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Honorários em pauta na discussão do novo CPC

Deputado Ronaldo Benedet (PMDB/SC) apresenta emenda ao PL 8.046 para inclusão de honorários aos advogados públicos.


Jurisprudência comentada: A inconstitucionalidade da contribuição previdenciária incidente sobre a produção rural dos empregadores pessoas naturais (Recurso Extraordinário nº 363.852/MG)

Autor: Fabrício Sarmanho de Albuquerque, Procurador da Fazenda Nacional, Professor de Direito Constitucional Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL e pela Universidade Castilla La Mancha, na Espanha.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

I – INTRODUÇÃO

A questão aqui abordada é, sem dúvida, de grande repercussão jurídica e econômica para o direito brasileiro, em especial por trazer reflexos imediatos no equilíbrio do sistema previdenciário.

A área rural durante muito tempo deixou de recolher contribuições sociais que eram recolhidas pelo setor urbano. Isso se deve a diversos motivos: política de incentivo do setor, dificuldade de fiscalização, informalidade da atividade e falta de consciência acerca da solidariedade do sistema e da necessidade de manutenção do equilíbrio atuarial.

Com a edição da Lei nº 8.212/91 todos os empregadores e empregados passaram a contribuir para a seguridade social, inclusive aqueles que atuam na área rural.

Diversos problemas práticos podem ser indicados em relação à contribuição previdenciária rural. Primeiramente, a informalidade do setor acaba levando à inexistência de folha de salários. Em segundo lugar, as grandes distâncias a serem percorridas para se fiscalizar um pequeno número de empregadores findam por dificultar a fiscalização tributária. Por fim, a operacionalização da cobrança gera uma burocracia difícil de ser dominada pelo setor rural, muitas vezes desenvolvida por pessoas sem grande instrução formal ou acesso a serviços de apoio à empresa, como serviços contábeis ou de assessoramento tributário.

Todas essas dificuldades levaram o Congresso Nacional a substituir a contribuição sobre a folha de salários pela contribuição em percentual bem inferior, incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção. Essa contribuição é vulgarmente chamada de FUNRURAL, em alusão ao tributo que anteriormente incidia sobre o setor.

A Lei nº 8.540/92 trouxe diversos benefícios:

  1. simplificou a forma de cobrança;
  2. viabilizou a fiscalização, pois ela passou a concentrar-se nos pontos de comercialização, como as empresas de beneficiamento;
  3. reduziu a carga tributária, substituindo a contribuição de 20% sobre a folha de salários pela contribuição de 2% sobre a receita bruta.

Com a inovação da Lei nº 8.540/92 e das supervenientes Leis nº 9.528/97 e 10.256/2001, o art. 25 da Lei nº 8.212/91, que cuida do custeio da Seguridade Social, passou a ter a seguinte redação:

Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de:

  1. 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção;
  2. 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho.

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 363.852/MG, mais conhecido como “Caso Mataboi S/A”, foi discutida a constitucionalidade da nova sistemática de tributação dos empregadores rurais pessoas físicas. O Supremo Tribunal Federal entendeu por declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.540/92, nos seguintes termos.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário para desobrigar os recorrentes da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por sub-rogação sobre a “receita bruta proveniente da comercialização da produção rural” de empregadores, pessoas naturais, fornecedores de bovinos para abate, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos os ônus da sucumbência. Em seguida, o Relator apresentou petição da União no sentido de modular os efeitos da decisão, que foi rejeitada por maioria, vencida a Senhora Ministra Ellen Gracie. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, com voto proferido na assentada anterior. Plenário, 03.02.2010.

O acórdão recebeu a seguinte ementa.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRESSUPOSTO ESPECÍFICO – VIOLÊNCIA À CONSTITUIÇÃO – ANÁLISE – CONCLUSÃO. Porque o Supremo, na análise da violência à Constituição, adota entendimento quanto à matéria de fundo do extraordinário, a conclusão a que chega deságua, conforme sempre sustentou a melhor doutrina – José Carlos Barbosa Moreira –, em provimento ou desprovimento do recurso, sendo impróprias as nomenclaturas conhecimento e não conhecimento.

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – COMERCIALIZAÇÃO DE BOVINOS – PRODUTORES RURAIS PESSOAS NATURAIS – SUB-ROGAÇÃO – LEI Nº 8.212/91 – ARTIGO 195, INCISO I, DA CARTA FEDERAL – PERÍODO ANTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98 – UNICIDADE DE INCIDÊNCIA – EXCEÇÕES – COFINS E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PRECEDENTE – INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR. Ante o texto constitucional, não subsiste a obrigação tributária sub-rogada do adquirente, presente a venda de bovinos por produtores rurais, pessoas naturais, prevista nos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com as redações decorrentes das Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97. Aplicação de leis no tempo – considerações. (grifos apostos)

O acórdão supra não transitou em julgado, tendo em vista que foram opostos embargos de declaração pela União ainda não julgados até a data de elaboração deste estudo. De qualquer forma, diversas inconsistências podem ser facilmente apontadas no julgamento, talvez um dos mais recheados de inconsistências na história da Corte.

Cuidaremos neste estudo de apontar quais foram as falhas técnicas cometidas pela Suprema Corte ao julgar o caso em tela.

II – PRIMEIRA CRÍTICA: FALSA PREMISSA DE DUPLA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

O primeiro passo para se entender a tributação em estudo é saber diferenciar a contribuição que se paga como segurado daquela que se paga como empregador. Também é importante lembrar que pessoas físicas não são tributadas pela COFINS.

Uma das premissas adotadas no acórdão recorrido diz respeito à suposta dupla incidência tributária sobre o contribuinte empregador rural pessoa física. Alega-se que que não seria possível fazer incidir mais de um tributo sobre a mesma hipótese de incidência constante no art. 195 da Constituição Federal. Verbis:

Então, o produtor rural, pessoa natural, fica compelido a satisfazer, de um lado, a contribuição sobre a folha de salários e, de outro, a COFINS, não havendo lugar para ter-se novo ônus, relativamente ao financiamento da seguridade social (fl. 1889 do acórdão)

O Sr. Ministro Cezar Peluso incorre no mesmo equívoco, pois entende que o produtor rural seria punido quando, aumentando a produção, passa a ter empregados, pois começa a contribuir, além da folha de salários, sobre a comercialização da produção. Não existe essa dupla incidência de contribuições sobre o art. 195, I, b, da Constituição Federal e nem mesmo uma dupla cobrança de contribuições sobre o empregador rural. A uma, porque a contribuição sobre folha de salários dele não é recolhida, já que foi substituída pela contribuição sobre o resultado da comercialização (texto expresso do art. 25 da Lei nº 8.212/91). A duas, porque não incide COFINS sobre pessoas físicas, que não possuem receita e nem faturamento.


Se é certo que os empregadores rurais pagam duas contribuições, mais certo ainda é que essas contribuições possuem fundamentos diversos. Uma é paga na condição de segurado (art. 12, V, “a”, da Lei nº 8.212/911) e outra é recolhida na condição de empregador (art. 25 da lei nº 8.212/91).

A primeira, recolhida na condição de segurado, visa ao custeio de seu benefício pessoal de aposentadoria e a segunda, recolhida na condição de empregador, visa a fazer frente aos benefícios de seus empregados.

Outra premissa equivocada lançada no acórdão, como dito anteriormente, diz respeito à suposta incidência de COFINS sobre a mesma hipótese de incidência. Em verdade, não há a cobrança dessa contribuição sobre empregador rural, pessoa física. As pessoas naturais não possuem tributação sobre a receita bruta e nem mesmo faturamento sob o aspecto contábil. A receita bruta da produção rural é equiparada à renda e, assim, apenas é contabilizada para efeito de imposto de renda.

As Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97 vieram à lume em medidas de desoneração da produção rural. As leis que foram declaradas inconstitucionais por esta Corte em verdade reduziam o valor efetivamente cobrado dos empregadores rurais pessoas naturais, posto que pelo regime até então vigente tais empregadores contribuíam sobre a sua folha de salários.

III – SEGUNDA CRÍTICA: INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

Aponta o julgado para a existência de ofensa à isonomia, sob a alegação de que o empregador rural receberia tratamento diferenciado em relação ao empregador urbano.

Na verdade, se alguém poderia alegar ofensa à isonomia seria o empregador urbano, que paga um valor bem maior de contribuição. A norma visava trazer um tratamento desigual àqueles que sejam desiguais, tendo em vista as peculiaridades de alta informalidade do setor rural.

IV – TERC EIRA CRÍTICA: FALTA DE ESCLARECIMENTO DA RAZÃO DE DECIDIR DA CORTE

O julgamento objeto deste estudo não demonstrou qual das inúmeras teses levantadas em Plenário consistiu na razão de decidir do colegiado. Ademais, a ementa entra em choque com o extrato de ata.

Seria importante que o Supremo Tribunal Federal demonstrasse o que foi considerado causa de decidir e o que seria mero obter dictum, já que há diversos argumentos do Pleno que foram acolhidos por alguns Ministros, outros que simplesmente não foram analisados pelos demais Ministros e outros que foram refutados por determinados ministros, como no caso do Sr. Ministro Eros Grau, que refutou a suposta inconstitucionalidade por ofensa à isonomia.

O acórdão surge a partir de um consenso do Plenário, o que sempre fez com que essa Corte reconhecesse que fundamentos suscitados isoladamente conduzem à existência de mero obter dictum, e não a uma causa de decidir. E no presente caso há até mesmo um novo elemento difícil de superar, que consiste no fato de as inconstitucionalidades apontadas no pronunciamento do julgamento não coincidirem com a conclusão exarada na ementa.

Por exemplo, se a causa de decidir foi a ausência da EC nº 20/98, que separou em incisos as hipóteses de incidência constantes do art. 195 e fez inserir a possibilidade de cobrança sobre receita bruna, uma lei ordinária posterior, inclusive a Lei nº 10.256/2001, poderia regularizar a cobrança, como ressalta o voto do Sr. Ministro Relator (“até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos os ônus da sucumbência”).

Se, porém, se entender que mesmo com a edição da EC nº 20/98 a cobrança de contribuição sobre a comercialização da produção seria feita por meio de técnica residual, somente uma lei complementar poderia regularizar a cobrança. Essa é a tese do Sr. Ministro Cezar Peluso, que entendemos ter restado vencida, posto que não acolhida no pronunciamento do Relator e nem dos demais ministros que se manifestaram expressamente.

Por fim, se inconstitucionalidades materiais isoladamente suscitadas, como a ofensa ao princípio da isonomia ? que assentaram-se em premissas falsas que somente não foram esclarecidas na tribuna porque não foram discutidas na origem ?, também foram determinantes para a decisão do Plenário, nenhuma nova medida legislativa poderia ser adotada e se ressuscitaria, com a decisão da Suprema Corte, o quadro de sonegação generalizada existente antes da substituição da folha de salários pelo resultado da comercialização.

A supressão dessa omissão não apenas orientará os futuros passos do Congresso Nacional na sua missão legislativa, como orientará as instâncias de origem, que vêm recebendo milhares de feitos nos quais se discute a contribuição em comento. Enfim, servirá de orientação para esta, que certamente é a causa que promete gerar maior repercussão na área tributária nos últimos tempos, evitando a multiplicação de discussões acerca da matéria.

V – QUARTA CRÍTICA: ACÓRDÃO QUE NÃO EXPLICITA O DIREITO APLICÁVEL À ESPÉCIE

Segundo a Enunciado 456 da Súmula do STF, “o Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”. Esse entendimento ganha ainda mais força com o surgimento do rito da repercussão geral, que faz com que os feitos representativos de uma matéria sirvam de paradigma para todo o Poder Judiciário, algo que se denomina objetivação do controle difuso.

No julgamento do RE nº 566.621/RS, por exemplo, no qual se julgava a constitucionalidade dos arts. 3º e 4º da Lei Complementar nº 118/2005, a Sra. Ministra Relatora, Ellen Gracie, que se pronunciou pela inconstitucionalidade do dispositivo, aproveitou para determinar, caso fosse vencedora, qual seria a normatização aplicável. Essa é a verdadeira tarefa da Suprema Corte, a de solucionar as controvérsias constitucionais como um todo.

Cabe lembrar o caráter objetivo do controle difuso em feitos representativos de uma controvérsia jurídica, que vem destacando o papel do Supremo Tribunal Federal na real solução dos litígios, com uma atuação sempre voltada a impedir a proliferação de processos repetitivos nas instâncias de origem.

O acórdão em estudo não agiu dessa forma. Não explicitou qual seria a norma aplicável ao empregador rural pessoa física após a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.540/92.

Após o pronunciamento da Suprema Corte acerca da inconstitucionalidade do “artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97”, milhares de contribuintes ajuizaram as mais diversas ações e, infelizmente, entendimentos equivocados têm levado à proliferação de liminares que extrapolam muito o que fora julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Os principais equívocos resultam da afirmação de que:

  1. os empregadores rurais pessoas físicas não têm obrigação de contribuir com a seguridade social, como se possuíssem alguma isenção que os diferenciasse dos demais empregadores; 
  2. os subrrogados (empresas que apenas retêm o tributo pago pelo empregador para repassar ao órgão arrecadador) têm direito de não repassar qualquer contribuição previdenciária sobre pessoas físicas, e não somente em relação aos empregadores pessoas físicas, mantendo-se a obrigação em relação aos segurados especiais, como seria correto.
  3. os subrrogados têm direito à repetição de indébito sendo que sequer são contribuintes do tributo. 
  4. os contribuintes têm direito à repetição de indébito, e não a um recálculo segundo a base de cálculo correta após a inconstitucionalidade da Lei nº 8.540/92, que é a folha de salários.
  5. é inconstitucional a contribuição sobre o total da produção até os dias atuais, sem considerar que a inconstitucionalidade foi suprida pela edição da Lei nº 10.256/2001. 

Quanto ao equívoco nº 1, seria interessante que o Tribunal demonstrasse de forma expressa que o que se declarou foi apenas a inconstitucionalidade da nova técnica de cobrança, que incide sobre o total da contribuição. Sendo assim, os empregadores rurais pessoas naturais devem continuar a recolher sobre sua folha de salários. A correção dessa omissão levaria também à correção do equívoco nº 4.


Essa discussão chegou a ser levantada pelo Sr. Ministro Sepúlveda Pertence em seu pronunciamento, mas não chegou a ser resolvida quando do veredicto. Na discussão a Suprema Corte confundiu empregador pessoa física com segurado especial e com o subrrogado, sendo que ao final não se explicitou que, afastada a contribuição sobre a comercialização, voltaria a incidir o tributo sobre a folha de salários.

Quanto ao equívoco nº 5, é importante lembrar que a previsão do acórdão (“até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição”) já foi cumprida, tendo em vista a edição da Lei nº 10.256/01, que deu a atual redação do art. 25 da Lei nº 8.212/98. Vejamos, acerca do tema o recente posicionamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região na APELAÇÃO CÍVEL Nº 2007.70.03.004958-9/PR, que declarou a constitucionalidade dessa norma e, consequentemente, a constitucionalidade da cobrança da contribuição rural após 2001:

TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO RURAL. PRODUTOR RURAL PESSOA FÍSICA EMPREGADOR. LEGITIMIDADE ATIVA. COMPENSAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUMULAS 512 DO STF E 105 DO STJ.

  1. A jurisprudência é uníssona no sentido de reconhecer a legitimidade ativa ad causam da empresa adquirente/consumidora/consignatária e da cooperativa para discutir a legalidade da contribuição para o Funrural.
  2. O substituto tributário carece de legitimidade para compensar ou repetir o indébito, porquanto o ônus financeiro não é por ele suportado.
  3. O STF, ao julgar o RE nº 363.852, declarou inconstitucional as alterações trazidas pelo art. 1º da Lei nº 8.540/92, eis que instituíram nova fonte de custeio por meio de lei ordinária, sem observância da obrigatoriedade de lei complementar para tanto.
  4. Com o advento da EC nº 20/98, o art. 195, I, da CF/88 passou a ter nova redação, com o acréscimo do vocábulo “receita”.
  5. Em face do novo permissivo constitucional, o art. 25 da Lei 8.212/91, na redação dada pela Lei 10.256/01, ao prever a contribuição do empregador rural pessoa física como incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção, não se encontra eivado de inconstitucionalidade.

Deveria a Suprema Corte deixar claro que as subrrogadas não possuem direito a repetição de indébito, já que não recolhem o tributo, servindo apenas de instrumento para o seu repasse. Além disso, é importante consignar que nunca deixaram de ser obrigadas a repassar o valor recolhido de segurados especiais, em relação aos quais a cobrança sobre o total da produção não possui qualquer vício. Essa explicitação evitaria os equívocos nº 2 e 3 de se perpeturarem.

VI – QUINTA CRÍTICA: ERRO NA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA CONTRIBUIÇÃO EM RELAÇÃO AO SEGURADO ESPECIAL E DA DECL ARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE TOTAL DO ART. 25, I E II DA LEI 8.212/91

Ao longo de todo o julgamento ficou explicitado que a instituição de contribuição sobre o total da produção somente seria constitucional em relação ao segurado especial, que atua em regime familiar, nos termos do art. 195, § 8º, da CF. Isso pode ser conferido nos seguintes trechos:

Vale frisar que, no artigo 195, tem-se contemplada situação única em que o produtor rural contribui para a seguridade social mediante a a plicação de alíquota sobre o resultado de comercialização de produção, ante o disposto no § 8º do citado artigo 195 – a revelar que, em se tratando de produtor, parceiro, meeiro e arrendatários rurais e pescador artesanal bem como dos respectivos cônjuges que exerçam atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, dá-se a contribuição para a seguridade social por meio de aplicação de alíquota sobre o resultado da comercialização da produção. A razão do preceito é única, não se ter, quanto aos neles referidos, a base para a contribuição estabelecida na alínea “a” do inciso I do artigo 195 da Carta, isto é, a folha de salários. Daí a cláusula contida no § 8º em análise “… em empregados permanentes…”. (Min. Marco Aurélio, fl. 1888)“De acordo com o artigo 195, § 8º, do Diploma Maior, se o produtor não possui empregados, fica compelido, inexistente a base de incidência da contribuição – a folha de salários – a recolher percentual sobre o resultado da comercialização da produção (Min. Marco Aurélio, fl. 1889)

Ora, a contribuição sobre o resultado da comercialização da produção rural do art. 195, § 8º, existe precisamente porque seu destinatário – o produtor rural sem empregados permanentes – não pode, é obvio, contribuir sobre folha de salários, faturamento ou receita, já que não dispõe de empregados, nem é pessoa jurídica ou entidade a ela equiparada.

Logo, é imediata a conclusão de que o sujeito passivo objeto pela parte inicial do art. 25 não se enquadra na exceção do art. 195, § 8º, reservada, em caráter exclusivo, ao segurado especial, que recebe proteção constitucional em vista de sua vulnerabilidade socioeconômica.

Não entrando na exceção do art. 195, §8º, subsume-se o empregador rural pessoa física à regra geral o art. 195, I, que estabelece a contribuição social devida pelo empregador sobre diferentes base de cálculo, notadamente a folha de salários – dentre os quais não se encontra, está claro, o “resultado” ou a “receita bruta proveniente da comercialização de sua produção. (Min. Cezar Peluso, fl. 1914-1915).

Ocorre, porém, que o artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, foi declarado inconstitucional sem ressalvas, o que acaba por tornar nula a parte do dispositivo relativa aos segurados especiais, que também consta do art. 25, I e II com a redação dada pela Lei nº 8.540/92. Transcreve-se a redação do dispositivo tido como inconstitucional:

Art. 25. A contribuição da pessoa física e do segurado especial referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta lei, destinada à Seguridade Social, é de:

  1. dois por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção;
  2. um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento de complementação das prestações por acidente de trabalho.

Poder-se-ia argumentar que a declaração da inconstitucionalidade, tal qual foi realizada, levaria à repristinação da redação anterior, que já previa a contribuição do segurado especial, o que não geraria problemas. Ocorre, porém, que a redação anterior trazia uma contribuição mais elevada, o que prejudicaria, de forma indevida, esses contribuintes.

A redação desse mesmo art. 25, dada pela Lei nº 8.398/1992, que voltaria a vigorar se a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92 for irrestrita é a seguinte:

Art. 25. Contribui com 3% (três por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção o segurado especial referido no inciso VII do art. 12.

O Segurado especial, se não corrigido o entendimento da Suprema Corte, deixará, sem qualquer motivo constitucionalmente extraído, de contribuir em dois por cento para voltar a contribuir em 3%. Ou seja, terá um aumento de 50% na sua contribuição.

Por isso, com base nos argumentos vencedores pelo Plenário, o correto seria declarar a inconstitucionalidade parcial do art. 25 da Lei nº 8.212/91, apenas na parte que diz respeito aos empregadores rurais pessoas físicas, mantendo hígido o dispositivo em relação aos segurados especiais, que nada tem a ver com a inconstitucionalidade apontada. 

O mesmo pode ser dito em relação ao artigo 30, IV da referida lei, declarado inconstitucional e que recebeu da Lei nº 8.540/92 a seguinte redação:

Art. 30. ……………………………….

  1. o adquirente, o consignatário ou a cooperativa ficam sub-rogados nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea a do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta lei, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento;

Ora, a sub-rogação em relação ao segurado especial não possui nenhuma inconstitucionalidade, motivo pelo qual seria interessante que esse dispositivo fosse mantido hígido em relação aos segurados especiais, já que seria contraproducente obrigá-los a contribuir individualmente, gerando ainda mais burocracia e gastos administrativos.

E nesse ponto, da sub-rogação, ainda há uma agravante. Com a edição de lei posterior à EC 20/98, que já foi inclusive considerada constitucional perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a contribuição sobre a produção dos empregadores rurais pessoas físicas foi retomada. Dessa forma, seria importante que fosse declarada a constitucionalidade da sub-rogação após a edição da lei nova a que se referiu o Relator em seu pronunciamento constante do acórdão.

Como é possível perceber da leitura do acórdão, a sub-rogação em si não possui nada de inconstitucional. Ela recebeu uma declaração de inconstitucionalidade por arrastamento, já que o Supremo Tribunal Federal entendeu ser desnecessária manter a sub-rogação se o tributo em si já não seria mais cobrado.

Ocorre que esse dispositivo não é desnecessário como se imagina. Muito pelo contrário, continua tendo utilidade prática em relação aos tributos recolhidos pelos segurados especiais e dos empregadores rurais depois da edição da Lei nº 10.256/2001, que adequou a técnica de tributação à nova redação constitucional.

Não havendo uma vírgula de argumento de inconstitucionalidade contra a fórmula da sub-rogação ao longo de todo o julgamento, não há razões para se declarar a inconstitucionalidade do art. 30, IV, da Lei nº 8.212/91.

Melhor seria que a Corte Suprema ao menos declarasse apenas a inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto, para excluir a incidência da norma em relação aos empregadores rurais pessoas física, exclusivamente no período de regência das Leis nº 8.540/92 e 9.528/97.

VII – CONCLUSÃO

Tendo em vista tratar-se de julgamento que ainda pode ser retocado pela Suprema Corte, ousamos apresentar algumas sugestões para que as incoerências apresentadas sejam evitadas. Seria interessante, por exemplo, que o Plenário esclarecesse os seguintes pontos:

  1. Como haveria uma dupla incidência tributária sobre os empregadores rurais pessoas naturais bem como ofensa à isonomia tributária, se estes não recolhem sobre a folha de salários e nem mesmo recolhem COFINS, sujeitando-se exclusivamente à tributação sobre a comercialização da produção?
  2. Quais seriam, de fato, as razões de decidir e qual seria o veredicto da Corte, o divulgado no acórdão ou aquele constante da ementa? A partir dessas razões, pode-se dizer que uma legislação ordinária idêntica, posterior à EC nº 20/98 seria constitucional? Mesmo após a edição da referida lei seria necessária a aplicação da técnica da tributação residual, que imporia uma lei complementar para a espécie?
  3. Se em todos os momentos foi afirmado que a contribuição dos segurados especiais é a única forma de cobrança sobre o resultado da comercialização constitucionalmente assegurada, porque foi declarada a inconstitucionalidade TOTAL do art. 25 da Lei nº 8.212/91, que trata tanto do segurado empregador quanto do segurado especial?
  4. Se a cobrança feita em relação aos segurados especiais é constitucional, nos termos do art. 195, § 8º, da CF, porque foi reconhecido o direito de a recorrida não permanecer na condição de subrrogada, ao invés de ser reconhecido apenas a inconstitucionalidade quando seja subrrogada em relação aos empregadores rurais pessoas naturais, permanecendo a obrigação quando adquira bovinos de segurados especiais que atuam em regime de economia familiar?
  5. Sendo inconstitucional a legislação editada antes da EC nº 20/98, seria constitucional a cobrança atualmente feita, com base na Lei nº 10.256/2001?

Um acórdão tecnicamente correto deveria, no nosso humilde ponto de vista, esclarecer que:

  1. nos termos da Súmula 456/STF, durante o período de regência das Leis nº 8.540/92 e 9.528/97, ante a sua inconstitucionalidade e consequentemente nulidade, ocorre a repristinação constitucional da redação original da Lei nº 8212/98, que remonta à tributação desses contribuintes sobre sua folha de salários.
  2. o artigo art. 25, incisos I e II, com a redação dada pela Lei nº 8.540/92 somente teve declarada sua inconstitucionalidade parcial, com redução do texto, no que tange às expressões “A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e” e “respectivamente, na alínea a do inciso V e”, mantendo-se, assim, a contribuição relativa ao contribuinte especial.
  3. o art. 30, IV, da Lei nº 8.212/91 somente deixa de ser aplicado nos limites da declaração de inconstitucionalidade.
  4. a novel legislação ordinária, arrimada no art. 195 da Constituição Federal na redação dada pela EC nº 20/98, ajusta a exação à interpretação constitucional dada pela Suprema Corte.

O princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário, inscrito no art. 5º, XXXV, da Constituição do Brasil não resta observado pelo simples fato de se emitir pronunciamento de mérito sobre as questões apresentadas. A emissão de decisões judiciais claras e fundadas em premissas corretas sob a ótica da lógica formal também é essencial para que se legitime a atividade jurisdicional.

Por isso, esperamos que este estudo conceda subsídios à atuação de todos os operadores do Direito envolvidos com o tema. Caso seja mantida a decisão original, restará às instâncias ordinárias resolverem os problemas práticos que certamente surgirão e que certamente voltarão à Suprema Corte pela via extraordinária.

Notas

1 “Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: […] V – como contribuinte individual: a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária, a qualquer título, em caráter permanente ou temporário, em área superior a 4 (quatro) módulos fiscais; ou, quando em área igual ou inferior a 4 (quatro) módulos fiscais ou atividade pesqueira, com auxílio de empregados ou por intermédio de prepostos; ou ainda nas hipóteses dos §§ 10 e 11 deste artigo; […]”;


Direito financeiro e educação. O FUNDEB: Natureza jurídica, regime de fiscalização e fixação de competências

Autor: Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, Estudos de pós-doutoramento na Universidade de Boston. Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Consultor da União. Professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília. Procurador da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

Resumo – O ensaio aproxima Direito Financeiro e Educação a partir de análise relativa ao modelo do Fundeb, no que se refere à definição da natureza jurídica do fundo, bem como no que se refere ao regime de competências para sua efetiva fiscalização.

1 Introdução e contornos do problema

O presente ensaio tem por objetivo inventariar problema recorrente de Direito Financeiro enquanto instrumento para fomento da educação. Neste contexto, pretende-se investigar a natureza do repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação-Fundeb, bem como explicitarse um regime de fixação da responsabilidade pela fiscalização dos aludidos recursos. A preocupação principal consiste em se identificar a quem compete a fiscalização e acompanhamento do modelo do Fundeb, especialmente no que se refere à malversação dos recursos do fundo, em tema de responsabilização administrativa (improbidade) e penal. A questão é discutida no Supremo Tribunal Federal, suscita consequências importantíssimas para o Tribunal de Contas da União, a par de exigir da Advocacia-Pública a determinação de algumas posições, de natureza institucional.

No presente texto defende-se que a natureza jurídica do repasse de recursos do Fundeb é de feição constitucional, processando-se de modo automático, o que não se confunde com a natureza do fundo propriamente dito, que é um fundo contábil. A fiscalização dos referidos recursos é do Tribunal de Contas da União, em colaboração com os Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, e também do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos Estaduais, do Distrito Federal e dos Territórios. Tem-se competência fiscalizatória concorrente, na qual o interesse da União não é apenas econômico.

Para tais fins, estuda-se, em primeiro lugar, o papel do Fundeb no contexto educacional brasileiro, especialmente com fundamento e referência no Plano Nacional de Educação. Nesse sentido, verificase o núcleo do problema: trata-se de questão muito simples que reflete as imperfeições de nosso federalismo fiscal, e seus desdobramentos no âmbito do federalismo educativo1.

Em seguida, avalia-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, caudalosa no assunto. O STF julga recorrentemente conflitos de competência entre o Ministério Público Federal e várias projeções de Ministério Público Estadual, a propósito da fixação de competência para o monitoramento de recursos do Fundeb, especialmente em matéria penal. Ainda menos do que dilema de Direito Público a questão é também significativo problema de Ciência Política. E por ter como pano de fundo a repartição de valores decorrentes da cobrança de tributos, é de interesse de todos quantos atuamos em favor da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2 O Fundeb no contexto do modelo educacional brasileiro

Prognósticos e possibilidades referentes ao modelo e ao financiamento da educação no Brasil qualificam a Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprovou o Plano Nacional de Educação2 e deu outras providências. O referido plano, fixado em documento anexo à lei, estende-se por período de dez anos, isto é, alcança até o ano de 2011 (art. 1º). Dispôs-se que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deveriam, com base no plano, elaborar planos decenais correspondentes (art. 2º). Determinou-se que a União, em articulação com os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e a sociedade civil, procederia a avaliações periódicas da implementação do referido plano (art. 3º).

Determinou-se que o Poder Legislativo, por intermédio das Comissões de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados e da Comissão de Educação do Senado Federal, acompanharia a execução do plano (§ 1º do art. 3º). Fixou-se que a primeira avaliação realizar-se-ia no quarto ano de vigência da lei, cabendo ao Congresso Nacional aprovar as medidas legais decorrentes, com vistas à correção de deficiências e distorções (§ 2º do art. 3º). À União caberia instituir Sistema Nacional de Avaliação e estabelecer os mecanismos necessários ao acompanhamento das metas constantes do plano (art. 4º).

Tem-se que os planos plurianuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios seriam elaborados de modo a dar suporte às metas constantes do Plano Nacional de Educação e dos respectivos planos decenais (art. 5º). Instituiu-se o ‘Dia do Plano Nacional de Educação’, a ser comemorado, anualmente, em 12 de dezembro, por força da Lei nº 12.012, de 2009. Principia-se o anexo com histórico relativo aos planos de educação, a partir da instalação da República entre nós.3 Lembrou-se que a educação começou a se impor como condição fundamental para o desenvolvimento do País a partir do momento em que o quadro social, político e econômico do início do século XIX começou a se desenhar4.

Pensou-se um conjunto de prioridades5. Entre elas, a garantia do ensino fundamental obrigatório de oito anos a todas as crianças de 7 a 14 anos, assegurando-se o ingresso e permanência delas na escola, bem como a conclusão do ciclo. Era também prioridade a garantia do ensino fundamental a todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria ou que não o concluíram. É o tema da erradicação do analfabetismo. Ainda, o conjunto de prioridades sugeria a ampliação do atendimento nos demais níveis de ensino – a educação infantil, o ensino médio e a educação superior.

E, especialmente, no que se refere ao financiamento do modelo, basicamente, para o ano de 1999, os recursos eram originários da rubrica manutenção e desenvolvimento do ensino – art. 212 da Constituição – (34,5%), do salário-educação (6,7%), da contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas (4,8%), da contribuição social para a seguridade social (6,3%), do então fundo de estabilização fiscal (19,4%), de recursos diretamente arrecadados (2.2%), bem como de outras fontes, não objetivamente nominadas (15,9%)6.

Registrou-se também que, em 1997, os gastos com a educação, por esferas federativas, era de 23,6% por parte da União, de 47,1% por parte dos Estados e de 29,3% por parte dos Municípios. Explicitou-se, inclusive, a origem, a natureza e o modelo do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF7, não mais existente, no sentido de que este era

[…] constituído por uma cesta de recursos equivalentes a 15% de alguns impostos do estado (FPE, ICMS, cota do IPI-Exp.) e dos Municípios (FPM, cota do ICMS, cota do IPI-Exp), além da compensação referente às perdas com a desoneração das exportações, decorrentes da Lei Complementar n° 87/96. Os núcleos da proposta do FUNDEF são: o estabelecimento de um valor mínimo por aluno a ser despendido anualmente (fixado em 315 reais para os anos de 1998 e 1999); a redistribuição dos recursos do fundo, segundo o número de matrículas e a subvinculação de 60% de seu valor para o pagamento de profissionais do magistério em efetivo exercício. Se o fundo, no âmbito de determinado estado não atingir o valor mínimo, a União efetua a complementação. Em 1998 esta foi equivalente a cerca de 435 milhões (Tabela 23). Para o exercício de 1999 a previsão é de que a complementação da União seja de cerca de 610 milhões (Portaria nº 286/99-MF)8.

A composição do FUNDEF, no ano de 1998, fora de 13,9% do Fundo de Participação dos Municípios, de 12,4% do Fundo de Participação dos Estados, de 66,3% do ICMS, de 1,8% do IPI-Exportação, bem como de um complemento da União, de 3,2%, a par de outras receitas. Posteriormente, o financiamento da educação no Brasil contará com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica-Fundeb, criado em 2007, e que em 2009 alcançou quase 80 bilhões de reais. Os valores são pulverizados entre as redes estaduais e municipais de ensino. Os números de distribuição são fracionados por aluno. Há piso que, uma vez não alcançado, será suplementado pela União Federal. O Fundeb é responsável pela elevação dos investimentos da educação, calculados em relação ao PIB.

O financiamento da educação resulta, e reflete, diretamente, o arranjo fiscal do modelo federativo brasileiro, especialmente no que se refere à repartição de receitas9. Conseguintemente, deve-se admitir que qualquer tentativa de se alterar o regime de responsabilidades educacionais, por parte do Estado, enfrenta constrangimento de interpretações simplistas relativas ao modelo federativo brasileiro.

Por exemplo, a União que, entre outros, cuida da educação pública de terceiro grau, conta com recursos ordinários do Tesouro (decorrentes dos impostos em geral, isto é, dos tributos não vinculados), inclusive com vinculação de 18% de tais receitas para as rubricas educacionais. A União também conta com aportes de várias contribuições sociais, e refiro-me à quota federal do salário-educação, a valores de contribuição social sobre o lucro líquido, sobre a seguridade social, receitas brutas de concursos de prognósticos, a valores do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, a par, e talvez principalmente, da aplicação do salário-educação, em quota federal, do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação-FNDE.


Aos Estados, a quem compete o gerenciamento da educação de nível médio, garante-se a vinculação de receita de impostos (25%), transferências de salário-educação, a aplicação de quotas de salário-educação, em sua dimensão estadual, além, naturalmente de recursos do FNDE. Aos Municípios, a quem se fixa responsabilidade pela educação infantil, há também a aplicação de receita de impostos (25%), subvinculações do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da Valorização dos Profissionais da Educação-Fundeb, fundo de natureza contábil, e que foi instituído pela Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006. Municípios também contam com recursos oriundos de transferências de salário-educação, a par de outras fontes do próprio FNDE.

Leva-se em conta, também, as diretrizes da Lei nº 11.494, de 2007, na forma prevista no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Definiu-se que a fiscalização do cumprimento, pela União, da aplicação do mínimo de 18% da receita resultante de impostos federais na manutenção e desenvolvimento do ensino, prevista no art. 212 da Constituição Federal, deverá ser realizada mediante inspeções, auditorias e análise de demonstrativos próprios, relatórios, dados e informações pertinentes. De fato, tem-se modelo de competência fiscalizatória concorrente.

Quanto ao Fundeb, dispôs-se que deverão ser encaminhados ao Tribunal de Contas da União, a cada exercício, vários dados, a serem utilizados na distribuição dos recursos do referido fundo. Definiu-se também que deverão ser encaminhados ao Tribunal de Contas da União, a cada exercício, por meio de arquivo eletrônico, vários dados, relativos ao exercício imediatamente anterior, especialmente, até 15 de março, pelo Ministério da Fazenda, os valores da arrecadação efetiva, em cada Estado e no Distrito Federal, dos impostos e das transferências de que trata o art. 3º da Lei nº 11.494, de 2007, demonstrados por fonte de receita; e, até 31 de março, pelo Ministério da Educação, o demonstrativo do ajuste anual da distribuição dos recursos do Fundeb previsto no art. 6º, § 2º, da Lei nº 11.494, de 2007, contendo os valores e os fundos beneficiários.

No que se refere à fiscalização da aplicação, no âmbito de recursos federais oriundos da complementação da União, definiu-se que esta será realizada mediante inspeções, auditorias e análise de demonstrativos próprios, relatórios, dados e informações pertinentes. E ainda, determinouse que a fiscalização a cargo do Tribunal de Contas da União será exercida inclusive junto aos órgãos estaduais e municipais incumbidos da aplicação dos recursos do Fundo, em conformidade com a programação prevista em seus Planos de Auditoria ou por determinação dos Colegiados ou Relatores; que compete à Unidade Técnica em cuja clientela esteja incluído o Ministério da Educação, bem como às Secretarias de Controle Externo nos Estados, no âmbito de suas respectivas atribuições, a execução dos trabalhos de fiscalização. No caso de indicação de ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiro, bens ou valores públicos, o Tribunal de Contas da União examinará em cada caso a relevância das irregularidades identificadas e a materialidade dos prejuízos causados ao Fundeb, para decidir se determina a instauração ou conversão do processo em tomada de contas especial.

E assim, ao decidir, o Tribunal remeterá cópia da documentação pertinente ao respectivo Tribunal de Contas Estadual ou Municipal (no caso de São Paulo, por exemplo) para conhecimento e providências de sua alçada, bem como aos Ministérios Públicos da União e dos Estados para as medidas que entenderem necessárias quanto ao ajuizamento das ações civis e penais cabíveis.

E o plano, concretamente, realiza-se prioritariamente mediante a aplicação de recursos do Fundeb, de onde, conclusivamente, a percepção de que o mau uso dos recursos é um problema de todos, sem exclusão, e não apenas do Estado ou do Município que inadequadamente usou dos valores.

3 A natureza do Fundeb e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

A classificação dos fundos tem sido recorrentemente um problema para a Administração Pública, especialmente no que se refere aos efeitos práticos de qualquer iniciativa definitiva de taxonomia. Em âmbito federal a questão preocupa, principalmente, o Tesouro Nacional, a quem incumbe, efetivamente, o controle dos fluxos dos altíssimos valores envolvidos. Neste sentido, há previsão de fundos de gestão orçamentária, de gestão especial e de natureza contábil. O Fundeb se encontra no último grupo. Ao que consta, os fundos de gestão orçamentária realizam a execução orçamentária e financeira das despesas orçamentárias financiadas por receitas orçamentárias vinculadas a essa finalidade. De acordo com o Tesouro Nacional entre os fundos de gestão orçamentária se classificam o Fundo Nacional da Saúde, o Fundo da Criança e Adolescente e o Fundo da Imprensa Nacional, entre outros.

Os fundos de gestão especial subsistem para a execução de programas específicos, mediante capitalização, empréstimos, financiamentos, garantias e avais. Exemplifica-se com o Fundo Constitucional do Centro-Oeste, com o Fundo de Investimento do Nordeste, com o Fundo de Investimento da Amazônia. Os fundos de natureza contábil instrumentalizam transferências, redefinem fontes orçamentárias, instrumentalizam a repartição de receitas, recolhem, movimentam e controlam receitas orçamentárias (bem como a necessária distribuição) para o atendimento de necessidades específicas. É o caso do Fundo de Participação dos Estados, do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundeb, especialmente.

O fundo é uma mera rubrica contábil. Não detém patrimônio. Não é órgão. Não é entidade jurídica. Não detém personalidade própria. É instrumento. Não é fim. Propicia meios. Eventual inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (no caso de alguns fundos) é determinação que decorre da necessidade da administração tributária deter informações cadastrais. Em outras palavras, segundo documento do Tesouro Nacional, a criação do CNPJ não interfere na execução orçamentária e financeira […] o fundo que contratar e receber notas fiscais utilizando o CNPJ do próprio fundo, terá apenas as obrigações tributárias decorrentes de seus atos.

A fiscalização dos recursos do Fundeb, bem como o acompanhamento, controle social e comprovação é objeto de extensa regulamentação normativa, a saber, em primeiro lugar, conforme o disposto no capítulo VI da Lei nº 11.494, de 2007.

Há extensa previsão relativa a instrumentos de controle e de fiscalização. Verifica-se determinação para ação prioritária do Ministério da Educação, a quem compete atuar, principalmente, no monitoramento da aplicação dos recursos dos fundos, por meio de sistema de informações orçamentárias e financeiras e de cooperação com os Tribunais de Contas dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Além, naturalmente, da fiscalização que o Ministério da Educação é submetido ao Tribunal de Contas da União.

A norma de regência explicita também competências de órgãos de controle interno no âmbito da União, bem como de órgãos de controle interno no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Há também determinação para atuação dos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a par da fiscalização pelo Tribunal de Contas da União, no que tange às atribuições a cargo dos órgãos federais, especialmente em relação à complementação da União.

Deve-se levar em conta que as fontes de recursos do Fundeb têm as mais variadas origens. Recursos federais oxigenam o Fundeb, direta e indiretamente. Nesta última hipótese, via fundos de participação estaduais e municipais, bem como por intermédio de quotas partes de ITR. Na primeira hipótese, nos casos de recursos diretos, a título de complementação da União. Assim, em tese, e em princípio, limitar-se a participação da União, quanto à fiscalização de recursos, apenas nas hipóteses de complementação, seria tomar-se a parte pelo todo. E não deve ser o caso.

A quem cabe a fiscalização dos recursos do Fundeb? A matéria é exaustivamente discutida em âmbito de Supremo Tribunal Federal (e o era desde a época do FUNDEF) por força dos contornos de constitucionalidade que o problema coloca, a propósito, especialmente, da fixação de critérios funcionais para o federalismo educativo.

Por exemplo, ainda em contexto do antigo FUNDEF, o Supremo Tribunal Federal, no HC 80867/PI, relatado pela Ministra Ellen Gracie, em julgamento de 18 de dezembro de 2001, na Primeira Turma, decidiu que o desvio de verbas do FUNDEF, qualificaria interesse da União a ser preservado, pelo que a competência fiscalizatória era do Tribunal de Contas da União, bem como eventual crime seria apurado junto à Justiça Federal.

No entanto, na ACO 1156/SP, relatada pelo Ministro Cezar Peluso, e julgada em 1º de julho de 2009, na composição plena do Tribunal, em tema de conflito de competências entre Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual, decidiu-se que a competência é do Ministério Público Estadual, quando não se tenha complementação de verbas federais, bem entendido, em matéria de ação civil de reparação de dano ao Erário, por conta de improbidade administrativa.

Não foi este, porém, o entendimento que prevaleceu na ACO 1151/MG, relatada pelo Ministro Joaquim Barbosa, em julgamento de 12 de agosto de 2010, que se reportou a precedentes do STF no sentido de que, tratando-se de crimes envolvendo recursos do FUNDEF, a atribuição investigatória é do Ministério Público Federal, ainda que eventuais desvios ou irregularidades tenham sido praticados, em tese, por Prefeito Municipal.


Há tendência também consolidada, no sentido de se qualificar o interesse da União, na hipótese do desvio de verbas, especialmente do Fundeb (embora o julgado em seguida fora produzido em discussão de FUNDEF). É o caso do decidido no RE 464621/RN, relatado pela Ministra Ellen Gracie, em julgamento da Segunda Turma, em 14 de outubro de 2008.

Relevante também o conteúdo do MS 27410/DF, relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa, julgado em 13 de agosto de 2010, quando se decidiu que o Tribunal de Contas tem competência para fiscalizar contas de Prefeito, por força de dispositivos constitucionais (art. 71, II e VI), bem como de disposição de Lei Orgânica do TCU (art. 41, IV, da Lei nº 8443, de 1992).

Na ACO 1319/SP relatada pelo Ministro Dias Toffoli em julgamento de 17 de junho de 2010, fixou-se a tese que o presente ensaio abraça, no sentido de que a matéria sugere competência fiscalizatória concorrente, e que recursos da União (ainda que não em sua forma de complementação) exigem a intervenção da União. Isto é, a questão envolve o Ministério Público Federal, a Advocacia-Geral da União, o Tribunal de Contas da União. É o que o interesse da União não é apenas financeiro. Transcende para os interesses da sociedade, que devem ser tutelados, da matéria mais eficiente possível. No que interessa:

Observo, todavia, que o FUNDEF é composto por verbas do Fundo de Participação do Estado e dos Municípios (FPE e FPM); por receita gerada com a arrecadação do imposto sobre produtos industrializados (IPI) proporcional às exportações do Estado; e por verbas federais destinadas a compensar a perda dos Estados com a desoneração do ICMS sobre as exportações determinada pela Lei Complementar nº 87/96 (art. 1º, § 1º, da Lei n° 9.424/96). Assim, mesmo que não contribua a título de complementação, a União destina recursos ao referido fundo, seja por meio da receita do IPI ou de parcela que compensa a perda com a arrecadação do ICMS nos Estados. Por esse motivo, o desvio de verbas do FUNDEF, embora atinja interesses econômicos local, atrai a competência da Justiça Federal e a conseqüente atribuição do Ministério Público Federal. De qualquer forma, tenho É verdade que o ensino fundamental compete prioritariamente aos Estados e Municípios, conforme dispõe o art. 211, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal. No entanto, tal previsão não exclui o papel da União na promoção do ensino básico, tanto é que o caput do dispositivo prevê que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.10

A questão, então, deve ser enfrentada e resolvida em face dos seguintes problemas. A) Em âmbito penal, quem detém competência para fiscalizar malversação de recursos do Fundeb, no caso de desvio estadual ou municipal? A Justiça Federal ou a Justiça Estadual? B) De igual modo, a quem compete a posição de dominis litis, o Ministério Público Federal ou o Ministério Público Estadual? C) No que se refere à posição do Tribunal de Contas, no mesmo caso, a quem incumbe a fiscalização, ao Tribunal de Contas da União ou aos Tribunais de Contas Estaduais? Bem entendido, as questões são colocadas nas hipóteses nas quais não se tenha complementação de recursos federais. Neste último caso, indiscutível a presença da União.

No que se refere à competência para apreciação da matéria em seus aspectos penais, especialmente, dispõe o inciso I do art. 109 da Constituição que aos juízes federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de infortunística e as sujeitas à Justiça Eleitoral e Justiça do Trabalho. E ainda, dispõe também o inciso IV do art. 109 da Constituição que é competência da Justiça Federal julgar infrações penais praticadas em detrimento de interesse da União, excluídas as contravenções. Deve-se, assim, definir-se o conteúdo do interesse da União. A matéria foi tratada no julgado pelo Ministro Dias Toffoli no precedente acima reproduzido, quando se entendeu que o interesse de que menciona o texto constitucional não é apenas de fundo econômico. Além do que, há vários recursos que compõem o Fundeb que tem origem federal, ainda que não se fale em modelo de complementação.

A matéria é de competência da Justiça Federal, o que, por via de consequência, assinala para a competência do Ministério Público Federal e, ainda, para a Advocacia-Geral da União. Deve-se, tão somente, verificar hipóteses de concursos de crimes, bem como eventuais foros privilegiados dos réus, de modo a, eventualmente, e nos exatos limites dos casos levados a juízo, alterar-se o regime de competências.

O interesse é da União. Primeiro, porque há transposição de recursos que decorrem da capacidade de arrecadação do ente central. Segundo, porque há hipóteses de complementação de valores estaduais e municipais por parte dos cofres da União. Terceiro, porque se trata de educação, em sua dimensão nacional, isto é, de diretrizes e bases da educação nacional, matéria de competência legislativa privativa da União, nos termos do disposto no inciso XXIV do art. 22 da Constituição Federal, nada obstante ser matéria de competência legislativa concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e ao Distrito Federal a fixação de normas sobre educação, cultura, ensino e desporto.

A matéria é de competência fiscalizatória primordial do Tribunal de Contas da União. O assunto é de matriz constitucional. O inciso II do art. 71 da Constituição Federal dispõe que é competência do Tribunal de Contas da União julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, bem como julgar as contas de quem derem causa a irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

Recursos públicos exigem fiscalização do Tribunal de Contas, ainda que geridos por ente privado, conforme o Supremo Tribunal Federal há decidiu no MS 21.6.444, relatado pelo Ministro Néri da Silveira, em julgamento do Plenário de 4 de novembro de 1993, quando se assentou que embora a entidade seja de direito privado, sujeita-se à fiscalização do Estado, pois recebe recursos de origem estatal, e seus dirigentes hão de prestar contas dos valores recebidos; quem gere dinheiro público ou administra bens ou interesses da comunidade deve contas ao órgão competente para a fiscalização.

Não há fiscalização do Tribunal de Contas da União em relação aos Estados quando os recursos sejam originários dos próprios Estados, a exemplo de valores oriundos da exploração de recursos naturais da plataforma continental, como definido pelo Supremo Tribunal Federal no MS 24.312, relatado pela Ministra Ellen Gracie, em julgamento de Plenário de 19 de fevereiro de 2003.

O inciso IV do art. 41 da Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992 dispõe que é competência do Tribunal de Contas da União fiscalizar, na forma estabelecida no Regimento Interno, a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município.

E o problema não é semântico. É prático, utilitário, pragmático. Não há, de fato, convênio, e nem acordo, e muito menos ajuste. No repasse de verbas do Fundeb o que se tem é o cumprimento de disposição constitucional, pormenorizada em lei federal, e ajustada pelo próprio Tribunal de Contas e pelo Ministério da Educação.

A locução outro instrumento congênere é de amplo uso, sugere horizonte de sentido que deve ser focado à luz de critérios de filtragem constitucional, a exemplo do contexto no qual se desenha o Tribunal de Contas, bem como de superiores princípios que sugerem a educação como valor superlativo a ser perseguido numa sociedade de informação, e de inspiração democrática.

O Tribunal de Contas da União alcança os responsáveis pela aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a estado, ao Distrito Federal ou a município, como disposto no inciso VIII do art. 5º do Regimento Interno daquele Sodalício. Como já assinalado, deve-se conferir à locução outros instrumentos congêneres um sentido que lhe dê uma máxima eficácia, isto é, a concepção é de ampliação dos recursos e motores de regimes de fiscalização.

E ainda que por entendimento próprio o Tribunal de Contas da União deduzisse forma distinta, dispondo, de modo endógeno e autopoiético (a usarmos expressão bem ao sabor da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann) não se deve prestigiar o entendimento, sem maiores digressões, bem entendido. Como argumentado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, quando se discutiu o problema do FUNDEF relativo ao Município de Rosana, na ACO 1161/SP, relatada pelo Ministro Dias Toffoli, e julgada em 8 de março de 2010, os atos normativos internos do TCU, dispondo sobre o exercício deste mister, que sequer é exclusivo, não se prestam nem têm força para determinar a competência jurisdicional. A matéria é de Constituição. E é de lei. E não de construção pretoriana.

Na referida ACO 1161/SP o Ministro Dias Toffoli decidiu que havia competência tanto do Ministério Público Federal quanto do Ministério Público Estadual. Àquele compete conduzir a ação penal, a este último a ação civil, no que se refere à apuração e responsabilização por improbidade administrativa.


Em matéria de Fundeb as competências devem ser exercidas de modo conjunto e ordenado. Tratando-se de competência fiscalizatória concorrente, deve-se zelar por atuação conjunta entre o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual, entre o Tribunal de Contas da União e o Tribunal de Contas dos Estados. E não se deve restringir a competência do Tribunal de Contas da União pelo fato de que há mais de 5.500 municípios no Brasil. A questão é de gerenciamento, e não de tangenciamento da realidade por intermédio de interpretação legal. E por matéria de acompanhamento concorrente ao que é federal imputa-se a fixação das diretrizes gerais. Até porque, segundo a lei, o acompanhamento e o controle social sobre a distribuição, a transferência e a aplicação dos recursos dos Fundos serão exercidos, junto aos respectivos governos, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por conselhos instituídos especificamente para esse fim.

4 Conclusões

Conclui-se que a natureza jurídica do repasse de recursos do Fundeb é de feição constitucional, processando-se de modo automático, o que não se confunde com a natureza do fundo propriamente dito, que é um fundo contábil. A fiscalização dos referidos recursos é do Tribunal de Contas da União, em colaboração com os Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, a par do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos Estaduais, do Distrito Federal e dos Territórios, respeitando-se também as competências fixadas no Capitulo VI da Lei nº 11.494, de 2007, no que toca à composição dos vários conselhos lá indicados. Tem-se uma competência fiscalizatória concorrente, na qual o interesse da União não é apenas econômico. Por isso, não se pode negar a preocupação da União nas causas referentes à malversação dos recursos do Fundeb, ainda que não se tenha complementação de recursos federais.

Notas

1 A questão toda sugere uma discussão do modelo federalista. Conferir, para os propósitos de uma teoria do federalismo educativo, Rui de Britto Álvares Afonso Pedro Luis Barros e Silva, – vários autores, Federalismo no Brasil – Desigualdades Regionais e Desenvolvimento. São Paulo: Fundap, 1995, e dos mesmos autores, Reforma Tributária e Federação. São Paulo, Fundap, 1995. José Alfredo de Oliveira Baracho, O Princípio da Subsidiariedade – Conceito e Evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, bem como Teoria Geral do Federalismo, Rio de Janeiro: Forense, 1986. Gilberto Bercovici, Dilemas do Estado Federal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. Michael Bothe, Federalismo, um Conceito em Evolução. São Paulo: Fund. Konrad-Adenauer, 1995. Levi Carneiro, Federalismo e Judiciarismo. Rio de Janeiro: Alba Officinas Graphicas, 1930. Dalmo Dallari, O Estado federal. São Paulo: Ática, 1986. Sérgio Ferrari, Constituição Federal e Federação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. Peter House, Modern federalism – An Analitical Approach, Lexington, 1982. Janice Helena Ferreri Morbidelli, Um Novo Pacto Federativo para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos, 1999. Dircêo Torrecillas Ramos, O Federalismo Assimétrico. Rio de Janeiro: ed. Forense, 2000.
2 Conferir, para abordagem geral dos presentes desafios da educação brasileira, Colin Brock e Simon Schwartzman, Os Desafios da Educação no Brasil, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. O volume conta com excelentes ensaios sobre vários assuntos, a exemplo da qualidade e da equidade na educação brasileira, do problema da educação técnica, da bifurcação da educação superior em publica e privada, dos desafios da pós-graduação, entre tantos outros.
3 Maria Lúcia de Arruda Aranha. História da Educação e da Pedagogia- Geral e do Brasil, São Paulo: Moderna, 2006, especialmente p. 294 e ss.
4 Conferir Paulo Ghiraldelli Jr. História da Educação Brasileira. São Paulo: Cortez, 2009.
5 Para um mapeamento do problema das prioridades da educação no contexto da América Latina, Simon Schwartzman e Cristián Cox (eds.). Políticas Educacionais e Coesão Social, uma Agenda Latino- Americana. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
6 Plano Nacional de Educação, anexo, p. 51.
7 Recursos do fundo, hoje Fundeb, vinculam-se diretamente a políticas de formação de professores. Conferir Cristina Helena Almeida de Carvalho. Política Econômica, Finanças Públicas e as Políticas para Educação Superior: de FHC (1995-2002) a Lula (2002-2006). In Margarita Victoria Rodriguez e Maria de Lourdes Pinto de Almeida, Políticas Educacionais e Formação de Professores em Tempos de Globalização, Brasília: Liber Livro Editora, 2008. p. 191 e ss.
8 Plano Nacional de Educação, anexo, p. 52.
9 Conferir, especialmente, Fernando Rezende. Federalismo Fiscal: em Busca de um Novo Modelo. In Romualdo Portela de Oliveira e Wagner Santana (orgs.). Educação e Federalismo no Brasil: Combater as Desigualdades, Garantir a Diversidade, Brasília: UNESCO, 2010. p. 71 e ss.
10 Supremo Tribunal Federal, ACO 1319/SP relatada pelo Ministro Dias Toffoli em julgamento de 17 de junho de 2010.

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Desconstruindo o mito da não-incidência do imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória

Autor: Augusto Cesar de Carvalho Leal, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília – UnB. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O objetivo deste trabalho acadêmico é a desconstrução do mito da não-incidência do Imposto de Renda sobre toda e qualquer verba de natureza indenizatória, a partir da demonstração de que tais verbas sujeitam-se a dois regimes jurídicos distintos, o da indenização-reposição e o da indenização-compensação, sendo que, neste último, ocorre claro acréscimo patrimonial, condição necessária e suficiente para a realização do critério material da regra-matriz de incidência daquele tributo. Palavras-chave: Imposto de Renda. Acréscimo Patrimonial. Verbas indenizatórias. Indenização-Reposição. Indenização-Compensação.

INTRODUÇÃO

Evidenciam-se nebulosas a doutrina e a jurisprudência pátrias no que concerne à incidência de imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória.

Nesse diapasão, em geral, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial, apresentam-se pouco consistentes, sob o prisma da coerência científica, os resultados do cotejo entre o critério material da regra-matriz de incidência do imposto de renda e cada uma das infinitas possibilidades de verbas de natureza indenizatória, cada qual com peculiar matiz fático-jurídico.

O que se nota, inicialmente, é a generalizada e irrefletida resistência ao reconhecimento da incidência do imposto de renda sempre que se repute gozar uma específica verba de natureza indenizatória.

Assim, para significativa parte da doutrina e da jurisprudência, basta que uma verba ostente o status de indenizatória para que, na prática, seja, de maneira superficial, colocada sob um manto sagrado completamente intransponível aos efeitos jurídicos da regra-matriz de incidência do imposto de renda, não obstante uma análise jurídica mais profunda demonstre, cabalmente, que pode ou não incidir imposto de renda em parcelas com caráter de indenização.

Elucidando ainda mais o problema estabelecido, é extremamente comum entre os tribunais e os doutrinadores brasileiros a redução da investigação acerca da incidência ou não do imposto de renda à conclusão acerca da natureza indenizatória ou não de uma dada verba.

Ganha corpo, nessa esteira, o lugar-comum de que verbas indenizatórias não sofrem tributação pelo imposto de renda.

Com isso, o critério para a decisão hermenêutica de incidência ou não do imposto de renda passa a ser a natureza indenizatória ou remuneratória da parcela, e não a ocorrência de acréscimo patrimonial, aspecto material da regra-matriz de incidência daquele tributo.

Essa premissa encontra-se tão fortalecida na prática forense contemporânea, e mesmo em parte do meio acadêmico, que, nesses círculos, o processo interpretativo relativo à existência da obrigação tributária concernente ao imposto de renda ignora a verificação da ocorrência do fato gerador do imposto (acréscimo patrimonial) para se limitar à verificação, como condição sine qua non para a tributação, da eventual qualidade nãoindenizatória da parcela.

Eis a emergencial necessidade de sistematização que motiva o presente estudo sobre a incidência do imposto de renda sobre verbas indenizatórias, realizado com o escopo de contribuir para a diminuição da perniciosa confusão na análise da matéria, provocada pela superficialidade com que o tema é frequentemente tratado.

Consigne-se que a falta de profundidade com que, não raramente, o imposto de renda, em seus diversos aspectos, é tratado não passou despercebida pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, que afirmou:

quanto ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, talvez pela complexidade do seu regime de incidência, ou pelo número às vezes até extravagante dos enunciados prescritivos que integram sua estrutura, a verdade é que a exação tem espantado os especialistas, afastando-os de um contato mais direto e radical com tão nobre forma de imposição tributária1.

É esse mito da não-incidência do imposto de renda sobre toda e qualquer verba indenizatória que o presente estudo busca, sob uma perspectiva teórica, desconstruir.

Isso será feito a partir da demonstração de que o regime jurídicotributário das indenizações não é uno, havendo, na verdade, dois regimes legais diversos a que podem se submeter as parcelas indenizatórias conforme a natureza do ato ilícito a elas subjacente.

Mais especificamente, pretende-se esclarecer que, a depender da caracterização do ato ilícito como danos emergentes, lucros cessantes ou danos morais, a correlata parcela indenizatória enquadrar-se-á em um dos dois regimes jurídico-tributários distintos existentes, que serão apresentados ao longo deste trabalho.

Tais regimes são o da indenização-reposição e o da indenizaçãocompensação, cada um acarretando conseqüências diversas na esfera da tributação pelo imposto de renda.

Enquanto as verbas indenizatórias que se enquadram no primeiro regime não sofrem a incidência do imposto de renda, por não acarretarem acréscimo patrimonial, as abrangidas pelo segundo regime são tributadas, na medida em que aumentam o patrimônio material daquele que aufere a indenização.

Espera-se que este estudo colabore com a desmistificação do pensamento de que a caracterização de uma verba como indenizatória, por si só, afasta a incidência do imposto de renda.

Mais do que isso: deseja-se promover, no seu lugar, uma atitude hermenêutica de preocupação com a investigação da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, fato gerador do imposto de renda, como verdadeiro fator decisivo para a tributação, que, portanto, pode vir a ocorrer ainda que sobre verbas indenizatórias, desde que essas se enquadrem no conceito, neste trabalho desenvolvido, de indenização-compensação.

1 DO ACRÉSCIMO PATRIMON IAL COMO CRITÉRIO MATERIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA

É assente na doutrina que o fato jurídico tributário pode ser representado por um verbo e seu complemento, que se encontram dispostos no critério material da regra-matriz de incidência tributária. No caso do imposto de renda, pode-se afirmar que o critério material do tributo, à luz do seu arquétipo constitucional, consiste em “auferir renda”.

Para elucidar o que significa “auferir renda”, para fins da tributação em análise, no direito brasileiro, importantíssima a contribuição do Professor Paulo de Barros Carvalho, para quem:

Acerca do conceito de “renda”, três são as correntes doutrinárias predominantes:

  1. ´teoria da fonte´, para a qual ´renda´ é o produto de uma fonte estável, susceptível de preservar sua reprodução periódica, exigindo que haja riqueza nova (produto) derivada de fonte produtiva durável, devendo esta subsistir ao ato de produção;
  2. ‘teoria legalista’, que considera ‘renda’ um conceito normativo, a ser estipulado pela lei: renda é aquilo que a lei estabelecer que é; e
  3. ‘teoria do acréscimo patrimonial’, onde ‘renda’ é todo ingresso líquido, em bens materiais, imateriais ou serviços avaliáveis em dinheiro, periódico, transitório ou acidental, de caráter oneroso ou gratuito, que importe um incremento líquido do patrimônio de determinado indivíduo, em certo período de tempo. Prevalece, no direito brasileiro, a terceira das teorias referidas, segundo a qual o que interessa é o aumento do patrimônio líquido, sendo considerado como lucro tributável exatamente o acréscimo líquido verificado no patrimônio da empresa, durante período determinado, independentemente da origem das diferentes parcelas. É o que se depreende do art. 43 do Código Tributário Nacional.2

E prossegue o eminente doutrinador:

Nessa linha de raciocínio, a hipótese de incidência da norma de tributação da ‘renda’ consiste na aquisição de aumento patrimonial, verificável pela variação de entradas e saídas num determinado lapso de tempo. É imprescindível, para a verificação de incrementos patrimoniais, a fixação de intervalo temporal para a sua identificação, dado o caráter dinâmico ínsito à idéia de renda. Nesse sentido, Rubens Gomes de Sousa escreveu ser insuficiente o processo de medição de riqueza pela extensão do patrimônio, sendo necessário distinguir o capital do rendimento pela atribuição, ao primeiro, de um caráter estático, e ao segundo, de um caráter dinâmico, ligando-se à noção de renda um elemento temporal. ‘Capital seria, portanto, o montante do patrimônio encarado num momento qualquer de tempo, ao passo que renda seria o acréscimo do capital entre dois momentos determinados3.


Posiciona-se no mesmo sentido José Artur Lima Gonçalves ao sustentar que:

o conteúdo semântico do vocábulo ‘renda’, nos termos prescritos pelo Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, compreende o saldo positivo resultante do confronto entre certas entradas e certas saídas, ocorridas ao longe de um dado período. É, em outras palavras, acréscimo patrimonial4.

De fato, a regra-matriz de incidência do imposto de renda é veiculada pelo art. 43 do Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

  1. de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
  2. de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001) (grifo nosso).

Por sua vez, Mary Elbe Queiroz leciona que:

o imposto de renda incide sobre as rendas e proventos de qualquer natureza que constituam acréscimos patrimoniais, riquezas novas, para o beneficiário (os excedentes às despesas e custos necessários para auferir os rendimentos e à manutenção da fonte produtora e da sua família), sobre os quais ele haja adquirido e detenha a respectiva posse ou propriedade e estejam à sua livre disposição econômica ou juridicamente 5.

Percebe-se, portanto, que o principal traço distintivo para se identificar se há ou não a incidência do imposto sobre a renda é o acréscimo patrimonial, porquanto o Brasil adotou o conceito de renda-acréscimo6.

Assim, configura fato tributável pelo imposto de renda o acréscimo no patrimônio, a riqueza nova.

2 DO ACRÉSCIMO PATRIMONIAL COMO AUMENTO DE RIQUEZA

Claro está que a materialidade do imposto de renda encontra-se vinculada à ocorrência de um acréscimo patrimonial.

Para que se construam, desde já, alicerces firmes para a posterior conclusão no sentido de que pode haver incidência de imposto de renda sobre verbas indenizatórias, cumpre que se esclareça que o acréscimo patrimonial relevante para fins de tributação é, necessariamente, aumento de riqueza, elevação quantitativa do patrimônio estritamente econômico, material, não havendo que se falar, aqui, em expressões como “patrimônio jurídico” ou “patrimônio moral”.

Assim, antecipe-se que não se revela tecnicamente precisa, à luz da sistematização ora feita, não obstante se conheça a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, a tese da não-incidência de imposto de renda sobre a indenização por danos morais, sob o argumento de que a indenização por danos morais apenas recompõe o dano causado ao “patrimônio moral”.

Ora, para fins de tributação pelo imposto de renda, o acréscimo patrimonial relevante é aquele que ocorre no patrimônio material, o aumento de riqueza, justamente por configurar-se fato revelador de capacidade contributiva.

Sob esse prisma, anteriormente à ocorrência do dano moral, a sua vítima detinha um patrimônio X. Após a ocorrência do dano moral, desconsideradas outras atividades econômicas, continuará tendo um patrimônio X. Isto é, não houve decréscimo do patrimônio – no sentido econômico, material -, nenhuma riqueza tendo sido subtraída diretamente em virtude do dano moral.

Com a percepção de uma indenização por dano moral de valor Y, entretanto, o patrimônio, antes de valor X, passará a ser quantificado em X + Y, o que denota o acréscimo patrimonial, critério material da regramatriz de incidência do imposto de renda.

Não sem motivo Silvio Rodrigues esclarece que muito se discutiu, no âmbito do Direito Civil, se o dano puramente moral poderia ser indenizado justamente porque ele não tem repercussão de caráter patrimonial7.

Logo, devem ser repelidos argumentos no sentido de que toda indenização escaparia do campo de incidência do imposto de renda, na medida em que sempre representariam a reposição de uma subtração patrimonial, ao menos do “patrimônio jurídico”, ou do “patrimônio moral”.

É com esse intuito que se desenvolve a inequívoca perspectiva de que a análise da existência ou não de acréscimo patrimonial relevante para fins de imposto de renda sempre decorrerá da análise da comparação econômica quantitativa entre dois momentos distintos do patrimônio estritamente material do contribuinte, do cotejo da sua riqueza em duas diferentes datas.

Corroborando, nesse ponto, o que se afirma, confira-se que Leandro Paulsen conclui, após analisar argumentos de Marçal Justen Filho e de João Dácio Rolim, que “o acréscimo patrimonial significa riqueza nova, de modo que corresponde ao que sobeja de todos os investimentos e despesas efetuados para a obtenção do ingresso, o que tem repercussão na apuração da base de cálculo do imposto”8.

Nem poderia ser diferente, já que a tributação somente incide sobre fatos eminentemente econômicos, reveladores de riqueza, de capacidade contributiva, pelo que inapropriado cogitar que o acréscimo patrimonial, critério material do imposto de renda, estender-se-ia ao monitoramento do que ocorre no patrimônio meramente jurídico ou moral.

Na linha desse pensamento, preciosa a lição de Paulo de Barros Carvalho:

Ao recordar, no plano da realidade social, daqueles fatos que julga de porte adequado para fazer nascer a obrigação tributária, o político sai à procura de acontecimentos que sabe haverão de ser medidos segundo parâmetros econômicos, uma vez que o vínculo jurídico a eles atrelado deve ter como objeto uma prestação pecuniária. Há necessidade premente de ater-se o legislador à procura de fatos que demonstrem signos de riqueza, pois somente assim poderá distribuir a carga tributária de modo uniforme e com satisfatória atinência ao princípio da igualdade. Tenho presente que, de uma ocorrência insusceptível de avaliação patrimonial, jamais se conseguirá extrair cifras monetárias que traduzam, de alguma forma, valor em dinheiro. Colhe a substância apropriada para satisfazer os anseios do Estado, que consiste na captação de parcelas do patrimônio de seus súditos, sempre que estes participarem de fatos daquela natureza. Da providência contida na escolha de eventos presuntivos de fortuna econômica decorre a possibilidade de o legislador, subsequentemente, distribuir a carga tributária de maneira eqüitativa, estabelecendo, proporcionalmente às dimensões do acontecimento, o grau de contribuição do que deles participam.9

A propósito, mesmo no âmbito do Direito Civil o conceito de patrimônio é concebido à luz de uma visão estritamente econômica, material, como bem lembra o festejado civilista Francisco Amaral:

patrimônio, provavelmente de patris munium, é o complexo de relações jurídicas economicamente apreciáveis de uma pessoa. Reúne os seus direitos e obrigações, formando uma unidade jurídica, uma universalidade de direito. Apresenta três elementos característicos: a unidade do conjunto de direito e de obrigações, sua natureza e pecuniária, e sua atribuição a um titular. Compreende os créditos e os débitos de uma pessoa. No primeiro caso, temos o ativo, conjunto de direitos que formam o patrimônio (direitos reais, direitos pessoais e direitos intelectuais); no segundo, temos o passivo, o conjunto de obrigações (dívidas). Para a doutrina moderna, porém, o passivo não integra o patrimônio; é apenas uma carga, um ônus sobre ele. Dele não participam os direitos personalíssimos (vida, liberdade, honra etc.), os direitos de família puros, as ações de estado e os direitos públicos que não têm valor econômico, variando o seu valor conforme a possibilidade de realizar-se a condição10.

Segundo Orlando Gomes, “toda pessoa tem direitos e obrigações pecuniariamente apreciáveis. Ao complexo desses direitos e obrigações denomina-se patrimônio”11.

À luz desta vertente, correspondente à teoria clássica, cada pessoa titulariza apenas um patrimônio e tal instituto está adstrito aos direitos e obrigações economicamente apreciáveis.


Verifica-se, destarte, que o patrimônio, no âmbito do Direito Civil, é o conjunto de direitos e obrigações com valor econômico direto, imediato.

Está excluída, portanto, da idéia de patrimônio stricto sensu a violação a direitos que, por não terem um inerente valor econômico, não representem, por si sós, riqueza.

É por isso que não procede, à guisa de exemplo, a afirmação de que a indenização por danos morais e outras análogas recompõem o patrimônio.

Isso porque, no momento do dano moral, não há qualquer repercussão no patrimônio stricto sensu, na medida em que este é composto apenas por direitos de expressão econômica direta e imediata, dele não fazendo parte, como visto, os direitos personalíssimos, como a imagem e a honra de uma pessoa.

De fato, num segundo momento, qual seja, no momento da indenização, em que se pretende compensar, por meio de uma quantia em dinheiro, o abalo moral sofrido, há repercussão no patrimônio stricto sensu.

Presencia-se, então, o fenômeno da patrimonialidade intermédia de que trata Francisco Amaral, típica daquelas relações jurídicas que resultam da lesão de direito personalíssimo e que exprimem o direito à respectiva indenização.

De qualquer forma, isso apenas comprova o que se afirma: tal indenização representa acréscimo de riqueza, e não mera reposição, porquanto o dano moral nenhuma repercussão, muito menos subtração, causou no patrimônio stricto sensu.

3 DA INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO E DA INDENIZAÇÃO-COMPENSAÇÃO

O ponto fulcral do presente estudo encontra-se na percepção de que a natureza jurídica das indenizações não é una. A compreensão da existência de duas espécies de indenização, a indenização-reposição e a indenização-compensação, com conseqüências jurídicas diversas, é de instrumental importância para que se visualize quão equivocadamente vem sendo proclamada, na doutrina e na jurisprudência, a não-incidência de imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória.

Para tanto, faz-se necessário definir indenização e dano.

Para Silvio Rodrigues12, indenizar significa ressarcir um prejuízo, um dano experimentado pela vítima.

É essa noção de indenização enquanto ressarcimento de um dano que, analisada sem maior reflexão, leva ao equivocado entendimento de que toda indenização apenas restabelece o patrimônio, pelo que não seria tributada pelo imposto de renda.

Ocorre que não se deve perder de vista que o dano ressarcido pela indenização pode ser, efetivamente, um dano material que cause decréscimo do patrimônio (dano emergente), ou pode ser um dano material que não cause subtração patrimonial, mas, apenas, a perda da oportunidade de aumentá-lo (lucros cessantes), ou, mesmo, pode ser um dano a um direito personalíssimo, sem qualquer repercussão no patrimônio (danos morais).

Quanto aos danos morais, já se disse que Silvio Rodrigues, dentre inúmeros outros, é contundente no sentido de que “não têm repercussão de caráter patrimonial”13. Assim, como o mesmo jurista esclarece, o dinheiro que se paga à vítima, a título de danos morais, não repõe o valor subtraído do patrimônio pelo dano, pois o dano moral nenhuma repercussão patrimonial, econômica, tem.

Para o civilista Silvio Rodrigues, no sentido da doutrina de excelência, o dinheiro que se paga à vítima, a título de danos morais, “provocará na vítima uma sensação de prazer, de desafogo, que visa compensar a dor, provocada pelo ato ilícito.”14 Isso decorre da completa impossibilidade de se repor à vítima a sua perda moral. Assim, tenta-se compensar – ante a impossibilidade de se repor – o prejuízo moral sofrido, tenta-se atenuá-lo, por meio de entrega de riqueza à vítima.

No que concerne aos danos materiais, muito contribui Washington de Barros Monteiro ao esclarecer que tais danos

se enquadram em duas classes, positivos e negativos. Consistem os primeiros numa real diminuição no patrimônio do credor e os segundos, na privação de um ganho que o credor tinha o direito de esperar. Os antigos comentadores do direito romano designavam esses danos pelas conhecidas expressões damnum emergens e lucrum cessans. Dano emergente é o déficit no patrimônio do credor, a concreta redução por este sofrida em sua fortuna (quantum mihi abfuit). Lucro cessante é o que ele razoavelmente deixou de auferir, em virtude do inadimplemento do devedor (quantum lucrari potui).15

Aduz-se de forma cristalina, portanto, que, no âmbito dos danos materiais, somente os danos emergentes causam efetiva subtração do patrimônio, pelo que sua indenização, de fato, tem natureza de mero restabelecimento patrimonial, de mera reposição da riqueza retirada ilicitamente da vítima. Os lucros cessantes, de forma diametralmente oposta, não causam efetiva subtração do patrimônio, pelo que sua indenização não tem natureza de mero restabelecimento patrimonial, pois não repõe uma riqueza préexistente retirada ilicitamente da vítima.

Que fique claro: a indenização por lucros cessantes apenas compensa a perda da oportunidade de que a vítima viesse a obter novas riquezas.

É o que Sérgio Cavalieri Filho nos ensina:

[…] pode-se dizer que, se o objeto do dano é um bem ou interesse já existente, estaremos em face do dano emergente; tratando-se de bem ou interesse futuro, ainda não pertencente ao lesado, estaremos diante de lucro cessante.

Consiste, portanto, o lucro cessante na perda do ganho esperável, na frustração da expectativa de lucro, na diminuição potencial do patrimônio da vítima. Pode decorrer não só da paralisação da atividade lucrativa ou produtiva da vítima, como por exemplo, a cessação dos rendimentos que já vinha obtendo da sua profissão, como, também, da frustração daquilo que era razoavelmente esperado16 (grifo nosso).

Constata-se, sob esse enfoque, que o lucro cessante é também a diminuição potencial do patrimônio, isto é, a subtração de uma expectativa de ganho e, por isso mesmo, de algo que ainda não se incorporou ao patrimônio. Se é potencial, por óbvio, é porque de minoração do patrimônio não se trata.

Por isso, a indenização por danos morais e por lucros cessantes enquadram-se como indenização-compensação, em contraposição à indenização por danos emergentes, que se enquadram como indenizaçãoreposição.

Com efeito, a indenização-reposição representa uma entrega de riqueza à vítima de um dano quantitativamente correspondente a uma riqueza pré-existente, que tenha sido imediatamente retirada de seu patrimônio em decorrência do ato danoso.

Representa indenização-reposição, a título ilustrativo, aquele montante pago à vítima de um abalroamento exatamente correspondente à diminuição do valor do seu carro decorrente do dano. Como se faz intuitivo, os danos emergentes sempre são indenizados por meio de indenização-reposição.

Por outro lado, a indenização-compensação representa uma entrega de riqueza à vítima de um dano quantitativamente não correspondente a uma riqueza pré-existente, que tenha sido imediatamente retirada de seu patrimônio em decorrência do ato danoso.

A indenização-compensação apenas compensa um sofrimento causado por um dano moral (do qual, como minuciosamente demonstrado, não decorre nenhuma subtração de riqueza pré-existente) ou compensa os lucros cessantes, isto é, o que se perdeu a oportunidade de ganhar em razão do dano sofrido (o qual não causou qualquer subtração da riqueza préexistente, pois os lucros cessantes correspondem a uma mera expectativa de ganho, e não a valores já incorporados no patrimônio à época do ato danoso).

Como inexorável conseqüência lógica da desenvolvida distinção entre espécies de indenização, temos que a incidência do imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória não pode, sob pena de afronta ao arquétipo constitucional do aludido tributo, ser tratada de maneira generalizada, indiscriminada, afastando-se a tributação sempre que esteja sob os holofotes hermenêuticos uma indenização.

4 DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE A INDENIZAÇÃOCOMPENSAÇÃO E DA NÃO-INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE A INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO

Em razão das premissas até aqui solidamente construídas, não se faz necessário avançar ainda mais longe para se visualizar que somente a indenização-reposição repõe, efetivamente, uma perda patrimonial, escapando do campo de incidência do imposto de renda.


Por conseguinte, a indenização-compensação, que indeniza um dano que não ocasionou à vítima a diminuição da riqueza pré-existente, mas mero abalo moral ou perda da oportunidade de obter novos ganhos (mera expectativa, não representando valores já incorporados, à época, ao patrimônio da vítima), exsurge como indubitável acréscimo patrimonial.

Assim, a indenização-compensação (por danos morais ou por lucros cessantes), à luz da melhor técnica, realiza, sim, o critério material da regramatriz de incidência do imposto de renda.

Para fortalecer essa idéia, imagine-se, à guisa de exemplo, a situação de um trabalhador autônomo que, por conduta ilícita de outrem, fica impedido de exercer o seu ofício por alguns dias. O que ele receberia a título de remuneração, caso tivesse trabalhado normalmente, seria, naturalmente, tributado pelo imposto de renda.

Parece intuitivo, nessa ilustração, que a mera circunstância dele perceber essas quantias de forma diferida, atrasada, como lucros cessantes, não retira a sua condição de acréscimo patrimonial, e, por isso mesmo, não as transmuda em verbas não-tributadas ou isentas.

Importante advertir que poderia fomentar nefastas práticas de fraude contra a ordem tributária cultivar-se o entendimento de que o recebimento, a título de indenização por lucros cessantes, de uma verba, que, não fosse o ato ilícito, seria evidentemente remuneratória, é capaz de excluir essa mesma verba da tributação pelo imposto de renda.

Poder-se-ia vislumbrar, com grande facilidade, a proliferação de simulações de atos ilícitos e de respectivas indenizações por lucros cessantes com o escopo de evitar a tributação pelo imposto de renda de verbas originalmente remuneratórias.

Ressalte-se que, embora significativa parte da doutrina ainda careça de maior aprofundamento técnico-científico na análise do imposto de renda, como bem destacou o Professor Paulo de Barros Carvalho, a tese aqui exposta encontra eco doutrinário. Nessa esteira, Leandro Paulsen informa que:

há doutrina consistente no sentido de que não se deveria confundir o patrimônio moral – irrelevante para fins de tributação – com o patrimônio econômico – revelador de capacidade contributiva – e destacando que nem tudo o que se costuma denominar de indenização, mesmo material, efetivamente corresponde a simples recomposição de perdas.17

Já se colacionou, no presente trabalho, o art. 43 do Código Tributário Nacional, veículo formal da regra-matriz de incidência do Imposto de Renda, do qual se assimila que é tributado o acréscimo patrimonial sobre o qual se possui disponibilidade jurídica. É bom ressaltar que não existem locuções e adjacências no conceito legal: a norma não preceitua que seria tributável apenas o acréscimo patrimonial que não seja indenizatório.

Com esse enfoque, colhe-se, mais uma vez, a doutrina de Mary Elbe Queiroz:

Impende considerar que os valores que constituem mera recomposição patrimonial, como as indenizações ou os valores expressamente previstos na lei como isentos, não são computados na apuração da respectiva base de cálculo. As indenizações deverão ser consideradas quando revelarem acréscimo patrimonial e não se encontrarem expressamente abrangidas por norma isencional18(grifo nosso).

Tanto é verdade que o montante advindo de pagamento de indenização pode estar, se acarretar acréscimo patrimonial, no espectro possível de tributação pelo imposto de renda que foi necessária a edição de lei específica contemplando diversas verbas tidas como indenizatórias que se resolveu, por opção política, tornar isentas. É o que ocorreu com a Lei 7.713/88.

A não-tributação de verbas indenizatórias pelo imposto de renda depende, com isso, de que elas não representem acréscimo patrimonial (hipótese de não-incidência pura e simples) ou de que, caso gerem riqueza nova, estejam abrangidas por isenção legal.

Outrossim, apesar da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ainda estar contaminada com a visão pouco refletida e generalizante irradiada por parcela significativa da doutrina, a fértil semente dos fundamentos expostos no presente estudo já foi lançada jurisprudencialmente pelo Ministro Teori Albino Zavascki em precedente importantíssimo como divisor de águas para uma imersão daquele tribunal superior numa maior profundidade técnico-científica no trato da matéria.

Nesse sentido, alguns elucidativos acórdãos da 1ª Turma e da 1ª Seção do STJ, de sua relatoria, no sentido de que, mesmo que uma verba tenha natureza indenizatória, sofrerá a incidência do imposto de renda se resultar acréscimo patrimonial:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ROMPIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO NO PERÍODO DE ESTABILIDADE PROVISÓRIA. NATUREZA. REGIME TRIBUTÁRIO DAS INDENIZAÇÕES. PRECEDENTES.

  1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte.
  2. O pagamento de indenização pode ou não acarretar acréscimo patrimonial, dependendo da natureza do bem jurídico a que se refere.
    Quando se indeniza dano efetivamente verificado no patrimônio material (= dano emergente), o pagamento em dinheiro simplesmente reconstitui a perda patrimonial ocorrida em virtude da lesão, e, portanto, não acarreta qualquer aumento no patrimônio. Todavia, ocorre acréscimo patrimonial quando a indenização (a) ultrapassar o valor do dano material verificado (= dano emergente), ou (b) se destinar a compensar o ganho que deixou de ser auferido (= lucro cessante), ou (c) se referir a dano causado a bem do patrimônio imaterial (= dano que não importou redução do patrimônio material).
  3. O direito a estabilidade temporária no emprego é bem do patrimônio imaterial do empregado. Assim, a indenização paga em decorrência do rompimento imotivado do contrato de trabalho, em valor correspondente ao dos salários do período de estabilidade, acarreta acréscimo ao patrimônio material, constituindo, por isso mesmo, fato gerador do imposto de renda. Todavia, tal pagamento não se dá por liberalidade do empregador, mas por imposição da ordem jurídica. Trata-se, assim, de indenização abrigada pela norma de isenção do inciso XX do art. 39 do RIR/99 (Decreto 3.000, de 31.03.99), cujo valor, por isso, não está sujeito à tributação do imposto de renda. Precedente da 1ª Turma: EDcl no Ag 861.889/SP.
  4. Recurso especial a que se nega provimento.

(grifo nosso – REsp 886.563/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 02/06/2008)

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ROMPIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO. CUMPRIMENTO DE CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ISENÇÃO.

  1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte.
  2. O pagamento de indenização por rompimento de vínculo funcional ou trabalhista, embora represente acréscimo patrimonial, está contemplado pela isenção do art. 6º, V, da Lei 7.713/88 (“Ficam isentos do imposto de renda (…) a indenização e o aviso prévio pagos por despedida ou rescisão de contrato de trabalho, até o limite garantido por lei […]).
    […]
  3. O direito a estabilidade temporária no emprego é bem do patrimônio imaterial do empregado. Assim, a indenização paga em decorrência do rompimento imotivado do contrato de trabalho, em valor correspondente ao dos salários do período de estabilidade, acarreta acréscimo ao patrimônio material, constituindo, por isso mesmo, fato gerador do imposto de renda. Todavia, tal pagamento não se dá por liberalidade do empregador, mas por imposição da ordem jurídica. Trata-se, assim, de indenização prevista em lei e, como tal, abarcada pela norma de isenção do imposto de renda. Precedente: REsp 870.350/SP, 1ª Turma, DJ de 13.12.2007.
  4. O pagamento feito pelo empregador a seu empregado, a título de adicional de 1/3 sobre férias tem natureza salarial, conforme previsto nos arts. 7º, XVII, da Constituição e 148 da CLT, sujeitando-se, como tal, à incidência de imposto de renda. Todavia, o pagamento a título de férias vencidas e não gozadas, bem como de férias proporcionais, convertidas em pecúnia, inclusive os respectivos acréscimos de 1/3, quando decorrente de rescisão do contrato de trabalho, está beneficiado por isenção (art. 39, XX do RIR, aprovado pelo Decreto 3.000/99 e art. 6º, V, da Lei 7.713/88).
    Precedentes: REsp 782.646/PR, AgRg no Ag 672.779/SP e REsp 671.583/SE.

  1. Agravo regimental a que se nega provimento.

(grifos nossos – AgRg no Ag 1008794/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/06/2008, DJe 01/07/2008)

Em síntese: o imposto de renda não incide na indenização-reposição, uma vez que, nela, não há, de fato, que se falar em acréscimo patrimonial, pois apenas se recompõe a riqueza que foi subtraída do patrimônio material em razão do dano emergente.

Por outro lado, bastante claro que incide imposto de renda sobre a indenização-compensação, pois, nessa, há nítido aumento de riqueza, porquanto o patrimônio material não havia sido diminuído pelos lucros cessantes (apenas se deixou de ganhar, mas não se diminuiu a riqueza que existia) ou pelos danos morais (mero abalo moral, sem reflexo econômico-financeiro).

5 O DEBATE, NO ÂMBITO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ACERCA DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE OS JURO S DE MORA COMO EXEMPLO DA FALTA DE CLAREZA JURISPRUDENCIAL SOBRE A DISTINÇÃO DE REGIMES DA INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO E DA INDENIZAÇÃO- COMPENSAÇÃO

Muito se discute, no seio do Superior Tribunal de Justiça, se incide ou não imposto de renda sobre juros de mora. Interessante destacar que, em exemplo rico da crítica que se faz acerca do freqüente afastamento, generalizado e irrefletido, das verbas indenizatórias da tributação pelo imposto de renda, o ápice da discussão travada naquele tribunal superior está na natureza indenizatória ou não dos juros de mora.

Observa-se, assim, que os precedentes que têm como premissa a natureza jurídica indenizatória dos juros de mora afastam, só por isso, a incidência do imposto de renda, sem maiores perquirições sobre a ocorrência ou não de acréscimo patrimonial.

Por outro lado, os precedentes que sustentam a incidência do imposto de renda sobre os juros de mora apresentam como razão de ser da referida decisão a ausência, no contexto dos autos, de natureza indenizatória dos juros moratórios.

Ora, o que salta aos olhos é que a discussão central para a decisão sobre a incidência ou não do imposto de renda é ser ou não indenizatória a verba em debate, como se a materialidade do tributo dissesse respeito à natureza não-indenizatória da parcela, e não à ocorrência de acréscimo patrimonial.

Relega-se a último plano, destarte, estranhamente ignorada, a investigação da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, verdadeira materialidade que se extrai do arquétipo constitucional do imposto de renda, que independe da natureza indenizatória do pagamento alcançado pelo campo de incidência do tributo.

Assim, prevalece na egrégia 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, por algum tempo, foi, nesse ponto, acompanhada pela 2ª Turma da mesma Corte Superior, o entendimento de que a natureza dos juros moratórios depende da natureza do principal: se o principal tiver natureza remuneratória, os juros de mora terão a mesma natureza e, por isso, sofrerão a incidência do imposto de renda; se, todavia, o principal tiver natureza indenizatória, igualmente indenizatória será a natureza dos juros moratórios, e, por isso, e somente por isso, não sofrerão a tributação pelo imposto de renda.

À guisa de ilustração, colaciona-se o seguinte aresto:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE RENDA. MAGISTRADO. AUXÍLIO-MORADIA. ART. 25 DA MP 1.858-9/1999. NATUREZA INDENIZATÓRIA. NÃO-INCIDÊNCIA. REDUTOR SALARIAL. CARÁTER REMUNERATÓRIO. INCIDÊNCIA. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. ACESSÓRIOS SEGUEM A SORTE DO PRINCIPAL.

    1. Indenização é a prestação em dinheiro, substitutiva da prestação específica, destinada a reparar ou recompensar o dano causado a um bem jurídico, quando não é possível ou não é adequada a restauração in natura do bem jurídico atingido. Não tem natureza indenizatória, portanto, o pagamento – ainda que imposto por condenação trabalhista – correspondente a uma prestação que, originalmente (= independentemente da ocorrência de lesão), era devida em dinheiro. O que há, em tal caso, é simples adimplemento, embora a destempo e por execução forçada, da própria prestação in natura (REsp 674.392/SC, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 6.6.2005).
    2. As verbas trabalhistas recebidas em cumprimento de decisão judicial, a título de redutor salarial, mantiveram sua natureza original de prestação remuneratória, razão pela qual sobre elas deve incidir o
    3. Conforme dispõe o art. 25 da Medida Provisória 1.858-9/1999, os valores pagos a funcionários públicos a título de auxílio-moradia não constituem acréscimo patrimonial, possuindo natureza indenizatória, razão pela qual não podem ser objeto de incidência do Imposto de Renda.
    4. Os juros de mora e a correção monetária são frutos acessórios da utilização da importância principal, assim, seguem a sorte desta. Se a obrigação principal for tributável, também o serão a correção monetária e os juros de mora sobre ela incidente. Do mesmo modo, caso o principal tenha natureza indenizatória, não estará sujeito ao Imposto de Renda, bem como os juros moratórios e a atualização monetária dele decorrentes também não estarão.
    5. Recurso especial parcialmente provido.
      1. Os valores recebidos pelo contribuinte a título de juros de mora, na vigência do Código Civil de 2002, têm natureza jurídica indenizatória. Nessa condição, portanto, sobre eles não incide imposto de renda, consoante a jurisprudência sedimentada no STJ. 2. Recurso especial improvido.
      1. o critério material do imposto de renda é realizado pelo acréscimo patrimonial;
      2. o conceito de acréscimo patrimonial é exclusivamente econômico, estando atrelado a um aumento real de riqueza, tendo-se em mente que a tributação sempre incide sobre fatos reveladores de capacidade contributiva;
      3. o conceito de indenização está ligado à reposição ou compensação por um dano, que pode ser de natureza material ou moral;
      4. apenas os danos materiais provocam efetiva diminuição de riqueza, uma vez que os danos morais, por si sós, representam abalo do chamado “patrimônio moral” do sujeito de direito, mas, não, de seu patrimônio material, econômico, o relevante para fins de tributação;
      5. os danos materiais assumem o caráter de danos emergentes, que consubstanciam efetivo decréscimo do patrimônio material existente anteriormente ao dano, ou o caráter de lucros cessantes, que não acarretam decréscimo do patrimônio existente no momento que precede o dano, mas a perda da oportunidade de vir a obter um aumento de riqueza;
      6. nesse contexto, as indenizações dividem-se em indenizaçãoreposição, que efetivamente restabelece o patrimônio material que havia sido diminuído por um dano emergente, e indenização-compensação, que não restabelece o patrimônio material, uma vez que o dano indenizado não ocasionou a diminuição da riqueza antes existente, tendo como finalidade, em verdade, compensar a riqueza que se deixou de ganhar em decorrência do dano (lucros cessantes) ou o abalo moral sofrido (danos morais);
      7. em razão disso, o imposto de renda apenas não incide na indenização-reposição, porquanto, nela, não há, de fato, que se falar em acréscimo patrimonial, pois apenas se recompõe a riqueza que foi subtraída do patrimônio material em razão do dano emergente;
      8. por outro lado, bastante claro que incide imposto de renda sobre a indenização-compensação, uma vez que, nela, há nítido aumento de riqueza, pois o patrimônio material não havia sido diminuído pelos lucros cessantes (apenas se deixou de ganhar, mas não se diminuiu a riqueza que existia) ou pelos danos morais (mero abalo moral, sem reflexo econômico-financeiro);
      9. os juros moratórios, se entendidos como verba indenizatória, configuram indenização-compensação, pelo que sempre incidirá o imposto de renda;

      1. o debate jurisprudencial travado no Superior Tribunal de Justiça, entretanto, elege a definição da natureza indenizatória ou remuneratória dos juros de mora como a questão decisiva para a controvérsia, sem sequer levar em consideração a possibilidade de ocorrência de acréscimo patrimonial ainda que tal verba seja tida como indenizatória;
      2. por esse motivo, o estudo-de-caso da jurisprudência daquele tribunal superior concernente ao imposto de renda sobre juros de mora serve como emblemático exemplo do mito da não-incidência desse imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória, o que reforça a fragilidade científica dos julgamentos predominantes no Poder Judiciário brasileiro acerca da tributação ou não de verbas que, a despeito de serem qualificadas como indenizatórias, podem acarretar obtenção de riqueza nova;
      3. destarte, com o escopo de promover maior consistência científica – e conseqüente respeito ao ordenamento jurídico tributário – na doutrina e na jurisprudência brasileira sobre o tema, fazse necessária a desconstrução do mito da não-incidência do imposto de renda sobre toda e qualquer verba indenizatória, substituindo-o pela preocupação com a qualificação da verba como indenização-reposição ou indenização-compensação, admitindo-se, no último caso, ao contrário do primeiro, a plena validade da tributação pelo imposto de renda.

(grifo nosso – REsp 615.625/MT, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 07/11/2006 p. 234)

A 2ª Turma, embora já tenha, como dito, seguido tal entendimento, vem adotando tese ainda mais radical, no sentido de que os juros de mora, após o Código Civil de 2002, sempre têm natureza indenizatória, o que, por si só, independentemente da análise concreta acerca da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, justificaria a não-incidência do imposto de renda.

Esclareça-se a tese em comento com a verificação do seguinte precedente:

TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – ART. 43 DO CTN – IMPOSTO DE RENDA – JUROS MORATÓRIOS – CC, ART. 404: NATUREZA JURÍDICA INDENIZATÓRIA – NÃOINCIDÊNCIA.

(grifos nossos – REsp 1037452/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 10/06/2008)

Após o conhecimento dos ilustrativos precedentes, reitere-se: o Superior Tribunal de Justiça, em inúmeras situações, dentre as quais a da incidência de imposto de renda sobre juros moratórios, vem negando a ocorrência da materialidade do tributo em questão a partir da exclusiva premissa de que a verba tem natureza indenizatória. Vem aplicando, portanto, o, com a devida vênia, inadequado entendimento de que toda indenização apenas recompõe o patrimônio.

Como se demonstrou ao longo do presente estudo, tal premissa não é verdadeira, sob o prisma técnico-científico.

Cabe ir além da genérica assertiva de que uma dada verba possui natureza indenizatória para se indagar sobre de que espécie de indenização estamos diante.

Isto é, não basta, para se decidir sobre a incidência ou não de imposto de renda sobre uma verba, concluir sobre o seu status de indenização, devese concluir se a verba em questão representa indenização-reposição ou indenização-compensação. Isso porque, como proclamado à exaustão, somente a indenização-reposição não acarreta acréscimo patrimonial, e, portanto, escapa do âmbito de incidência do imposto de renda.

Assim, ainda que o Superior Tribunal de Justiça, de fato, se pacificasse sobre a natureza indenizatória dos juros de mora, deveria, com o escopo de consolidar uma jurisprudência tecnicamente coerente, enquadrá-los como indenização-reposição ou indenização-compensação. Somente reputandoos indenização-reposição é que se mostra apropriado seja rechaçada a cobrança do imposto de renda sobre os juros de mora.

Ocorre que a indenização-reposição é aquela própria dos danos emergentes, que causam a subtração de riqueza pré-existente, e, por isso, apenas recompõem a riqueza que foi retirada, restabelecendo o patrimônio. Todavia, esse não é o caso dos juros moratórios.

Explica-se: para os autores civilistas que reconhecem a natureza indenizatória dos juros de mora, esse teria, no que tange à obrigação de pagar, a função de indenizar o tempo que o credor passa, em razão do atraso do devedor, sem poder usufruir da quantia devida como principal.

Nessa direção, como consigna o Professor Washington de Barros Monteiro, “dividem-se os juros em compensatórios e moratórios. Correspondem os primeiros aos frutos do capital mutuado ou empregado. Os segundos representam indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação”19. (grifos nossos)

Assim, se imaginarmos os juros moratórios como indenização, devese compreender que apenas o seu principal, se indenizatório for, é que poderá representar reposição patrimonial, repondo uma riqueza subtraída, pelo dano, do patrimônio do agora credor.

Deve-se perceber que os juros moratórios apenas surgem a partir da mora do devedor no pagamento do principal. Ora, os juros de mora consistem em riqueza que nunca antes fez parte do patrimônio do credor.

Importante que se repita: caso o principal seja uma indenizaçãoreposição, este, sim, irá devolver ao patrimônio do credor uma riqueza que lhe foi subtraída pelo dano causado pelo devedor.

Os juros de mora não: seja o seu principal verba de natureza remuneratória ou indenizatória, o fato é que os juros de mora acarretam entrega de riqueza nova ao credor, riqueza que não corresponde a qualquer valor pré-existente do seu patrimônio.

É por isso que, na hipótese dos juros de mora serem compreendidos como indenização, independentemente da natureza do seu principal, não cabe, por uma questão de coerência técnico-científica, enquadrá-los como indenização-reposição, pois não apresentam as características próprias dos danos emergentes.

Para que não restem dúvidas, propõe-se um questionamento retórico: os juros de mora corresponderiam, quantitativamente, a que riqueza pré-existente do patrimônio do credor? Responde-se: a nenhuma.

Assim, uma eventual natureza indenizatória dos juros de mora somente seria plausível concebendo-os como uma indenização-compensação, dada a sua proximidade conceitual com os lucros cessantes, já que os juros de mora teriam por desiderato compensar o credor pelo decurso do tempo em que não pôde usufruir do valor principal, investindo-o, por exemplo, e obtendo renda nova.

Sob essa ótica, em razão da frustração da expectativa do credor de utilizar, num dado período, o dinheiro a ele devido (valor principal) como melhor lhe aprouvesse, e até obter novas riquezas, por meio do seu investimento, é que se vislumbra a natureza indenizatória dos juros de mora.

Portanto, os juros de mora, concebidos como indenização, guardam estrita similitude com a indenização por lucros cessantes, já que aqueles não recompõem uma riqueza pré-existente subtraída em razão da mora, mas, sim, como os últimos, compensam a perda da oportunidade do credor de usar o dinheiro, naquele período, como bem entendesse, investindo-o e, até, vindo a obter novas riquezas.

O magistério de Orlando Gomes consiste em importante contribuição para esse entendimento, porquanto qualifica os juros de mora como uma presunção de indenização mínima, baseada em uma estimativa daquilo que o capital renderia caso estivesse em poder do credor:

Nas dívidas pecuniárias, as perdas e danos abrangem os juros moratórios, custas honorários de advogado, pena convencional e atualização monetária. É intuitiva a razão dessa especificidade. A privação do capital em conseqüência do retardamento na sua entrega ocasiona prejuízo que se apura facilmente pela estimativa de quando renderia, em média, se já estivesse em poder do credor” 20 (grifo nosso).

Com esteio nesse pensamento, infere-se que os juros moratórios têm o caráter de lucros cessantes, representando algo que o credor deixou de ganhar. É o que se presume que seria o rendimento mínimo do credor se dispusesse do capital.


O pensamento de Sérgio Cavalieri Filho robustece ainda mais a conexão entre os juros de mora e a definição de lucro cessante. Lembremos, conforme já tratado neste estudo, que, para ele, o lucro cessante é a perda do ganho esperável, o que corresponde, na exata medida, ao que Orlando Gomes vislumbrou nos juros de mora: a privação de um ganho esperável.

Por todo o exposto é que se conclui, de forma contundente, que se os juros moratórios indenização forem, independentemente da natureza do seu principal, sempre se enquadrarão como indenização-compensação, tais quais os lucros cessantes, pelo que, também sempre, incidirá imposto de renda sobre eles.

Logo, os juros moratórios vistos como indenização, independentemente do principal, somente corroboram a ocorrência de acréscimo patrimonial, materialidade constitucional do imposto de renda, não havendo que se falar em afastamento da tributação de tal imposto em razão de um genérico status de indenização.

Nesse diapasão, o estudo-de-caso da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça concernente ao imposto de renda sobre juros de mora serve como emblemático exemplo do mito da não-incidência desse imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória, o que reforça a fragilidade científica dos julgamentos predominantes no Poder Judiciário brasileiro acerca da tributação ou não de verbas que, a despeito de serem qualificadas como indenizatórias, podem acarretar obtenção de riqueza nova.

6 CONCLUSÃO

Em busca de clareza e objetividade, consigna-se, de maneira sucinta, que as conclusões que se extraem do presente trabalho acadêmico são as de que:

Notas

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 593. 2 CARVALHO, op. cit., p. 599.
3 CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit., p. 600.
4 GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 179.
5 QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. São Paulo: Manole, 2004. p. 89.
6 Entre as teorias que visam a explicar o conceito de renda, pode-se destacar a “[…] teoria da rendaacréscimo patrimonial, que vê a renda como todo ingresso, desde que passível de avaliação em moeda, independentemente de o ingresso ter sido consumido ou reinvestido, considerando na apuração da renda líquida a dedução dos gastos para obtenção dos ingressos e para manutenção da fonte. […] Segundo Hugo de Brito Machado, o CTN adotou o conceito de renda-acréscimo, pois, segundo esse professor, sem acréscimo não há renda nem proventos. Cf. QUEIROZ, Mary Elbe. Op. Cit., p. 69-70.
7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1998. p.189.
8 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 56.
9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva. p. 181-182.
10 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 337.
11 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 184.
12 RODRIGUES, Silvio. op. cit., p.185.
13 RODRIGUES, op. cit., p.189.
14 RODRIGUES. op. cit., p.191.
15 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 341-342.
16 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 72.
17 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 51.
18 QUEIROZ, Mary Elbe. Op. cit., p. 122.
19 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 345.
20 GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 188.

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O propósito negocial e o planejamento tributário no ordenamento jurídico brasileiro

Autor: Miquerlam Chaves Cavalcante, Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual do Ceará.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – Pautado numa pesquisa bibliográfica da doutrina e das regras e princípios do ordenamento positivo nacional, o estudo identifica o propósito negocial como requisito para a validade jurídica de operações societárias em um ambiente de benefícios tributários delas decorrente. Fezse uma análise da legislação em vigor, seja sob a ótica de normas expressas, seja sob o prisma de princípios implícitos em nosso arcabouço jurídico. A pertinência da introdução de uma lei específica sobre o propósito negocial em nosso sistema jurídico não foi olvidada. Ponderamos as relações interdisciplinares de institutos, regras e princípios de direito constitucional, de direito civil e de direito tributário, que demonstraram a desnecessidade de alterações legislativas para uma correta solução de litígios em que se discute a ausência de propósito negocial. A importância da obra reside na identificação de critérios fático-jurídicos relevantes no julgamento de operações societárias que impliquem economia tributária, reduzindo-se, na medida do possível, o subjetivismo e a insegurança jurídica que permeiam o tema. Enunciamos finalmente alguns julgados no âmbito do contencioso administrativo fiscal que corroboram as conclusões de que a ausência de propósito negocial põe mácula em operações societárias levadas a termo para reduzir ou afastar a incidência tributária.

1 INTRODUÇÃO

A consolidação do Estado Democrático de Direito em nosso país, fruto do amadurecimento das instituições democráticas estabelecidas pela Constituição da República de 1988 – CF/88, tem promovido importantes e profundas mudanças nos diversos ramos do Direito.

Observa-se a cada dia a crescente influência dos princípios constitucionais de nosso direito positivo sob ramos até então impregnados por uma ótica privatista e patrimonialista. Os ventos constitucionais sopraram sobre o Direito do Trabalho, sobre o Direito do Consumidor e, notadamente, sobre o Direito Civil como um todo.

Especialmente no que se refere à interpretação de institutos clássicos do Direito Civil, a hermenêutica constitucional atribuiu nova roupagem, mais humana, mais democrática, enfim, mais social. Esse fenômeno recebeu conceituação própria. Trata-se da chamada “despatrimonialização” ou, como preferir, “constitucionalização” do Direito Civil (LENZA, 2008, p.3).

A nomenclatura sugere que o ponto central, ou seja, o destinatáriomor das normas civilistas passou a ser o ser humano, ao invés do patrimônio. Fala-se em constitucionalização pelo fato de a Constituição de 1988 calcar seus alicerces na dignidade da pessoa humana, e não no patrimônio.

Para Júlio César Finger (2000 apud LENZA, 2008, p.3):

Os princípios constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), que é sempre citado como um princípiomatriz de todos os direitos fundamentais, colocam a pessoa em um patamar diferenciado do que se encontrava no Estado Liberal. O direito civil, de modo especial, ao expressar tal ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida privada unicamente do ponto de vista do patrimônio do indivíduo. Os princípios constitucionais, em vez de apregoar tal conformação, têm por meta orientar a ordem jurídica para a realização de valores da pessoa humana como titular de interesses existenciais, para além dos meramente patrimoniais. O direito civil, de um direito-proprietário, passa a ser visto como a regulação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar o seu desenvolvimento com dignidade. Fala-se, portanto, em uma despatrimonialização do direito civil, como conseqüência de sua constitucionalização.

Muitas vezes, a alteração na interpretação de institutos se deu sem que tivesse havido uma correspondente alteração legislativa. Com efeito, a jurisprudência progrediu, porosa aos auspícios e princípios constitucionais, sem que o legislador promovesse a atualização legislativa desejada, ou, quando o fez, ela foi posterior à consolidação jurisprudencial dos institutos.

Cite-se como exemplo, na seara contratual, a evolução jurisprudencial dos institutos da boa-fé e da função social do contrato, que encontraram sede jurisprudencial antes mesmo de sua previsão expressa com o advento do Código Civil de 2002.

Não nos esqueçamos da união estável, cuja previsão no Texto Maior precedeu a normatização ordinária.

No mesmo caminho de uma interpretação impregnada de dignidade humana, assiste-se atualmente ao reconhecimento de direitos às pessoas em união homoafetiva. Mesmo a ausência de uma legislação específica sobre o tema não tem impedido o judiciário1 de assegurar direitos àquelas pessoas, sobretudo na esfera previdenciária2.

Cremos, entretanto, que o Direito Tributário tem-se mostrado refratário aos princípios constitucionais que tanto impregnam outros ramos. Seus operadores enrijeceram-se em conceitos clássicos e em preconceitos acerca da hipossuficiência dos contribuintes, mas que muitas vezes destoam de uma realidade fática.

O que se pretende nas próximas linhas não é uma defesa inconseqüente da tributação estatal muito menos um completo abandono de princípios basilares do direito tributário, como o da legalidade.

Buscar-se-á demonstrar situações em que o Fisco não se encontra em posição de supremacia ante o contribuinte. Ao contrário, há situações em que, por incrível que pareça, o lado mais frágil da relação parece ser o Estado, engessado em sua própria burocracia.

Nestes cenários, a interpretação dos atos jurídicos e das operações não se pode valer da máxima de hipossuficiência dos contribuintes frente ao todo-poderoso Estado, sob pena de se obstar a aplicação de outros princípios constitucionais. Como se sabe, com fundamento na melhor doutrina constitucional, a ponderação de princípios não pode conduzir à completa anulação de um princípio em favor de outro.

Alguns ensinamentos doutrinários sobre o choque entre princípios se destacam:

Intimamente ligado ao princípio da unidade da Constituição, que nele se concretiza, o princípio da harmonização ou da concordância prática consiste, essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 107).

O conflito entre princípios constitucionais é resolvido com a ponderação entre eles, sendo que um deles irá prevalecer no caso concreto sob análise. Isso não significa, diferentemente do conflito entre regras, que o princípio que não prevaleceu deva ser definitivamente repudiado.

Parece-nos que a análise de situações litigiosas envolvendo tributação, tanto no contencioso administrativo-tributário quanto no judicial, somente recentemente3 tem considerado a existência de princípios que podem, conforme o caso concreto, fazer frente àqueles que limitam o poder de tributar do Estado.

A exigência por uma conformidade entre as medidas jurídicas adotadas nos planejamentos tributários e a realidade fática que as fundamentam soa-nos como expressão da tendência constitucionalizante no âmbito do direito tributário.

O presente estudo procura, portanto, demonstrar que diversas normas e princípios de nosso ordenamento jurídico elevam o propósito negocial à condição de elemento condicionante da licitude e validade dos planejamentos tributários.

A partir de uma pesquisa bibliográfica, abordou-se inicialmente, no Item 2, a temática do Planejamento Tributário, estudando seus aspectos gerais, sob uma atual ótica constitucional. Abordou-se aqui a submissão dos contribuintes aos direitos fundamentais, bem como com as normas sobre a desconsideração de atos e negócios jurídicos adotados em planejamentos tributários.

No Item 3, tratou-se das origens do propósito negocial e dos elementos que permitem a identificação de sua presença em operações societárias. Abordou-se também a previsão do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

O cerne do trabalho foi atingido ainda neste Item 3, quando se analisaram normas constitucionais e infra-constitucionais que denunciam a exigência do propósito negocial como requisito de validade de negócios jurídicos no direito brasileiro. A essa análise somou-se a identificação de atual e representativa jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF – sobre o tema.

Por fim, no Item 4, chegou-se a uma conclusão acerca da tendência jurisprudencial na percepção do propósito negocial como elemento necessário ao reconhecimento da licitude de planejamentos tributários.


2 DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

O estudo do planejamento tributário aqui realizado busca um enfoque constitucional. A adoção de medidas jurídicas e comerciais com o intuito de recolher menos tributos, ou adiar a ocorrência do fato gerador, decerto encontra amparo em diversas regras e princípios constitucionais.

Por outro lado, há diversos outros princípios que podem ser tolhidos caso planejamentos sejam indiscriminadamente considerados válidos e legítimos tão-somente porque adotaram forma jurídica prevista em texto de lei.

O que se busca nas próximas linhas é a demonstração de que o atual estágio do nosso direito, sobretudo, do direito constitucional, não mais permite interpretações que ignorem a realidade fática, subjacente às formas jurídicas.

Defendemos aqui a existência de limites ao direito de se buscar alternativas para reduzir ou adiar a tributação. A existência de um propósito negocial que justifique as medidas jurídicas é elemento a ser perquirido na análise da validade dos planejamentos tributários.

Não olvidamos, entretanto, das diversas críticas doutrinárias quanto à aferição do propósito negocial em matéria de planejamentos.

Com efeito, questiona-se a introdução de um critério alienígena em um ordenamento jurídico, mormente quando o fenômeno (business purpose) formou-se a partir de uma evolução jurisprudencial e sem que tenha havido inovação legislativa que o embase. (SCHOUERI; FREITAS, 2010, p. 18).

Verificaremos, entretanto, que a crítica não resiste à uma análise sistemática, teleológica e, sobretudo, constitucional de nosso ordenamento em vigor.

Por essa razão, comecemos a discorrer sobre o planejamento tributário sob um enfoque constitucional, contribuindo para uma releitura desse fenômeno jurídico.

2.1 Aspectos Gerais sob uma Ótica Constitucional

O exercício da atividade empresarial e sua busca pelo saldo positivo entre os custos operacionais e as receitas exigem um foco especial na própria estrutura da empresa.

Em um cenário de ampla concorrência, como o que se verifica hoje na maioria dos setores da economia, o auferimento ou não de lucros é determinado, muitas vezes, na adoção de medidas interna corporis.

Uma correta estruturação societária e um bem planejado controle de custos são elementos indispensáveis para o sucesso empresarial. Se considerarmos que os tributos representam custos de significativo impacto no orçamento empresarial, veremos que as medidas para minimizar a carga tributária são de larga utilização pelas empresas e pelos contribuintes em geral.

O conceito de planejamento tributário aflora deste cenário, em que os contribuintes adotam determinadas medidas jurídicas no intuito de reduzir os custos tributários que incidem sobre sua atividade.

Para Andrade Filho (2007, p.728), “planejamento tributário ou `elisão fiscal´ envolve a escolha, entre alternativas válidas, de situações fáticas ou jurídicas que visem reduzir ou eliminar ônus tributários, sempre que isso for possível nos limites da ordem jurídica”.

É de extrema relevância para a discussão aqui travada a lição no sentido de que o planejamento tributário exige o manejo de duas linguagens: a do direito positivo e a dos negócios, não se restringindo, portanto, à descoberta de lacunas ou brechas legislativas. (Id., 2007, p.728).

De fato, conforme sustentaremos à frente, não merecem guarida jurídica os planejamentos tributários que não estão calcados em um propósito negocial, ou seja, sem as subjacentes razões fático-negociais que o permitam ou que o justifiquem.

Cremos que o constitucionalismo em vigor4 não mais permite a aceitação de planejamentos formalmente lícitos, vez que cumpridos fielmente preceitos legais, mas que não possuam qualquer suporte fático atinente à prática empresarial.

Há diversos princípios constitucionais que podem ser invocados para amparar o direito dos contribuintes de adotarem medidas para redução da carga tributária in concreto.

Notadamente, citem-se o Princípio da Livre Iniciativa (Art. 1º, IV) e o Princípio da Propriedade Privada (Art. 170, II), que garantem aos contribuintes o direito de organizar seus negócios da maneira que lhes convier. Se dessa estruturação decorre economia tributária, tanto melhor para a atividade desenvolvida.

Cite-se ainda o Princípio da Livre Concorrência (Art. 170, IV todos da CF/88), na medida em que admitir uma economia tributária àquele que melhor gere seus custos tributários é contribuir para o fomento da competição empresarial, salutar para o consumidor de seus produtos.

Não podemos deixar de mencionar todos os princípios ou limitações ao poder de tributar, veiculados nos artigos 150, 151 e 152 da CF/88, que pedimos licença para incluí-los sob a rubrica “Princípio da Ordem Tributária Justa”.

Existem, por outro lado, uma série de outros princípios, igualmente direitos fundamentais. Estes princípios devem servir de contraponto àqueles já mencionados em situações de planejamento tributário cujos contornos não estejam claros.

Antes de enunciar os princípios constitucionais que fundamentariam a exigência do propósito negocial como fundamento de validade dos planejamentos tributários, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a tributação como fonte de receita estatal.

Uma simples leitura do artigo 2º da Lei nº 12.214, de 26 de janeiro de 2010, Lei Orçamentária Anual de 2010, nos revela a importância das receitas tributárias como fonte de recursos para o custeio das políticas públicas estatais.

Decerto que as políticas públicas tem uma finalidade precípua, qual seja: assegurar a dignidade da pessoa humana.

Com efeito, o princípio previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 exprime a primazia da pessoa humana sobre o Estado e a sua consagração importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e promoção de seus direitos fundamentais. (SARMENTO, 2008, p. 87).

Sabendo-se que o foco do nosso ordenamento jurídico repousa na dignidade da pessoa humana, não é difícil concluir que as receitas tributárias constituem instrumento ímpar na consecução dos objetivos fundamentais previstos no Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Da mesma forma, não é difícil concluir que, para construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, enfim, para assegurar uma vida digna a todos os brasileiros, as receitas tributárias se apresentam como seu principal instrumento.

Neste cenário, determinado planejamento tributário que não guarde qualquer substrato de veracidade fática, ou seja, cujas medidas adotadas no campo jurídico-formal não tenham a menor repercussão na realização do objeto social proposto pela empresa, tal planejamento não encontra amparo na ordem constitucional atual.

Planejamentos cujo único e exclusivo objetivo seja a redução tributária ofendem princípios como, repita-se, a Dignidade da Pessoa Humana, na medida em que priva o estado de recursos destinados a assegurar a existência digna de seus cidadãos.

Ofendem, igualmente, a Função Social da Propriedade. A propriedade de uma sociedade empresária, ou de frações do seu capital, decerto deve observar sua função social. Respeito às obrigações trabalhistas de seus empregados, ao direito de seus consumidores e o pagamento dos tributos que lhes são cabíveis são formas de cumprir tal função.

E nem se alegue que a propriedade de sociedades empresárias não se submeteriam ao princípio da função social. Não procede o argumento de que a Constituição de 1988 teria apenas estipulado a função social da propriedade urbana (art 182, §2º) e da rural (art. 186). Ocorre que o inciso XXIII do artigo 5º fala em função social de toda e qualquer propriedade.

O Princípio da Isonomia é, da mesma forma, atingido. Se verificarmos que redução das desigualdades regionais e sociais é princípio da nossa ordem econômica (Art. 170, VII da CF/88) e que o rateios das receitas tributária obedecem a critérios que visam à redução dessas desigualdades5, a economia tributária indevida agrava a situação de antinomia e antagonismos entres as regiões do país.


Ao lado desses princípios, há uma série de bens jurídicos e de outros direitos assegurados constitucionalmente que são tolhidos em razão de planejamentos tributários cujo a única e exclusiva determinante é a economia tributária. Citem-se os direitos sociais (arts. 6º e seguintes), a seguridade social (art. 194 e seguintes, todos da Constituição Federal de 1988), dentre outros.

Passemos, portanto, às razões que justificam a aplicação desses princípios na interpretação e julgamento de operações societária e negócios jurídicos realizados em um contexto de planejamento tributário.

2.2 A Submissão dos Particulares (Contribuintes) aos Direitos Fundamentais . Limitações ao Direito de Pagar Menos Tributos

É preciso deixar claro, desde o início, que não pretendemos, com essa abordagem, minimizar a importância dos princípios e garantias constitucionais que protegem os contribuintes da ânsia arrecadatória do Estado.

Esses dispositivos, previstos no texto constitucional nos artigos 150, 151 e 152, são conquistas de nosso constitucionalismo que devem ser fortemente defendidas. Fala-se em eficácia vertical de direitos fundamentais quando, como neste caso, o constituinte prescreve direitos ou garantias aos cidadãos frente ao Estado.

A verticalidade reside no fato de o Estado encontrar-se em posição favorecida, ou seja, em superioridade com relação ao cidadão individualmente considerado.

Ocorre, entretanto, que vem sendo firmada cada vez mais na doutrina alienígena e nacional a concepção de que os direitos fundamentais não constituem comandos destinados apenas aos atores estatais.

Com efeito, o arcabouço constitucional irradia seus efeitos para além das esferas estatais, alcançando também as relações privadas. Sobre o tema, as lições de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.395) são esclarecedoras:

Para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na esfera jurídicoprivada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares. Essa temática, por sua vez, tem sido versada principalmente sob os títulos de eficácia privada, eficácia externa (ou eficácia em relação a terceiros) ou horizontal dos direitos fundamentais […]

Na mesma linha leciona Daniel Sarmento (2008, p. xxvii):

Fala-se em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, para sublinhar o fato de que tais direitos não regulam apenas as relações verticais de poder que se estabelecem entre Estado e cidadão, mas incidem também sobre relações mantidas entre pessoas e entidades não estatais, que se encontram em posição de igualdade formal.

Poder-se-á indagar: qual a relevância da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito do direito tributário, que veiculada normas cogentes entre Estado e cidadãos?

Ocorre que, inexoravelmente, o contexto dos planejamentos tributários gira em torno de relações jurídicas entre particulares que visam a influenciar na relação de um deles ou de ambos para com o Fisco.

Em outras palavras, os planejamentos tributários se constituem em negócios jurídicos, estruturações societárias ou em operações comerciais que se operam entre atores privados.

É propriamente nesta seara que as considerações aqui feitas quanto a aplicação de princípios fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal) irá atuar. Queremos, com isso, demonstrar que, ao lado dos direitos, há igualmente deveres fundamentais a serem observados pelos particulares.

Sob esse enfoque, é possível notar que o princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, pode fundamentar não apenas as vedações ao poder de tributar, evitando abusos estatais na tributação, mas também pode e deve ser utilizado para evitar que o ordenamento seja usado como escudo para uma economia tributária que não interessa à coletividade.

É oportuno lembrar que “a preponderância do interesse coletivo no direito dos tributos é evidente, daí derivando o caráter cogente de suas normas, inderrogáveis pela vontade dos sujeitos da relação jurídicotributária.” (AMARO, 2010, p. 27).

Ora, não ignoramos o fato de que a redução dos custos tributários decorrentes dos planejamentos tributários há de ser reconhecida. Podese inclusive falar em uma espécie de “direito de pagar menos tributos”, com fundamentos em princípios constitucionais já abordados acima (livre iniciativa, propriedade privada, etc.).

Ocorre que o exercício deste direito decerto encontra limites. O respeito a outros princípios da ordem constitucional é o primeiro limitador, sendo certo que a ponderação entre os valores em conflito será feita conforme o caso concreto.

E não se diga que a proposta aqui veiculada gerará alto grau de subjetivismo e de insegurança jurídica. A consideração acerca de peculiaridades de cada caso é inexorável em qualquer julgamento. Ademais, é plenamente possível identificar a formação de alguns standarts na jurisprudência sobre o planejamento tributário e o propósito negocial.

Entendemos, porém, que o principal limitador ao direito de pagar menos tributos é propriamente a co-existência de fatores extra-tributários que justifique a adoção de medidas elisivas.

Em nosso sentir, o planejamento tributário há de encontrar justificativa e suporte em fatores da atividade econômica das empresas. Há que buscar, ao lado da economia tributária, uma otimização ou uma melhoria da prática empresarial. Enfim, exige-se, para além de uma economia de tributos, um propósito negocial.

Veremos em momento oportuno (Item 3.4) algumas normas do ordenamento jurídico pátrio que permitem a conclusão de que a existência e um propósito negocial é determinante da validade de operações societária e negócios jurídicos levados a termo em planejamentos tributários. Antes disso, convém passarmos para algumas considerações acerca das normas aplicáveis na desconsideração de atos e negócios jurídicos realizados em planejamentos tributários.

2.3 A Desconsideração de Atos e Negócios Jurídicos no Contexto do Planejamento Tributários – Normas Aplicáveis

Alguns ramos do direito, como o direito do trabalho ou do consumidor, parecem mais porosos à utilização de princípios na interpretação de institutos ou na atualização de conceitos clássicos.

Cremos não ser o caso do direito tributário.

Não obstante, conforme vimos acima, há uma série de princípios constitucionais que possibilitam a desconsideração de atos, operações, negócios, estruturações societárias levadas a termos com exclusivo propósito de economia tributária.

Dentre tais princípios destaca-se a função social da propriedade. Com efeito, a propriedade de cotas ou ações de uma sociedade empresária insere o seu titular em um contexto que transcende os limites da empresa. Nascem obrigações para com a sociedade, na medida em que esta também contribui para a manutenção e perpetuação da entidade empresarial.6

No ordenamento infraconstitucional, destaca-se a previsão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional – CTN, segundo o qual a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

A celeuma em torno deste dispositivo refere-se à sua parte final, que remete a procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Cremos, entretanto, que uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico permite conferir alguma eficácia ao texto legal.

Neste sentido, ganha relevância o disposto no artigo 113 do Código Civil, que insere a boa-fé como vetor interpretativo dos negócios jurídicos. Ainda na seara civilista, merecem menção os artigos 421 e 422 do Código, que, respectivamente, condiciona a liberdade contratual à função social do contrato e elege a probidade e a boa-fé como princípios a serem seguidos pelos contratantes em geral7.

Convém ainda mencionar o repúdio do ordenamento jurídico ao enriquecimento sem causa, veiculado no artigo 884 do Código Civil. Com efeito, sob o ponto de vista contábil, ao se evitar um custo (pagamento de tributos), estar-se-á auferindo um ganho.

Ora, se a economia tributária não decorre de fatores extra-tributários que a justifiquem, sendo apenas um fim em si mesma, temos que ela constitui enriquecimento sem causa, em desfavor de toda a coletividade.


Merece destaque ainda o artigo 50 do Código Civil, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Podemos concluir que o ordenamento jurídico, analisado de forma sistemática e finalista, repudia os atos e negócios jurídicos adotados em planejamentos tributários que não encerram em si qualquer propósito negocial.

É oportuno adentrarmos, portanto, no estudo do propósito negocial.

3 DO PROPÓSITO NEGOCIAL

A abordagem constitucional feita acima, no que se refere ao planejamento tributário, nos permite afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro não mais tolera uma discrepância entre a realidade e a formalidade dos atos jurídicos.

A formalidade jurídica há de ser expressão fidedigna da realidade. Dessa forma, partindo-se da premissa de que as sociedades empresárias buscam o auferimento de lucros, não se concebe a adoção de medidas em que a busca, ainda que mediata, por lucros não seja considerada.

Podemos garantir que “economia de tributos” não é objeto social de nenhuma empresa. Assim, na condução dos negócios, não há dúvidas de que tal economia possa licitamente ocorrer, mas há que decorrer do cumprimento do objeto social da sociedade.

O propósito negocial diz respeito, portanto, à condução dos negócios da sociedade empresária segundo posturas previsíveis ou admissíveis se considerado seu objeto social e sua atividade econômica tendente ao auferimento de lucros.

3.1 Origens do Instituto

A doutrina do propósito negocial (business-purpose doctrine) tem origem nos Estados Unidos e nasceu em um contexto de reestruturações societárias. Dentre seus fundamentos primordiais, pode-se destacar que a simples concordância com a letra da lei tributária é insuficiente para embasar uma economia tributária válida. (HOGROIAN, 2002, p. 1, tradução nossa).

Embora a doutrina tenha se desenvolvido inicialmente na tributação do imposto de renda (income taxation), não tardou sua extensão para outros tributos.

Vale salientar que, no direito americano, a doutrina do propósito negocial é normalmente conjugada com outras doutrinas (economicsubstance doctrine; step-transaction doctrine; sham-transaction doctrine e phantomcorporation doctrine). (Id., 2002, p. 2).

Parece-nos que a conjugação de tais teorias não possui outro propósito senão o de afastar, ou seja, desconsiderar, os atos ou negócios adotados com exclusivo propósito tributário e promover a tributação devida.Cremos que o fato de o instituto ter suas fontes em país de tradição na common law não o tornar incompatível, só por este motivo, com o direito brasileiro. Como vimos acima, há uma série de princípios constitucionais que se compatibilizam com os enunciados da teoria do propósito negocial, configurando verdadeiras cláusulas de abertura do nosso ordenamento ao instituto.

Os críticos do reconhecimento do propósito negocial em nosso ordenamento falam ainda em uma necessária e desejável inovação legislativa que discipline o instituto. Ocorre, porém, como mencionamos anteriormente, há uma série de exemplos em nosso direito de institutos cujo reconhecimento jurisprudencial precedeu a previsão legal.

Ademais, em nome de uma suposta segurança jurídica, corre-se o risco de enrijecer o novel instituto. Ao contrário, uma interpretação principiológica, sistemática e teleológica garante seu constante amadurecimento e conformação com o ordenamento em vigor.

3.2 A Identificação do Propósito Negocial em Transações. Elementos Indiciários de sua Ausência

Para nós, a ausência de propósito negocial em transações comerciais no âmbito de planejamentos tributários configura ofensa à ordem jurídica posta.

Tal premissa nos leva a defender que a verificação da presença do propósito negocial se dá de forma negativa, ou seja, há que ser provada a sua ausência e não a sua presença. Isso porque o ordinário se presume, enquanto o extraordinário se prova.

Em outras palavras, há presunção de que as transações e operações societárias ocorridas na atuação empresarial da sociedade guardem correspondência com o seu objeto social e que, portanto, encerrem um propósito negocial. Assim, a fiscalização tributária, havendo indícios do contrário, deve produzir provas que afastem essa presunção.

Todavia, é preciso atentar para a existência de indícios que denotam a ausência daquele propósito.

Interessante estudo divulgado recentemente demonstrou que a jurisprudência administrativa do então Conselho de Contribuintes atribui maior relevância a alguns elementos no julgamento da existência ou não de propósito negocial (SCHOUERI; FREITAS, 2010, p. 19).

O primeiro desses elementos diz respeito ao lapso temporal entre as operações do planejamento. Não tem boa acolhida entre os julgadores o planejamento feito às pressas, com a assinatura de uma gama de documentos em um mesmo momento.

O indício da ausência de propósito negocial repousa na inexistência de tempo hábil para que decisões tomadas em um primeiro momento, em uma primeira rodada de operações, surtam efeito. Assim, passa-se uma segunda rodada de transações sem qualquer decurso de prazo, denunciando a mera formalidade das decisões.

Outro elemento que se sobressaiu na consideração dos julgadores administrativos refere-se à interdependência entre as partes envolvidas, ou seja, as operações ocorrem entre sociedades coligadas.

Nestes casos, o indício baseia-se na ausência de efeitos econômicos perante terceiros, ficando as operações limitadas a um mesmo grupo econômico. Vale ressaltar que o simples fato de a operação se realizar entre parte vinculadas não quer dizer que há afronta à lei tributária.

Há ainda outro elemento que gera desconfiança dentre os julgadores. Trata-se de operações anormais, ou seja, que destoam da rotina empresarial da sociedade. Aqui, há uma maior probabilidade de que os motivos da transação sejam exclusivamente tributários.

Embora não apontado no estudo citado, cremos que operações em que uma das partes se localize em país com tributação favorecida (paraísos fiscais8) não são vistas com bons olhos pelos julgadores.

Nunca é demais lembrar que uma correta e justa resolução de situações conflituosas, nessa temática, passa obrigatoriamente por uma análise aprofundada das peculiaridades do caso concreto, bem como pelo sopesamento dos princípios e bens jurídicos em oposição.

3.3 O Propósito Negocial e o Ordenamento Jurídico Brasileiro – A Medida Provisória 66, de 2002

Conforme adiantamos acima, não há previsão expressa em nosso ordenamento jurídico do instituto propósito negocial.

Isso não impede, consoante já defendemos nos itens anteriores, o seu reconhecimento e aplicação em nosso direito, tendo em vista uma série de regras e princípios que o confirma entre nós.

Não podemos nos furtar, entretanto, da menção à Medida Provisória n° 66, de 29 de agosto de 2002. Esse instrumento normativo previa expressamente o instituto do propósito negocial como elemento cuja falta justifica a desconsideração do ato ou negócio jurídico.

A exposição de motivos9 que acompanhou a proposição da MP nº 66, de 2002, assim justificava:

11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já oferece tratamento específico.


12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios jurídicos que são passives de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito negocial.

13. Os conceitos adotados no projeto guardam consistência com os estabelecidos na legislação tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal.

14. Os arts. 15 a 19 dispõem sobre os procedimentos a serem adotados pela administração tributária no tocante à matéria, suprindo exigência contida no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.

O item 14 da exposição de motivos evidencia, ao lado da leitura da parte final do parágrafo único do art. 116 do CTN (“observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”), que a exigência de lei ordinária recai apenas quanto ao procedimento para desconsideração de atos ou negócios.

Em nenhum momento o Código Tributário exige lei ordinária que defina “propósito negocial”. Isso apenas corroborando nosso entendimento de que o instituto já se faz presente em nosso ordenamento, seja por inferência lógica ou por interpretações sistemáticas e teleológicas.

No texto da Medida Provisória, o tema foi tratado da seguinte maneira:

PROCEDIMENTOS RELATIVOS À NORMA GERAL ANTI-ELISÃO

Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subseqüentes.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

§ 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:

  1. falta de propósito negocial; ou
  2. II – abuso de forma.

§ 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.

§ 3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.

Art. 15. A desconsideração será efetuada após a instauração de procedimento de fiscalização, mediante ato da autoridade administrativa que tenha determinado a instauração desse procedimento.

Art. 16. O ato de desconsideração será precedido de representação do servidor competente para efetuar o lançamento do tributo à autoridade de que trata o art. 15.

§ 1º Antes de formalizar a representação, o servidor expedirá notificação fiscal ao sujeito passivo, na qual relatará os fatos que justificam a desconsideração.

§ 2º O sujeito passivo poderá apresentar, no prazo de trinta dias, os esclarecimentos e provas que julgar necessários.

§ 3º A representação de que trata este artigo:

  1. deverá conter relatório circunstanciado do ato ou negócio praticado e a descrição dos atos ou negócios equivalentes ao praticado;
  2. será instruída com os elementos de prova colhidos pelo servidor, no curso do procedimento de fiscalização, até a data da formalização da representação e os esclarecimentos e provas apresentados pelo sujeito passivo.

Art. 17. A autoridade referida no art. 15 decidirá, em despacho fundamentado, sobre a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados.

§ 1º Caso conclua pela desconsideração, o despacho a que se refere o caput deverá conter, além da fundamentação:

  1. descrição dos atos ou negócios praticados;
  2. discriminação dos elementos ou fatos caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos foram praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária;
  3. descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas de incidência dos tributos;
  4. resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou negócios equivalentes referidos no inciso III, com especificação, por tributo, da base de cálculo, da alíquota incidente e dos encargos moratórios.

§ 2º O sujeito passivo terá o prazo de trinta dias, contado da data que for cientificado do despacho, para efetuar o pagamento dos tributos acrescidos de juros e multa de mora.

Art. 18. A falta de pagamento dos tributos e encargos moratórios no prazo a que se refere o § 2º do art. 17 ensejará o lançamento do respectivo crédito tributário, mediante lavratura de auto de infração, com aplicação de multa de ofício.

§ 1º O sujeito passivo será cientificado do lançamento para, no prazo de trinta dias, efetuar o pagamento ou apresentar impugnação contra a exigência do crédito tributário.

§ 2º A contestação do despacho de desconsideração dos atos ou negócios jurídicos e a impugnação do lançamento serão reunidas em um único processo, para serem decididas simultaneamente.

Art. 19. Ao lançamento efetuado nos termos do art. 18 aplicam-se as normas reguladoras do processo de determinação e exigência de crédito tributário.

Ocorre, entretanto, que a disciplina acima não foi mantida quando a Medida Provisória foi convertida na Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002.

Para muitos, isso significou uma completa impossibilidade de desconsideração de atos e negócios jurídicos, bem como uma vedação à utilização do propósito negocial como elemento determinante da validade jurídica de transações comerciais.

Não pensamos assim. A exigência do propósito negocial, repita-se, é decorrência de nosso ordenamento, não necessitando de definição legal expressa para que exista.

Ademais, a valoração de atos e negócios jurídicos pode conduzir perfeitamente ao seu afastamento ou desconsideração em sede de julgamento no contencioso administrativo tributário e, com maior razão, pelo judiciário, tendo em vista o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV).

A conclusão não pode ser outra senão a de que uma previsão expressa no ordenamento jurídico acerca do propósito negocial é despicienda, embora seja aconselhável, segundo alguns, de forma a balizar a atuação do Fisco.

3.4 Normas Autorizadoras do Reconhecimento do Propósito Negocial como Requisito de Validade Fático-Jurídica de Operações Societárias no Contexto do Planejamento Tributário

O reconhecimento do propósito negocial como requisito da validade jurídica do planejamento tributária diz respeito sobretudo à conformação entre a realidade fática das relações comerciais e a formalidade jurídica.

No atual estágio do nosso constitucionalismo, conforme abordamos acima, sobressai o entendimento de que os direitos fundamentais irradiam seus efeitos para as relações privadas (SARMENTO, 2008), falando-se em uma eficácia horizontal daqueles direitos (SARLET, 2007).


Os planejamentos se realizam com a adoção de atos e negócios jurídicos realizados entre particulares, cujos efeitos são apresentados à administração tributária no intuito de obstar ou adiar a ocorrência do fato gerador. Sob esse enfoque, é propriamente essas relações entre particulares que devem observância aos direitos fundamentais.

No âmbito constitucional, podemos vislumbrar a exigência do propósito negocial como condicionante das transações comerciais em princípios como a função social da propriedade, a isonomia e, principalmente, na interpretação constitucional dada a institutos de direito privado.

Tais princípios já encontram reverberação em dispositivos infraconstitucionais recentes. Exemplo disso são os artigos 421 e 422 do Código Civil de 2002.

O artigo 421 condiciona a liberdade contratual à função social do contrato, enquanto o artigo 422 elege a probidade e a boa-fé como princípios a serem seguidos pelos contratantes em geral. Cremos não haver dúvidas de que essas regras se aplicam, por exemplo, aos contratos ou estatutos sociais de sociedade empresárias.

Assim, contratos ou estatutos sociais de “empresas veículo”, criadas como o exclusivo propósito de propiciar economia tributária mediante sucessivas operações societária, podem ser impugnados e a operações correlatas desconsideradas em razão do descumprimento da função social, da probidade e da boa-fé.

É de se notar, neste caso, que a probidade e a boa-fé hão de ser consideradas não entre as partes da operação, via de regra coligadas e em conluio, mas sim perante a coletividade, tolhida de recursos tributários ordinariamente devidos.

A previsão do artigo 884 do Código Civil igualmente autoriza o reconhecimento da exigência do propósito negocial em nosso direito.

Com efeito, o artigo em destaque repúdia o enriquecimento sem causa. Ora, se o contrato social ou o estatuto social elenca o objeto social, ou seja, as atividades empresariais a que se propõe a sociedade, é naqueles instrumentos que se encontra a forma (ou causa) para a geração de riquezas.

Como afirmamos acima, desconhecemos qualquer empresa que nomeie dentre seu objeto social “economizar tributos”. Assim, operações pautadas nesse único propósito fogem da normalidade empresarial listada em seu objeto social e, portanto, carecem de causa jurídica.

Considerando que, sob o ponto de vista contábil, a redução de um custo (pagamento de tributos) representa um ganho, a conclusão não pode ser outra senão que a economia tributária auferida em operações que não apresentem fatores extra-tributários, constitui enriquecimento sem causa.

Com isso, defendemos que a vedação ao enriquecimento sem causa contribui para o reconhecimento do propósito negocial em nosso ordenamento.

Por fim, em um exercício de interpretação sistemática do nosso ordenamento jurídico, vislumbra-se ainda autorização para o reconhecimento do propósito negocial como requisito de validade de operações societárias (fusões, cisões, incorporações) adotadas em planejamentos em normas que versam sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Citem-se aqui os artigo 50 do Código Civil e o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, a desconsideração da personalidade jurídica é possível ante a ocorrência de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, bem como quando houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Podemos concluir, portanto, pela existência de um robusto arcabouço jurídico que permite a aplicação do instituto do propósito negocial em nosso direito. O fato de sua constatação decorrer de fundamentação principiológica e sistemática não lhe retira a eficácia jurídica.

3.5 Da Jurisprudência Administrativa sobre o Tema

A jurisprudência administrativa sobre o tema parece estar sensível à interpretação constitucional na valoração e julgamento de planejamentos tributários.

Com efeito, os julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF10 tem demonstrado uma tendência pelo afastamento de planejamentos tributários que encerrem propósitos exclusivamente fiscais.

O julgado abaixo bem demonstra essa inclinação:

INCORPORAÇÃO DE EMPRESA. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO. NECESSIDADE DE PROPÓSITO NEGOCIAL. UTILIZAÇÃO DE “EMPRESA VEÍCULO”. Não produz o efeito tributário almejado pelo sujeito passivo a incorporação de pessoa jurídica, em cujo patrimônio constava registro de ágio com fundamento em expectativa de rentabilidade futura, sem qualquer finalidade negocial ou societária, especialmente quando a incorporada teve o seu capital integralizado com o investimento originário de aquisição de participação societária da incorporadora (ágio) e, ato contínuo, o evento da incorporação ocorreu no dia seguinte. Nestes casos, resta caracterizada a utilização da incorporada como mera “empresa veículo” para transferência do ágio à incorporadora.

(Data da Sessão: 05/12/2007; Relator: Aloysio José Percínio da Silva; Decisão: Acórdão 103-23290)

A falta de propósito negocial é ressaltada também no seguinte julgado:

IRPF – GANHO DE CAPITAL – ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS – SIMULAÇÃO – Constatada a desconformidade, consciente e pactuada entre as partes que realizaram determinado negócio jurídico, entre o negócio efetivamente praticado e os atos formais de declaração de vontade, resta caracterizada a simulação relativa, devendo-se considerar, para fins de verificação da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, o negócio jurídico dissimulado. A transferência de participação societária por intermédio de uma seqüência de atos societários caracteriza a simulação, quando esses atos não têm outro propósito senão o de efetivar essa transferência. Em tal hipótese, é devido o imposto sobre ganho de capital obtido com a alienação das ações.

(Data da Sessão: 25/05/2006; Relator(a): Pedro Paulo Pereira Barbosa; Nº Acórdão: 104-21610)

O repúdio ao descompasso entre a realidade fática e o mero formalismo jurídico pode ser apreendido no seguinte acórdão:

INCORPORAÇÃO DE SOCIEDADE. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO NA AQUISIÇÃO DE AÇÕES. SIMULAÇÃO. A reorganização societária, para ser legítima, deve decorrer de atos efetivamente existentes, e não apenas artificial e formalmente revelados em documentação ou na escrituração mercantil ou fiscal. A caracterização dos atos como simulados, e não reais, autoriza a glosa da amortização do ágio contabilizado.

(Data da Sessão: 28/05/2008; Relatora: Sandra Maria Faroni; Decisão: Acórdão 101-96724)

Nesta mesma linha, destacam-se os acórdãos:

DESPESAS COM REMUNERAÇÃO DE DEBÊNTURES. Restando caracterizado o caráter de liberalidade dos pagamentos aos sócios, decorrentes de operações formalizadas apenas “no papel” e que transformaram lucros distribuídos em remuneração de debêntures, consideram-se indedutíveis as despesas contabilizadas. DECORRÊNCIA. A decisão relativa ao lançamento principal (IRPJ) aplica-se, por decorrência, à exigência de CSLL.

(Data da Sessão: 19/05/2005; Relator(a): Sandra Maria Faroni; Nº Acórdão: 101-94986)

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO – Não se qualifica como planejamento tributário lícito a economia obtida por meio de atos e operações que não foram efetivas, não apenas artificial e formalmente revelados em documentação e/ou na escrituração. DECADÊNCIA – Decorridos mais de cinco anos do fato gerador, operou-se a decadência. Recurso voluntário provido e recurso de ofício negado em razão da decadência.

(Data da Sessão: 23/03/2006; Relator(a): Sandra Maria Faroni; Nº Acórdão: 101-95442)

Não se deve pensar que o CARF tem infirmado e afastado indiscriminadamente toda e qualquer operação que tenha propósitos elisivos. Há uma série de julgados reconhecendo a licitude, ou seja, a conformidade fático-jurídica de transações que representaram economia tributária.


Cite-se, a propósito, o seguinte julgado:

LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. SIMULAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. INOCORRÊNCIA. – Presente a relação negocial entre as partes contratantes, do que resulta celebração de negócio jurídico efetivo, afastada está a figura to jurídico simulado. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. RECURSO EX OFFICIO – Tendo o Julgador a quo ao decidir o presente litígio, se atido às provas dos Autos e dado correta interpretação aos dispositivos aplicáveis às questões submetidas à sua apreciação, nega-se provimento ao Recurso de Ofício.

(Data da Sessão: 16/10/2002; Relator(a): Sebastião Rodrigues Cabral; Nº Acórdão: 101-93983)

Com efeito, o que tem sido rechaçado pelos Conselheiros do CARF são planejamentos tributários com fortes indícios de descompasso entre a formalidade jurídica apresentada e o cursor corrente dos negócios das empresas.

Destaca-se, conforme afirmamos acima, a análise de indícios que demonstram tal descompasso. A proximidade temporal das operações, conforme abordado no Acórdão 103-23290, transcrito acima, a ligação societária entre as empresas envolvidas e a normalidade das atividades levadas a termo são exemplos dos indícios ponderados pelos julgadores.

A decisão a seguir destaca a anormalidade das operações adotadas pela empresa, destoando de sua prática comercial corriqueira:

IRPJ. CUSTOS E DESPESAS OPERACIONAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE CONTRATOS FUTUROS DE TAXAS DE CÂMBIO DE CRUZEIROS REAIS POR DÓLAR COMERCIAL. RESSARCIMENTO POR DESISTÊNCIA DE CONTRATO. Quanto uma empresa assina 150 contratos de promessa de compra e venda de dólar comercial, com empresas que não tem qualquer posição naquela moeda e nem tem capacidade econômica e nem financeira (microempresas, empresas de pequeno médio porte) e empresas não identificadas e, ainda, desiste da compra ou venda do dólar comercial e paga o ressarcimento (multa contratual) por desistência de contrato, estas operações não preenchem os requisitos de necessidade, normalidade e usualidade para serem apropriados como custos ou despesas operacionais, independentemente da imputação da simulação de contratos.

(Data da Sessão: 21/05/2002; Relator(a): Kazuki Shiobara; Nº Acórdão: 101-93826)

A análise da jurisprudência do CARF nos leva a concluir que seus julgadores parecem atentos à conformação entre a realidade comercial das empresas e a formalidade jurídica adotada em planejamentos tributários, exigindo a presença do propósito negocial para que estes sejam considerados hígidos.

Vemos com bons olhos essa inclinação jurisprudencial, na medida em que reflete a principiologia constitucional em vigor, que, decerto, irradia seus preceitos a todos os ramos jurídicos e a todos os atores estatais, públicos ou privados.

4 CONCLUSÃO

O atual estágio de nosso constitucionalismo, que tem como vértice o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, não mais permite o esvaziamento das promessas e tutelas feitas pelo texto constitucional.

Apontamos neste estudo a importância das receitas tributárias na realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Considerando que as políticas públicas visam à realização daqueles objetivos precípuos, que, afinal, buscam assegurar dignidade a todos, percebe-se a relevância das receitas oriundas da tributação como financiadora da promoção dos valores e bens constitucionais.

Identificamos, da mesma forma, vários princípios (livre iniciativa, propriedade privada, livre concorrência) que dão suporte ao direito de os contribuintes, mormente as sociedades empresárias, conduzir seus negócios de uma forma que minimize o impacto tributário em seus custos.

Ocorre que o direito acima delineado sofre limitações na própria ordem constitucional e infraconstitucional. Com efeito, demonstramos que a economia tributária decorrente de planejamentos tributários encontra seu limite jurídico em princípios como o da função social da propriedade, o da isonomia, da dignidade da pessoa humana, etc.

Demonstramos, baseado em atual e relevante doutrina, que não só o Estado, mas também os particulares, devem observância àqueles princípios fundamentais em suas relações privadas. Trata-se da chamada eficácia horizontal das normas constitucionais.

Sob esse enfoque, os particulares devem guardar certos limites na condução de suas atividades. Assim, as relações, negócios e operações societárias adotadas no contexto de planejamentos tributários, para serem consideradas válidas, devem ter correspondência na realidade fática. Somente desta forma, essas transações não ofendem normas constitucionais e infraconstitucionais.

A principiologia constitucional, aliada a uma interpretação sistemática e teleológica de nosso ordenamento jurídico, demonstra que aquelas operações que conduzem a uma economia de tributos devem ter como fator determinante um propósito negocial.

Destacamos neste estudo que a ausência do propósito negocial em operações elisivas ofendem ainda diversos dispositivos do Código Civil, mormente os que versam sobre a função social dos contratos, a boa-fé, a probidade e sobre a vedação ao enriquecimento sem causa.

Nesta contextualização normativa, concluímos como sendo desnecessária uma previsão legal expressa acerca do propósito negocial. De fato, a ordem constitucional e o arcabouço infraconstitucional, analisado sistematicamente, garantem a perfeita aplicação do instituto em nosso direito, embora sua origem remonte ao direito norte-americano.

A ausência de propósito negocial em operações que conduzem a uma economia tributária é aferida por indícios.

Assim, operações societárias realizadas sucessivamente em lapso temporal exíguo (horas, minutos), transações entre pessoas jurídicas coligadas ou, ainda, operações que escapam da normalidade da prática comercial de determinadas empresas, enfim, todos esses são indícios que podem e devem ser considerados na análise da validade de um planejamento tributário.

Por fim, demonstrou-se que a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, tem-se inclinado, conforme aqui defendido, pela consideração do propósito negocial como elemento necessário à manutenção de planejamentos tributários.

Notas

1 A Administração Pública também tem-se mostrado sensível à esses princípios, como se verifica no Parecer 1.503/2010 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que autoriza casais homoafetivos a declararem o companheiro (a) como dependente na declaração de imposto de renda.
2 Por todos, cite-se Recurso Especial nº 395.904 – RS (2001/0189742-2), publicado no DJ 06/02/2006, p. 365.
3 Em item próprio (3.6), abordaremos a atual jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, que mostram uma salutar tendência em considerar aspectos outros, que não apenas os meramente formais, na interpretações de normas e institutos jurídicos no contexto do planejamento tributário.
4 Por “constitucionalismo em vigor” entenda-se não só o texto da Constituição Federal de 1988 mas também a evolução na interpretação constitucional realizada sobretudo pelo STF.
5 Exemplo disso é o rateios do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e do Fundo de Participação dos Municípios, cujos critérios de repartição dos recursos visa à superação de desigualdades sociais (Lei Complementar nº 62, de 28 de dezembro de 1989).
6 Em cenários de turbulência econômica se evidencia que o socorro estatal a empresas privadas é custeado por toda a sociedade. Fala-se em “privatização dos lucros” e em “socialização dos prejuízos”.
7 Aprofundaremos a análise destes artigos quando da abordagem das normas autorizadoras do reconhecimento do propósito negocial como requisito de validade de operações societárias (Item 3.4).
8 A lista dos países considerados como tal é dada pela IN RFB nº 1.037, de 04 de junho de 2010.
9 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2002/211-MF-02.htm. Acesso em: 19 ago. 2010
10 Antigo Conselho de Contribuintes, com novos contornos atribuídos pela Portaria MF n° 256, de 22 de junho 2009.


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Uma análise crítica acerca da idéia de serviço consagrada na súmula vinculante 21 do STF

Autor: Aldemario Araujo Castro, Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela UFAL. Mestre em Direito pela UCB.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A Súmula Vinculante 31 do Supremo Tribunal Federal afirma que “é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. Adotou-se uma noção historicamente superada de serviço, identificado como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”, e transportou-se para o direito tributário um dos mais restritivos sentidos da noção de serviço, considerando, de forma indevida, uma suposta obrigatoriedade da tributação acolher as construções do direito privado sem modificações. O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, com notas caracterizadoras inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, uma categoria aberta para apreender em sua descrição as transformações da realidade econômico-social. A locação de bens móveis enquadra-se no tipo demarcado pelo vocábulo serviço e pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

I INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal adotou a Súmula Vinculante n. 31 com a seguinte redação: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.

O verbete em questão consagra o entendimento inaugurado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121 e reiterado em vários outros precedentes (RE 455613 AgR; RE 553223 AgR; RE 465456; RE 450120 AgR; RE 446003 AgR; AI 543317 AgR; AI 551336 AgR e AI 546588 AgR).

Em princípio, a edição da aludida súmula seria o desdobramento normal ou natural de uma série de julgados no mesmo sentido. Ocorre que a edição de uma súmula vinculante, a mais radical manifestação do Judiciário, justamente porque obriga os demais órgãos do Poder e a Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, deve ser cercada de importantes e inafastáveis cautelas.

No caso em análise, é possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal não atuou com a sua costumeira prudência. Com efeito, os inúmeros precedentes citados simplesmente repetem a definição adotada na decisão “original” no RE n. 116.121. Essa decisão, por sua vez: a) “inverteu” uma longa tradição jurisprudencial de mais de 30 (trinta) anos; b) transportou para o direito tributário uma noção tradicional acerca da idéia de serviço construída (ao longo do tempo) nos domínios do direito privado e c) não levou, na devida conta, toda uma aguda e estratégica reflexão acerca da evolução e da crescente importância dos serviços como atividade econômica1.

Esse escrito pretende explorar os dois últimos aspectos destacados e aparentemente desconsiderados ou subdimensionados pelo Excelso Pretório ao adotar o enunciado vinculante com o número trinta e um.

II OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA SÚMULA VINCULANTE STF N. 31

Como foi destacado, a origem da Súmula Vinculante STF n. 31 remonta ao julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.1212. Essa decisão marca uma importante mudança de rumos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, observada, quanto ao assunto, por cerca de 30 (trinta) anos.

Vingou, no julgamento do RE n. 116.121, uma espécie de interpretação “fechada” ou “estática”. Prevaleceu o argumento de observância inafastável, no direito tributário, das definições do direito civil, como pode ser observado na ementa3 e nos votos e manifestações dos Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Moreira Alves, todos invocando os termos do art. 110 do Código Tributário Nacional4. Como conseqüência, sagrou-se vitorioso o raciocínio extremamente restritivo (e equivocado) de que a prestação de serviço envolve tão-somente esforço humano (conforme o Ministro Marco Aurélio5) ou obrigações de fazer (consoante o Ministro Celso de Mello6 e o Ministro Sepúlveda Pertence7).

Dois questionamentos fundamentais emergem da leitura cuidadosa do acórdão lavrado em decorrência do ajustado pela Corte Maior no RE n. 116.121:

  1. existe uma necessária relação de dependência do direito tributário para com os domínios do direito privado (institutos, conceitos e formas)?
  2. as transformações econômicas, sociais e tecnológicas afetam (ou atualizam) as categorias8 manuseadas para delimitar a tributação? Importa destacar, e é fácil de perceber ou aquilatar, a importância dos questionamentos e de suas respostas para além da temática específica da tributação da locação de bens móveis.

III AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO TRIBUTÁRIO E OS DEMAIS RAMOS DO DIREITO

Costuma-se afirmar com freqüência e considerável aceitação que o direito tributário é um direito de sobreposição. Nesse sentido, certas categorias científicas (institutos, conceitos e formas, notadamente) presentes nos vários ramos do direito, em especial no campo do direito privado, deveriam ser respeitados e aproveitados na seara tributária tal como conformados na sua “origem”9.

Impõe-se, no entanto, afirmar e reafirmar que não se coaduna com a ordem jurídica brasileira, assim como atualmente assentada, a aludida premissa do direito de sobreposição. Nessa linha, podem ser identificados três equívocos fundamentais na formulação. São eles: a) desconsideração de importantíssimas normas jurídicas integrantes do sistema constitucionaltributário; b) interpretação incorreta de normas definidoras de diretrizes interpretativas inscritas no Código Tributário Nacional e c) desprezo pelo difícil, e ao mesmo tempo rico, processo de construção e assimilação de categorias a serem utilizados pelas diversas normas jurídicas para representar parcelas da realidade de interesse da tributação.

O primeiro equívoco destacado decorre do “esquecimento” do disposto no art. 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição10. Na norma em questão, o constituinte autorizou expressamente o legislador tributário a definir os fatos geradores e bases de cálculo dos impostos. Por conseguinte, o legislador tributário não está obrigado a buscar nos domínios do direito privado ou de qualquer outro ramo do direito os conteúdos das categorias necessárias para operacionalizar a tributação pelos impostos e, por extensão, pelos demais tributos previstos na Constituição. Um importantíssimo e emblemático exemplo do exercício dessa possibilidade pode ser observado nas definições de renda e proventos de qualquer natureza presentes no art. 43 do Código Tributário Nacional11.

O segundo equívoco envolve certas interpretações dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional. O aludido art. 10912 fixa uma diretriz hermenêutica relacionada com a pesquisa dos conteúdos dos conceitos, ou seja, com a busca da abrangência desses últimos. A norma estabelece um balizamento para o desenvolvimento, e não para a conclusão, do processo de interpretação. Assim, em função desse comando legal, o legislador tributário não se encontra impedido de construir categorias (conceitos, definições, institutos ou formas) paralelas e especiais em relação aos já existentes no seio do direito privado. Ademais, a leitura inversa do art. 110 do Código Tributário Nacional confirma essa última afirmação. Ali está dito que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados constitucionalmente para a conformação de competências impositivas. Portanto, se os institutos, conceitos e formas não são de direito privado13 ou, sendo de direito privado, não são delimitadores constitucionais de competência tributária, podem ser alterados pelo legislador tributário.

Registre-se que o art. 110 do Código Tributário Nacional viabiliza interpretações particularmente extremadas, denunciando uma visão muito particular das relações entre o direito privado e o direito tributário. Já se afirmou que os conteúdos dos conceitos manuseados no campo tributário “são aqueles que estavam contidos na lei privada em vigor na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988”14. Tal premissa não pode vingar. Não é esse o sentido ou o propósito do comando veiculado pelo art. 110 do Código Tributário Nacional. Pretende-se, com aquele dispositivo, limitar a ação do legislador tributário, afastando a manipulação artificial ou arbitrária de categorias jurídico-científicas com a finalidade de alargar indevidamente o espaço da tributação. O preceito em destaque não está vocacionado para barrar as repercussões legislativas, inclusive tributárias, das mutações sociais, econômicas, tecnológicas e congêneres, que independem da “vontade” do legislador e são dados ou elementos inexoravelmente postos pela realidade subjacente ao fenômeno tributário.

O terceiro dos vícios cogitados consiste numa peculiar forma de se encarar e trabalhar com as categorias jurídico-científicas representativas da realidade de interesse da tributação. O legislador tributário pode se utilizar de conceitos, institutos ou formas (categorias) denotativos de faixas da realidade com conteúdo econômico desenvolvidos no âmbito do direito privado. Nessas hipóteses, tais categorias não precisam ser reconstruídas no espaço tributário, porque já consolidados no direito privado mais antigo, de maturação mais longa. Assim, tais categorias serão tomadas com os contornos presentes no campo do direito privado. Ocorre que o legislador tributário pode reformular conceitos de direito privado15, não havendo óbice jurídico para tal labor. Ao contrário, esse rumo está expressamente autorizado pela Constituição, particularmente na dicção do art. 146, inciso III, alínea “a”. Tais categorias serão aplicadas, a partir do conhecido e festejado critério da especialidade, paralelamente às de direito privado, observando os limites já mencionados16.


Diante do que foi apresentado, é perfeitamente viável afirmar que as categorias jurídico-científicas, representativas de parcelas da realidade e utilizadas na operacionalização da tributação, não estão necessariamente adstritas aos processos de formação oriundos de outros quadrantes do direito, particularmente do direito privado17.

Portanto, sustenta-se18 ter o Supremo Tribunal Federal militado em profundo equívoco técnico-científico quando fincou seu entendimento acerca da abrangência da noção de serviço, para efeitos da tributação pelo imposto sobre serviços (ISS) da locação de bens móveis, em um suposto e necessário transplante das concepções civilistas para o campo tributário.

IV A NOÇÃO CONSTITUCIONAL DE SERVIÇO COMO TIPO

IV.1 Do conceito ao tipo

O principal condicionamento da tributação no Brasil, na perspectiva de quais fatos com densidade econômica serão alcançados pelas exigências fiscais, consiste na delimitação constitucional dos âmbitos materiais de incidência, a serem observados por ocasião da instituição dos principais tributos.

Com efeito, a Constituição, com sua natural força de conformação de toda a ordem jurídica a ela subordinada, expressamente aponta faixas da realidade, com significado econômico, sobre as quais pode ser manejada a criação ou instituição das exigências pecuniárias de natureza tributária. O Texto Maior aponta ou identifica as tais faixas ou parcelas da realidade econômica por intermédio de termos ou vocábulos especiais. Eis alguns dos mais relevantes: importação, exportação, renda, proventos, produtos, mercadorias, serviços, faturamento, receita, propriedade, crédito, câmbio, seguro, títulos ou valores mobiliários, doação, folha de salários, rendimentos e lucro.

Esses termos ou vocábulos especiais funcionam, como antes destacado, como categorias jurídico-científicas representativas da realidade e essenciais para a operacionalização da tributação. Normalmente, até mesmo por influência do art. 109 do Código Tributário Nacional, são caracterizados como conceitos (institutos ou formas).

Ocorre que o conceito é uma categoria científica com sentido bem definido e viabilizador de uma concepção singular do fenômeno da tributação 19 20 21. O conceito, também denominado, e com propriedade, de conceito classificatório ou de classe, pretende capturar os componentes da realidade mediante a identificação de suas características ou traços essenciais. Assim, presentes as características ou traços definidos no conceito, têm-se o objeto ou dado da realidade conceituado. Os conceitos, como é fácil de perceber, viabilizam, por excelência, o raciocínio pela via da subsunção (do “tudo ou nada”). De duas uma: ou se está diante do objeto conceituado (por conta da presença das características fixamente enumeradas) ou não se trata daquela “coisa” conceituada22.

A utilização dos conceitos, notadamente de forma exagerada e acrítica, enseja conseqüências profundamente negativas. Afinal, o conceito cristaliza ou “eterniza” determinados traços ou características frente a uma realidade econômica, social e tecnológica em contínua mutação. No campo jurídico, particularmente no tributário, um conceito, construído num determinado contexto histórico, permite sua projeção (eventualmente indevida) para aplicação em outras circunstâncias históricas completamente distintas, quando suprimidas ou acrescentadas características ao dado ou objeto da realidade a ser representado.

Por conseguinte, o conceito (o conceito classificatório ou de classe) não se mostra como a categoria jurídico-científica adequada para representar as parcelas da realidade de interesse da tributação inscritas no Texto Maior. São duas as razões básicas para tal afirmação. A primeira, consiste no fato de que o texto constitucional está voltado naturalmente para capturar as realidades econômicas mutáveis. A Constituição não se pretende uma “trava” à consecução de seus próprios objetivos, somente realizáveis com o adequado financiamento, via tributação, das despesas necessárias. A segunda razão, aponta para a conformação da tributação necessariamente sob os imperativos da capacidade contributiva dos cidadãos. Nesse sentido, as manifestações de capacidade contributiva sob novas formas de desenvolvimento de atividades econômicas tradicionais não podem, nem devem, escapar da tributação23.

Portanto, a tributação atual ou moderna, mergulhada numa realidade econômica e social complexa e em frenética mutação, precisa recorrer às várias categorias jurídico-científicas possíveis (e disponíveis): conceitos (determinados e indeterminados), cláusulas gerais e tipos. Somente a riqueza de todas as categorias mencionadas pode dar conta da apreensão adequada da realidade para fins de tributação. Limitar o fenômeno tributário aos conceitos significa condenar a atividade tributária a uma miopia inaceitável, considerando a necessidade de financiamento das despesas públicas por intermédio de novas manifestações econômicas que demonstram, de forma inequívoca, capacidade contributiva.

Por outro lado, o tipo mostra-se como “um sistema elástico de características”, marcado pela abertura, pela gradação, pela flexibilidade e facilitador ou viabilizador da apreensão dos fenômenos econômicos mais importantes para a tributação, justamente aqueles descritos pelo constituinte. Nesse rumo, o tipo funciona como uma categoria alternativa ao conceito e visceralmente mais adequada para lidar com as flutuações intensas da realidade econômica 24 25 26. Portanto, os vocábulos constitucionais delimitadores da realidade econômica tributável são, em verdade, tipos.

Erroneamente, o tipo foi introduzido no direito tributário brasileiro com o sentido de algo “fechado” ou “hermético”. Daí surgiram as expressões “tipo tributário” e “princípio da tipicidade fechada ou cerrada”. Em verdade, o “tipo fechado” mostra-se como uma contradição em termos 27 28. Se é tipo é aberto. Se é fechado é conceito. Não existe o “tipo fechado”, assim como não existem o “frio quente” ou o “branco preto”.

Sintomaticamente, constatam-se inúmeras e crescentes reflexões jurídico-tributárias voltadas para colher da realidade econômico-social de fundo, embora sem o recurso expresso à idéia de tipo, a extensão, em cada momento histórico, dos termos manuseados pelo constituinte29. Mantémse, assim, o diálogo dialético da Constituição com a realidade social. Esse diálogo, aliás, é uma das essências e sentidos da Constituição. O Texto Maior decididamente não pode operacionalizar o direito divorciado da realidade econômico-social e de sua evolução.

IV.2 O serviç o como tipo constitucional-tributário

Entre os vários tipos constitucionais-tributários, o serviço aparece como um dos mais ricos e complexos. Justamente porque as mudanças no campo econômico produziram um considerável alargamento do que se entende por serviço, adotada como ponto de partida a idéia de serviço como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”30.

O sentido do vocábulo absorveu de tal forma a complexidade da realidade econômica e a representação de uma gama tão ampla de atividades que a famosa revista The Economist chegou a consignar serviço como “qualquer coisa vendida que não cai em seus pés”31.

Observa-se, ademais, que no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços (AGCS ou GATS, na sigla em inglês) houve uma deliberada esquiva de se definir, na atualidade, o que significa, com razoável nível de precisão, a idéia de serviço. O caminho trilhado buscou uma delimitação dos modos de prestação de serviços (em quatro grandes blocos).

A ampliação da idéia de serviço para além de uma “obrigação de fazer” ou da “energia humana voltada para determinado fim” não é arbitrária. Corresponde o aludido alargamento a um fenômeno presente na realidade sócio-econômica em contínua evolução, perfeitamente capturado pela idéia de tipo. Por outro lado, tal amplitude está consagrada na ordem jurídica brasileira pelo menos no Código de Defesa do Consumidor32 e na Lei de Licitações e Contratos Administrativos33. Nesses diplomas legais, o sentido de serviço gravita em torno das idéias de atividade e de utilidade dessa última resultante. Na própria Constituição observa-se a definição de que a soma das atividades de venda de mercadorias e de serviços abarca todos os bens ou “coisas” oferecidas no mercado34, surgindo daí uma noção extremamente ampla, mas não arbitrária, de serviço.

A noção em questão, vista como tipo, pode ser atualmente enunciada, somente para efeitos práticos, como “a realização de atividade econômica voltada para produzir alguma utilidade para terceiro”. Assim, não escapa da caracterização como serviço a locação de bens móveis.

Registre-se, ademais, que o termo serviço foi incorporado na ordem jurídica brasileira para retratar, de forma ampla, os negócios com bens imateriais. Como que numa antevisão da crescente complexidade do setor de serviços, a história da introdução do imposto sobre serviços (ISS) no Brasil demonstra claramente a pretensão de gravar globalmente os negócios jurídicos voltados para a circulação de bens imateriais.

Com efeito, na maioria dos países existe um só tributo (normalmente imposto) que incide sobre a venda de bens (materiais – mercadorias ou imateriais – serviços). No Brasil, como exceção, a circulação de bens foi apartada em dois tributos: o antigo imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM) e o imposto sobre serviços (ISS). O primeiro foi atribuído aos Estados e o segundo aos Municípios. A separação realizada no Brasil buscou tão-somente contemplar os vários entes da Federação com tributos próprios, concorrendo para a autonomia financeira dos mesmos. Não existia a menor pretensão de deixar lacunas entre o antigo ICM e o ISS com a circulação, comércio ou venda de atividades econômicas não abrangidas por nenhum dos dois tributos35.


A cláusula constitucional “de qualquer natureza”, presente no art. 156, inciso III36, aponta no sentido antes destacado. Busca, inequivocamente, flagrar as mutações substanciais no sentido do que entende ou designa por serviço. O constituinte ao utilizar a expressão destacada já sinalizava para uma compreensão acerca da fluidez e mutabilidade da noção de serviço. Ademais, a expressão não está relacionada com a lista de serviços, eis que esse papel, de especificar os serviços tributáveis, foi expressamente conferido à lei complementar de caráter nacional.

V CONCLUSÕES

Ao editar a Súmula Vinculante n. 31 o Supremo Tribunal Federal insistiu em profundo e lamentável equívoco, já manifestado por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121. Com efeito, adotou uma noção historicamente superada e estática de serviço, identificado tãosomente como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”. Ademais, buscou, também de forma reprovável, transportar para a Constituição e para o direito tributário um dos sentidos (mais restritivo) da noção de serviço, considerando de forma indevida uma suposta obrigatoriedade do universo tributário acolher as construções do direito privado sem modificações.

O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, notadamente no tempo, de notas e características inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, justamente uma categoria aberta para apreender em sua descrição os movimentos e transformações da realidade econômico-social.

Em suma, o termo serviço, assim como tantos outros lançados no Texto Maior com o objetivo de recortar partes da realidade econômica a serem operacionalizados pela tributação, aparece como um tipo moldado pelos imperativos das mutações observadas do contexto histórico subjacente.

Por conseguinte, a locação de bens móveis enquadra-se no tipo constitucional-tributário demarcado pelo termo ou vocábulo serviço e, na medida da previsão em lei complementar específica, pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

Essa conclusão aponta para a necessidade, mais cedo ou mais tarde, de revisão ou cancelamento da Súmula Vinculante n. 31, nos termos do art. 103-A da Constituição37.

Notas

1 Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, “ao longo das últimas décadas, o setor de serviços vem apresentando maior dinamismo e as maiores taxas de crescimento na economia global. Em termos gerais, representa mais de 60% da riqueza mundial, empregando ao menos um terço da mão-de-obra do planeta e respondendo por mais de 20% do comércio internacional”. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272. Acesso em: 30 out. 2010.
2 Os demais precedentes são meras reproduções, na voz de cada relator, do julgado original.
3 “TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional”.
4 “O precedente do Supremo Tribunal Federal que melhor elucida essa orientação é relativo justamente à incidência do ISS sobre a locação de guindastes, que veio a representar uma mudança na sua jurisprudência em relação à posição acolhida quando do julgamento do RE n. 112.947-6. Após trinta anos de cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, foi reconhecida a inconstitucionalidade de tal prática ao ser julgado o RE n. 116.121-3, acolhendo-se a tese do ‘império do Direito Privado’”. VELLOSO (2005:81).Art. 110 do Código Tributário Nacional: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
5 “Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento”.
6 “… eis que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer … Cabe advertir, neste ponto, que a locação de bens móveis não se identifica, e nem se qualifica, para efeitos constitucionais, como serviço, pois esse negócio jurídico – considerados os elementos essenciais que lhe compõem a estrutura material – não envolve a prática de atos que consubstanciam um praestare ou um facere”.
7 “Não me convenci, data venia, de que o contrato em discussão, o contrato de locação de máquinas, de guindastes, contenha obrigação de fazer”.
8 O termo “categoria” será utilizado para designar as várias fórmulas lingüísticas, com conformações científico-metodológicas diversas, representativas da realidade e fundamentais para a operacionalização da tributação (conceitos, tipos, institutos, formas, noções, idéias, etc).
9 “Necessariamente, pelo princípio da capacidade contributiva, o direito tributário deve incidir sobre fatos com relevância econômica e, considerando que esses fatos já são juridicizados por outros ramos do direito (renda, mercadoria, faturamento, importação, transmissão, doação, etc), o direito tributário sempre incide sobre outras linguagens normativas. É o chamado direito de sobreposição, segunda a concepção clássica de Gian Antonio Michelli./Com exceção dos tributos vinculados, as hipóteses de normas tributárias têm por conteúdo situações previamente reguladas pelo direito privado, que abordam atividades economicamente apreciáveis realizadas por sujeitos de direito privado, que, sob a óptica da tributação, passam a ser contribuintes./O ISS, por sua vez, tem por base as obrigações de fazer, oriundas do direito privado, conforme veremos a seguir./[…] É tradicional a classificação civilista das obrigações, separando-as em obrigações de dar, de fazer e de não-fazer. Orlando Gomes afirma, inclusive, que são apenas esses três modos da conduta humana que podem se constituir objeto da obrigação./[…] A distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer é relevante para o ISS, pois este sendo um imposto que incide sobre ‘prestação de serviço’, pela própria definição só pode ter como base as obrigações de fazer”. CARVALHO (2008:639-640).
10 “Cabe à lei complementar: […] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
11 “O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”.
12 “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.
13 Esse dispositivo (o art. 110 do CTN) está impregnado da falsa concepção de que o direito privado é o berço de todo o direito e consegue construir, de forma global ou total, categorias representativas de toda a realidade a ser operacionalizada pelo direito.
14 “Isto é assim porque, se assim não fosse, uma simples alteração de lei ordinária federal sobre o direito privado poderia afetar competências tributárias que somente podem ser modificadas ou excluídas através de emenda constitucional. Por exemplo, qualquer nova definição de imóvel ou mercadoria, por lei ordinária federal voltada para as relações de direito privado, embora essa lei seja válida porque promulgada no exercício da competência da União para reger esse ramo do direito, poderia atingir indevidamente as competências tributárias dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, caso em que não teria extensão ao direito tributário por falecer tal competência àquele tipo de lei”. OLIVEIRA (2004:185).
15 Não custa registrar a possibilidade do legislador tributário construir o conteúdo de “noções” ou “idéias” inexistentes ou em processo de formação no direito privado ou em outros quadrantes do direito.
16 As considerações desse tópico aproveitam reflexões do autor presentes no artigo intitulado Aplicação no Direito Tributário da Desconsideração da Personalidade Jurídica prevista no Novo Código Civil.
17 “Não há um primado do direito privado, pois, sem dúvida, é viável que o Direito Tributário – e primordialmente o Direito Constitucional Tributário – adote conceitos próprios. A possibilidade de o Direito Tributário elaborar conceitos específicos decorre, em última análise, do fato de ser direito positivo. Seus preceitos, por inserirem normas jurídicas no ordenamento, são hábeis, como quaisquer enunciados jurídicos-positivos, a inovar no sistema jurídico, seja pela ab-rogação, derrogação e criação ab initio de normas. Os conceitos conotados por seus enunciados podem identificar-se com aqueles consagrados em dispositivos já vigentes. Mas essa realidade não é necessária. Nem mesmo a necessidade de se proceder à exegese rigorosamente jurídica do texto constitucional implica a inexorável incorporação, pela Constituição, de conceitos jurídicos infraconstitucionais, …” VELLOSO (2005:87).


18 Com todas as vênias de estilo devidas à Corte Suprema, que não é infalível. Lembra-se, aliás, a afirmação atribuída a Nelson Hungria no sentido de que o STF “apenas tem o privilégio de errar por último”.
19 “Esta obra apesar de afirmar que o pensamento tipológico não é adequado à Ciência do Direito Tributário e do Direito Penal, campos onde o espaço reservado aos tipos é muito pequeno, é revolucionária apenas no sentido técnico-formal./Do ponto de vista material, a tese não destrói, mas afirma clássicos princípios jurídicos, os quais, não obstante, são melhor atendidos por meio dos conceitos determinados do que por meio das estruturas flexíveis e fluídas do pensamento de ordem, que são os tipos. Ela não rompe com a Ciência do Direito, pois, retificadas as questões terminológicas entre tipo e conceito, reconhece a importância do pensamento lógico-sistemático”. DERZI (2007:32). 20 “No entanto, tal posicionamento [tipicidade fechada fundada em conceitos] acaba construindo uma idéia de legalidade que se sobrepõe à sua própria finalidade, que é garantir o sentido material do Estado de Direito”. RIBEIRO (2009:82).
21 “No entanto, se Misabel de Abreu Machado Derzi reconhece a inexistência de uma estrutura tipológica fechada, parte de outro pressuposto teórico para entronizar o valor segurança jurídica no Direito Tributário. Segundo a referida autora, neste ramo da ciência jurídica, assim como no Direito Penal, em razão da necessidade exacerbada de segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos classificatórios sobre a estrutura tipológica. Como se vê, o reconhecimento da inexistência do tipo fechado, o que, aliás, é feito com extrema competência, leva aos mesmos resultados encontrados pela teoria que o entronizou: o fechamento dos conceitos de direito utilizados pelo legislador tributário”. RIBEIRO (2009:83-84).
“A concepção de Misabel Derzi, do ponto de vista substancial, se aproxima da de Alberto Xavier, embora tenham esses autores desenvolvido argumentos diferentes. Misabel proclama que o tipo é aberto mas o expulsa, juntamente com o conceito indeterminado, do campo tributário, onde prevalece apenas o conceito determinado fechado, ou os converte em conceitos determinados. Xavier diz que o tipo é fechado e o assimila ao conceito determinado. O resultado é o mesmo: ambos engessam no conceito fechado a possibilidade de aplicação do direito tributário”. TORRES (2006:9).
22 “Só um conceito geral abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas ‘a, b, c’, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características ‘a, b e c’. Diz-se, então, que há subsunção. Para o conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: ‘cada X é A ou não-A’. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão ‘ou um, ou outro’, Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não”. DERZI (2007:52-53).
23 “A ideia de cidadania está vinculada a um conjunto de direitos e deveres de que gozam ou a que estão submetidos os indivíduos pertencentes a uma comunidade. Pressupõe a igualdade de todos os cidadãos perante tal estatuto, impondo o dever de contribuir para o suporte financeiro do Estado e o direito de participação política./Ao lado do reconhecimento da supremacia da liberdade e dos direitos fundamentais frente aos demais valores constitucionais, é de se reconhecer que todos os direitos têm custos públicos./O custo de um Estado que tem como premissa a liberdade e como valor fundamental a dignidade da pessoa humana deve ser suportado por todos os seus membros. Essa é a ideia de cidadania fiscal, que se materializa no dever fundamental de pagar impostos./O imposto é assim entendido como a contribuição indispensável dos membros da comunidade para o Estado, a fim de que este possa atingir os seus objetivos, constitucionalmente delineados”. CAMPOS (2009:28). O Procurador da Fazenda Nacional Gustavo Caldas escreve sob a influência direta e declarada do jurista português Casalta Nabais, notadamente na destacada obra O dever fundamental de pagar impostos.
24 “Em geral, aborda-se a oposição entre o conceito classificatório de classe e o moderno, de tipo. Enquanto o conceito classificatório é seletivo e rígido, excluindo ou incluindo o objetivo que, de acordo com suas propriedades, pertença ou não ao conjunto, o tipo é um conjunto não delimitado, fluido que não trabalha com a relação de exclusão ‘ou … ou’ mais sim com um ‘até um certo grau’ ou ‘mais ou menos’ “. DERZI (2007:44-45).
25 “Tipo é a ordenação dos dados concretos existentes na realidade segundo critérios de semelhança. Nele há abstração e concretude, pois é o encontrado assim na vida social como na norma jurídica. Eis alguns exemplos de tipo: empresa, empresário, trabalhador, indústria, poluidor. O que caracteriza o tipo ‘empresa’ é que nele se contêm todas as possibilidades de descrição de suas características, independentemente de tempo, lugar ou espécie de empresa. O tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta, com as suas conexões de sentido. Segue-se, daí, que a noção de tipo admite as dessemelhanças e as especificidades, desde que não se transformem em desigualdade ou anormalidade. Mas o tipo, embora obtido por indução a partir da realidade social, exibe também aspectos valorativos. O tipo, pela sua própria complexidade, é aberto, não sendo suscetível de definição, mas apenas de descrição. A utilização do tipo contribui para a simplificação do direito tributário. A noção de tipo é largamente empregada também nas ciências sociais: Max Weber utilizou o conceito de tipos ideais. Jung fez circular a idéia dos tipos psicológicos”. TORRES (2006:2-3).
26 “Por essas razões, a indeterminação da linguagem humana da qual se serve o Direito, sempre dotada de caráter plurissignificativo, bem como a necessidade de adequação da lei à realidade fática, cada vez mais surpreendente, imprevisível e inexplicável com base nas lições extraídas do passado, fazem com que o legislador, inclusive o tributário, privilegie a utilização de tipo em detrimento dos conceitos abstratos, cada vez menos capazes de estabelecer conexões de sentido com o mundo dos fatos”. RIBEIRO (2009:96).
27 “Por outro lado, a idéia de uma tipicidade fechada também encarna uma impropriedade metodológica, revelando uma contradição em termos. Senão vejamos. […] De fato, segundo o posicionamento adotado pelo citado autor alemão [Karl Larenz] nas últimas edições de sua obra clássica [Metodologia da Ciência do Direito], a estrutura tipológica é sempre aberta, ao contrário do conceito abstrato, que em situações ideais apresenta-se fechado”. RIBEIRO (2009:83).
28 “Há quem fale em tipos abertos ou fechados. O tipo fechado não se distingue do conceito classificatório, pois seus limites são definidos e suas notas rigidamente assentadas./No entanto, como nova metodologia jurídica, em sentido próprio, os tipos são abertos, necessariamente abertos, com a características que apontamos. Quando o direito ‘fecha’ o tipo, o que se dá é a sua cristalização em um conceito de classe./Neste contexto, a expressão ‘tipo fechado’ será uma contradição e uma impropriedade”. DERZI (2007:58).
29 O Ministro GILMAR MENDES, ao votar no RE n. 357.950, demonstra a plena licitude da determinação ou densificação das noções constitucionais mais gerais utilizadas no campo da tributação: “Porém, como o Texto constitucional, inevitavelmente, adota esses conceitos de uso comum, precisamos, de fato, ter uma abertura para uma compreensão mais ampla desses institutos, sob pena de, em algum momento, incidirmos naquilo que muito se censura, de fazer-se a interpretação da Constituição de forma clara, segundo uma determinada lei ou determinada concepção dominante num dado momento histórico. […] Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição. Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade, […] As disposições legais a ela relativas têm, portanto, inconfundível caráter concretizador e interpretativo. E isto obviamente não significa a admissão de um poder legislativo ilimitado. Nesse processo de concretização ou realização, por certo serão admitidas tão-somente normas que não desbordem os múltiplos significados admitidos pelas normas constitucionais concretizadas”. No julgamento do HC n. 96.772, pelo Supremo Tribunal Federal, observa-se a manifestação, com feliz precisão, do Ministro CELSO DE MELLO no sentido da “legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea”.
30 O tributarista MARCO AURÉLIO GRECO aponta com propriedade o rumo dos debates e das considerações mais modernas acerca da idéia de “serviço”. Procura, o ilustre jurista, justamente afastar uma noção limitada e atrasada historicamente que restringe a noção de serviço a uma “obrigação de fazer” ou a uma “atividade humana em benefício alheio”. Eis as importantes palavras de MARCO AURÉLIO GRECO: “No passado recente, informado pela idéia de ‘causalidade’, um elemento fundamental para definir relevâncias era dado pela noção de atividade realizada. Daí apontarem-se tipos de atividades, suas características, qualidade etc., a partir das quis definiam-se os respectivos regimes e valores. À atividade ‘tal’ correspondia uma remuneração ‘qual’, certa atividade tinha valor maior ou menor do que outra atividade; maior a atividade, maior a remuneração; e assim por diante./ Esta visão levou à formulação da noção de serviço como um tipo de atividade que representaria determinado esforço humano exercido por alguém. A idéia de atividade é tão nítida a ponto de vivermos, no âmbito tributário, sob um regime de lista de atividades (‘serviços’). A lista é muito útil para identificar a matéria tributável e resolver eventuais conflitos de competência tributária, mas reafirma o critério básico, qual seja, apoiar-se na natureza de certas atividades. Neste contexto, a respectiva remuneração é tributariamente vista como a contraprestação da atividade exercida. Em suma, paga-se porque alguém ‘faz’ algo./O mundo moderno tem mostrado que a atividade não é mais o único elemento relevante para fins de definição dos valores das negociações realizadas. Se olhar do ângulo do produtor levou à identificação da atividade exercida como elemento relevante (inclusiva para fins de tributação), olhar do ângulo do cliente leva ao surgimento de uma outra figura que é a utilidade./Muito freqüentemente, as pessoas dispõem-se a pagar determinada remuneração não pela natureza ou dimensão da atividade exercida pela outra pessoa, mas, principalmente, pela utilidade que vão obter. O valor não está mais apenas na atividade do prestador, mas também na utilidade obtida pelo cliente./Diante desta realidade, utilizar o conceito de serviço (como expressivo de uma atividade) para fins de qualificação da matéria tributável é também deixar à margem da tributação significativa parcela da atividade econômica exercida no mercado e que é formada pelo fornecimento de utilidades, no mais das vezes imateriais e que resultam de atividades novas, não alcançadas pelo conceito tradicionalmente utilizado./ Isto mostra a insuficiência do conceito tradicional de serviço para alcançar tributariamente estas novas realidades em que, muitas vezes, o beneficiário não está buscando a atividade do outro, mas sim a utilidade que irá obter.” GRECO (2000:96-97).


31 Referência localizada em página do site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272 . Acesso em: 30 out. 2010.
32 “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3o., parágrafo segundo, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990).
33 “Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;” (art. 6o., inciso II, da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993).
34 Eis um exemplo emblemático: “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:” (art. 173, parágrafo primeiro).
35 Nesse sentido, as palavras de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES são elucidativas: “O ISSQN onera a circulação de bens que não são mercadorias, isso é, que não sejam bens materiais ou incorpóreos. O imposto municipal onera a circulação de bens materiais, de bens incorpóreos, considerandos serviços. Recai, assim o ISSQN, sobre a prestação, a título oneroso, realizada por uma pessoa em favor imposto oneradas pelo imposto são representadas como de venda de bens imateriais (fornecimento de trabalho a terceiros, locação de bens móveis e cessão de direitos)”. MORAES (1993:285-286). Não é outra a lição de CELSO RIBEIRO BASTOS: “Esses serviços devem ser entendidos no sentido econômico, ou seja, bens imateriais que se encontram na circulação econômica, em oposição aos bens materiais ou corpóreos. Abrangem, assim, além do fornecimento de trabalho, a locação de bens móveis, hospedagem e guarda de bens”. BASTOS (1991:271).
36 “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.
37 “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

Referências Bibliográficas

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Incentivos fiscais em tempos de crise: Impactos econômicos e reflexos financeiros

Autor: Matheus Carneiro Assunção, Bacharel em Direito pela UFPE, Bacharel em Administração pela UPE, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV, Pós-graduado em Direito Tributário pela USP, Mestrando na área de Direito Financeiro pela USP, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Procurador da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O presente artigo busca analisar os reflexos econômicos e financeiros dos incentivos fiscais concedidos pelo Governo Federal durante a crise internacional de 2008, bem como os impactos de tais medidas no federalismo fiscal brasileiro. O estudo também procura identificar a ligação entre os objetivos constitucionais que autorizam a intervenção do Estado sobre o domínio econômico e as desonerações tributárias realizadas no ápice dos efeitos da crise, quando ondas de incertezas no mundo geraram fortes retrações na produção e na demanda doméstica. Por fim, pretende evidenciar os reflexos das medidas anticíclicas adotadas entre 2008 e 2009 no sistema de repartição de receitas tributárias, especialmente os desequilíbrios nas finanças públicas de entes federados.

1 Introdução

A crise financeira desencadeada em 2008 empurrou os mercados globalizados em queda livre1. Atirado no mar de tormentas do capitalismo contemporâneo, o Brasil precisou adotar medidas céleres para conter os efeitos danosos da retração econômica, através da implementação de políticas anticíclicas. Nesse sentido, foram concedidos diversos incentivos fiscais pelo Governo Federal, no fito de fomentar a reconstrução das demandas domésticas negativamente afetadas, de maneira a garantir a continuidade do desenvolvimento nacional. A intervenção estatal, mais do que necessária, revelou-se vital.

Todavia, em função do modelo de repartição de receitas tributárias previsto na Constituição de 1988, as desonerações fiscais utilizadas para conter a crise acabaram produzindo reflexos financeiros negativos para os entes federados, comprometendo o equilíbrio de contas públicas e a continuidade de programas sociais, especialmente nos pequenos municípios.

O presente estudo busca analisar, de um lado, os impactos econômicos dos incentivos fiscais editados no contexto da crise internacional, identificando em que compasso podem ser empregados para promover o desenvolvimento nacional, bem como os parâmetros jurídicos que permitem o seu controle. De outro lado, pretende cotejar os reflexos financeiros dessas medidas no arranjo de partilhas característico do federalismo fiscal brasileiro.

Inevitavelmente, toda crise chega ao fim, mas não sem deixar marcas, tanto positivas quanto negativas. Algumas são claramente perceptíveis; outras exigem exames com lupas de maior alcance, não apenas focadas no campo da visão tributária, mas também econômica e financeira. Procuraremos, nas linhas seguintes, examinar algumas dessas marcas, com lentes multifocais.

2 Intervenção do Estado sobre o domínio econômico

O intervencionismo estatal é fenômeno concernente ao exercício de uma ação sistemática sobre a economia, “estabelecendo-se estreita correlação entre o subsistema político e o econômico, na medida em que se exige da economia uma otimização de resultados e do Estado a realização da ordem jurídica como ordem do bem-estar social”2. Pode ocorrer de forma direta ou indireta. Na intervenção direta, o Estado assume o exercício de atividades econômicas. Na indireta, age através da direção ou controle normativo3. A modalidade indireta, assim, configura uma “intervenção exterior, de enquadramento e de orientação que se manifesta em estímulos ou limitações, de vária ordem, à actividade das empresas”.4

Ensina Eros Roberto Grau5 que a intervenção do Estado pode se dar: (i) por absorção ou participação; (ii) por direção; (iii) por indução. A primeira hipótese representa uma intervenção no domínio econômico, ou seja, no âmbito de atividades econômicas em sentido estrito, atuando o Estado em regime de monopólio (intervenção por absorção) ou de competição (intervenção por participação). As duas outras hipóteses consubstanciam modalidades de intervenção sobre o domínio econômico, desenvolvendo o Estado o papel de regulador.

Através das normas de indução, o Estado “privilegia determinadas atividades em detrimento de outras, orientando os agentes econômicos no sentido de adotar aquelas opções que se tornarem economicamente mais vantajosas”6, mas não fixa sanções pela não-adesão à hipótese estimulada. Entretanto, o incentivo ao comportamento sugerido tende a ser bastante atrativo, na medida em que gera posições de vantagem no mercado para os agentes econômicos alcançados pelo comando normativo, o qual pode prever diferentes espécies e níveis de estímulos.

É no campo da intervenção por indução que o Estado pode se valer da política fiscal para alcançar finalidades específicas, “com a concessão de incentivos fiscais setoriais ou regionais, utilizando a maior ou menor incidência de carga tributária como mecanismo redutor de custos e estimulador de atividades econômicas”.7 Tais finalidades, porém, devem ter amparo na Constituição. Afinal, são nos valores por ela albergados que encontra ressonância a própria justificativa da intervenção estatal.

Vale ressaltar que a Constituição de 1988 prevê, em seu art. 170, que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social8. A ação do Estado sobre o domínio econômico, com efeito, não poderá olvidar tais fundamentos, e deverá pautar-se nos princípios e objetivos fixados no texto constitucional, dentre os quais a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inciso VII), a busca do pleno emprego (art. 170, inciso VIII) e a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II).

Embora referidos princípios e objetivos sejam dotados de elevado grau de abstração e generalidade, o que dificulta o controle finalístico da medida interventiva, constituem cânones a subsidiar o intérprete. Intervenções estatais despropositadas, em afronta à igualdade ou à proporcionalidade, não podem ser toleradas no contexto de um Estado Democrático e Social de Direito.

A face geralmente oculta da tributação – a desoneração fiscal – pode ser um eficiente instrumento de intervenção indutora do Estado, com vistas à promoção do desenvolvimento econômico. Mas cabe ressalvar: o uso desse instrumento deve atentar para as molduras traçadas pela Constituição, uma vez que a eficiência econômica, por si mesma, não legitima as ações estatais9.

3 Extrafiscalidade

Os tributos, além de terem a função arrecadatória de receitas para a manutenção do Estado, apresentam funções redistributiva e regulatória10. Podem, assim, oportunizar desde a redução de desigualdades sociais à regulação de mercados. Nesse sentido, a principal finalidade de muitos tributos “não será a de instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada”11.

Por meio da tributação (e da desoneração), possibilita-se ao Estado intervir sobre o domínio econômico de forma indireta, induzindo a adoção de determinados comportamentos. É a vertente da extrafiscalidade. Nas palavras de Geraldo Ataliba, a extrafiscalidade se configura pelo “emprego deliberado do instrumento tributário para finalidades não financeiras, mas regulatórias de comportamentos sociais, em matéria econômica, social e política”.12 Segue esta mesma linha o pensamento de Raimundo Bezerra Falcão, para quem “a extrafiscalidade é atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para o seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou re-ordenar a economia e as relações sociais”.13

Explica José Casalta Nabais14 que a extrafiscalidade pode ser traduzida no conjunto de normas que tem por finalidade dominante a consecução de resultados econômicos ou sociais, por meio da utilização do instrumento fiscal, e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas. De acordo com os ensinamentos de Roque Antonio Carrazza, a extrafiscalidade se caracteriza “quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir contribuintes a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”.15

As exações e desonerações tributárias, desse modo, se colocam como ferramentas para o incentivo ou coibição de condutas por parte dos destinatários normativos, contribuindo para a realização – ou até realizando diretamente – finalidades propugnadas pela Constituição Federal.16 Quando as exonerações são utilizadas para incentivar condutas que promovem a efetivação de objetivos constitucionais, com impactos no seio social, justifica-se a extrafiscalidade17. São esses objetivos e finalidades, em síntese, que legitimam a intervenção estatal.


Nota-se, porém, que o conceito de extrafiscalidade está relacionado a características não-arrecadatórias, isto é, não-fiscais, dos tributos. O próprio prefixo “extra” é indicativo dessa alusão “para além”, ou seja, de exceção ao padrão da simples fiscalidade. A distinção entre fiscalidade de extrafiscalidade, neste compasso, repousaria na finalidade da norma tributária. Tributos de cunho fiscal seriam instrumentos de arrrecadação, enquanto tributos extrafiscais seriam preponderantemente mecanismos de intervenção na ordem econômica e social18.

Todavia, conforme adverte Alfredo Augusto Becker19, na construção dos tributos não se ignora o finalismo extrafiscal, nem se esquece o fiscal, pois ambos coexistem: há apenas maior ou menor prevalência deste ou daquele finalismo. A presença de uma dessas finalidades não exclui necessariamente a outra. Mesmo tributos de caráter eminentemente arrecadatório, como o Imposto sobre a Renda, podem ser alterados com finalidades extrafiscais.

Com base na lição de Klaus Vogel, que identifica nas normas tributárias a função de distribuir a carga tributária (conforme critérios de justiça distributiva), a função indutora e a função simplificadora, Luís Eduardo Schoueri defende ser a extrafiscalidade gênero, do qual seriam espécie as normas tributárias indutoras20. Tais normas visam a alcançar determinadas finalidades, demandando do intérprete o cotejamento de elementos extratextuais, como o contexto histórico e econômico em que editadas. Daí a pertinência do método teleológico.

O método teleológico tem por escopo “apanhar a função de cada dispositivo legal dentro da estrutura da ordem jurídico-tributária e em seu relacionamento com as demais partes da ordem jurídica”21. Essa forma de interpretar o Direito parte da premissa de que é sempre possível atribuir um dado propósito às normas. Seu movimento interpretativo, conforme explica Tercio Sampaio Ferraz Jr., “parte das conseqüências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema”22. Nesse giro, considerações econômicas podem ser levantadas em sustentação do alcance de determinada finalidade pela norma jurídica tributária.

Com efeito, é possível afirmar que finalidades inerentes à estrutura de normas tributárias indutoras formam um substrato axiológico que não se pode ignorar. A circunstância de carecerem de positivação expressa não deve conduzir ao absurdo de negá-las23. Cabe ao intérprete avaliar, com base no método teleológico, a compatibilidade entre tais finalidades e o sistema constitucional.

4 Conceito, modalidades e efeitos dos Incentivos Fiscais

O Decreto n. 2.543A, de 05/01/1912, que estabelecia “medidas destinadas a facilitar e desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da maniçoba e da mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraída dessas árvores”, prevendo a isenção de impostos de importação, prêmios para aqueles que fizessem plantações regulares e inteiramente novas, além de outros incentivos, talvez tenha sido a experiência pioneira em da instituição de medidas de intervenção por indução no Brasil24. Já nesse momento se percebe a tendência de utilização de incentivos fiscais para o alcance de objetivos econômicos.

Desde tal antecedente histórico até os dias atuais, foram inúmeros os incentivos fiscais criados para viabilizar intervenções sobre o domínio econômico. Mas o que caracteriza esses instrumentos? Qual, afinal, a ideia por trás dos incentivos fiscais?

Numa concepção ampla, incentivos fiscais são medidas que estimulam a realização de determinada conduta25. Nesse sentido, “a concessão de incentivos fiscais se insere como instrumento de intervenção no domínio econômico a fim de que se possam concretizar vetores e valores norteadores do Estado”26.

De forma mais restritiva, parcela da doutrina entende que os incentivos constituem “medidas fiscais que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, aplicadas pelo Governo Central com a finalidade de desenvolver economicamente uma determinada região, ou um determinado setor de atividade”27. Seriam, portanto, incentivos fiscais “todas as normas que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, com a finalidade de estimular o desenvolvimento econômico de determinado setor de atividade ou região do país”28.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal seguiu esse conceito ligado à ideia de exclusão do crédito tributário, no julgamento dos Recursos Extraordinários n. 577.348 e 561.485, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandoski, o qual asseverou em seu voto condutor que “incentivos ou estímulos fiscais são todas as normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário”29.

Entretanto, não são apenas os casos de exclusão do crédito tributário30 que podem configurar incentivos fiscais. O conceito de incentivos fiscais abrange também outras formas de desoneração, como a redução de alíquotas ou mesmo a postergação do prazo de recolhimento de determinada exação.

A técnica da “alíquota zero” é ontologicamente diversa da isenção, e também se insere na categoria dos incentivos fiscais. Ao se estabelecer a alíquota de 0%, ocorre a nulificação do montante devido a título de tributo, em virtude de uma operação matemática de multiplicação. Isso não significa que o produto seja isento, mas apenas que sua alíquota foi fixada em valor nulificante. O resultado da conta, de qualquer modo, é notoriamente um incentivo.

Conforme definição de Rubens Gomes de Souza, um dos idealizadores do Código Tributário Nacional – CTN, a isenção é “favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido”31. Pressupõe, portanto, a existência de um “tributo devido”, de acordo com a lógica que guiou a redação do art. 175 do CTN.

Com a aplicação de alíquota zero, sequer chega a existir tributo devido, pois o valor resultante da incidência tributária é nulo. Na prática, o resultado financeiro é equivalente a uma isenção, porém as premissas teóricas são distintas. E é precisamente essa distinção que assegura a inaplicabilidade das restrições fixadas no art. 150, §6º, da Constituição Federal32 nos casos de alterações, pelo Poder Executivo, das alíquotas do Imposto de Importação, do Imposto de Exportação, do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, e do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos e Valores Mobiliários – IOF, com fundamento no art. 153, §1º, da Lei Maior33.

Enquanto a outorga de isenção de referidos tributos depende de lei específica, a alteração de alíquotas pode ser realizada por simples decreto do Poder Executivo, permitindo uma maior flexibilidade e agilidade normativa em matéria de regulação econômica através de políticas fiscais. Nesse mesmo viés, o art. 14, §3º, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal, exclui alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição da obrigatoriedade de estimativa prévia do respectivo impacto orçamentário-financeiro.

Tampouco se pode enquadrar a concessão de créditos tributários ou diferimentos de prazos para recolhimento na noção de “exclusão” de crédito. No entanto, é inegável que esses estímulos se amoldam à ideia de incentivo fiscal. Assim como ocorre com a redução da base de cálculo ou a concessão de isenção, o mecanismo de creditamentos gera para o particular, ao final, um saldo menor de despesas com o pagamento de obrigações tributárias. O adiamento do prazo para adimplemento de tais obrigações (moratória) também é uma espécie de vantagem operada no lado da arrecadação, pois o custo da postergação (juros e correção monetária) é assumido pelo Estado. Da mesma forma, anistias (perdão legal de infrações) e remissões34 (dispensa do pagamento de débitos tributários) podem ser adotados como espécies de incentivos fiscais.

Nessa perspectiva, pode ser considerado incentivo fiscal qualquer instrumento, de caráter tributário ou financeiro, que conceda a particulares vantagens passíveis de expressão em pecúnia, com o objetivo de realizar finalidades constitucionalmente previstas, através da intervenção estatal por indução. Essas vantagens podem operar subtrações ou exclusões no conteúdo de obrigações tributárias, ou mesmo adiar os prazos de adimplemento dessas obrigações. É possível, ainda, que autorizem transferências diretas destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, como acontece nas hipóteses previstas no art. 12, §3º, da Lei nº. 4.320/6435 (subvenções).

As subvenções e os subsídios, a nosso ver, configuram incentivos financeiros, implementados no lado das despesas do Estado, e não da arrecadação tributária. As demais hipóteses acima mencionadas se enquadram como incentivos tributários. De toda sorte, tais instrumentos (incentivos tributários e incentivos financeiros) são muitas vezes cambiáveis entre si, sendo um problema secundário a forma que adquirem. O que realmente acaba importando, seja para os agentes no mercado, seja para as finanças públicas, é a expressão pecuniária resultante do benefício, bem como sua eficiência para o sistema econômico36. Por representarem perda voluntária de receitas públicas, sua concessão deve estar devidamente lastreada em finalidades constitucionais, sob pena de malferir os próprios fundamentos da intervenção sobre a ordem econômica.

5 Parâmetros de controle

Incentivos fiscais se afirmam como instrumentos indutores de comportamentos voltados ao alcance de objetivos constitucionalmente estipulados como relevantes no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito. Nessa medida, sua utilização deve conciliar-se com a busca do bem comum, ditando-se por considerações de interesse coletivo, como a promoção do desenvolvimento econômico37.


O papel promocional dos incentivos fiscais, segundo a lição de Heleno Tôrres, consiste precisamente no “servir como medida para impulsionar ações ou corretivos de distorções do sistema econômico, visando a atingir certos benefícios, cujo alcance poderia ser tanto ou mais dispendioso, em vista de planejamentos públicos previamente motivados”A análise da legitimidade da concessão de benefícios fiscais fundamenta-se na verificação das finalidades da medida, e na sua pertinência com relação aos valores refletidos no texto constitucional. Será legítimo o incentivo fiscal concedido sob o amparo de desígnios constitucionais, como instrumento de promoção de finalidades relevantes à coletividade. Por via transversa, será ilegítimo (e, portanto, odioso) o benefício que se destinar a privilegiar pessoas ou situações específicas, em detrimento do princípio da igualdade; ou que não guarde pertinência com os objetivos constitucionais autorizadores da intervenção do Estado sobre a economia.

Com arrimo em Misabel Derzi, ressalta Schoueri38 que representam privilégios intoleráveis aqueles incentivos fiscais que, não fiscalizados em seus resultados, se estendem excessivamente no tempo, ou servem à concentração de renda ou proteção de grupos economicamente mais fortes, em detrimento da maioria da população, à qual são transferidos seus altos custos sociais.

O ordenamento jurídico, de fato, não se coaduna com privilégios odiosos. A concessão de incentivos fiscais que não sejam compatíveis com as finalidades constitucionais que fundamentam a intervenção estatal por indução é perfeitamente suscetível de controle jurisdicional. Contudo, quais parâmetros podem ser utilizados para avaliar essa compatibilidade?

A norma tributária indutora não pode ir além do ponto necessário para alcançar os objetivos constitucionais que a lastreiam. Tampouco deve ser editada sem prévia análise econômica da sua potencial eficiência na busca dos fins pretendidos pelo Estado. Precisa, enfim, observar a regra da proporcionalidade na intervenção econômica39.

O exame da proporcionalidade é realizado com base em três elementos, que se relacionam subsidiariamente entre si: (i) adequação; (ii) necessidade; (iii) proporcionalidade em sentido estrito. Um meio é considerado adequado quando for apto para promover o alcance de um determinado resultado40. Se implicar restrições a direitos fundamentais, somente será considerado necessário “caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”41. Por último, verifica-se a proporcionalidade em sentido estrito a partir de um juízo de ponderação acerca da intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da efetivação do direito que com ele colide, e que lastreia a adoção da medida42.

Além da proporcionalidade, a igualdade estrutural é também parâmetro para o controle da compatibilidade dos incentivos fiscais com o sistema constitucional. Para que haja observância ao princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal43), a medida de comparação eleita para realizar diferenciações deve manter relação fundada de pertinência com a finalidade que lastreia sua utilização, com base em suportes empíricos consideráveis44. Significa que se deve comprovar que o critério de distinção elegido fomenta a finalidade visada, em maior medida do que outros critérios possíveis. Essa finalidade precisa ser clara e coerente, já que é dever do Estado tratar a todos igualmente45, e apenas são admissíveis distinções se existirem motivos razoáveis.

Diante da necessidade de observância ao princípio da igualdade, o tratamento diferenciado em matéria tributária, decorrente da utilização de instrumentos extrafiscais, apenas será considerado legítimo quando: (i) não configurar irrazoável benefício individual; (ii) estiver ancorado em finalidade constitucional; (iii) decorrer de fator de discriminação e medida de comparação adequados.46

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é escassa no que tange a verificações aprofundadas dos critérios de controle das normas tributárias indutoras. Num primeiro momento, em precedentes da década de 1990, o STF evitou adentrar no mérito de medidas extrafiscais, afirmando serem atos discricionários do Poder Público. Na análise do Recurso Extraordinário n. 149.659, julgado em 1995, a Corte entendeu que a isenção “decorre do implemento de política fiscal e econômica, pelo Estado, tendo em vista determinado interesse social; envolve, assim, um juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo”47, não estando sujeita a controle material pelo Poder Judiciário. Nada obstante a premissa da discricionariedade do ato, já naquela época o Supremo Tribunal Federal consignou a necessidade de legitimação das isenções, que se destinam “a partir de critérios racionais, lógicos e impessoais estabelecidos de modo legítimo em norma legal, a implementar objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota da extrafiscalidade”48.

O STF também observou a via de mão dupla das normas tributárias indutoras, ou seja, a possibilidade de tais instrumentos serem utilizados para induzirem positiva ou negativamente comportamentos. Na hipótese de aumento de alíquotas de IPI sobre cigarros, destacou o Ministro Cezar Peluso a viabilidade da função inibidora, presente nos tributos de caráter extrafiscal proibitivo, refletido na elevada alíquota do IPI, com o nítido viés de desestímulo por indução na economia49.

De outra banda, examinando isenção fiscal de IPI sobre o açúcar de cana, concedida com base em critério espacial (art. 2º da Lei nº. 8.393/91), o STF reconheceu a ausência de conteúdo arbitrário na aludida norma tributária, afirmando que a sua concessão pela União Federal objetivou conferir efetividade ao art. 3º, incisos II e III, da Constituição da República. Ressaltou, ainda, que tal benefício pôs em relevo a função extrafiscal do IPI, “utilizado como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais”50. Tal precedente ilustra de forma clara a possibilidade de normas tributárias indutoras, como isenções sobre o IPI, serem utilizadas como instrumentos de promoção do desenvolvimento. O parâmetro de controle desses instrumentos acenado pelo STF seria a eventual arbitrariedade do Poder Público na sua concessão.

Todavia, pode ser tarefa extremamente difícil avaliar o grau de arbitrariedade de um benefício fiscal conjuntural. Por vezes, normas tributárias indutoras são empregadas com lastro em critérios de eficiência econômica, e não de justiça distributiva. Exemplos disto são os incentivos dirigidos a setores específicos durante a crise internacional, pautados em visões macroeconômicas sobre o comportamento da demanda doméstica e dos investimentos das empresas, e não na busca da equidade ou justiça social.

Tendo em vista que os incentivos fiscais se sujeitam rigorosamente aos ditames da Constituição, “devem ser concedidos a partir de análises técnicas da economia, que deve fornecer ao direito instrumentos úteis de busca das soluções para os problemas sociais”.51 Daí o papel de relevo do sistema econômico para o Direito Tributário. A partir de elementos objetivos da Economia é que se torna possível avaliar a adequação da intervenção indutora projetada, e consequentemente sua compatibilidade com o ordenamento constitucional. Essa adequação está relacionada à efetividade da medida jurídica, ou seja, à sua potencial capacidade de produzir os efeitos econômicos desejados. Quanto menor for a efetividade, menor o grau de adequação, e maior o desnível em relação ao objetivo constitucional que confere legitimidade à intervenção estatal. Caso esse grau de adequação revele assimetrias incompatíveis com os propósitos econômicos da intervenção, indicando a desproporção da medida adotada, a norma tributária indutora deverá ser retirada do sistema jurídico.

De modo semelhante, também deverá ser retirada do sistema a norma tributária indutora que viole o princípio da igualdade, concedendo benefício singular e irrazoável, ou elegendo medida de comparação ou fator de discriminação inadequados às finalidades constitucionais que fundamentam a indução econômica.

6 Impactos econômicos das medidas anticíclicas utilizadas pelo Governo

Em outubro de 2008, a economia americana desabou brutalmente, em virtude da total ruptura de confiança do mercado financeiro. Rapidamente, como um “efeito dominó”, o pânico se alastrou pelo mundo. Já não se podia acreditar na solidez dos bancos. Diante de um cenário de incertezas, o crédito tornou-se escasso, abalando o consumo.

Com a diminuição do consumo das famílias e dos investimentos das empresas, vigas estruturais do crescimento econômico, os números do Produto Interno Bruno – PIB são afetados, aumentando ainda mais o temor de recessões. Esse temor ocasiona efeitos prejudiciais na concessão de crédito. O resultado: menos dinheiro disponível, menos gastos, menos produção, menos crescimento, menos emprego. Os efeitos negativos de uma crise de confiança geram efeitos ainda mais negativos, e incertezas ainda maiores. É necessário agir rápido para evitar que esses efeitos não contaminem todos os setores da economia.

A redução da demanda doméstica tende a afetar bastante os setores industriais, principalmente o automotivo e o setor de bens de capital (relacionado a investimentos empresariais), os quais dependem diretamente da oferta de financiamentos. Em face do aumento do custo do crédito, provocado pelas incertezas da crise financeira, reduz-se o interesse pela aquisição de bens industrializados de alto valor, como os automóveis. De outra banda, empresas que dependem diretamente de financiamentos também passam a conter seus investimentos. A consequência é o abalo direto nos índices econômicos que medem o desempenho da indústria.


De fato, a crise intensificou a retração da indústria brasileira. No mês de dezembro de 2008, foi registrada desaceleração de 12,4% frente ao mês anterior, de acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sendo o pior resultado da série histórica, iniciada em 1991, influenciado principalmente pelo setor automobilístico, cuja produção caiu 39,7%52.

Diante desse cenário temeroso, medidas de estímulo à demanda interna são remédios indispensáveis. Dentre os instrumentos possíveis, a concessão de incentivos fiscais se destaca pela maleabilidade, celeridade e eficiência com que pode ser manejada pelo Poder Executivo, visando à retomada do crescimento econômico.

A possibilidade de estímulos na demanda agregada sob a forma de incentivos fiscais serem vistos como fonte de recuperação econômica foi analisada extensivamente por economistas norte-americanos após a crise de 1929. Pesquisas realizadas na década de 1940 já apontavam que a política fiscal revelou-se um efetivo instrumento de revigorar o fôlego da economia afetada pela crise53.

Uma das recomendações do Fundo Monetário Internacional, no tocante ao contorno da crise deflagrada em 2008, foi a promoção de medidas de estímulo fiscal até determinada data (como a redução de impostos sobre consumo durante um período certo)54. Instrumentos fiscais anticíclicos devem, a princípio, ter impacto transitório, sendo revistos tão logo a economia apresente os sinais de recuperação esperados.

Foi esse o principal caminho adotado pelo Brasil, por meio da redução das alíquotas de tributos com acento extrafiscal, notadamente o IPI e o IOF.

O IPI apresenta características que “o tornam adaptável às flutuações da política, das finanças, da conjuntura nacional e, até internacional”55. Pode ser manejado extrafiscalmente com bastante flexibilidade, em virtude previsão do art. 153, §1º, da Constituição.

Com o objetivo de aumentar a demanda interna os investimentos, evitando maiores retrações na produção industrial, as quais afetam o nível de emprego e as taxas de crescimento do país, foi promovida redução temporária (por prazo determinado) do IPI sobre veículos56, eletrodomésticos da linha branca, materiais de construção e bens de capital57. Paralelamente, reduziu-se a alíquota do IOF sobre crédito direto a pessoa física, no escopo de estimular a sua concessão58. Demais disso, alterouse a tabela do IRPF59, criando-se novas alíquotas, o que pragmaticamente implicou diminuições no valor final pago a título do imposto, aumentando de forma indireta o poder de consumo das famílias.

Se, por um lado, a redução de alíquotas do IPI apresenta função anticíclica típica, tendo sido concedida por tempo determinado e com gradual retorno após a verificação das condições econômicas que objetivavam promover, o mesmo não se pode afirmar com relação à alteração das faixas de incidência e novas alíquotas do IRPF, que configura medida anticíclica atípica, de efeitos permanentes.

A estimativa de renúncia de receitas tributárias decorrente de ações anticíclicas durante a crise, para o ano de 2009, foi inicialmente avaliada pelo Governo em 3.342 bilhões.60 As desonerações fiscais concedidas, destinadas a setores produtivos específicos e faixas de renda com capacidade de consumo, embora tenham gerado elevadas renúncias de receitas tributárias, contribuíram decisivamente para a frenagem dos efeitos negativos da crise no Brasil. A redução do preço final ao consumidor, em decorrência da aplicação de alíquotas menores do IPI (até zero), ocasionou um incremento nas vendas e, por conseguinte, na produção, evitando quedas acentuadas no nível de emprego. Nos meses de março e junho de 2009, quando os benefícios se encerrariam, houve intenso aumento nas vendas dos produtos alcançados pelas medidas indutoras. Automóveis e caminhões novos tiveram o melhor mês de março da história das montadoras no país, com um aumento de 36% em comparação com fevereiro de 2008, segundo dados da Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores61. Se não houvesse a desoneração, as quedas nas vendas de veículos provavelmente afetariam bastante a arrecadação dos Estados e Municípios, já que o volume do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores tenderia a ser significativamente menor.

Ademais, estima-se que a redução do IPI contribuiu para manter entre 50 mil e 60 mil empregos diretos e indiretos na economia brasileira no primeiro semestre de 200962. A demanda doméstica acabou sendo a indutora do crescimento em 2009 e no primeiro trimestre de 2010, principalmente pela menor afetação do consumo das famílias durante a crise, em face desonerações tributárias concedidas63.

As normas tributárias indutoras estruturadas durante a crise tiveram a importante função de estimular o crescimento econômico, por meio da redução do custo de impostos incidentes sobre o consumo, impulsionando a compra de bens de capital, automóveis e eletrodomésticos, de molde a incrementar os níveis da demanda doméstica. Contribuíram, assim, para a equalização das distorções provocadas no mercado em virtude da crise de crédito e da retração do consumo.

Percebe-se que, além de constituírem meios adequados (proporcionais) à promoção das finalidades constitucionais que embasaram a intervenção do Estado sobre o domínio econômico, as normas tributárias indutoras utilizadas pelo Governo para conter a crise se revelaram eficientes no alcance de seus objetivos. Tanto que geraram um aumento histórico da demanda nos setores alcançados pelos incentivos.

Por outro lado, constata-se que os benefícios concedidos não incorreram em afronta ao princípio da igualdade, uma vez que: (i) não denotam privilégios odiosos, pois foram destinados em caráter temporário, com objetivos de curto prazo claros e delimitados, aos setores mais prejudicados com a contração da demanda, e cujo impulso ocasionaria resultados econômicos potencialmente positivos; (ii) ancoram-se em finalidades constitucionais de promoção do desenvolvimento nacional e de busca do pleno emprego; (iii) elegeram fatores de discriminação e medida de comparação adequados a uma política fiscal anticíclica, que escalonou como metas prioritárias a retomada dos investimentos das empresas, o crescimento da demanda doméstica relacionada à indústria, e o estímulo ao crédito. O foco no setor automobilístico, de eletrodomésticos e de bens de capital se justifica em face dessas metas de curto prazo, de caráter políticoeconômico, e não a partir de considerações de justiça distributiva.

A compatibilidade com a regra da proporcionalidade e com o princípio da igualdade não significa, porém, a ausência de reflexos financeiros negativos das medidas adotadas pelo Governo Federal sobre o equilíbrio das finanças públicas dos entes subnacionais. Este equilíbrio, por sua vez, é fundamental para que possa ser garantido o desenvolvimento econômico nacional de modo harmônico na federação brasileira. Daí porque a correção de assimetrias financeiras negativas, decorrentes do uso de normas tributárias indutoras, se revela indispensável para a preservação da compatibilidade das medidas extrafiscais com as finalidades constitucionais que as lastreiam.

7 Reflexos financeiros dos incentivos fiscais concedidos durante a crise

Os incentivos fiscais oferecidos em virtude da crise financeira de 2008 alteraram substancialmente a arrecadação do IPI e do IR. Apenas em relação ao IPI, principalmente em virtude das medidas propostas pelo Governo no ano de 2009, houve decréscimo de aproximadamente 7,7 bilhões de reais na arrecadação líquida, 22% a menos do que em 200864. No primeiro trimestre de 2009, a diferença para o mesmo período do ano anterior foi cerca de 1,2 bilhões de reais a menos. Além disso, calcula-se a alteração da tabela de alíquotas do IRPF tenha gerado uma diminuição de quase R$ 520 milhões na arrecadação do primeiro trimestre de 2009, relativamente ao ano de 200865. De acordo com estudos do Ministério da Fazenda, as desonerações estimadas para o IRPF foram da ordem de 5 bilhões de reais66.

Essa diminuição abrupta da arrecadação tributária relacionada ao IPI e ao IR impactou sensivelmente nos valores das transferências constitucionais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. É que, conforme a previsão do art. 159 da Constituição Federal, parcelas do produto da arrecadação do IR e do IPI devem ser destinados aos entes subnacionais, mediante repasses aos chamados Fundos de Participação.

Segundo o texto constitucional, do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, quarenta e oito por cento devem ser entregues pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, da seguinte forma: a) 21,5 % ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE; b) 22,5% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM; c) 3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento; d) 1% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM.

Esse arranjo de partilhas de receitas tributárias é traço do modelo de federalismo fiscal cooperativo consagrado pela Constituição Federal de 1988. Nesse modelo, a repartição de receitas se coloca como um canal de coordenação que viabiliza a coexistência entre a descentralização de encargos e a centralização da arrecadação tributária67. Configura uma intrincada rede financeira que “cria para os entes políticos menores o direito a uma parcela da arrecadação do ente maior”68. Esta parcela visa a reduzir o descompasso entre os meios de arrecadação disponíveis e as necessidades de gastos dos entes federados, chamado de “brecha fiscal vertical” (vertical fiscal gap)69, e representa um importante mecanismo de equilíbrio das finanças das unidades subnacionais.


Com diminuição da arrecadação nacional do IPI e do IR, decorrente das desonerações fiscais realizadas pelo Poder Executivo, acabou sendo gravemente afetado o equilíbrio das finanças dos pequenos municípios, que dependem substancialmente das transferências constitucionais do FPM.

No mês de fevereiro de 2009, os repasses aos Fundos de Participação de que trata o art. 159 da Constituição Federal sofreram diminuição de 6,8%, comparativamente ao mês anterior. Em relação a fevereiro de 2008, houve decréscimo da ordem de 12% (cerca de R$ 485 milhões). Em março de 2009, tais repasses foram diminuídos em 20,1%, relativamente ao mês anterior, representando aproximadamente 11% a menos do que o mesmo período do ano de 2008. Por conseguinte, no primeiro trimestre de 2009, constatou-se diminuição de quase 750 milhões de reais nos montantes das transferências ao FPM, tomando como parâmetro o ano. Com o corte repentino nos valores dos repasses constitucionais, serviços públicos prestados à população de inúmeros Municípios passaram a ficar comprometidos, diante da inviabilidade financeira de arcar-se de forma autônoma com os custos de programas sociais.

Ainda em março de 2009, o presidente Luís Inácio Lula da Silva reconheceu a gravidade da situação dos Municípios, afirmando ser o problema “resultado de uma crise que não nasceu no Brasil, de uma crise que aconteceu nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, e que demorou mais para chegar aqui”, mas que não poderia permitir a paralisação das prefeituras70.

Evidenciou-se um conflito axiológico. De um lado, dispositivos tributários editados com a finalidade de estimular a demanda interna, de modo a garantir a manutenção do nível de empregos e o desenvolvimento econômico, valores constitucionalmente consagrados (artigos 3º, II, e 170, VIII). De outro, o reflexos de tais normas no sistema de repartição de receitas tributárias, ocasionando a diminuição brusca de repasses aos municípios, o consequente comprometimento de políticas públicas destinadas à efetivação de direitos fundamentais.

A percepção de que medidas eficientes para promover o crescimento econômico podem impactar negativamente na rede de artérias financeiras do federalismo fiscal e na efetivação de programas de melhorias sociais e investimentos em infraestrutura, os quais constituem pilares para o equilíbrio do desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos, remete à importância da compreensão de plenitude do desenvolvimento econômico.

O desenvolvimento econômico pressupõe não apenas o fator do crescimento, mas também melhorias no âmbito social. Para que essas melhorias sejam implementadas de modo eficiente no arranjo federativo brasileiro, é necessário garantir às unidades descentralizadas, mais próximas da população (municípios), recursos financeiros suficientes para fazer frente aos encargos públicos. Sem tais recursos, resta prejudicada a eficiência alocativa, um dos fundamentos para a descentralização de políticas públicas sociais.

No intuito de contornar o problema, após discussões no âmbito do Ministério da Fazenda, ocorreu a publicação da Medida Provisória nº. 462, de 14/05/2009, convertida na Lei nº. 12.058, de 13/10/2009, que dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos entes federados71.

Assim, a Lei nº. 12.058/2009, em seu art. 1º, previu o dever da União de prestar apoio financeiro, no exercício de 2009, aos entes federados que recebiam o FPM, mediante entrega do valor correspondente à variação nominal negativa entre os valores creditados a título daquele Fundo nos exercícios de 2008 e 2009, antes da incidência de descontos de qualquer natureza, de acordo com os prazos e condições nela previstos e limitados à dotação orçamentária específica para essa finalidade, fixada por meio de decreto do Poder Executivo.

As estimativas para os valores do apoio financeiro previsto na MP nº. 462/2009, correspondendo às diferenças negativas nos repasses do FPM apuradas no período de janeiro a março de 2009, em relação a igual período de 2008, atingiram a estimativa de R$ 755.008.284,5972, com creditamento em maio de 2009. O apoio prosseguiu nos meses subsequentes. Em junho de 2009, foram estimados R$ 197.827.847,7673; em julho, R$, 9.734.549,1874; em outubro, R$ 904.925.735,4275.

Por meio dessa compensação financeira, restou superado o risco de comprometimento da prestação de serviços municipais de interesse social e da continuidade dos projetos de investimento e demais políticas públicas voltadas à promoção do desenvolvimento econômico. Os efeitos das restrições reflexas, provocadas pelas desonerações tributárias editadas durante a crise, foram assim balanceados por normas financeiras de caráter corretivo, visando o retorno ao ponto de equilíbrio das finanças dos municípios e a harmonia do federalismo fiscal cooperativo. Tal equilíbrio é indispensável à garantia da forma federativa de Estado, cláusula pétrea constante do art. 60, §4º, I, da Constituição Federal de 1988.

Todavia, vale lembrar que os reflexos financeiros das reduções de alíquotas do IPI e das alterações de faixas do IR eram perfeitamente previsíveis, desde o momento em que foram cogitados como medidas de política fiscal anticíclica. Os instrumentos equalizadores tardaram a ser editados, dentro de um contexto emergencial. O próprio veículo adotado para a concessão do apoio financeiro (medida provisória, que pressupõe casos de urgência, a teor do art. 62 da Constituição Federal), evidencia que não houve planejamento prévio de compensação financeira concomitante à concessão dos incentivos.

O modelo de federalismo fiscal cooperativo adotado no Brasil, entretanto, não pode se reduzir ao apoio conjuntural da União. É preciso aprimorar mecanismos que garantam a autonomia financeira dos entes subnacionais mesmo em face de políticas fiscais anticíclicas, a fim de que evitar a dependência de auxílios emergenciais, sob liberalidade do Poder Executivo Federal. Sob esse prisma, o legado da crise traz novas oportunidades de repensar os atuais modelos de cooperação existentes, com vistas a um desenvolvimento econômico federativamente harmônico e sustentável.

8 Conclusões

As normas tributárias indutoras podem se revelar eficientes instrumentos de estímulo do comportamento dos agentes econômicos, promovendo o aumento da demanda, da produção, dos investimentos internos, e da oferta de emprego. Tais fatores são indispensáveis ao crescimento econômico, componente da equação geradora do desenvolvimento nacional.

Decerto, “o desenvolvimento depende da capacidade de cada país para tomar decisões que sua situação requer”76. À evidência, o Brasil demonstrou essa capacidade, reunindo condições para superar, com êxito, os efeitos problemáticos da crise internacional deflagrada em 2008. Parte desse sucesso decorreu da política de concessão de incentivos fiscais utilizados conforme critérios de eficiência, os quais se revelaram adequados aos objetivos fomentados pela intervenção do Estado na economia. A função equalizadora das desonerações tributárias indutoras pelo Governo Federal foi determinante para corrigir tendências de contração da demanda interna. Entretanto, essas medidas emergenciais, de curto prazo, não são suficientes para garantir a continuidade do desenvolvimento econômico.

Apesar das dificuldades e dos riscos, o Brasil soube nadar no mar caudaloso da crise internacional, mesmo tendo sido nele arremessado de súbito. Ferramentas eficientes de indução econômica instrumentalizaram a política fiscal anticíclica levada a cabo pelo Governo Federal. Mas distâncias muito maiores ainda precisam ser percorridas para que o país possa galgar uma posição no pódio das nações desenvolvidas. Para tanto, é preciso avançar no aprimoramento dos instrumentos jurídicos tendentes à promoção do desenvolvimento econômico em sua concepção plena, levando em consideração a realidade de profundos desequilíbrios regionais e sociais que marcam a federação brasileira.

A efetividade do art. 3º, II, da Constituição de 1988, para além do crescimento econômico (elemento quantitativo), depende de medidas coordenadas entre União, Estados e Municípios, tendentes a promover melhorias qualitativas no nível de bem-estar geral da sociedade, sem olvidar as peculiaridades do federalismo fiscal cooperativo. Nessa perspectiva, caso o emprego de normas tributárias indutoras pela União acarrete situações de desequilíbrio no arranjo de repartição de receitas com os entes subnacionais, deverão ser adotadas medidas de compensação financeira, suficientes para corrigir as assimetrias negativas geradas, preservando os pilares do federalismo fiscal. Do contrário, poderá restar desvirtuada a finalidade constitucional que embasa a própria intervenção econômica, malferindose a legitimidade da sua utilização, na medida em que for ameaçado o custeio de programas sociais a cargo dos municípios e o atendimento das necessidades da população. O poder do Estado de desonerar é amplo, mas não ilimitado, sujeitando-se às diretrizes normativas e valores contidos no texto constitucional, que balizam o controle das normas tributárias indutoras à luz da proporcionalidade, da igualdade e das finalidades nas quais se ancoram.

Os ventos econômicos que sopram promissoramente a favor do país no cenário de oportunidades pós-crise precisam, enfim, vir acompanhados de arranjos jurídicos de densidade axiológica e efetividade prática, compatíveis com os objetivos trazidos pela Constituição Federal de 1988, rumo a um desenvolvimento federativamente equilibrado e sustentável. 2008.77, 78.


Notas

1 Cf. STIGLITZ, Joseph E. Freefall: Free Markets and the Sinking of the Global Economy. London: Peguin Books, 2010.
2 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Congelamento de Preços: Tabelamentos Oficiais. Rio de Janeiro, Revista de Direito Público, p.76-77, jul./set. 1989.
3 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 100.
4 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 33. 5 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 148.
6 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 107.
7 CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Reflexões sobre o papel do Estado frente à atividade econômica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 1, n. 20. p. 73-74, 1997.
8 A respeito desse tema, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170”. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.950. Relator: Min. Eros Grau. julgamento em 03.11.05, Plenário, DJ de 02.06.06. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
9 Vale lembrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição.” In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 205.193. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 25.02.97, 1ª Turma, DJ de 06.06.97. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
10 Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Os Três Objetivos da Tributação. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p.8-11, São Paulo, 2008.
11 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623.
12 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966. p. 151.
13 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 196.
14 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 629.
15 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 106-107, nota de rodapé n. 66.
16 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 17. 17 Cf. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A Extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 47.
18 CORREIA NETO, Celso de Barros. Instrumentos Fiscais de Proteção Ambiental. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p. 142, São Paulo, 2008.
19 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623- 624.
20 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 27-34.
21 ZILVETI, Fernando Aurelio. O ISS, a Lei Complementar nº 116/03, e a Interpretação Econômica. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 104. p. 39, São Paulo, 2004.
22 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 289.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008. p. 524.
24 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 28.
25 Eis a lição de Pedro Herrera Molina: “incentivos tributarios son aquellas exenciones configuradas de tal modo que estimulan la realización de determinada conducta”. MOLINA, Pedro Herrera. La Execión Tributaria. Madrid: Colex, 1990. p. 57.
26 GADELHA, Gustavo de Paiva. Isenção Tributária: Crise de Paradigma do Federalismo Fiscal Cooperativo. Curitiba: Juruá, 2010. p. 98.
27 MOURA, Maria Aparecida Vera Cruz Bruni de. Incentivos Fiscais Através das Isenções. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (Coord.). Estudos de Problemas Tributários. São Paulo: José Bushatsky, 1971. p. 135.
28 CALDERARO, Francisco R. S. Incentivos Fiscais à Exportação. São Paulo: Resenha Tributária, 1973. p. 17.
29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 577.348 e Recurso Extraordinário n. 561.485. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em 13.08.09, Plenário, Informativo n. 555. Disponível a partir de: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
30 Código Tributário Nacional: “Art. 175. Excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia. Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela conseqüente.”
31 SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. p. 97.
32 “art. 150 […] § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativas a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, § 2º, XII, g. (Redação da EC 03/93)”
33 “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I – importação de produtos estrangeiros; II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III – renda e proventos de qualquer natureza; IV – produtos industrializados; V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI – propriedade territorial rural; VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar. § 1º – É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.”
34 CTN: “Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I – à situação econômica do sujeito passivo; II – ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III – à diminuta importância do crédito tributário; IV – a considerações de eqüidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V – a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.”
35 “§ 3º Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como: I – subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa; II – subvenções econômicas, as que se destinem a emprêsas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril.”
36 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência Fiscal Internacional: a Concessão de Incentivos Fiscais em face da Integração Econômica Internacional. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2009. p. 33.
37 Cf. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 70-71.
38 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 290.
39 Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 648.
40 Cf, ÁVILA, Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, n. 215. p. 172, São Paulo, 1999.
41 SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, n. 798. p. 38, São Paulo, 2002.
42 SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit.. p. 40.
43 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
44 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 61.
45 ÁVILA, op. cit., p. 69.
46 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 83.
47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 149.659. Relator: Min. Paulo Brossard. DJ de 31.03.1995. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.


48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 142.348. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 02.08.94, 1ª Turma, DJ de 24.03.95. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar n. 1.657-MC. Voto do Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento em 27.06.07, Plenário, DJ de 31.08.07. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 360.461. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 06.12.05, 2ª Turma, DJE de 28.03.08. Disponível em: http://www. stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
51 ELALI, André de Souza Dantas. Tributação e Regulação Econômica: um Exame da Tributação como Instrumento de Regulação Econômica na Busca da Redução das Desigualdades Regionais. São Paulo: MP, 2007. p. 117.
52 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u497886.shtml. Acesso em: 11 set. 2010.
53 Cf. SMITHIES, Arthur. The American Economy in the Thirties. The American Economic Review, vol. 36, 1946, pp. 11-27. Apud SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
54 SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. p. 8-9. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
55 BOTALLO, Eduardo Domingos. IPI: Princípios e Estrutura. São Paulo: Dialética, 2009. p. 22.
56 Vide Decreto nº. 6.687, de 11 de dezembro de 2008, e Decreto nº 6.743, de 15 de janeiro de 2009.
57 Vide Decreto nº. 6.825, de 17 de abril de 2009 e Decreto nº. 6.890, de 29 de junho de 2009.
58 Vide Decreto nº. 6.691, de 11 de dezembro de 200


O desvio do FUNDAF como despesa vinculada

Presidente e diretor do SINPROFAZ tratam da destinação dos recursos do FUNDAF em artigo publicado no site Jus Navigandi.


Atuação na Câmara e no Senado em prol da carreira de PFN

Presidente do SINPROFAZ debateu temas de interesse da PGFN e da Advocacia Pública Federal com deputado e senador do estado de Goiás.


Presidente e vice do SINPROFAZ em atuação permanente no Congresso

Dirigentes visitaram deputado e senadora para tratar dos pleitos da Advocacia Pública Federal e também de demandas específicas da carreira de Procurador da Fazenda Nacional.


Ampliação da AGU poderá ajudar o crescimento do país

Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, presidente do SINPROFAZ defende a tese de que a salvaguarda da crise é o fortalecimento da AGU.


Sem investimento, PGFN arrecada menos do que pode

Autor: Allan Titonelli Nunes, Procurador da Fazenda Nacional

Data de publicação: 17 de julho de 2011

Veiculo: Revista Consultor Jurídico – CONJUR

 

A atividade financeira do Estado moderno está ligada à necessidade de captar, gerir e executar os recursos públicos para a concretização dos interesses da sociedade.

Para o alcance dos objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado será necessária a arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização daqueles.

Ocorre que para a construção de um país mais igualitário, diminuindo a desigualdade social existente, é primordial que todos contribuam, na medida de suas possibilidades. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações.

Nesse pormenor, o ordenamento jurídico brasileiro incumbiu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a arrecadação dos tributos e demais receitas não pagas e inscritas em dívida ativa da União. Tendo a Lei Complementar 73/1993 atribuído à PGFN a responsabilidade pela[1]: a) apuração da liquidez e certeza da dívida ativa da União de natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança, amigável ou judicial; b) representação da União, na execução de sua dívida ativa de caráter tributário; c) exame prévio da legalidade dos contratos, acordos, ajustes e convênios que interessem ao Ministério da Fazenda, inclusive os referentes à dívida pública externa, e promoção da respectiva rescisão por via administrativa ou judicial; e d) representação da União nas causas de natureza fiscal.

Assim, o procurador da Fazenda Nacional é o agente capaz de garantir a isonomia entre o devedor e o cidadão que paga seus tributos, através da cobrança dos créditos da União. Na medida em que todos passarem a contribuir haverá maior disponibilidade de caixa para a execução das políticas públicas, bem como possibilitará a realização de uma maior transferência da carga tributária, saindo da incidência sobre consumo para a renda.

Para a concretização desse anseio o princípio da capacidade contributiva deverá ser o vetor de interpretação e execução do Sistema Tributário Nacional, onde cada cidadão contribuirá na medida de suas riquezas, concretizando, consequentemente, a isonomia tributária.

Logo, considerando as reiteradas manifestações do governo federal de maior racionalidade e eficiência nos gastos da União e do ajuste fiscal, deveria haver uma melhor estruturação da PGFN. Isso porque a adoção de medidas tendentes à diminuição do estoque da dívida da União pode resultar em receitas “extras” para a União implementar suas políticas públicas. Nesse contexto, as reportagens (Conjur[2] e Estadão[3]: “Passivo judicial da União ultrapassa R$ 390 bilhões”, O Globo[4]: “Governo vai atrás de R$32 bi em dívidas este ano”) destacaram o papel estratégico da PGFN na recuperação dos créditos federais.

Sendo certo que mesmo sem haver carreira de apoio, estrutura física, técnica e instrumental adequada para o exercício das atividades dos procuradores da Fazenda Nacional e sem a nomeação de todo seu quadro de procuradores, a PGFN apresentou resultados excelentes no ano de 2010, os quais passam a ser relatados[5]:

  1. A atuação judicial da PGFN evitou uma perda de R$ 567.575.263.751,93 dos cofres da União. Resultado do sucesso em causas judiciais discutidas no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Regionais Federais.
  2. No ano de 2010, a PGFN arrecadou o montante de R$ 16.221.010.504,74 para os cofres da União.
  3. Considerando-se o total arrecadado e a despesa total da PGFN, no ano de 2010, pode-se dizer que para cada R$ 1,00 alocado na PGFN, o órgão retornou à sociedade e ao Estado, aproximadamente, R$ 34,47.
  4. Ainda considerando o total arrecadado e o número de procuradores da Fazenda Nacional em 2010 (2.043, dois mil e quarenta e três procuradores), pode-se dizer que cada procurador arrecadou, em média, R$ 7.939.799,56 para a União.

A publicação “Os Números da PGFN”[6] possui diversos outros dados referentes ao órgão em destaque, os quais deixam de ser citados face a análise perfunctória da questão neste artigo.

Pelos números divulgados pode-se perceber que a PGFN é superavitária e autossustentável. Outrossim, apesar de ser um órgão estratégico para a União, há deficiências estruturais que podem ser eliminadas. Essa realidade pode ser alterada com a adoção de algumas medidas como: a criação de uma carreira de apoio; modernização das instalações e funcionalidades técnicas do sistema de informática; implantação de remuneração isonômica em relação às carreiras essenciais à Justiça, evitando o elevado índice de evasão de procuradores e demais membros da AGU; diminuição do número de processos por procurador, através da nomeação de todo o quadro de procuradores da Fazenda Nacional; instituição de prerrogativas isonômicas àquelas existentes para os juízes e promotores, visando dar condições de igualdade no enfrentamento judicial; entre outras.

A demora na implantação dessas soluções resulta em um aproveitamento inferior ao que o órgão poderia estar atingido. Em época de anúncio de contenção de gastos o planejamento estratégico deve ser valorizado, motivo pelo qual o investimento na PGFN é lucro, uma vez que, levando em conta os dados de 2010, cada R$ 1,00 empregado resultou em um retorno de R$ 34,47 à sociedade e ao Estado. Essas considerações servem como um alerta para o governo federal, o qual tem pautado sua atuação na valorização das soluções técnicas.

Notas

[1] Atribuições previstas nos incisos do Art. 12, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. BRASIL. Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Disponível em:
[2] Disponível em:
[3] Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110130/not_imp672968,0.php Acesso em: 05.01.2011.
[4] Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/01/23/governo-vai-atras-de-32-bilhoes-em-dividas-este-ano-923589701.asp Acesso em: 01.05.2011.
[5] Disponível em : http://www.pgfn.fazenda.gov.br/h_37806_interpgfn_site/noticias/a-pgfn-em-numeros-2010 Acesso em: 10.05.2011.
[6] GADELHA, Marco Antônio. Os Números da PGFN. Sinprofaz. Brasília: 2008. Disponível em :

 

Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e diretor secretário do SINPROFAZ.

Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2011

Link para publicação:http://www.conjur.com.br/2011-jul-17/devido-falta-investimento-pgfn-arrecada


“Sem investimento, PGFN arrecada menos do que pode”

Este é o título de artigo do presidente do SINPROFAZ, Allan Titonelli, publicado neste domingo, 17 de julho, no site Consultor Jurídico. O artigo traz informações sobre a PGFN e as atividades exercidas pelos PFNs.


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