disso, decidiram que, no momento da consolidação final do parcelamento, em que seria apurado o valor total da dívida a partir de todos os abatimentos, bem como o valor específico de cada parcela, seria dada a opção aos contribuintes para retificar as declarações feitas no momento da adesão.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 03, de 29 de abril de 2010, determinou que os contribuintes que possuíssem pedido de parcelamento validado nos termos da Lei 11.941/2009, deveriam se manifestar sobre a inclusão ou não da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento para as quais havia feito a adesão. A manifestação dos contribuintes consistia em etapa preliminar para a consolidação do parcelamento e servia como fundamento para justificar a suspensão de exigibilidade dos débitos abrangidos pelo benefício.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 11, de 24 de junho de 2010, por seu turno, determinou que os contribuintes que antes haviam se manifestado pela não inclusão da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento previstas pela Lei 11.941/2009 deveriam indicar, de modo pormenorizado, quais os débitos seriam efetivamente incluídos no programa de regularização fiscal.

Como efeito imediato das Portarias, seja para os contribuintes que fizeram a opção por incluir todos os débitos no parcelamento, seja para aqueles que fizeram a opção por não incluir todos os débitos, mas que indicaram os que deveriam ser parcelados, todos os débitos inscritos no parcelamento ficaram com a exigibilidade suspensa. Ou seja, para os débitos incluídos no parcelamento, passaram a ser expedidas as certidões de regularidade fiscal, a ser obstados os ajuizamentos de créditos inscritos em dívida ativa, a ser suspensos os atos de cobrança administrativa, a ser interrompidos os procedimentos de execução judicial, inclusive com a liberação de penhoras realizadas em momento posterior ao da adesão.

Diante desse breve histórico das etapas de consolidação do parcelamento previsto na Lei 11.941, suponhamos que um contribuinte tenha feito a opção por não incluir a totalidade de seus débitos no benefício e tenha indicado aqueles que efetivamente pretendia parcelar. Para os débitos incluídos no parcelamento, o contribuinte obteve certidões positivas com efeitos de negativas e teve bens anteriormente penhorados (dinheiro, imóveis, veículos, etc) liberados nas execuções fiscais nas quais era executado. Suponhamos que na oportunidade de retificação das opções, na etapa final de consolidação do parcelamento, o contribuinte desista de parcelar tais débitos, requerendo o aproveitamento dos pagamentos efetuados para outras dívidas.

Ora a suposição é um típico exemplo de venire contra factum proprium. É perfeitamente possível destacar uma conduta original do contribuinte (a declaração de inclusão de débitos no parcelamento), uma conduta posterior contraditória (a retificação da declaração, incluindo outros débitos) e os prejuízos decorrentes da mudança de comportamento (expedição de certidões, suspensão das execuções fiscais, liberação de bens penhorados).

A declaração e o comportamento contraditório do contribuinte cria para a Fazenda Nacional a pretensão de reparação dos danos provocados pela quebra das expectativas, incluindo a extinção do seu direito subjetivo de proceder à retificação abstratamente permitida.

Portanto, ainda que não haja confiança da Administração Tributária, pois não há criação de obrigações tributárias sem lei anterior que as institua, a previsibilidade e estabilidade da relação jurídica obrigacional e a coerência dos atos e declarações dos contribuintes perante o Fisco devem ser preservados. E um importante meio de garantia consiste na proibição do abuso do direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium.

3 As modificações de jurisprudência em Direito Tributário

Em tese onde expõe com precisão os possíveis efeitos de modificações de jurisprudência em Direito Tributário contra a segurança jurídica, a previsibilidade e a estabilidade das relações entre Fisco e contribuintes, Misabel Derzi alerta que, frente aos atos do Poder Judiciário, os princípios consagrados expressamente nas limitações constitucionais ao poder de tributar são escassos para proteger as expectativas legitimamente geradas nos contribuintes.

A tese da necessidade de proteção da confiança contra modificações de jurisprudência em Direito Tributário que agravem a situação dos contribuintes parte da conclusão de Carnelutti de que toda a decisão judicial veicula uma resposta particular e uma resposta geral. A resposta particular pode declarar a existência ou não de uma relação jurídica, pode constituir ou modificar direitos, pode condenar nos mais diversos tipos de obrigações. Já a resposta geral é dada a partir da análise da pretensão e da fundamentação de sua procedência ou improcedência.

Assim, a resposta particular, ou seja, o dispositivo da decisão, visa a pacificar e compor os conflitos de interesses do caso concreto e está voltada para situações que ficaram no passado. O mesmo não acontece com a resposta geral, que cria a expectativa de que aquele órgão julgador vai fundamentar o mesmo grupo de casos com as mesmas razões. Logo, a resposta geral, ou seja, a fundamentação da decisão, cria uma expectativa normativa voltada para o futuro e não para o passado.


A sentença seria, portanto, ato pluridimensional, já que é prolatada no presente, que julga conflitos de interesses ocorridos no passado, mas que cria expectativas para o futuro, de que casos semelhantes deverão ter a mesma solução, isto é, deverão ter idêntica resposta judicial.

Nessa perspectiva, se é dada uma resposta geral a uma pergunta geral, está criada uma jurisprudência. Posteriormente, se for dada uma resposta geral diferente para aquela mesma pergunta geral, está modificada a jurisprudência original. É para essa mudança repentina de entendimento, própria dos Tribunais Superiores, que modifica norma judicial anterior que gerou expectativas nos jurisdicionados, que deve estar assegurada o princípio da proteção da confiança.

A modificação de atos e normas, seja do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário, é imanente à rotina e ao exercício das prerrogativas do Estado. Normalmente, as mudanças de atos e normas acompanham e se adaptam às mudanças do mundo dos fatos. A tese de Misabel Derzi não questiona a possibilidade de mudanças de jurisprudência, tampouco defende uma higidez permanente ou imutabilidade dos julgados. Apenas busca conciliar as mudanças com as expectativas criadas nos contribuintes que pautaram as suas condutas e empreenderam os seus planejamentos nas declarações e comportamentos anteriores do Poder Judiciário.

Os princípios constitucionais da irretroatividade e não-surpresa se referem às leis e não aos atos do Poder Judiciário. Fragilizadas as limitações constitucionais ao poder de tributar para preservar a justiça no caso concreto, caberia ao princípio da confiança legítima proteger as expectativas normativas criadas pelo Poder Judiciário. Pelo princípio da irretroatividade, regra geral, as leis novas regulam situações futuras e não alcançam situações estabilizadas no passado. Para a jurisprudência, como não vale a irretroatividade, através da confiança legítima as modificações teriam efeito parecido. Assim se expressou a professora mineira:

Dois fatos foram muito importantes, como vimos, para a aplicação análoga do princípio da irretroatividade das leis às mutações jurisprudenciais: a aceitação de que o juiz não apenas aplica mas também cria Direito; e a constatação de que a jurisprudência consolidada é uma norma vinculativa, abstrata, genérica, similar às normas legais. Sem se confundir com as leis, a modificação de jurisprudência consolidada, que se impunha como norma observada por todos, é novo encontro do Direito, parecido com o advento de uma nova lei11.

Vale ressaltar, todavia, que a tese de proteção pela confiança contra modificações de jurisprudência somente garante expectativas dos contribuintes, já que a autora rechaça o alcance do princípio para a defesa de pretensões fazendárias.

Mas o Fisco também está exposto aos mesmos efeitos gravosos, decorrentes da modificação drástica de jurisprudência tributária em seu desfavor. A Administração Tributária também cria expectativas a partir de um entendimento consolidado dos Tribunais e, a partir disso, orienta toda a sua atividade de administração, fiscalização e cobrança de créditos tributários.

Ademais, na relação triangular processual, o Fisco e o contribuinte ocupam vértices opostos mas eqüidistantes do juiz, sendo que as suas decisões vinculam de modo idêntico ambas as partes. Na relação processual, não há privilégios da Administração, nem supremacia dos acontecimentos ou domínio de informações. Na relação processual, vigoram os princípios da imparcialidade do juiz, da igualdade, do contraditório, da liberdade das partes. Para as situações excepcionais em que a Fazenda Pública detém de prerrogativas processuais (como os prazos privilegiados e a ciência dos atos judiciais mediante vista dos autos), todas as ressalvas já estão determinadas pela lei, que é interpretada restritivamente. Portanto, na defesa do mérito das pretensões, vige a isonomia processual entre Fazenda e contribuintes.

Na prática, o que se vê é que essa diferença de forças, entre a Fazenda e contribuinte, geralmente é compensada ou ao menos minimizada pela observância dos princípios formadores do processo. O Poder Judiciário, para cumprir o seu encargo de efetivar a igualdade entre as partes, assume a responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar aquelas que existem entre Fazenda e contribuinte, no sentido empregado por Cândido Rangel Dinamarco:

A leitura adequada do art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, mostra que ele inclui entre os deveres primários do juiz a prática e preservação da igualdade entre as partes, ou seja: não basta agir com igualdade em relação a todas as partes, é também indispensável neutralizar desigualdades. Essas desigualdades que o juiz e o legislador devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo – fraquezas de toda ordem, como pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas fraquezas, fontes terríveis de desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala12 (grifos do autor).

Então, as expectativas da Fazenda perante entendimentos pacificados nos Tribunais não devem ser preteridas ou jogadas à própria sorte ou ao total desamparo. Se a confiança não serve para acolher pretensões fazendárias, é necessário recorrer a outros princípios, tais como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal, o planejamento estatal.

Utilizamos o RE 240.785/MG, ainda em tramitação no Supremo Tribunal Federal, como exemplo. O ICMS, que faz parte do preço das mercadorias e serviços sobre os quais recai o imposto estadual, sempre foi glosado como elemento da base de cálculo do PIS e COFINS, que incidem sobre o faturamento e receita bruta das sociedades devedoras.

A inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS é balizada inclusive por jurisprudência pacificada13 e sumulada14 no Superior Tribunal de Justiça, a quem compete decidir conflitos de interesses fundados em normas infraconstitucionais.

Os diversos precedentes em seu favor criam para a Fazenda Nacional a expectativa normativa de que os Tribunais Superiores dêem para a mesma pergunta geral (o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS?) a mesma resposta geral (por ser parte integrante do preço e por incidir o PIS e COFINS sobre faturamento e receita bruta da empresa, o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS).

Se vencida no STF a tese contrária e modificada a jurisprudência, é imperioso que a Corte proponha a modulação de efeitos da decisão. Se não em razão da confiança nos atos do Poder Judiciário, a modulação pode ter por base, além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99: a boa-fé do Fisco, ao agir em conformidade com a lei e com precedentes judiciais em seu favor; a perda de parte significativa de arrecadação, atentando contra o planejamento, a adequação e equilíbrio das despesas e receitas públicas; a socialização dos deveres e prejuízos decorrentes da solidariedade fiscal.

Contudo, reconhecendo a força vinculante ou persuasiva da jurisprudência dos Tribunais Superiores, admitimos que a quebra de expectativas a partir de modificação de jurisprudência, criando ou majorando obrigações para os contribuintes, ou causando graves prejuízos à atuação da Administração Tributária e aos cofres públicos, deve ser compensada pela modulação de efeitos da nova norma judicial criada.

4 Conclusão

A relação jurídica obrigacional tributária não prescinde da previsibilidade e estabilidade necessárias para a vida em sociedade e perseguidas como um dos fins mais relevantes para o Direito. Não obstante a Constituição brasileira ser uma das mais meticulosas na discriminação dos princípios tributários, há situações concretas em que a justiça fiscal pode escapar às normas constitucionais expressas.

Um cenário de justiça fiscal pressupõe uma correta divisão de bens, deveres e direitos, um dever genérico de não prejudicar, uma relação de lealdade e não de desconfiança entre Fisco e contribuintes. Como já advertiu Niklas Luhmann, a desconfiança tem um potencial imensamente destrutivo, para qualquer sistema. No Tributário, a desconfiança exige que a Administração Tributária aumente progressivamente a exigência e controle de informações dos contribuintes, criando uma infinidade de obrigações acessórias que acabam por aumentar a resistência ao tributo e por incentivar práticas evasivas e sonegatórias.

Nesse sentido, se por um lado a segurança jurídica do contribuinte deve ser otimizada pelos princípios da legalidade, irretroatividade, não surpresa e confiança legítima, a previsibilidade e estabilidade para a Administração Tributária devem ser aperfeiçoadas através da coibição do abuso de direito, especialmente no que tange às declarações e comportamentos contraditórios ou ao venire contra factum proprium.

Do mesmo modo que a atuação contraditória do contribuinte, a modificação de jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, sem alteração relevante das leis, pode causar graves prejuízos à Administração Tributária, requerendo a devida modulação de efeitos da decisão.


Além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99 como causas de restrição de efeitos ou de definição temporal da eficácia da decisão em sede de controle de constitucionalidade pelo STF, outros princípios podem ser invocados para justificar a modulação de efeitos, de modo a favorecer às legítimas expectativas do Fisco.

Notas

1 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 256.
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 936
3 FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
4 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. p. 70.
5 COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
6 LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996, p. 53.
7 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 328.
8 CORDEIRO, Antônio Manuel Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007. p. 671.
9 CORDEIRO, op. cit., p. 680-681.
10 CORDEIRO, op. cit., p. 753.
11 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. p. 550.
12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 208-209.
13 REsp 496.969/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 14/03/2005; REsp 668.571/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 13/12/2004;Resp 572.805/SC, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 10/05/2004; Ag 666.548/RJ, Rel. Min. Luiz Fuz, DJ de 14/12/2005.
14 Súmula 68: A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS. Súmula 94: A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do FINSOCIAL.

Referências bibliográficas

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.
FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.


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