Resultados da pesquisa por “Publicação” – Página: 4 – SINPROFAZ

BUSCA


Resultado da busca para: Publicação

Conjur publica artigo sobre campanha do SINPROFAZ

No texto, o presidente do Sindicato esclarece as motivações da Campanha Nacional da Justiça Fiscal, que foi relançada esta semana em Brasília.


Aposentadoria por invalidez: PEC 5/12 aprovada na CCJ do Senado

A proposta, que concede proventos integrais aos servidores públicos aposentados por invalidez permanente, vence primeira etapa de tramitação na casa revisora.


SINPROFAZ é recebido por dirigentes da OAB-RS

Na oportunidade, o presidente Allan Titonelli apresentou a publicação “Os Números da PGFN” e comentou acerca da sobrecarga de processos no cotidiano profissional dos Procuradores da Fazenda.


FUNPRESP chega ao Senado Federal

Chegou nesta quinta-feira (1º/03) ao Senado Federal o Projeto que Institui e cria o Fundo de Previdência Complementar do Servidor Público Federal. A proposição vai tramitar na Casa sob o número PLC 2/2012.


Câmara conclui votação da PEC 270

A proposta, de autoria da deputada Andreia Zito (PDSB-RJ), concede proventos integrais aos servidores públicos aposentados por invalidez permanente.


Mesa redonda reúne procuradores e advogados para falar da história e tratar do futuro da AGU

Data da publicação: 10/02/2012 A mesa redonda “História da AGU nas perspectivas de suas unidades e órgãos vinculados” celebrou hoje (10), em Brasília, o aniversário de 19 anos da instituição. Em debate, as carreiras da AGU: advogado da União, procurador federal, procurador da Fazenda Nacional e procurador do Banco Central. Diversos membros da Advocacia-Geral participaram…


AGU é a salvaguarda de um Estado de Direito

Por Allan Titonelli Nunes

A atual Constituição, nominada pelo Deputado Federal Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã, no encerramento dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, da qual era presidente, completou vinte e três anos de sua promulgação no dia 05 de outubro de 2011. Contudo, muitas de suas pretensões ainda não foram concretizadas e já se falam em uma nova Constituinte.

Nos debates que antecederam a promulgação da Constituição, destaca-se o papel incumbido ao Ministério Público e à Advocacia Pública Federal, a qual será analisada com maior profundidade.

Pode-se dizer que a atribuição dual exercida pelo Ministério Público, de defesa da sociedade e do Poder Executivo, passou a ser contestada.

Após muitas discussões o Constituinte entendeu que era realmente necessário haver divisão das atribuições do Ministério Público, criando, assim, a Advocacia-Geral da União (AGU), positivada no artigo 131 da CF/88, no capítulo referente às Funções Essenciais à Justiça.

Atente-se que, apesar da transferência da atribuição de defesa do Estado para o órgão recém-criado, a AGU, o Constituinte não diferenciou, em prevalência ou hierarquicamente, a defesa da sociedade e do Estado, permitindo que os membros do Ministério Público pudessem fazer a escolha pelo exercício das atividades no novo órgão, conforme preconiza o artigo 29, parágrafo 2º, do ADCT.

Outrossim, a organicidade e constituição da AGU somente foi implementada após a publicação da Lei Complementar 73/1993, completando, dessa forma, 19 anos de existência em 11 de fevereiro de 2012.

Durante esse período a instituição tem crescido e refletido sobre seu verdadeiro papel traçado pela Constituição.

Nesse pormenor, a intenção do Legislador Constituinte ao incluir a Advocacia Pública entre as Funções Essenciais à Justiça foi criar um órgão técnico capaz de prestar auxílio ao Governante e, ao mesmo tempo, resguardar os interesses sociais.

A Advocacia-Geral da União, especificadamente, é a instituição que representa judicialmente e extrajudicialmente a União, prestando as atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo Federal, bem como de defesa em juízo do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário.

Entre os órgãos que compõem a estrutura da AGU, pode-se citar a Procuradoria-Geral da União, que faz a assessoria e a defesa da administração pública direta; a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que faz a consultoria e a defesa da União nas causas de natureza fiscal, além de executar a dívida ativa da União; e a Procuradoria-Geral Federal, responsável pela consultoria e pela defesa da administração pública indireta. Ressalta-se, ainda, o papel da Procuradoria-Geral do Banco Central no assessoramento e na representação judicial do Banco Central, autarquia de caráter especial.

Para captar melhor o papel atribuído à Advocacia Pública, em especial à AGU, é necessário discorrer sobre o processo de organização do Estado. O Estado Brasileiro, constituído pela República Federativa do Brasil, é organizado político-administrativamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, como preconiza o artigo 1º c/c artigo 18, da CRFB.

As políticas planejadas, desenvolvidas e executadas pelos Entes Federados, comumente referidas como políticas públicas, decorrem da repartição de competência administrativa e legislativa da Federação Brasileira.

Observe-se que a Constituição Federal de 1988 incumbiu à União grande parte dos serviços dirigidos à República Federativa do Brasil, exigindo-se a construção de um Estado prestador de serviços, Welfare State, representado pelo Estado de Bem-Estar Social.

É natural que, sendo a União reguladora de grande parte das relações sociais, seja muito acionada em Juízo, da mesma forma como defenderá seus interesses ajuizando as ações cabíveis.

Por todas essas razões, o gerenciamento do Estado brasileiro comporta a movimentação de todo um arcabouço administrativo, meticuloso e burocrático. Sua organização e funcionamento não se comparam a uma empresa privada em termos de eficiência e planejamento, por ter uma gestão mais complexa.

Assim, considerando que cabe à Advocacia-Geral da União a representação judicial e extrajudicial da União, lato sensu, importará dizer que seus membros exercerão um papel direta ou indiretamente relacionado com a concretização das políticas públicas do Estado brasileiro, aqui tomado como sinônimo de União.

Diante dessa perspectiva, é dever dos membros da Advocacia-Geral da União dar suporte à execução orçamentária das competências da União, desde que as ações sejam constitucionais e legais.

A atuação da Advocacia-Geral da União na fase do planejamento, da formação e da execução da política pública propiciará planejamento estratégico do Estado, bem como a redução de demandas. Isso porque a atuação da AGU deve transcender a defesa míope da União, ajudando a atender as atribuições que o Estado moderno requer, precipuamente a viabilização das políticas públicas em favor da sociedade, o que, em última análise, importa em resguardar o interesse público, consubstanciado pela defesa do bem comum.

Ante o exposto, é necessário dotar o Estado de condições mínimas para efetivar as atribuições constitucionalmente descritas, cabendo à AGU exercer papel estratégico na defesa do patrimônio público, dos interesses dos cidadãos e da Justiça.

Para a concretização dessas atribuições, é necessária a garantia de uma Advocacia Pública independente. Isso não quer dizer que a escolha da política a ser executada deixará de ser feita pelo representante do povo, legitimamente eleito, o qual tem o direito de indicar sua equipe de governo. Todavia, a atuação de um profissional técnico, imparcial e altamente qualificado, não sujeito às pressões políticas, trará ganho de qualidade para o desenvolvimento e a execução da política pública escolhida.

Hoje visualizamos com mais clareza o papel Constitucional destinado à AGU, de defesa do Estado sem descurar da defesa do cidadão e da sociedade. A defesa do patrimônio público, interesse público secundário, não pode se contrapor arbitrariamente aos legítimos interesses da sociedade, interesse público primário, cabendo aos Advogados Públicos Federais resolver o conflito dentro do que determinam a Constituição e as leis.

Esse controle decorre do dever mediato de defesa da Justiça, insculpido quando o Legislador Constituinte inseriu a AGU em um Capítulo à parte do Poder Executivo, Função Essencial à Justiça, havendo uma imbricação de justaposição, ou melhor, necessidade de defesa do Estado desde que a ação não transborde os preceitos constitucionais e legais.

Nessa senda, podem-se citar diversas ações que vão ao encontro do dever de defesa da sociedade e do cidadão.

A um, a criação da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) é fruto do dever constitucional de preservação da Justiça, ajudando na prevenção e solução de controvérsias.

A atribuição para prevenir controvérsias entre os órgãos da Administração Federal, e, mais recentemente, entre a Administração Pública Federal e a Administração Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme previsto na Portaria 481/2009, tem contribuído para atenuação da litigiosidade, buscando eliminar a cultura do litígio.

Essa atuação corrobora os preceitos da Justiça, na defesa do interesse da sociedade, desafogando o Poder Judiciário.

Atendendo esses mesmos anseios, a parte de consultoria e assessoramento da AGU tem buscado resolver conflitos judiciais por meio de pareceres, que, após ratificados pelo Advogado-Geral da União, determinam atuação impositiva, evitando-se o efeito em cascata das ações judiciais.

Aqui também inclui-se a possibilidade de conciliar, transigir, desistir e deixar de recorrer de ações afetas à União, em que haja atuação da AGU, o que pode ser observado nos dispositivos da Lei 9.469/97. Em última análise, caberá ao Advogado-Geral da União aferir o interesse público envolvido para adotar algum dos comandos descritos na norma, o que tem sido feito mais frequentemente, reduzindo-se, sobremaneira, a litigiosidade.

A dois, como já ressaltado, a defesa do interesse público e dos cidadãos fica claramente comprovada quando constatado que o próprio legislador já fez essa ponderação, ao permitir a atuação da AGU em hipóteses de defesa estrita do interesse da sociedade, face à sua atribuição de promover a orientação jurídica da União, quando representando a administração pública direta ou indireta.

Pode-se citar a Lei da Ação Civil Pública, a Lei 7.347/85, cujo artigo 5º permite à Administração Pública direta ou indireta, por meio de seu órgão de representação judicial, a AGU, ajuizar ação civil pública.

No mesmo sentido, na Lei de Improbidade, a Lei 8.429/1992, cujo artigo 17 possibilita à pessoa jurídica interessada, a Administração Pública direta ou indireta, por meio de seu órgão de representação judicial, a AGU, ajuizar ação de improbidade.

Da mesma forma dispõe a Lei sobre a Ação Popular, em razão do que prevê o artigo 6º, parágrafo 3º, da Lei 4.717/1965, o qual possibilita ao órgão de representação judicial da União, a AGU, intervir defendendo o ato impugnado como ilegal ou atuar ao lado do autor da ação popular.

Soma-se a esses casos a nova Lei do Mandado de Segurança, cujos artigos 7º, II, e 14, parágrafo 2º, a contrario sensu, da Lei 12.016/2009, permitem ao órgão de representação judicial da União, a AGU, uma dualidade de escolha, positiva ou negativa, seja no momento de ingressar no feito, seja no de recorrer.

Essa margem de discricionariedade foi incluída na Legislação como forma de o membro da AGU avaliar qual conduta se adequaria melhor à defesa do interesse público.

Há, inclusive, situações em que a defesa do interesse da sociedade ficou evidente, no caso concreto, quando se reconheceu, por meio da manifestação consultiva, o direito das comunidades quilombolas e a união homoafetiva como geradora de direitos civis.

A três, o controle de legalidade do ato administrativo, o qual poderá ser feito preventivamente ou posteriormente.

Esse controle decorre da necessidade de observância ao Estado Democrático de Direito, e caberá à AGU resguardar a constitucionalidade e a legalidade dos atos administrativos.

Essa função advém do alcance que o Legislador Constituinte atribuiu à AGU de Função Essencial à Justiça, preservando a democracia.

A normatização desse controle pode ser observada pelo que dispõem os artigos 12, II, e 17, III, ambos da LC 73/1993, e o artigo 2º, parágrafo3º, da Lei 6.830/1980, os quais exteriorizam o papel exercido pela AGU, por meio de seus órgãos, de guardião da juridicidade do ato.

A atuação da AGU conforme preconiza a Constituição contribuirá para o fortalecimento de uma Advocacia de Estado, a qual possui atribuição de auxiliar o Governante a executar as políticas previstas na Carta Magna e nas leis, resguardando, também, da mesma forma, o interesse dos cidadãos e da Justiça.

A construção de uma Advocacia Pública Federal conforme os anseios Constitucionais têm sido feita gradativamente. Para o bem do nosso Estado Democrático de Direito é necessário que essa mudança ocorra o mais rápido possível, considerando a necessidade da criação de uma efetiva carreira de apoio, objetivando dar maior celeridade e eficiência nos trâmites operacionais; prover todo o quadro efetivo de Advogados da União, Procuradores Federais, Procuradores da Fazenda Nacional e Procuradores do Banco Central; modernização das instalações e funcionalidades técnicas dos sistemas de informática; implantação de remuneração isonômica em relação às demais Funções Essenciais à Justiça, evitando o elevado índice de evasão e instituição de prerrogativas isonômicas àquelas existentes para os Juízes e Promotores, para dar condições de igualdade no enfrentamento judicial.

A AGU é a salvaguarda de um Estado Democrático de Direito mais eficiente, pois mesmo com essas dificuldades, obteve êxitos, descritos no relatório de gestão de 2010, como: R$ 2,026 trilhões economizados/arrecadados; 31.142 execuções fiscais ajuizadas relativas às autarquias e fundações públicas federais, com ressarcimento de R$ 24,3 milhões; 1.292 ações de ressarcimento ajuizadas; arrecadação de R$ 1,5 bilhão de contribuições sociais na Justiça do Trabalho; arrecadação de 13,3 bilhões de valores inscritos em Dívida Ativa da União; bloqueio de R$ 582 milhões desviados por corrupção; vitória na maior ação judicial da história da AGU, com economia de R$ 2 trilhões; acompanhamento diário de 683 ações do PAC e empreendimento estratégicos; repatriação de obras de arte no valor de U$ 4 milhões; conciliação administrativa de disputas judiciais envolvendo Órgãos Federais; redução da judicialização de matérias pacificadas, através da edição de súmulas, eximindo a interposição de recursos; entre outras.


Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal.

Revista Consultor Jurídico, 11 de fevereiro de 2012


Artigo sobre 19 anos da AGU publicado em mídia especializada

Texto de autoria do presidente do SINPROFAZ foi divulgado na revista eletrônica Consultor Jurídico no sábado, 11 de fevereiro, data comemorativa da criação do órgão.


Debate e lançamento de livros marcaram as comemorações do aniversário de 19 anos da AGU

Data da publicação: 09/02/2012 A História da AGU nas Perspectivas de suas Unidades e Órgãos Vinculados foi o tema da mesa redonda realizada nesta sexta-feira (10), em comemoração ao aniversário de 19 anos da Advocacia-Geral da União (AGU). Os debates serão coordenados pelo Consultor-Geral da União, Arnaldo Godoy, e contará com a participação da Procuradora…


Concurso da AGU

Data da publicação: 08/02/2012 Os editais para o concurso de advogado-geral da união e procurador da Fazenda Nacional devem ser publicados até a segunda quinzena do mês que vem. A expectativa é que serão abertas 68 vagas para o primeiro cargo e 61 para o segundo. O documento será finalizado até o fim desta semana….


Lei mineira que permite AGU protestar créditos públicos no estado vai desafogar Judiciário e aumentar arrecadação

Data da publicação: 30/01/2012 Procuradores federais e advogados da União que atuam em Minas Gerais estão comemorando a entrada em vigor da lei estadual nº. 19.971/2011. A norma permite o protesto extrajudicial de créditos públicos sem o prévio pagamento de custas e outras taxas e beneficia não só a Fazenda Pública estadual, mas também os…


A Portaria PGFN/RFB 09/2011 versus precatório judicial

Foi publicada no dia 19 de outubro de 2.011, a Portaria PGFN/RFB número 9, que regulamentou o pagamento ou abatimento do REFIS instituído pela Lei 11.941/09, através de precatórios expedidos contra a União Federal. A Portaria permitiu que os débitos, objeto do parcelamento através da Lei 11.941/09, já consolidados pela Receita Federal possam ser pagos…


MP 552: o Brasil volta a exportar tributos e a penalizar os consumidores brasileiros

No momento em que as expectativas do mercado internacional mostram-se desfavoráveis, o governo brasileiro surpreende o setor com aumento de carga tributária travestido em vedação de aproveitamento de crédito. Cumprindo antiga, e equivocada, receita de ajuste do caixa do tesouro nacional, a administração tributária brasileira logrou trazer a lume a MP 552, que entrou em…


Implantação da Lei de Acesso à Informação e concursos para as carreiras de advogado e procurador são temas prioritários na AGU em 2012

Data da publicação: 30/01/2012 A Advocacia-Geral da União (AGU) vai trabalhar em 2012 para implantar na instituição a Lei de Acesso à Informação, ampliar o número de escritórios avançados em outros órgãos e aperfeiçoar a gestão de informações judiciais. Esses são alguns temas que terão tratamento prioritário pelas unidades que nesta segunda-feira (30/01) apresentaram os…


Redução de conflitos e maior recuperação de créditos estão entre as principais metas dos órgãos da AGU para este ano

Data da publicação: 23/01/2012 O Advogado-Geral da União, ministro Luís Inácio Lucena Adams, disse nesta segunda-feira (23/01) que a Advocacia-Geral da União (AGU) tem uma série de desafios e tarefas para enfrentar neste ano. “Nós temos matérias e ações judiciais de altíssima relevância”, afirmou Adams na apresentação de resultados e metas para 2012 das unidades…


Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência


Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio, e são assegurados pela Lei n.º 8.906/94 aos membros da Advocacia-Geral da União.


Resumo: O presente trabalho tem como objetivo fornecer argumentos jurídicos aptos a justificar a titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência, bem como criticar o entendimento firmado no Parecer GQ – 24.

Palavras-chave: Honorários advocatícios de sucumbência. Membros da Advocacia-Geral da União. Titularidade.

Abstract: Union, by law and in compliance with the principle of decentralization in the Constitution, is not qualified to perform actions directly under block funding of the Brazilian Public Health System (SUS) called attention to secondary and tertiary care outpatient and inpatient. Nevertheless, it is increasing the number of court decisions that impose to Union an obligation to perform these actions. It was demonstrated, through analysis of current case law, as judicial decisions disrupt the way the SUS is structured, with respect to the actions planned for the mentioned block funding. On the other hand, it was explained as the Judiciary, to consider the principle of decentralization, in its decisions, can become an ally in implementing the system in order to ensure achievement, more effective health actions in the block care of ambulatory and tertiary care hospitals.

Keywords: Brazilian Public Health System (SUS). Principle of Decentralization. Block Funding Attention of Middle and High Complexity Hospital Outpatient. Public Policy. Lawsuits

Introdução

O objeto da presente estudo reside no exame da titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.

I – Da ausência de suspeição ou impedimento.

De início, cumpre analisar eventual suspeição ou impedimento dos Advogados da União no exame de questões que se encontram umbilicalmente relacionados com o interesse da Instituição.

A Advocacia-Geral da União encontra assento no art. 131 da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

A referida norma está inserida na segunda sessão do Capítulo IV do Titulo IV da Constituição Federal, com a seguinte denominação: “Das Funções Essenciais à Justiça” . Infere-se, assim, que a Advocacia-Geral da União é uma Instituição que exerce, segundo o texto constitucional, “funções essenciais à justiça”. A propósito, convém transcrever as fecundas lições do eminente Uadi Lammêgo Bulos1 sobre a matéria:

Por isso, o Judiciário só funciona por provocação, ou seja, se o agente exigir que ele atue, donde resulte a importância dos protagonistas da dinâmica processual, titulares das funções essenciais à Justiça.

A Carta Magna os enumerou, taxativamente:

  • Ministério Público (arts. 127 a 130);
  • Advocacia Pública (arts. 131 e 132);
  • Profissional da Advocacia (art. 133); e
  • Defensoria Pública (arts. 134 e 135).

Todos esses organismos desencadeadores da atividade jurisdicional atuam por meio de seus agentes públicos ou privados, isto é, promotores, procuradores, advogados e defensores públicos.

Dessa maneira, a inércia da jurisdição é compensada pelo dinamismo dos protagonista das funções essenciais à Justiça.

Em verdade, o papel constitucional dos promotores, procuradores, advogados e defensores públicos é relevantíssimo, porque, de modo genérico, compete-lhes agir em defesa dos interesses do Estado-comunidade, e não do Estado-pessoa.

O arquétipo prefigurado na Constituição da República distancia-os da caricatura usual de que ocupam posição de superioridade se comparados aos cidadãos comuns. Ao invés, encontram limites ao exercício de suas atribuições, pois quem tem o poder e a força do Estado não pode exercer em benefício próprio a autoridade que lhe foi conferida.

A Advocacia-Geral da União, como função essencial à Justiça, tem a atribuição privativa de representar judicial e extrajudicialmente a União, bem como exercer as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo. Ao examinar a questão, o Pleno do Supremo Tribunal Federal não hesitou em reconhecer a referida exclusividade, ao atestar a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 3º Região, no julgamento da RCL 8025, veja-se:

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, em julgar preliminarmente, o Tribunal afirmou a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional federal da 3ª Região. Em seguida, o Tribunal rejeitou a questão de ordem no sentido de intimar a Advocacia Geral da União para que, querendo, se manifeste nos autos. E no mérito, o Tribunal, por maioria julgou procedente a reclamação, para anular a eleição de Presidente e determinar que outra se realize, nos termos do voto do relator.


Nesse contexto, a Lei Complementar n.º 73/1993 – Lei Orgânica da Advocacia -Geral da União, em seus arts. 2º, II, b e art. 11, inciso III, dispõe, respectivamente:

Art. 2º A Advocacia-Geral da União compreende:

II – órgãos de execução

b) a Consultoria da União, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, da Secretaria-Geral e das demais Secretarias da presidência da república e do Estado-Maior das Forças Armadas;

Art. 11. Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:

III – fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União;

Da leitura das normas acima reproduzidas, torna-se possível concluir que a Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, como órgão setorial da Advocacia-Geral da União, tem a atribuição de, exclusivamente, exercer assessoramento jurídico da sua Pasta.

Feitos esses esclarecimento, convém agora analisar os deveres dos Advogados da União, com previsão na já mencionada Lei Complementar e na Lei n.º 8.112/90, que assim prescreve:

. Lei Complementar n.º 93/1993:

Art. 29. É defeso aos membros efetivos da Advocacia-Geral da União exercer suas funções em processo judicial ou administrativo:

I – em que sejam parte;

II – em que hajam atuado como advogado de qualquer das partes;

III – em que seja interessado parente consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o0 segundo grau, bem como cônjuge ou companheiro;

IV – nas hipóteses da legislação processual.

Art. 30. Os membros efetivos da Advocacia-Geral da União devem dar-se por impedidos:

I – quando hajam proferido parecer favorável à pretensão deduzida em juízo pela parte adversa;

II – nas hipóteses da legislação processual.

. Lei n.º 8.112/90:

Art. 116. São deveres do servidor:

I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;

II – ser leal às instituições a que servir;

Art. 117. Ao servidor é proibido:

IX – valer-se co cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil:

Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:

I – de que for parte;

II – quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.

Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:

V – interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.

À primeira vista, poder-se-ia alegar a suspeição ou impedimento de todos Advogados da União no exame da presente matéria. Este, contudo, não é o melhor entendimento. As normas infraconstitucionais, como trivialmente sabido, devem ser interpretadas à luz do texto constitucional que, como visto, reserva à Advocacia-Geral da União a função de exercer, exclusivamente, o assessoramento jurídico do Poder Executivo. Aplicam-se aqui os princípios que norteiam a interpretação constitucional, dentre os quais se destacam: o da máxima efetividade e o da razoabilidade.

O primeiro impõe que à norma constitucional, sujeita à atividade hermenêutica, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade. Já o segundo indica que a validade dos atos emanados do poder público é aferida com fundamento em três máximas: adequação, necessidade e proporcionalidade. A adequação designa a correlação lógica entre motivos, meios e fins, de maneira que, tendo em vista determinados motivos, devem ser providos meios, para a consecução de certos fins. A necessidade ou exigibilidade denota a intervenção mínima, isto é, inexistência de meios menos gravoso para a obtenção do fim pretendido. Já a proporcionalidade denomina a ponderação entre o encargo imposto e o benefício trazido2.


Nesse contexto, o constituinte originário, ao conferir à Advocacia-Geral da União a exclusividade do assessoramento jurídico, bem como incluí-la no rol das “funções essenciais à justiça”, não previu qualquer exceção capaz de afastar a sua atuação, de sorte que não seria razoável que a Instituição deixasse de examinar a constitucionalidade e regularidade dos projetos de atos normativos e consultas de seu interesse.

Em reforço à tese até aqui desenvolvida, não se pode olvidar que, quando o constituinte originário exigiu a citação prévia do Advogado-Geral da União nas causas em que o Supremo Tribunal Federal vier apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, para defender o texto ou ato impugnado, não fez qualquer restrição em relação à sua atuação. Assim, ainda que a eventual impugnação seja de norma referente à Instituição, a sua participação se faz necessária3.

Mas não é só. Em última análise, se fosse admitida o afastamento dos Advogados da União para exame de matéria dessa natureza, para que estranhos à carreira a realizassem, além de ferir de morte o art. 133 da Constituição Federal, estar-se-ia dando ensejo ao desvio de função, prática que destoa dos princípios da legalidade e moralidade, que norteiam a atuação da Administração, de tal modo que os atos por eles praticados estariam eivados do vício de nulidade.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não destoa desse entendimento, consoante se pode verificar da leitura da ementa abaixo transcrita:

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI COMPLEMENTAR 11/91, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (ART. 12, CAPUT, E §§ 1º E 2º; ART. 13 E INCISOS I A V) – ASSESSOR JURÍDICO – CARGO DE PROVIMENTO EM COMISSÃO – FUNÇÕES INERENTES AO CARGO DE PROCURADOR DO ESTADO – USURPAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. – O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. (ADI 881 MC/ES, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 25.04.97.)

Como se pode observar, a exclusividade das atribuições reservadas pelo texto constitucional à Advocacia-Geral da União, para assessoramento jurídico do Poder Executivo, impõe que todas as consultas jurídicas sejam por ela examinadas, inclusive as referentes à própria Instituição.

II – Questão preliminar: Honorários e Subsídio.

Antes de se adentrar no exame do direito dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários de sucumbência, afigura-se indispensável a análise de uma questão preliminar, qual seja, a sua compatibilidade com o regime de subsídio.

O vocábulo subsídio foi inserido na Constituição Federal pela Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/98), que introduziu o § 4º no art. 39, in verbis:

§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.

A referida Emenda também alterou o art. 135 da Constituição Federal, que passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 135. Os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e III deste Capítulo serão remunerados na forma do art. 39, § 4º.

Como se vê, com o advento da Emenda Constitucional nº 19/98, a carreira da Advocacia-Geral da União passou a ter uma nova disciplina remuneratória, que veio a se materializar com o advento da Medida Provisória nº 305, de 29.06.2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006 .

O subsídio, pois, caracteriza-se como nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Esse rigor, entretanto, é relativizado por outras normas constitucionais, que não foram atingidas pela Emenda, como é o caso, por exemplo, do art. 39, § 3º.

Outro não é o entendimento da eminente Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 que, ao examinar a questão, assinala:

No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no art. 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX. Com isto, o servidor que ocupe cargo público (o que exclui os que exercem mandato eletivo e os que ocupam emprego público, já abrangidos pelo art. 7º) fará jus a: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo a 50% à do normal, adicional de férias.


Como se pode observar, a regra do art. 39, § 4º, da Constituição Federal não é absoluta. Por outro lado, sobreleva anotar que o seu alcance se limita aos valores pagos pela administração pública. Os honorários advocatícios de sucumbência, diferentemente das vantagens ali mencionadas, são verbas de natureza particular, eis que são pagos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora, ou seja, não saem dos cofres públicos. Nessa linha, são os ensinamentos de Ivan Barbosa Rigolin5:

V – Ao que parece viceja, cá e lá, o entendimento de que os honorários de sucumbência constituem algo como “benefício aos servidores públicos”, pagos pelo poder Público, e talvez aí resida toda a origem do impasse que pode estar acontecendo.

Honorários advocatícios de sucumbência jamais foram benefício a servidor público, porque não são pagos com dinheiro público, não saem dos cofres públicos, mas do bolso dos derrotados em ações judiciais contra o poder Público. Não têm origem em recursos públicos, mas particulares – e muitos particulares. Quem os pagou já o sentiu.

Como se isso não bastasse, deve-se destacar que, se a intenção do constituinte fosse a de proibir o advogado público, o que se admite apenas por hipótese, teria a consagrado expressamente, com o fez em outra passagem do texto constitucional, como é o caso do art. 128, II, a da Constituição Federal, in verbis:

Art. 128. O Ministério Público abrange:

II – as seguintes vedações:

a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;

Ora, não foi esse o tratamento dispensado à Advocacia-Geral da União, não havendo qualquer restrição a respeito. A Lei Complementar n.º 73/1993, a seu turno, não traz qualquer proibição dessa natureza.

Registre-se, por relevante, que o texto original da Lei Complementar n.º 73/93 aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado à sanção presidencial, previa em seu art. 65 a vedação ao recebimento dos honorários6. Contudo, a aludida norma foi vetada pelo Presidente da República por interesse público, a fim de garantir a premiação do êxito, nos seguintes termos:

Quanto ao pro labore, percebido pelos Procuradores da Fazenda Nacional, por força da lei 7711 de 22 de dezembro de 1988, limita-se à sucumbência dos devedores vencidos nas execuções fiscais (honorários advocatícios). Desses honorários, 50 % destinam-se à implementação e modernização das procuradorias da Fazenda Nacional (informatização, custeio de taxas e custos de execuções fiscais, despesas de diligências, pro labore de peritos técnicos, avaliador e contadores judiciais, além de despesas de penhora, remoção e depósito de bens). Esse sistema de incentivo tem funcionado com múltiplo êxito para os cofres da União, sendo o principal fator de crescimento da arrecadação, apesar do decrescente números de Procuradores da Fazenda nacional em todo País7.

Resta, portanto, muito claro que o regime de subsídio não constitui óbice ao pagamento dos honorários de sucumbência aos membros da Advocacia-Geral da União, cuja titularidade restará demonstrada a seguir.

III – Lei n.º 8.906/94 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

A título de contextualização, cumpre realizar um breve histórico sobre a evolução legislativa dos honorários de sucumbência. De início, a Lei n.º 4.215/63, em seu art. 998, os previu. Em seguida, o Código de Processo Civil – Lei n.º 6.355/1973, no art. 209, também os consagrou. Nesse período, entretanto, tais honorários, a princípio, eram da titularidade da parte e não do advogado, bem como tinham natureza eminentemente indenizatória.

Em 1994, sobreveio a Lei n.º 8.906 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – EOAB, que trouxe profunda alterações à matéria, modificando sobremaneira o regime até então vigente. Os honorários deixaram de ser meramente indenizatórios, para assumir status de remuneração. Nesse contexto, esclarecedores os comentários de Yussef Said Cahali10:

A Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil), embora contendo dispositivos notoriamente polêmicos, teve o mérito contudo de enunciar claramente a quem pertencem os honorários advocatícios da sucumbência. Assim, ao estabelecer, em seu art. 23, que os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, o novel legislador buscou superar a aparente antinomia existente entre o artigo 20 do Código de Processo Civil e o artigo 99 do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963), geradora de um inconciliável dissídio doutrinário e jurisprudencial.

Uma das grandes inovações trazidas pelo referido diploma legal, indubitavelmente, foi a de reservar ao advogado, em seu Capítulo VI, a titularidade dos honorários de sucumbência. A propósito, não é desnecessário afirmar que os honorários têm natureza alimentar, consoante a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Vale, por todos, transcrever ementa do Supremo Tribunal Federal nesse sentido:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO DE FUNDAMENTO EM AGRAVO REGIMENTAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR. AGRAVO IMPROVIDO. I – É incabível a inovação de fundamento em agravo regimental, porquanto a matéria arguida não foi objeto de recurso extraordinário. II – O acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência da Corte no sentido de que os honorários advocatícios têm natureza alimentar. III – Agravo regimental improvido. (AI 732358, Rel. Min. Ricardo Lewandoswski, Primeira Turma, DJ 21.08.2009. Destacou-se)


Posteriormente, foi publicada a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, asseverou que as normas previstas no Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam à Administração Pública direta da União, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, consoante se pode verificar da leitura do seu art. 4º, in verbis:

Art. 4º As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista.

Em razão da sucessão de leis no tempo tratando da mesma matéria, deve-se destacar que não merecer prosperar o argumento segundo o qual, em razão do disposto no art. 20 do Código de Processo Civil, os honorários de sucumbência pertenceriam à parte e não ao advogado, eis que a Lei n.º 8.906/94, por ser posterior, a revogou tacitamente. Essa é a inteligência do art. 2º, I, do Decreto-Lei n.º 4.65711, de 4 de setembro de 1942 – Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro.

Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. HONORÁRIOS. INTERPRETAÇÃO ANTERIOR À LEI N. 8.906/94.TITULARIDADE DA PARTE VENCEDORA.

1. Verifica-se que o acórdão recorrido analisou todas as questões atinentes à lide, só que de forma contrária aos interesses da parte. Logo, não padece de vícios de omissão, contradição ou obscuridade, a justificar sua anulação por esta Corte. Tese de violação do art. 535 do CPC afastada.

2. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que antes do advento da Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dosAdvogados do Brasil), a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência era da parte vencedora e, não, do seu respectivo advogado.

3. Recurso especial provido. (REsp 859944/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE 19.08.2009)

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. DÉBITO DE NATUREZA ALIMENTÍCIA. ACÓRDÃO DECIDIDO POR FUNDAMENTOS DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE NA VIA RECURSAL ELEITA. TITULARIDADE, EM PRINCÍPIO, DO ADVOGADO DA PARTE VENCEDORA, PERMITIDA CONVENÇÃO EM SENTIDO CONTRÁRIO. POSSIBILIDADE DA EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO DISTINTO PARA A VERBA DE SUCUMBÊNCIA. DIREITO AUTÔNOMO DO ADVOGADO.

1. A questão em torno da natureza da verba recebida a título de honorários de sucumbência — se possui ou não caráter alimentício — foi decidida pela Corte de origem por fundamentos de índole eminentemente constitucional, insuscetíveis de apreciação em sede de recurso especial.

2. A análise de matéria constitucional, em sede de recurso especial, é alheia à competência atribuída a esta Superior Corte de Justiça, a teor do disposto no art. 105, III, da Constituição Federal.

3. A Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), ao contrário da legislação anterior que disciplinava a matéria, modificou a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência, passando-as da parte vencedora para o seu respectivo advogado.

4. Até prova em contrário, os honorários sucumbenciais são devidos ao advogado da parte vencedora, “tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, independentemente da juntada de cópia do contrato de prestação de serviços advocatícios.

5. Recurso especial parcialmente provido. (Resp 659293/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 24.04.2006)

A questão foi também examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.194-4, que teve como objeto, dentre outras normas, o parágrafo único do art. 21 e o parágrafo 3º do art. 24, ambas da Lei n.º 8.906/94. Na oportunidade, por maioria, assinalou-se que o recebimento dos honorários de sucumbência é disponível, de sorte a permitir o ajuste contratual entre o advogado e o cliente sobre as referidas verbas. Calha, por relevante, transcrever passagens do voto do Ministro Maurício Corrêa nesse sentido:

22. Toda argumentação da requerente cai por terra ante o disposto nos artigos 22 e 23 do Estatuto da Advocacia, que, encerrando a discussão acerca da titularidade da verba em face da redação do artigo 20 do CPC, assegurou expressamente que o advogado tem direito aos honorários de sucumbência. Em que pese a constitucionalidade de tais preceitos ter sido objeto também desta ação direta, a questão não pôde ser apreciada em virtude da ilegitimidade ativa da requerente por impertinência temática. Pertencendo a verba honorária ao advogado, não se há de falar em recomposição do conteúdo econômico-patrimonial da parte, criação de obstáculo para o acesso à justiça e, muito menos, em ofensa a direito adquirido da litigante.

23. Ainda que se entenda que os honorários se destinavam a ressarcir a parte vencedora pela despesas havidas com a contratação de profissional de advocacia e nessa perspectiva pertencesse ao litigante, segundo uma das exegeses admitidas do artigo 20 do CPC, restaria clara sua revogação pelos artigos 22 e 23 do superveniente estatuto da OAB (LICC, artigo 2º, § 1º)

Uma vez assentado o direito dos advogados aos honorários de sucumbência, convém agora examinar se eles também se estendem aos membros da Advocacia-Geral da União. Frise-se, por oportuno, que as alterações promovidas pela Lei n.º 9.527/97, mencionadas alhures, referem-se tão somente ao Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94, vale dizer, aplicam-se apenas aos advogados empregados. Nessa linha, convém reproduzir as informações prestadas pelo Senado Federal ao Supremo Tribunal Federal, na ADI n.º 3.396 que analisa a constitucionalidade do art. 4º da Lei n.º 9.527/97:


Apesar de submetidos a um mesmo estatuto, no caso, o Estatuto da Advocacia, criado pela Lei n.º 8.906, de 1994, os advogados que ocupam cargo público em órgãos da Administração Direta, Autarquias e Fundações instituídas pelo Poder Público, sujeitam-se a um regime especial de trabalho. Trata-se do Regime Jurídico Único previsto na Lei n.º 8.112, de 1990, e nesta condição estão submetidos a um regime de direitos e deveres específicos, o qual não se confunde com o regime das empresas privadas, este aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista, que normalmente se submetem aos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Paralelamente a isso, não se pode esquecer que a exegese das leis é orientada pelo processo sistemático, porquanto as leis não são conglomerados de normas desconexas entre si. Ao revés, apresentam-se de modo coordenado, em feixes orgânicos, procurando formar unidade de sentido. Os seus elementos mantêm vínculo de inter-relação e interdependência12. Dessarte, os arts. 22 a 26 da Lei n.º 8.906/94, presentes no Capítulo VI, que versam sobre os honorários advocatícios, devem ser interpretados à luz do disposto no art. 3º, § 1º, do mesmo Diploma Legal, in verbis:

Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),

§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional. (Destacou-se)

Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.

§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.

§ 2º Na falta de estipulação ou de acordo, os honorários são fixados por arbitramento judicial, em remuneração compatível com o trabalho e o valor econômico da questão, não podendo ser inferiores aos estabelecidos na tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB.

§ 3º Salvo estipulação em contrário, um terço dos honorários é devido no início do serviço, outro terço até a decisão de primeira instância e o restante no final.

§ 4º Se o advogado fizer juntar aos autos o seu contrato de honorários antes de expedir-se o mandado de levantamento ou precatório, o juiz deve determinar que lhe sejam pagos diretamente, por dedução da quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este provar que já os pagou.

§ 5º O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de mandato outorgado por advogado para defesa em processo oriundo de ato ou omissão praticada no exercício da profissão.

Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

Sublinhe-se que as normas inseridas no Capítulo VI do Estatuto da Advocacia, em nenhum momento, restringem sua aplicação aos membros da Advocacia-Geral da União. Na atividade hermenêutica, como é cediço, não cabe ao intérprete definir o que o legislador não definiu, nem mesmo acrescer ao texto legal condição nela não existente. Assim, não há razão para se restringir o alcance das normas acima mencionadas.

Como se vê, em homenagem ao método sistemático de interpretação, ressoa inequívoco o direito dos Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional e Procuradores Federais aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.

IV – Do Parecer GQ – 24.

Sem embargo das considerações até aqui lançadas, cumpre assinalar que a questão já foi examinada pela Advocacia-Geral da União, por meio do PARECER nº GQ – 24, vinculante, que adotou para os fins do art. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73/93, o Anexo PARECER Nº AGU/WM-08-94. Na oportunidade, restou assentado que os arts. 22 a 25 da lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam aos membros da Instituição, veja-se:

EMENTA: A disciplina do horário de trabalho e da remuneração ínsita à Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, é específica do advogado, na condição de profissional liberal e empregado, sem incidência na situação funcional dos servidores públicos federais, exercentes de cargos a que sejam pertinentes atribuições jurídicas.

(…)

4. É induvidoso que os servidores dos órgãos da Administração Federal direta, das autarquias e das fundações públicas federais,a cujos cargos correspondam as atividades de advocacia, se submetem ao regime instituído pela Lei 8.906 (cfr. O § 1º do art. 3º), mas são regidos pelas normas estipendiárias e pertinentes às cargas horárias e específicas dos servidores públicos federais.

9. Há que se realçar a prevalência de comando ínsito à Lei Complementar n. 73, de 1993, estratificado no sentido de que a remuneração dos membros da Advocacia-Geral da União se fixa em “lei própria”, condição que se não considera atendida com as normas concernentes ao Estatuto da Advocacia, em comento.

13. A mantença das regras a que são submetidos especificamente os advogados, servidores federais estatutários, decorrente se sua compatibilização coma lei nova, se justifica pelo fato de esse pessoal encontrar-se inserido no contexto do funcionalismo federal, regido por normas editadas unilateralmente pelo Estado, a fim de estabelecer o regramento da relação jurídica que se constitui entre ele e o servidor, de modo a que o Poder Público disponha de um sistema administrativo capaz de atender à sua finalidade, consistente em proporcionar à coletividade maior utilidade pública, essência das realizações da Administração. Face a esse desiderato, é atribuída ao Estado a faculdade de estabelecer e alterar, de forma unilateral, as regalias originárias do funcionalismo, adequando-as às suas peculiaridades e necessidades, inclusive as orçamentárias, mas sem inobservar os comandos constitucionais. Tanto assim é essa especificidade que o art. 61 da Carta insere na competência privativa do Presidemte da República a iniciativa de leis que cuidem sobre aspectos de regime jurídico do servidor público deferal, incluída a remuneração.

14. Essa linha de raciocínio aproveita à inaplicabilidade do regramento dos adicionais de sucumbência aos mesmo servidores: as características dessas normas (arts. 22 a 25 da Lei n. 8.906) indicam o alcance, tão-só, das atividades de advocacia desenvolvidas pelos profissionais liberais e advogados empregados, no que couber. Induzem a essa lição inclusive o aspecto de que os honorários, incluído os de sucumbência, pertencem ao advogado, que pode, de forma autônoma, executar a sentença, nesse particular (art. 23), direito que se não compatibiliza com a isonomia de vencimentos preconizada nos arts. 39, § 1º, e 135 da Constituição. Em relação a esse honorários a que façam jus os advogados empregados, há também disciplina específica no art. 21 do mesmo Diploma Legal, inexistindo a dos servidores estatutários do Estado, cujas peculiaridades também reclamariam normas especiais.

15. O Estatuto da Advocacia se estende aos servidores da área jurídica federal. Porém, por imperativo seu, impõe-se a observância do “regime próprio a que se subordinam” (art. 3º, § 1º), que, via de regra, não prevê esse adicional retributivo. Para contemplar esse pessoal, haveria de ser regulado em lei, em vista do princípio da legalidade esculpido no art. 37 da Constituição.

III

16. O exposto admite se acolha o resultado interpretativo de que os advogados submetidos ao regime jurídico instituído pela Lei n. 8.112, de 1990, continuam sujeitos ao disciplinamento vigente à época da edição do novo Estatuto da Advocacia, no que respeita à carga horária e à remuneração, porquanto não foram alcançados, no particular, pela lei nova.


A referida manifestação fundamenta-se, basicamente, no disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93, que exige lei própria para fixação do vencimento e remuneração dos membros das carreiras da Advocacia-Geral da União.

O grande problema é que esse argumento poderá trazer graves consequências, especialmente se o utilizarmos para o exame de importantes leis afetas à Advocacia-Geral da União, publicadas nos últimos anos, senão vejamos:

a) O subsídio dos cargos das carreiras da Advocacia-Geral da União foi instituído pela Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006. Sucede, todavia, que os referidos atos normativos não se enquadram no conceito de “lei própria”, eis que disciplinam, a um só tempo, as carreiras de Procurador da Fazenda Nacional, Advogado da União, Procurador Federal, Defensor Público, de Procurador do Banco Central do Brasil, Policial Federal e da reestruturação dos cargos da Carreira de Policial Rodoviário Federal. Em razão disso, indaga-se: estaria a Lei n.º 11.358 violando o disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?

b) De igual modo, o último aumento remuneratório das carreiras da Advocacia-Geral da União deu-se, por meio da Medida Provisória n.º 440, de 2008, convertida na Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008. Todavia, assim como o exemplo anterior, as referidas normas não se enquadram no conceito de “lei própria”, uma vez que abrangem inúmeras carreias do Poder Executivo Federal, tratando não só de remuneração, bem como de reestruturação. Pergunta-se: estaria a Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008 contrariando o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?

c) Se o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 exige que o vencimento e a remuneração das carreiras sejam tratados em “lei própria”, estariam os Advogados Públicos Federais isentos do pagamento da contribuição anual à OAB, prevista no art. 46 da Lei n.º 8.906/1994, porquanto se trata de matéria que, em última análise, encontra-se umbilicalmente relacionada à remuneração e vencimentos dos membros da carreira?

Por outro lado, deve-se destacar que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.652-6, que examinou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 1413 do Código de Processo Civil, o Ministro Relator Maurício Corrêa assinalou, em seu voto, que os advogado públicos sujeitam-se às prerrogativas, direitos e deveres do advogado, estando submetidos à disciplina própria da profissão, nos seguintes termos:

2. Com efeito, seria mesmo um absurdo concluir que o legislador tenha pretendido excluir de ressalva os advogados sujeitos a outros regimes jurídicos, além daquele instituído pelo Estatuto da OAB, como ocorre, por exemplo, com os profissionais da advocacia que a exercem na condição de servidores públicos. Embora submetidos à legislação específica que regula tal exercício, também devem observância ao regime próprio do ente público contratante. Nem por isso, entretanto, deixam de gozar das prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão, artigos 3º, § 1º; e 18.

Ora, se os honorários de sucumbência não pertencem aos membros da Advocacia-Geral da União, em razão dos argumentos aduzidos no Parecer GQ – 24, a quem são devidos? À União? Com base em que fundamento legal? A propósito, desconhece-se, s.m.j., qualquer lei que autorize a União a receber tais verbas. Não é preciso gastar rios de tinta para perceber que essa realidade viola, no mínimo, o princípio da legalidade administrativa, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal.

Outro ponto que deve ser levantado é o de que o referido Parecer vinculante foi elaborado sob uma realidade jurídica distinta dos dias atuais, de sorte a não mais tratar a contento as questões afetas à matéria, notadamente se levarmos em consideração que, posteriormente, à sua publicação, consoante já mencionado, sobreveio a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, afastou a incidência das normas presentes no Capítulo V do título I à Adminsitração Pública direta da União, às autarquias, às fundações públicas instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, esvaziando, assim, parte do seu conteúdo.

Além disso, foi publicada a Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006, que criou o subsídio dos cargos da carreira da Advocacia-Geral da União, conforme relatado no item 42, a, desta manifestação.

Por derradeiro, mas não menos importante, assinale-se, a título de informação, que os membros de boa parte das Procuradorias dos estados14 e dos municípios recebem honorários de sucumbência.

Por todo o exposto, sugere-se, com fundamento no art. 4º, X, da Lei Complementar n.º 73/93, que o Parecer GQ – 24 seja revisado pela Advocacia-Geral da União.

Conclusão

Ao término dessa exposição, torna-se possível sintetizar algumas das suas proposições mais importantes:

  • as atribuições de assessoramento jurídico ao Poder Executivo Federal são exclusivas da Advocacia-Geral da União. Ainda que as consultas tenham por objeto causas de interesse afetas à própria Instituição, seus membros não poderão se eximir de examiná-las, sob o fundamento de eventual suspeição ou impedimento;
  • Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio;
  • A Lei n.º 8.906/94 confere aos membros da Advocacia-Geral da União o direito aos honorários de sucumbência;
  • Todavia, o Parecer GQ – 24, aprovado pelo Presidente da República, adota entendimento diametralmente oposto, no sentido de que os arts. 22 a 25 da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam às carreiras da Advocacia-Geral da União, haja vista que a matéria deveria ser tratada em “lei própria”, em observância ao disposto no parágrafo único do art. 26 da lei Complementar n.º 73/93;
  • A fundamentação utilizada no referido Parecer, s.m.j., dificulta a defesa da constitucionalidade de leis que versam sobre matérias de considerável importância para Instituição. Assim sendo e levando-se em consideração o advento de novas normas sobre a matéria, assim com os questionamentos e informações mencionados alhures, recomenda-se, com fundamento no art. 4, X, da Lei Complementar n.º 73/93, a sua revisão.

Referências bibliográficas.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

CAHALI, Yussef Said. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94.


MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003.

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Honorários Advocatícios e Pode Público. Boletim de Direito Administrativo: BDA. São Paulo: NDJ, Ano XXII, n.º 3, março de 2006.

Guedes, Jefferson Guarús; Hauschild, Mauro Luciano (Coordenação).Nos limites da história: a construção da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos. Brasília: UNIP, UNAF, 2009.

Sítios Eletrônicos pesquisados:

http://www.stf.jus.br.

http://www.stj.jus.br.

http://www.casacivil.planalto.gov.br.


Notas

  1. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. 2ª Ed. P. 1143.
  2. Guilherme Peña de Moraes. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Pág. 122/123.
  3. Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
    § 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
  4. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2003. 16ª ed. P.450.
  5. In BDA – Boletim de Direito Administrativo – Março/2006. P. 276.
  6. Art. 65 (VETADO). A lei especial objeto do art. 26 desta Lei Complementar deve disciplinar a remuneração dos integrantes dos órgãos previstos no art. 2º., dos titulares de seus cargos efetivos e de confiança, bem como a dos dirigentes, vedando-lhes a participação na arrecadação de tributos, contribuições sociais e multas, o recebimento de honorários de sucumbência e a percepção de valor pro labore.
  7. Passagem extraída da obra: “Nos Limites da história: a contrução da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos/ Coordenação de Jefferson Garús Guedes e Mauro Luciano Hauschild. Brasília: 2009. Pgs. 75/76.
  8. Art. 99. Se o advogado fizer juntar aos autos, até antes de cumprir-se o mandado de lavramento ou precatório, o seu contrato de honorários, o juiz determinará lhe sejam estes pagos diretamente, por dedução de quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este prover que já os pagou.
    § 1º Tratando-se de honorários fixados na condenação, tem o advogado direito autônomo para executar a sentença nessa parte podendo requerer que o precatório, quando este for necessário, seja, expedido em seu favor.
    § 2º Salvo aquiescência do advogado, o acordo feito pelo seu cliente e a parte contrária não lhe prejudica os honorários, quer os convencionais, quer os concedidos pela sentença.
  9. Art. 20 A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.
  10. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94, pp. 376/378.
  11. Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
    § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
  12. Uadi Lammêgo Bulos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Editora Saraiva, 2008. 2ª Edição. P. 335.
  13. 13 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participaram do processo:
    Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.”
    No exame da referida ADI, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, julgou procedente o pedido formulado na inicial da ação para, sem redução de texto, emprestar à expressão “ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB”, interpretação conforme a carta, a abranger advogados do setor privado e do setor público.
  14. É o caso dos estados do Espírito Santo, de São Paulo e Minas Gerais. Poderia estender a lista, mas para não tornar a leitura cansativa, limito-me a tais exemplos.

Autor

Paulo Fernando Feijó Torres Junior

Advogado da União em Brasília (DF).

NBR 6023:2002 ABNT: JUNIOR, Paulo Fernando Feijó Torres. Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3106, 2 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20765>. Acesso em: 16 jan. 2012.


Advocacia-Geral impede pagamento indevido de mais de R$ 146 milhões pela União em precatório expedido em Alagoas

Data da publicação: 12/01/2012 A Advocacia-Geral da União (AGU) impediu, na Justiça, o pagamento indevido de mais de R$ 146 milhões em precatórios a uma única pessoa no estado de Alagoas. Ao realizar a análise do precatório, os advogados da União verificaram a ocorrência de erro na indicação do valor devido. Para corrigir o montante,…


AGU consegue bloquear bens de mineradora que deve mais de 15 milhões à União por explorar basalto sem autorização legal no Tocantins

Data da publicação: 16/01/2012 A Advocacia-Geral da União (AGU) conseguiu bloquear, na Justiça Federal de Tocantins, veículos e equipamentos da Physical – Extração e Comercio de Minérios. O objetivo é assegurar parte do ressarcimento R$ 15.875.202,75 a que a União tem direito após serem constadas várias irregularidades nas atividades da firma. A empresa não possuía…


PGFN deveria ser tratado como órgão estratégico

Este é o título de artigo do presidente do SINPROFAZ publicado nesta terça-feira, 10/01, na revista eletrônica Consultor Jurídico.


JF 10 já está disponível para leitura

A décima edição da revista Justiça Fiscal, editada pelo SINPROFAZ, já está disponível para leitura online. Em breve, PFNs vão receber exemplar impresso.


Aposentadoria por invalidez com integralidade aprovada na Câmara

SINPROFAZ e Fórum Nacional se fizeram presentes no plenário da Câmara para defender a proposta que corrige uma injustiça aos aposentados por invalidez.


Conjur repercute nota do SINPROFAZ em defesa da Justiça fiscal

Revista eletrônica Consultor Jurídico publicou matéria sobre nota de Allan Titonelli, sobre a necessidade do Governo Federal priorizar a reforma tributária.


CONJUR repercute nota do Forum Nacional

Revista eletrônica publicou matéria sobre a nota do Forum Nacional nesta sexta-feira, 25 de novembro. Veja como o assunto repercutiu na publicação especializada no mundo jurídico.


Editada portaria que regulamenta procedimento de adjudicação de bens

O SINPROFAZ havia enviado requerimento à PGFN pedindo a adoção de providências urgentes no sentido de expedir a referida regulamentação. Portaria 514 foi publicada em 10/11/11.


Forum Nacional é recebido por AGU para tratar demandas das carreiras

Representantes do Forum Nacional discutem com ministro Luís Inácio Adams reivindicações das carreiras que integram a Advocacia-Geral da União.


Proteção do contribuinte e fazenda contra atos contraditórios e modificação de jurisprudência em direito tributário

Autor: Tiago da Silva Fonseca, Procurador da Fazenda Nacional. Mestrando em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da UFMG.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

Resumo – Para garantir a segurança jurídica do contribuinte, a instituição ou majoração das obrigações tributárias dependem de lei expressa, as leis tributárias que agravam a sua situação não retroagem e têm a eficácia diferida para pelo menos noventa dias da publicação da norma. A efetivação da segurança jurídica vai além das limitações constitucionais expressas ao poder de tributar. A doutrina e a jurisprudência passam a desenvolver teses a partir de princípios implícitos que também são necessários para afirmar a segurança jurídica, como a confiança legítima e a boa-fé objetiva. A necessidade de previsibilidade e de estabilidade, bem como a garantia de expectativas, devem ser estendidas à Administração Tributária. Como a doutrina majoritária afasta a aplicação da confiança das pretensões fazendárias, é mister que se recorra a fontes alternativas de proteção do Fisco.

1 Introdução

O Estado de Direito está fundado em três valores estruturantes: a liberdade, a igualdade e a segurança jurídica. A Constituição, como dimensão básica que subordina o Estado de Direito, vai, de forma imediata ou mediata, buscar a concretização e efetivação desses valores estruturantes em todas as suas normas.

A segurança jurídica requer a previsibilidade, a estabilidade, a fiablidade, a clareza, a racionalidade, a transparência dos atos dos Poderes constituídos do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), de modo que o cidadão tenha um mínimo de precisão e determinabilidade da ordem jurídica a que está submetido.

A expectativa de durabilidade e permanência da ordem jurídica e dos atos estatais, com a devida proteção do cidadão para os casos de mudanças normativas necessárias para o desenvolvimento das atividades dos poderes públicos, garante não só as situações jurídicas assentadas, mas também permite a paz social. Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida1.

No Direito Tributário, a segurança jurídica do contribuinte é garantida precipuamente pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, submetidas sobretudo através da legalidade, irretroatividade das leis que instituam ou agravem obrigações tributárias e não-surpresa. Quando os princípios constitucionais tributários expressos são insuficientes para concretizar a segurança jurídica do contribuinte, torna-se necessário proteger expectativas legitimamente criadas, através dos princípios da confiança e boa-fé subjetiva.

As idéias de previsibilidade, estabilidade, clareza, transparência, fiabilidade e racionalidade, todavia, transbordam os contornos da segurança jurídica, que é garantia do cidadão e contribuinte, para orientar a atuação e para também atender às expectativas da Administração Tributária. Se o contribuinte é resguardado contra atos contraditórios pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, pela confiança legítima e boa-fé objetiva, a Fazenda deve exigir que as declarações e comportamentos dos particulares não configurem abuso de direito ou violação ao dever de lealdade.

Outrossim, as modificações de jurisprudência que impliquem em impactantes perdas fiscais devem constatar se a Fazenda atuava nos limites de entendimento pacificado anterior, sendo surpreendido por reviravolta de jurisprudência consolidada. Nesse caso, os efeitos da nova norma judicial devem ser modulados, em observância a princípios como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal e o planejamento estatal.

2 A previsibilidade e esta bilidade da relação tributária: a confiança legítima dos contribuintes e a garantia da Fazenda contra o abuso de direito

A previsibilidade necessária à segurança jurídica em matéria tributária é garantida, sobretudo, pela legalidade. De acordo com a definição legal expressa no art. 3º do Código Tributário Nacional, tributo é a prestação pecuniária compulsória, que não constitua sanção de ato ilícito, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Entretanto, ainda que a atividade seja plenamente vinculada, a aplicação da lei não consiste na mera subsunção da norma ao fato. A complexidade social faz com que mesmo a lei tributária, que conta com a predominância de conceitos determinados e não de tipos fluidos, seja insuficiente para regular corretamente casos situados numa “zona cinzenta” e não numa “zona de certeza”.

No conceito de discricionariedade proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, a lei consigna um limite de aplicação, dentro do qual pode existir um conjunto de interpretações legítimas, consistindo a aplicação da lei ao caso concreto na escolha de uma única alternativa pelo aplicador (seja o Poder Executivo ou Judiciário):

Discricionariedade é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente2.

Logo, é possível que o aplicador escolha uma alternativa que, não obstante esteja inserida no limite estabelecido pela lei, crie norma formalmente legítima, mas que materialmente vá de encontro ao Direito, considerando que a legitimidade jurídica não se restringe à legalidade.

Nessa perspectiva, a aplicação legítima da lei tributária depende de outros princípios que garantem a previsibilidade para o contribuinte, como a proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva.

O princípio da confiança legítima é criação do Direito Europeu, como instrumento de manutenção e atendimento das expectativas criadas no passado frente às alterações normativas do futuro. Preservar o passado, pela confiança legítima, faz todo o sentido em países como Alemanha, Portugal, Espanha e França, que só consagraram constitucionalmente o princípio da irretroatividade para leis penais e sancionadoras e não para as leis em geral, como no Brasil.

Na Europa, especialmente na Alemanha, o princípio da confiança legítima surge como justificação de vinculação de declarações, acordos, contratos e expectativas contra modificações futuras, nas relações de Direito Civil, para as quais não havia nenhuma previsão contra a irretroatividade.

O princípio certamente ganhou maior repercussão a partir do modelo de Claus-Wilheim Canaris, que associou a necessidade de preservação da confiança à teoria da aparência e à proibição do venire contra factum proprium. Como substrato ético-jurídico, a confiança legítima garantiria as situações aparentes, contra mudanças contraditórias, constituídas mediante declarações, documentos idôneos ou comportamentos concludentes. A estabilização das situações por meio da confiança se daria de forma positiva, mantendo-as conforme as expectativas criadas, ou de forma negativa, modificando-as com a contraprestação de indenização por danos.

A confiança legítima a ser protegida depende de três requisitos:

  1. ação ou omissão de uma parte, apta a gerar expectativas em outra, que representa uma situação de acordo com uma declaração, documento ou comportamento;
  2. boa-fé daquele que confiou;
  3. mudança contraditória da situação representada, gerando a imputação da responsabilidade pela confiança para aquele que agiu de forma contrária às expectativas que induziu.

Incorporando as teorias alemãs, a doutrina civilista portuguesa também é rica de estudos acerca da confiança nas relações entre particulares. Carneiro da Frada3 dá à confiança papel de destaque na estrutura normativa, situando-a em patamar posterior ao dos princípios e valores, como instrumento de justiça corretiva. Os atos contraditórios em prejuízo à confiança alheia seriam causa para a responsabilidade civil, devendo o defraudador restaurar a situação representada ou indenizar aquele que confiou, como forma de restauração do equilíbrio da relação. Menezes Cordeiro, diferentemente de Carneiro da Frada, que situa a confiança num campo axiológico, defende a sua força regulativa, como ponte entre a boafé subjetiva e objetiva, ao mesmo tempo em que está assentada em ambas.

No sentido proposto por Niklas Luhmann, a confiança é meio para redução da complexidade social, uma vez que antecipa o futuro, que determina as ações do presente como se o futuro fosse certo. Assim, a confiança torna-se instrumento para garantir a coerência e previsibilidade do presente, ante os antecedentes alternativos do passado e das diversas possibilidades do futuro. A confiança fundamenta as ações de uma parte tomando por base as ações que espera de outra, que toma decisões acreditando que as suas expectativas darão origem às conseqüências esperadas. É uma forma importante para organizar as relações, para não tornar caótico os sistemas em que é garantida a liberdade e a autonomia particular de todos os indivíduos.


A sua generalidade fez com que a confiança, portanto, deixasse de ser uma garantia das relações civis, para alcançar relações onde o Estado seria uma das partes. O princípio da proteção da confiança no Direito Público passou a garantir os cidadãos em face de declarações e comportamentos contraditórios ou expectativas criadas pelo Estado. Sobretudo, quando o Estado age de forma discricionária, em que há várias alternativas legítimas e possíveis, dentro dos limites fixados pela lei. Mas mesmo quando o Estado age de forma vinculada, em que sobressai a atuação de acordo com a estrita legalidade, podem ocorrer situações que escapam ao princípio, já que a criação da norma concreta não se limita à mera subsunção da norma ao fato, de modo a surgir a necessidade de se recorrer ao princípio da confiança, como forma de se fazer ou de se preservar a justiça.

No Direito Administrativo, Hartmut Maurer noticia leading case do Tribunal Administrativo Superior de Berlim, vinculando a declaração e comportamento do Estado em favor da confiança legítima do administrado:

A primeira invasão nessa concepção jurídica firme resultou por meio de uma decisão do Tribunal Administrativo Superior de Berlim de 14.11.1956 (DVBL. 1957, 503). Tratava-se do seguinte caso: a demandante, uma viúva de um funcionário, transladou da República Democrática Alemã de então para Berlim-Leste depois de lhe haver sido prometido, por ato administrativo, a concessão de rendimentos de pensão. Um ano depois a autoridade competente comprovou que os pressupostos jurídicos para a concessão, porém, não existiam, os rendimentos de pensão, portanto, haviam sido concedidos falsamente. Em consequência, ela retratou o ato administrativo, suspendeu os pagamentos e exigiu da demandante a restituição dos rendimentos pagos a mais. Isso correspondia, sem mais, à jurisprudência de então. O Tribunal Administrativo Superior de Berlim decidiu, todavia, a favor da demandante. Ele comprovou que, no caso concreto, deveria ser observado não só o princípio da legalidade, mas também o princípio da proteção à confiança. A demandante confiou na existência do ato administrativo e, em conformidade com isso, alterou decisivamente suas condições de vida. Como, no caso concreto, seu interesse da confiança preponderava, o ato administrativo não deveria ser retratado. O Tribunal Administrativo Federal confirmou a sentença do Tribunal Administrativo Superior de Berlim (BVerwGE 9, 251) e, na época posterior, desenvolveu, em numerosas decisões, uma doutrina de retratação ampla e diferenciada4.

A confiança legítima no Direito Administrativo funciona como garantia do administrado, que planeja a sua atuação conforme declarações e comportamentos do Estado, diante do poder da Administração Pública em criar normas ou em anular atos inválidos e revogar atos que se tornam incovenientes ou inoportunos.

Entre nós, Almiro Couto e Silva5 cuidou do tema da confiança do administrado diante de atos contraditórios da Administração com grande entusiasmo. Destaca o autor que as expectativas dos administrados devem ser preservadas contra modificações prejudiciais do direito positivo ou contra anulação de atos pelo Estado, ainda que ilegais, como os praticados pelos chamados “funcionários de fato”. Logo, a confiança do particular deve funcionar como limite de revisão de atos administrativos, ainda que eivados de ilegalidade.

No Direito Tributário, a proteção da confiança legítima é, para Misabel Derzi, princípio autônomo e não desdobramento de outros princípios, como legalidade, irretroatividade, propriedade, direito de personalidade, dignidade da pessoa humana ou igualdade. A confiança seria uma implícita limitação constitucional ao poder de tributar. A Administração Tributária é parte diferenciada da relação obrigacional, tendo em vista que tem a prerrogativa de constituir o crédito que vai exigir, administrativa ou judicialmente. Tal prerrogativa deixa a parte credora numa posição de vantagem em relação à devedora. Para equilibrar a relação que, apesar de ser uma relação obrigacional ex lege, não deixa de ser um vínculo obrigacional, a Constituição já delimita e direciona a atuação da Administração Tributária, através dos princípios expressos como limitações constitucionais ao poder de tributar.

A confiança seria mais uma dessas limitações constitucionais, cuja proteção se torna imperiosa quando a legalidade, a irretroatividade e a anterioridade não são suficientes para garantir a previsibilidade para o contribuinte. Partindo da premissa pela qual onde há domínio de informações não há confiança, portanto, o princípio seria meio de defesa atribuído somente ao contribuinte e nunca à Fazenda Pública.

Para Niklas Luhmann, “a confiança se apóia na ilusão6. Se existe certeza não há necessidade de confiança. A confiança deve servir como garantia para aquele que não tem a totalidade ou, pelo menos, a maior quantidade de informações, que representa uma situação, que age de acordo com a escolha de uma das probabilidades futuras, que acredita na expectativa que foi gerada ou fomentada.

Ainda na doutrina de Misabel Derzi, a confiança tem três características elementares: a permanência dos estados, a antecipação do futuro e a simplificação. Mas a autora não reconhece a confiança, onde existe supremacia sobre os eventos:

Onde há supremacia sobre os eventos/acontecimentos, a confiança não é necessária. Essa constatação é importante nesta tese: a confiança e proteção da confiança não se colocam do ponto de vista do Estado, como ente soberano. Isso porque, nas obrigações ex lege, o Estado tem supremacia sobre os eventos/acontecimentos que ele mesmo provoca, ou seja: as leis, as decisões administrativas e as decisões judiciais na modelação e cobrança dos tributos7

Como lado mais fraco do vínculo obrigacional tributário, o contribuinte que realiza um planejamento fiscal fundado não só nas leis e normas vigentes, mas também nas declarações e comportamentos da Administração Tributária, deve ser reparado se houver uma mudança repentina ou ato contraditório por parte do Fisco, em respeito à sua confiança.

Assim, a confiança do contribuinte deveria ser protegida, como acoplador estruturante e estabilizador do sistema jurídico e da relação tributária, especialmente nos casos de termos fixados com prazos legais (ex: isenções), mudanças de normas agravadoras dos deveres dos contribuintes, mudanças de atos administrativos (lançamentos) que onerem de forma mais intensa os contribuintes, declarações e respostas da Administração Tributária.

É evidente que qualquer reparação do contribuinte por ato contraditório da Administração Tributária depende da comprovação dos requisitos da responsabilidade pela confiança, isto é, depende da demonstração de um ato capaz de gerar expectativas legítimas, de boa-fé do particular e de investimentos decorrentes da declaração ou comportamento anterior.

Pela teoria da confiança, as declarações, documentos, normas e comportamento do Fisco o vincula perante o contribuinte, criando deveres que, se violados, geram a pretensão de reparação, seja através da manutenção da situação de acordo com as expectativas representadas, seja através de criação de regimes de transição conforme o grau de confiança gerada e de investimentos dispendidos, seja através de indenização por perdas e danos. Se adotarmos como modelos de reparação as teorias de responsabilidade civil, a indenização deve corresponder às perdas conseqüentes da quebra de confiança.

Existe considerável resistência da doutrina majoritária em admitir a confiança da Fazenda Pública em relação ao contribuinte, ainda que o particular aja de modo contraditório ou viole expectativas geradas no Fisco, em processos administrativos ou judiciais. Isso porque as declarações, documentos e comportamentos do contribuinte não lhes criam deveres perante a Fazenda Pública, porquanto os deveres na relação jurídica obrigacional tributária devem estar necessariamente previstos pela lei.

Ainda que reconheçamos a inaplicação do princípio da proteção da confiança em favor da Fazenda Pública, por estar a Administração Tributária em posição de vantagem na relação jurídica ou por considerar que as declarações e comportamentos dos contribuintes não criam deveres que sempre decorrem de lei, é mister que se reconheça a necessidade de garantia de estabilidade e previsibilidade tanto para o credor como para o devedor tributário.

Reprimir o abuso de direito e garantir expectativas de uma parte contra mudanças contraditórias de outra são preocupações do Direito em geral e não são máximas a serem aplicadas em casos isolados ou em relações jurídicas específicas.

A teoria do abuso de direito está fundada na evolução do conceito de direito subjetivo, que deixou de ser o poder irrestrito dado ao titular, isentando-o de quaisquer responsabilidades por danos decorrentes do exercício. O direito subjetivo passou a incorporar elementos como a liberdade, a consideração social, a cooperação, a função social, dentre outros.

Em estudo sobre a boa-fé, Menezes Cordeiro dá notícia dos primeiros julgados reconhecendo o exercício abusivo de direito, nos tribunais da França:

As primeiras decisões judiciais do que, mais tarde, na doutrina e na jurisprudência, viria a ser conhecido por abuso de direito, datam da fase inicial da vigência do Código de Napoleão. Assim, em 1808, condenouse o proprietário duma oficina que, no fabrico de chapéus, provocava evaporações desagradáveis para a vizinhança. Doze anos volvidos, era condenado o construtor de um forno que, por carência de precauções, prejudicava um vizinho. Em 1853, numa decisão universalmente conhecida, condenou-se o proprietário que construira uma falsa chaminé, para vedar o dia a uma janela do vizinho, com quem andava desavindo. Um ano depois, era a vez do proprietário que bombeava, para um rio, a água do próprio poço, com o fito de fazer baixar o nível do vizinho. Seguir-se-iam, ainda, numerosas decisões similares, com relevo para a condenação, em 1913, confirmada pela Cassação, em 1915, por abuso do direito, do proprietário que erguera, no seu terreno, um dispositivo de espigões de ferro, destinado a danificar os dirigíveis construídos pelo vizinho8.


Assim, ocorre o abuso de direito quando o titular exerce o seu poder seja sem utilidade própria, ou com a intenção de prejudicar alguém, ou de maneira injusta, ou com fins diversos daqueles atribuídos pela lei. O abuso de direito viola normas, éticas ou jurídicas, e acaba neutralizando e aniquilando o direito ilegitimamente exercido, transformando o ato abusivo em ilícito. Nas palavras de Menezes Cordeiro:

A admissão do abuso de direito tem sido fundada na necessidade de respeitar os direitos alheios, na violação, pelo titular-exercente, de normas éticas, na ocorrência por parte do mesmo titular, de falta e não consideração do fim preconizado pela lei, aquando da concessão do direito9.

Assim, ainda que não haja confiança legítima do Fisco a ser protegida na relação tributária, não é dado ao contribuinte agir de modo contraditório, violando expectativas criadas ou atuando em contrariedade aos fins dos direitos subjetivos que lhes são garantidos.

Os Tribunais pátrios já vêm admitindo casos de abuso de direito de contribuintes em face do Fisco, especialmente tipificados no postulado do venire contra factum proprium. As linhas de proibição do venire contra factum proprium, normalmente, têm o propósito de concretizar a doutrina da confiança. Todavia, podem ser abrangidos na figura da proibição do venire contra factum proprium comportamentos contraditórios originadores ou independentes da confiança, especialmente nos casos de relações jurídicas que se projetam no tempo e que requerem estabilidade e previsibidade.

Estão abrangidas no tipo venire contra factum proprium as situações em que o titular manifesta a intenção de não exercer um direito e depois exerce ou indica não tomar determinada atitude, mas acaba por assumíla. As declarações e comportamentos contraditórios podem impedir a constituição ou modificar direitos subjetivos, retirando do titular o poder potestativo de exercício.

Ainda que as construções acerca do abuso de direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium, tenham se dado no âmbito das relações privadas, proibir e coibir declarações e comportamentos contraditórios é função do Direito, que deve manter a estabilidade e previsibilidade dos vínculos entre os particulares, bem como entre as pessoas e o Estado.

Nesse contexto, Menezes Cordeiro dá conta daquela que foi considerada a primeira aplicação da proibição do venire contra factum proprium em situações de Direito Penal:

Ponto de partida foi a decisão do LG Kaiserlautern 14-Jul.-1995, JZ 1956, 182-183: o R. cometera o crime de estupro – § 182 StGB, na versão em vigor na altura – tendo posteriormente renovado várias vezes as relações com a ofendida, de catorze anos; em defesa, vem dizer que, na primeira vez, desconhecia a idade da ofendida e, que, nas vezes subseqüentes, embora tivesse obtido esse conhecimento, faltava já o requisito da virgindade, por parte da mesma ofendida. O LG Kaiserlaustern não aceitou este argumento, decidindo que o R. não podia recorrer à falta de um requisito que ele próprio suprimira10.

No Direito Tributário, a aplicação do instituto jurídico é até menos controversa, já que não é difícil vislumbrar condutas contraditórias, por parte dos contribuintes, capazes de imputar severos prejuízos à Fazenda Pública.

Utilizamos o parcelamento previsto na Lei 11.941/2009 como exemplo. A Lei 11.941/2009, de dificílima implementação por parte da Administração Tributária, previa nove modalidades de parcelamento. Não obstante, estabelecia iniciativas que em muito dificultavam a consolidação dos parcelamentos, tais como a inclusão no benefício de saldos remanescentes de débitos em outros Programas (REFIS, PAES, PAEX, etc), a inclusão de débitos decorrentes de aproveitamento indevido de créditos de IPI, a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido próprios.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) constataram que vários contribuintes efetuaram opções por modalidades de parcelamento em desconformidade com seus débitos. Diante disso, decidiram que, no momento da consolidação final do parcelamento, em que seria apurado o valor total da dívida a partir de todos os abatimentos, bem como o valor específico de cada parcela, seria dada a opção aos contribuintes para retificar as declarações feitas no momento da adesão.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 03, de 29 de abril de 2010, determinou que os contribuintes que possuíssem pedido de parcelamento validado nos termos da Lei 11.941/2009, deveriam se manifestar sobre a inclusão ou não da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento para as quais havia feito a adesão. A manifestação dos contribuintes consistia em etapa preliminar para a consolidação do parcelamento e servia como fundamento para justificar a suspensão de exigibilidade dos débitos abrangidos pelo benefício.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 11, de 24 de junho de 2010, por seu turno, determinou que os contribuintes que antes haviam se manifestado pela não inclusão da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento previstas pela Lei 11.941/2009 deveriam indicar, de modo pormenorizado, quais os débitos seriam efetivamente incluídos no programa de regularização fiscal.

Como efeito imediato das Portarias, seja para os contribuintes que fizeram a opção por incluir todos os débitos no parcelamento, seja para aqueles que fizeram a opção por não incluir todos os débitos, mas que indicaram os que deveriam ser parcelados, todos os débitos inscritos no parcelamento ficaram com a exigibilidade suspensa. Ou seja, para os débitos incluídos no parcelamento, passaram a ser expedidas as certidões de regularidade fiscal, a ser obstados os ajuizamentos de créditos inscritos em dívida ativa, a ser suspensos os atos de cobrança administrativa, a ser interrompidos os procedimentos de execução judicial, inclusive com a liberação de penhoras realizadas em momento posterior ao da adesão.

Diante desse breve histórico das etapas de consolidação do parcelamento previsto na Lei 11.941, suponhamos que um contribuinte tenha feito a opção por não incluir a totalidade de seus débitos no benefício e tenha indicado aqueles que efetivamente pretendia parcelar. Para os débitos incluídos no parcelamento, o contribuinte obteve certidões positivas com efeitos de negativas e teve bens anteriormente penhorados (dinheiro, imóveis, veículos, etc) liberados nas execuções fiscais nas quais era executado. Suponhamos que na oportunidade de retificação das opções, na etapa final de consolidação do parcelamento, o contribuinte desista de parcelar tais débitos, requerendo o aproveitamento dos pagamentos efetuados para outras dívidas.

Ora a suposição é um típico exemplo de venire contra factum proprium. É perfeitamente possível destacar uma conduta original do contribuinte (a declaração de inclusão de débitos no parcelamento), uma conduta posterior contraditória (a retificação da declaração, incluindo outros débitos) e os prejuízos decorrentes da mudança de comportamento (expedição de certidões, suspensão das execuções fiscais, liberação de bens penhorados).

A declaração e o comportamento contraditório do contribuinte cria para a Fazenda Nacional a pretensão de reparação dos danos provocados pela quebra das expectativas, incluindo a extinção do seu direito subjetivo de proceder à retificação abstratamente permitida.

Portanto, ainda que não haja confiança da Administração Tributária, pois não há criação de obrigações tributárias sem lei anterior que as institua, a previsibilidade e estabilidade da relação jurídica obrigacional e a coerência dos atos e declarações dos contribuintes perante o Fisco devem ser preservados. E um importante meio de garantia consiste na proibição do abuso do direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium.

3 As modificações de jurisprudência em Direito Tributário

Em tese onde expõe com precisão os possíveis efeitos de modificações de jurisprudência em Direito Tributário contra a segurança jurídica, a previsibilidade e a estabilidade das relações entre Fisco e contribuintes, Misabel Derzi alerta que, frente aos atos do Poder Judiciário, os princípios consagrados expressamente nas limitações constitucionais ao poder de tributar são escassos para proteger as expectativas legitimamente geradas nos contribuintes.

A tese da necessidade de proteção da confiança contra modificações de jurisprudência em Direito Tributário que agravem a situação dos contribuintes parte da conclusão de Carnelutti de que toda a decisão judicial veicula uma resposta particular e uma resposta geral. A resposta particular pode declarar a existência ou não de uma relação jurídica, pode constituir ou modificar direitos, pode condenar nos mais diversos tipos de obrigações. Já a resposta geral é dada a partir da análise da pretensão e da fundamentação de sua procedência ou improcedência.

Assim, a resposta particular, ou seja, o dispositivo da decisão, visa a pacificar e compor os conflitos de interesses do caso concreto e está voltada para situações que ficaram no passado. O mesmo não acontece com a resposta geral, que cria a expectativa de que aquele órgão julgador vai fundamentar o mesmo grupo de casos com as mesmas razões. Logo, a resposta geral, ou seja, a fundamentação da decisão, cria uma expectativa normativa voltada para o futuro e não para o passado.


A sentença seria, portanto, ato pluridimensional, já que é prolatada no presente, que julga conflitos de interesses ocorridos no passado, mas que cria expectativas para o futuro, de que casos semelhantes deverão ter a mesma solução, isto é, deverão ter idêntica resposta judicial.

Nessa perspectiva, se é dada uma resposta geral a uma pergunta geral, está criada uma jurisprudência. Posteriormente, se for dada uma resposta geral diferente para aquela mesma pergunta geral, está modificada a jurisprudência original. É para essa mudança repentina de entendimento, própria dos Tribunais Superiores, que modifica norma judicial anterior que gerou expectativas nos jurisdicionados, que deve estar assegurada o princípio da proteção da confiança.

A modificação de atos e normas, seja do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário, é imanente à rotina e ao exercício das prerrogativas do Estado. Normalmente, as mudanças de atos e normas acompanham e se adaptam às mudanças do mundo dos fatos. A tese de Misabel Derzi não questiona a possibilidade de mudanças de jurisprudência, tampouco defende uma higidez permanente ou imutabilidade dos julgados. Apenas busca conciliar as mudanças com as expectativas criadas nos contribuintes que pautaram as suas condutas e empreenderam os seus planejamentos nas declarações e comportamentos anteriores do Poder Judiciário.

Os princípios constitucionais da irretroatividade e não-surpresa se referem às leis e não aos atos do Poder Judiciário. Fragilizadas as limitações constitucionais ao poder de tributar para preservar a justiça no caso concreto, caberia ao princípio da confiança legítima proteger as expectativas normativas criadas pelo Poder Judiciário. Pelo princípio da irretroatividade, regra geral, as leis novas regulam situações futuras e não alcançam situações estabilizadas no passado. Para a jurisprudência, como não vale a irretroatividade, através da confiança legítima as modificações teriam efeito parecido. Assim se expressou a professora mineira:

Dois fatos foram muito importantes, como vimos, para a aplicação análoga do princípio da irretroatividade das leis às mutações jurisprudenciais: a aceitação de que o juiz não apenas aplica mas também cria Direito; e a constatação de que a jurisprudência consolidada é uma norma vinculativa, abstrata, genérica, similar às normas legais. Sem se confundir com as leis, a modificação de jurisprudência consolidada, que se impunha como norma observada por todos, é novo encontro do Direito, parecido com o advento de uma nova lei11.

Vale ressaltar, todavia, que a tese de proteção pela confiança contra modificações de jurisprudência somente garante expectativas dos contribuintes, já que a autora rechaça o alcance do princípio para a defesa de pretensões fazendárias.

Mas o Fisco também está exposto aos mesmos efeitos gravosos, decorrentes da modificação drástica de jurisprudência tributária em seu desfavor. A Administração Tributária também cria expectativas a partir de um entendimento consolidado dos Tribunais e, a partir disso, orienta toda a sua atividade de administração, fiscalização e cobrança de créditos tributários.

Ademais, na relação triangular processual, o Fisco e o contribuinte ocupam vértices opostos mas eqüidistantes do juiz, sendo que as suas decisões vinculam de modo idêntico ambas as partes. Na relação processual, não há privilégios da Administração, nem supremacia dos acontecimentos ou domínio de informações. Na relação processual, vigoram os princípios da imparcialidade do juiz, da igualdade, do contraditório, da liberdade das partes. Para as situações excepcionais em que a Fazenda Pública detém de prerrogativas processuais (como os prazos privilegiados e a ciência dos atos judiciais mediante vista dos autos), todas as ressalvas já estão determinadas pela lei, que é interpretada restritivamente. Portanto, na defesa do mérito das pretensões, vige a isonomia processual entre Fazenda e contribuintes.

Na prática, o que se vê é que essa diferença de forças, entre a Fazenda e contribuinte, geralmente é compensada ou ao menos minimizada pela observância dos princípios formadores do processo. O Poder Judiciário, para cumprir o seu encargo de efetivar a igualdade entre as partes, assume a responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar aquelas que existem entre Fazenda e contribuinte, no sentido empregado por Cândido Rangel Dinamarco:

A leitura adequada do art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, mostra que ele inclui entre os deveres primários do juiz a prática e preservação da igualdade entre as partes, ou seja: não basta agir com igualdade em relação a todas as partes, é também indispensável neutralizar desigualdades. Essas desigualdades que o juiz e o legislador devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo – fraquezas de toda ordem, como pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas fraquezas, fontes terríveis de desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala12 (grifos do autor).

Então, as expectativas da Fazenda perante entendimentos pacificados nos Tribunais não devem ser preteridas ou jogadas à própria sorte ou ao total desamparo. Se a confiança não serve para acolher pretensões fazendárias, é necessário recorrer a outros princípios, tais como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal, o planejamento estatal.

Utilizamos o RE 240.785/MG, ainda em tramitação no Supremo Tribunal Federal, como exemplo. O ICMS, que faz parte do preço das mercadorias e serviços sobre os quais recai o imposto estadual, sempre foi glosado como elemento da base de cálculo do PIS e COFINS, que incidem sobre o faturamento e receita bruta das sociedades devedoras.

A inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS é balizada inclusive por jurisprudência pacificada13 e sumulada14 no Superior Tribunal de Justiça, a quem compete decidir conflitos de interesses fundados em normas infraconstitucionais.

Os diversos precedentes em seu favor criam para a Fazenda Nacional a expectativa normativa de que os Tribunais Superiores dêem para a mesma pergunta geral (o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS?) a mesma resposta geral (por ser parte integrante do preço e por incidir o PIS e COFINS sobre faturamento e receita bruta da empresa, o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS).

Se vencida no STF a tese contrária e modificada a jurisprudência, é imperioso que a Corte proponha a modulação de efeitos da decisão. Se não em razão da confiança nos atos do Poder Judiciário, a modulação pode ter por base, além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99: a boa-fé do Fisco, ao agir em conformidade com a lei e com precedentes judiciais em seu favor; a perda de parte significativa de arrecadação, atentando contra o planejamento, a adequação e equilíbrio das despesas e receitas públicas; a socialização dos deveres e prejuízos decorrentes da solidariedade fiscal.

Contudo, reconhecendo a força vinculante ou persuasiva da jurisprudência dos Tribunais Superiores, admitimos que a quebra de expectativas a partir de modificação de jurisprudência, criando ou majorando obrigações para os contribuintes, ou causando graves prejuízos à atuação da Administração Tributária e aos cofres públicos, deve ser compensada pela modulação de efeitos da nova norma judicial criada.

4 Conclusão

A relação jurídica obrigacional tributária não prescinde da previsibilidade e estabilidade necessárias para a vida em sociedade e perseguidas como um dos fins mais relevantes para o Direito. Não obstante a Constituição brasileira ser uma das mais meticulosas na discriminação dos princípios tributários, há situações concretas em que a justiça fiscal pode escapar às normas constitucionais expressas.

Um cenário de justiça fiscal pressupõe uma correta divisão de bens, deveres e direitos, um dever genérico de não prejudicar, uma relação de lealdade e não de desconfiança entre Fisco e contribuintes. Como já advertiu Niklas Luhmann, a desconfiança tem um potencial imensamente destrutivo, para qualquer sistema. No Tributário, a desconfiança exige que a Administração Tributária aumente progressivamente a exigência e controle de informações dos contribuintes, criando uma infinidade de obrigações acessórias que acabam por aumentar a resistência ao tributo e por incentivar práticas evasivas e sonegatórias.

Nesse sentido, se por um lado a segurança jurídica do contribuinte deve ser otimizada pelos princípios da legalidade, irretroatividade, não surpresa e confiança legítima, a previsibilidade e estabilidade para a Administração Tributária devem ser aperfeiçoadas através da coibição do abuso de direito, especialmente no que tange às declarações e comportamentos contraditórios ou ao venire contra factum proprium.

Do mesmo modo que a atuação contraditória do contribuinte, a modificação de jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, sem alteração relevante das leis, pode causar graves prejuízos à Administração Tributária, requerendo a devida modulação de efeitos da decisão.


Além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99 como causas de restrição de efeitos ou de definição temporal da eficácia da decisão em sede de controle de constitucionalidade pelo STF, outros princípios podem ser invocados para justificar a modulação de efeitos, de modo a favorecer às legítimas expectativas do Fisco.

Notas

1 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 256.
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 936
3 FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
4 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. p. 70.
5 COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
6 LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996, p. 53.
7 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 328.
8 CORDEIRO, Antônio Manuel Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007. p. 671.
9 CORDEIRO, op. cit., p. 680-681.
10 CORDEIRO, op. cit., p. 753.
11 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. p. 550.
12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 208-209.
13 REsp 496.969/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 14/03/2005; REsp 668.571/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 13/12/2004;Resp 572.805/SC, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 10/05/2004; Ag 666.548/RJ, Rel. Min. Luiz Fuz, DJ de 14/12/2005.
14 Súmula 68: A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS. Súmula 94: A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do FINSOCIAL.

Referências bibliográficas

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.
FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
CORDEIRO, Antônio Manuel Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007.
COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996.
MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.


Combate à sonegação é prioridade para o Sindicato

O SINPROFAZ, objetivando dar continuidade à sua agenda de combate à sonegação e luta por Justiça Fiscal realizou audiências importantes na semana passada.


Uma análise crítica acerca da idéia de serviço consagrada na súmula vinculante 21 do STF

Autor: Aldemario Araujo Castro, Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela UFAL. Mestre em Direito pela UCB.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A Súmula Vinculante 31 do Supremo Tribunal Federal afirma que “é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. Adotou-se uma noção historicamente superada de serviço, identificado como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”, e transportou-se para o direito tributário um dos mais restritivos sentidos da noção de serviço, considerando, de forma indevida, uma suposta obrigatoriedade da tributação acolher as construções do direito privado sem modificações. O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, com notas caracterizadoras inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, uma categoria aberta para apreender em sua descrição as transformações da realidade econômico-social. A locação de bens móveis enquadra-se no tipo demarcado pelo vocábulo serviço e pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

I INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal adotou a Súmula Vinculante n. 31 com a seguinte redação: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.

O verbete em questão consagra o entendimento inaugurado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121 e reiterado em vários outros precedentes (RE 455613 AgR; RE 553223 AgR; RE 465456; RE 450120 AgR; RE 446003 AgR; AI 543317 AgR; AI 551336 AgR e AI 546588 AgR).

Em princípio, a edição da aludida súmula seria o desdobramento normal ou natural de uma série de julgados no mesmo sentido. Ocorre que a edição de uma súmula vinculante, a mais radical manifestação do Judiciário, justamente porque obriga os demais órgãos do Poder e a Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, deve ser cercada de importantes e inafastáveis cautelas.

No caso em análise, é possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal não atuou com a sua costumeira prudência. Com efeito, os inúmeros precedentes citados simplesmente repetem a definição adotada na decisão “original” no RE n. 116.121. Essa decisão, por sua vez: a) “inverteu” uma longa tradição jurisprudencial de mais de 30 (trinta) anos; b) transportou para o direito tributário uma noção tradicional acerca da idéia de serviço construída (ao longo do tempo) nos domínios do direito privado e c) não levou, na devida conta, toda uma aguda e estratégica reflexão acerca da evolução e da crescente importância dos serviços como atividade econômica1.

Esse escrito pretende explorar os dois últimos aspectos destacados e aparentemente desconsiderados ou subdimensionados pelo Excelso Pretório ao adotar o enunciado vinculante com o número trinta e um.

II OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA SÚMULA VINCULANTE STF N. 31

Como foi destacado, a origem da Súmula Vinculante STF n. 31 remonta ao julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.1212. Essa decisão marca uma importante mudança de rumos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, observada, quanto ao assunto, por cerca de 30 (trinta) anos.

Vingou, no julgamento do RE n. 116.121, uma espécie de interpretação “fechada” ou “estática”. Prevaleceu o argumento de observância inafastável, no direito tributário, das definições do direito civil, como pode ser observado na ementa3 e nos votos e manifestações dos Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Moreira Alves, todos invocando os termos do art. 110 do Código Tributário Nacional4. Como conseqüência, sagrou-se vitorioso o raciocínio extremamente restritivo (e equivocado) de que a prestação de serviço envolve tão-somente esforço humano (conforme o Ministro Marco Aurélio5) ou obrigações de fazer (consoante o Ministro Celso de Mello6 e o Ministro Sepúlveda Pertence7).

Dois questionamentos fundamentais emergem da leitura cuidadosa do acórdão lavrado em decorrência do ajustado pela Corte Maior no RE n. 116.121:

  1. existe uma necessária relação de dependência do direito tributário para com os domínios do direito privado (institutos, conceitos e formas)?
  2. as transformações econômicas, sociais e tecnológicas afetam (ou atualizam) as categorias8 manuseadas para delimitar a tributação? Importa destacar, e é fácil de perceber ou aquilatar, a importância dos questionamentos e de suas respostas para além da temática específica da tributação da locação de bens móveis.

III AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO TRIBUTÁRIO E OS DEMAIS RAMOS DO DIREITO

Costuma-se afirmar com freqüência e considerável aceitação que o direito tributário é um direito de sobreposição. Nesse sentido, certas categorias científicas (institutos, conceitos e formas, notadamente) presentes nos vários ramos do direito, em especial no campo do direito privado, deveriam ser respeitados e aproveitados na seara tributária tal como conformados na sua “origem”9.

Impõe-se, no entanto, afirmar e reafirmar que não se coaduna com a ordem jurídica brasileira, assim como atualmente assentada, a aludida premissa do direito de sobreposição. Nessa linha, podem ser identificados três equívocos fundamentais na formulação. São eles: a) desconsideração de importantíssimas normas jurídicas integrantes do sistema constitucionaltributário; b) interpretação incorreta de normas definidoras de diretrizes interpretativas inscritas no Código Tributário Nacional e c) desprezo pelo difícil, e ao mesmo tempo rico, processo de construção e assimilação de categorias a serem utilizados pelas diversas normas jurídicas para representar parcelas da realidade de interesse da tributação.

O primeiro equívoco destacado decorre do “esquecimento” do disposto no art. 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição10. Na norma em questão, o constituinte autorizou expressamente o legislador tributário a definir os fatos geradores e bases de cálculo dos impostos. Por conseguinte, o legislador tributário não está obrigado a buscar nos domínios do direito privado ou de qualquer outro ramo do direito os conteúdos das categorias necessárias para operacionalizar a tributação pelos impostos e, por extensão, pelos demais tributos previstos na Constituição. Um importantíssimo e emblemático exemplo do exercício dessa possibilidade pode ser observado nas definições de renda e proventos de qualquer natureza presentes no art. 43 do Código Tributário Nacional11.

O segundo equívoco envolve certas interpretações dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional. O aludido art. 10912 fixa uma diretriz hermenêutica relacionada com a pesquisa dos conteúdos dos conceitos, ou seja, com a busca da abrangência desses últimos. A norma estabelece um balizamento para o desenvolvimento, e não para a conclusão, do processo de interpretação. Assim, em função desse comando legal, o legislador tributário não se encontra impedido de construir categorias (conceitos, definições, institutos ou formas) paralelas e especiais em relação aos já existentes no seio do direito privado. Ademais, a leitura inversa do art. 110 do Código Tributário Nacional confirma essa última afirmação. Ali está dito que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados constitucionalmente para a conformação de competências impositivas. Portanto, se os institutos, conceitos e formas não são de direito privado13 ou, sendo de direito privado, não são delimitadores constitucionais de competência tributária, podem ser alterados pelo legislador tributário.

Registre-se que o art. 110 do Código Tributário Nacional viabiliza interpretações particularmente extremadas, denunciando uma visão muito particular das relações entre o direito privado e o direito tributário. Já se afirmou que os conteúdos dos conceitos manuseados no campo tributário “são aqueles que estavam contidos na lei privada em vigor na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988”14. Tal premissa não pode vingar. Não é esse o sentido ou o propósito do comando veiculado pelo art. 110 do Código Tributário Nacional. Pretende-se, com aquele dispositivo, limitar a ação do legislador tributário, afastando a manipulação artificial ou arbitrária de categorias jurídico-científicas com a finalidade de alargar indevidamente o espaço da tributação. O preceito em destaque não está vocacionado para barrar as repercussões legislativas, inclusive tributárias, das mutações sociais, econômicas, tecnológicas e congêneres, que independem da “vontade” do legislador e são dados ou elementos inexoravelmente postos pela realidade subjacente ao fenômeno tributário.

O terceiro dos vícios cogitados consiste numa peculiar forma de se encarar e trabalhar com as categorias jurídico-científicas representativas da realidade de interesse da tributação. O legislador tributário pode se utilizar de conceitos, institutos ou formas (categorias) denotativos de faixas da realidade com conteúdo econômico desenvolvidos no âmbito do direito privado. Nessas hipóteses, tais categorias não precisam ser reconstruídas no espaço tributário, porque já consolidados no direito privado mais antigo, de maturação mais longa. Assim, tais categorias serão tomadas com os contornos presentes no campo do direito privado. Ocorre que o legislador tributário pode reformular conceitos de direito privado15, não havendo óbice jurídico para tal labor. Ao contrário, esse rumo está expressamente autorizado pela Constituição, particularmente na dicção do art. 146, inciso III, alínea “a”. Tais categorias serão aplicadas, a partir do conhecido e festejado critério da especialidade, paralelamente às de direito privado, observando os limites já mencionados16.


Diante do que foi apresentado, é perfeitamente viável afirmar que as categorias jurídico-científicas, representativas de parcelas da realidade e utilizadas na operacionalização da tributação, não estão necessariamente adstritas aos processos de formação oriundos de outros quadrantes do direito, particularmente do direito privado17.

Portanto, sustenta-se18 ter o Supremo Tribunal Federal militado em profundo equívoco técnico-científico quando fincou seu entendimento acerca da abrangência da noção de serviço, para efeitos da tributação pelo imposto sobre serviços (ISS) da locação de bens móveis, em um suposto e necessário transplante das concepções civilistas para o campo tributário.

IV A NOÇÃO CONSTITUCIONAL DE SERVIÇO COMO TIPO

IV.1 Do conceito ao tipo

O principal condicionamento da tributação no Brasil, na perspectiva de quais fatos com densidade econômica serão alcançados pelas exigências fiscais, consiste na delimitação constitucional dos âmbitos materiais de incidência, a serem observados por ocasião da instituição dos principais tributos.

Com efeito, a Constituição, com sua natural força de conformação de toda a ordem jurídica a ela subordinada, expressamente aponta faixas da realidade, com significado econômico, sobre as quais pode ser manejada a criação ou instituição das exigências pecuniárias de natureza tributária. O Texto Maior aponta ou identifica as tais faixas ou parcelas da realidade econômica por intermédio de termos ou vocábulos especiais. Eis alguns dos mais relevantes: importação, exportação, renda, proventos, produtos, mercadorias, serviços, faturamento, receita, propriedade, crédito, câmbio, seguro, títulos ou valores mobiliários, doação, folha de salários, rendimentos e lucro.

Esses termos ou vocábulos especiais funcionam, como antes destacado, como categorias jurídico-científicas representativas da realidade e essenciais para a operacionalização da tributação. Normalmente, até mesmo por influência do art. 109 do Código Tributário Nacional, são caracterizados como conceitos (institutos ou formas).

Ocorre que o conceito é uma categoria científica com sentido bem definido e viabilizador de uma concepção singular do fenômeno da tributação 19 20 21. O conceito, também denominado, e com propriedade, de conceito classificatório ou de classe, pretende capturar os componentes da realidade mediante a identificação de suas características ou traços essenciais. Assim, presentes as características ou traços definidos no conceito, têm-se o objeto ou dado da realidade conceituado. Os conceitos, como é fácil de perceber, viabilizam, por excelência, o raciocínio pela via da subsunção (do “tudo ou nada”). De duas uma: ou se está diante do objeto conceituado (por conta da presença das características fixamente enumeradas) ou não se trata daquela “coisa” conceituada22.

A utilização dos conceitos, notadamente de forma exagerada e acrítica, enseja conseqüências profundamente negativas. Afinal, o conceito cristaliza ou “eterniza” determinados traços ou características frente a uma realidade econômica, social e tecnológica em contínua mutação. No campo jurídico, particularmente no tributário, um conceito, construído num determinado contexto histórico, permite sua projeção (eventualmente indevida) para aplicação em outras circunstâncias históricas completamente distintas, quando suprimidas ou acrescentadas características ao dado ou objeto da realidade a ser representado.

Por conseguinte, o conceito (o conceito classificatório ou de classe) não se mostra como a categoria jurídico-científica adequada para representar as parcelas da realidade de interesse da tributação inscritas no Texto Maior. São duas as razões básicas para tal afirmação. A primeira, consiste no fato de que o texto constitucional está voltado naturalmente para capturar as realidades econômicas mutáveis. A Constituição não se pretende uma “trava” à consecução de seus próprios objetivos, somente realizáveis com o adequado financiamento, via tributação, das despesas necessárias. A segunda razão, aponta para a conformação da tributação necessariamente sob os imperativos da capacidade contributiva dos cidadãos. Nesse sentido, as manifestações de capacidade contributiva sob novas formas de desenvolvimento de atividades econômicas tradicionais não podem, nem devem, escapar da tributação23.

Portanto, a tributação atual ou moderna, mergulhada numa realidade econômica e social complexa e em frenética mutação, precisa recorrer às várias categorias jurídico-científicas possíveis (e disponíveis): conceitos (determinados e indeterminados), cláusulas gerais e tipos. Somente a riqueza de todas as categorias mencionadas pode dar conta da apreensão adequada da realidade para fins de tributação. Limitar o fenômeno tributário aos conceitos significa condenar a atividade tributária a uma miopia inaceitável, considerando a necessidade de financiamento das despesas públicas por intermédio de novas manifestações econômicas que demonstram, de forma inequívoca, capacidade contributiva.

Por outro lado, o tipo mostra-se como “um sistema elástico de características”, marcado pela abertura, pela gradação, pela flexibilidade e facilitador ou viabilizador da apreensão dos fenômenos econômicos mais importantes para a tributação, justamente aqueles descritos pelo constituinte. Nesse rumo, o tipo funciona como uma categoria alternativa ao conceito e visceralmente mais adequada para lidar com as flutuações intensas da realidade econômica 24 25 26. Portanto, os vocábulos constitucionais delimitadores da realidade econômica tributável são, em verdade, tipos.

Erroneamente, o tipo foi introduzido no direito tributário brasileiro com o sentido de algo “fechado” ou “hermético”. Daí surgiram as expressões “tipo tributário” e “princípio da tipicidade fechada ou cerrada”. Em verdade, o “tipo fechado” mostra-se como uma contradição em termos 27 28. Se é tipo é aberto. Se é fechado é conceito. Não existe o “tipo fechado”, assim como não existem o “frio quente” ou o “branco preto”.

Sintomaticamente, constatam-se inúmeras e crescentes reflexões jurídico-tributárias voltadas para colher da realidade econômico-social de fundo, embora sem o recurso expresso à idéia de tipo, a extensão, em cada momento histórico, dos termos manuseados pelo constituinte29. Mantémse, assim, o diálogo dialético da Constituição com a realidade social. Esse diálogo, aliás, é uma das essências e sentidos da Constituição. O Texto Maior decididamente não pode operacionalizar o direito divorciado da realidade econômico-social e de sua evolução.

IV.2 O serviç o como tipo constitucional-tributário

Entre os vários tipos constitucionais-tributários, o serviço aparece como um dos mais ricos e complexos. Justamente porque as mudanças no campo econômico produziram um considerável alargamento do que se entende por serviço, adotada como ponto de partida a idéia de serviço como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”30.

O sentido do vocábulo absorveu de tal forma a complexidade da realidade econômica e a representação de uma gama tão ampla de atividades que a famosa revista The Economist chegou a consignar serviço como “qualquer coisa vendida que não cai em seus pés”31.

Observa-se, ademais, que no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços (AGCS ou GATS, na sigla em inglês) houve uma deliberada esquiva de se definir, na atualidade, o que significa, com razoável nível de precisão, a idéia de serviço. O caminho trilhado buscou uma delimitação dos modos de prestação de serviços (em quatro grandes blocos).

A ampliação da idéia de serviço para além de uma “obrigação de fazer” ou da “energia humana voltada para determinado fim” não é arbitrária. Corresponde o aludido alargamento a um fenômeno presente na realidade sócio-econômica em contínua evolução, perfeitamente capturado pela idéia de tipo. Por outro lado, tal amplitude está consagrada na ordem jurídica brasileira pelo menos no Código de Defesa do Consumidor32 e na Lei de Licitações e Contratos Administrativos33. Nesses diplomas legais, o sentido de serviço gravita em torno das idéias de atividade e de utilidade dessa última resultante. Na própria Constituição observa-se a definição de que a soma das atividades de venda de mercadorias e de serviços abarca todos os bens ou “coisas” oferecidas no mercado34, surgindo daí uma noção extremamente ampla, mas não arbitrária, de serviço.

A noção em questão, vista como tipo, pode ser atualmente enunciada, somente para efeitos práticos, como “a realização de atividade econômica voltada para produzir alguma utilidade para terceiro”. Assim, não escapa da caracterização como serviço a locação de bens móveis.

Registre-se, ademais, que o termo serviço foi incorporado na ordem jurídica brasileira para retratar, de forma ampla, os negócios com bens imateriais. Como que numa antevisão da crescente complexidade do setor de serviços, a história da introdução do imposto sobre serviços (ISS) no Brasil demonstra claramente a pretensão de gravar globalmente os negócios jurídicos voltados para a circulação de bens imateriais.

Com efeito, na maioria dos países existe um só tributo (normalmente imposto) que incide sobre a venda de bens (materiais – mercadorias ou imateriais – serviços). No Brasil, como exceção, a circulação de bens foi apartada em dois tributos: o antigo imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM) e o imposto sobre serviços (ISS). O primeiro foi atribuído aos Estados e o segundo aos Municípios. A separação realizada no Brasil buscou tão-somente contemplar os vários entes da Federação com tributos próprios, concorrendo para a autonomia financeira dos mesmos. Não existia a menor pretensão de deixar lacunas entre o antigo ICM e o ISS com a circulação, comércio ou venda de atividades econômicas não abrangidas por nenhum dos dois tributos35.


A cláusula constitucional “de qualquer natureza”, presente no art. 156, inciso III36, aponta no sentido antes destacado. Busca, inequivocamente, flagrar as mutações substanciais no sentido do que entende ou designa por serviço. O constituinte ao utilizar a expressão destacada já sinalizava para uma compreensão acerca da fluidez e mutabilidade da noção de serviço. Ademais, a expressão não está relacionada com a lista de serviços, eis que esse papel, de especificar os serviços tributáveis, foi expressamente conferido à lei complementar de caráter nacional.

V CONCLUSÕES

Ao editar a Súmula Vinculante n. 31 o Supremo Tribunal Federal insistiu em profundo e lamentável equívoco, já manifestado por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121. Com efeito, adotou uma noção historicamente superada e estática de serviço, identificado tãosomente como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”. Ademais, buscou, também de forma reprovável, transportar para a Constituição e para o direito tributário um dos sentidos (mais restritivo) da noção de serviço, considerando de forma indevida uma suposta obrigatoriedade do universo tributário acolher as construções do direito privado sem modificações.

O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, notadamente no tempo, de notas e características inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, justamente uma categoria aberta para apreender em sua descrição os movimentos e transformações da realidade econômico-social.

Em suma, o termo serviço, assim como tantos outros lançados no Texto Maior com o objetivo de recortar partes da realidade econômica a serem operacionalizados pela tributação, aparece como um tipo moldado pelos imperativos das mutações observadas do contexto histórico subjacente.

Por conseguinte, a locação de bens móveis enquadra-se no tipo constitucional-tributário demarcado pelo termo ou vocábulo serviço e, na medida da previsão em lei complementar específica, pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

Essa conclusão aponta para a necessidade, mais cedo ou mais tarde, de revisão ou cancelamento da Súmula Vinculante n. 31, nos termos do art. 103-A da Constituição37.

Notas

1 Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, “ao longo das últimas décadas, o setor de serviços vem apresentando maior dinamismo e as maiores taxas de crescimento na economia global. Em termos gerais, representa mais de 60% da riqueza mundial, empregando ao menos um terço da mão-de-obra do planeta e respondendo por mais de 20% do comércio internacional”. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272. Acesso em: 30 out. 2010.
2 Os demais precedentes são meras reproduções, na voz de cada relator, do julgado original.
3 “TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional”.
4 “O precedente do Supremo Tribunal Federal que melhor elucida essa orientação é relativo justamente à incidência do ISS sobre a locação de guindastes, que veio a representar uma mudança na sua jurisprudência em relação à posição acolhida quando do julgamento do RE n. 112.947-6. Após trinta anos de cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, foi reconhecida a inconstitucionalidade de tal prática ao ser julgado o RE n. 116.121-3, acolhendo-se a tese do ‘império do Direito Privado’”. VELLOSO (2005:81).Art. 110 do Código Tributário Nacional: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
5 “Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento”.
6 “… eis que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer … Cabe advertir, neste ponto, que a locação de bens móveis não se identifica, e nem se qualifica, para efeitos constitucionais, como serviço, pois esse negócio jurídico – considerados os elementos essenciais que lhe compõem a estrutura material – não envolve a prática de atos que consubstanciam um praestare ou um facere”.
7 “Não me convenci, data venia, de que o contrato em discussão, o contrato de locação de máquinas, de guindastes, contenha obrigação de fazer”.
8 O termo “categoria” será utilizado para designar as várias fórmulas lingüísticas, com conformações científico-metodológicas diversas, representativas da realidade e fundamentais para a operacionalização da tributação (conceitos, tipos, institutos, formas, noções, idéias, etc).
9 “Necessariamente, pelo princípio da capacidade contributiva, o direito tributário deve incidir sobre fatos com relevância econômica e, considerando que esses fatos já são juridicizados por outros ramos do direito (renda, mercadoria, faturamento, importação, transmissão, doação, etc), o direito tributário sempre incide sobre outras linguagens normativas. É o chamado direito de sobreposição, segunda a concepção clássica de Gian Antonio Michelli./Com exceção dos tributos vinculados, as hipóteses de normas tributárias têm por conteúdo situações previamente reguladas pelo direito privado, que abordam atividades economicamente apreciáveis realizadas por sujeitos de direito privado, que, sob a óptica da tributação, passam a ser contribuintes./O ISS, por sua vez, tem por base as obrigações de fazer, oriundas do direito privado, conforme veremos a seguir./[…] É tradicional a classificação civilista das obrigações, separando-as em obrigações de dar, de fazer e de não-fazer. Orlando Gomes afirma, inclusive, que são apenas esses três modos da conduta humana que podem se constituir objeto da obrigação./[…] A distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer é relevante para o ISS, pois este sendo um imposto que incide sobre ‘prestação de serviço’, pela própria definição só pode ter como base as obrigações de fazer”. CARVALHO (2008:639-640).
10 “Cabe à lei complementar: […] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
11 “O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”.
12 “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.
13 Esse dispositivo (o art. 110 do CTN) está impregnado da falsa concepção de que o direito privado é o berço de todo o direito e consegue construir, de forma global ou total, categorias representativas de toda a realidade a ser operacionalizada pelo direito.
14 “Isto é assim porque, se assim não fosse, uma simples alteração de lei ordinária federal sobre o direito privado poderia afetar competências tributárias que somente podem ser modificadas ou excluídas através de emenda constitucional. Por exemplo, qualquer nova definição de imóvel ou mercadoria, por lei ordinária federal voltada para as relações de direito privado, embora essa lei seja válida porque promulgada no exercício da competência da União para reger esse ramo do direito, poderia atingir indevidamente as competências tributárias dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, caso em que não teria extensão ao direito tributário por falecer tal competência àquele tipo de lei”. OLIVEIRA (2004:185).
15 Não custa registrar a possibilidade do legislador tributário construir o conteúdo de “noções” ou “idéias” inexistentes ou em processo de formação no direito privado ou em outros quadrantes do direito.
16 As considerações desse tópico aproveitam reflexões do autor presentes no artigo intitulado Aplicação no Direito Tributário da Desconsideração da Personalidade Jurídica prevista no Novo Código Civil.
17 “Não há um primado do direito privado, pois, sem dúvida, é viável que o Direito Tributário – e primordialmente o Direito Constitucional Tributário – adote conceitos próprios. A possibilidade de o Direito Tributário elaborar conceitos específicos decorre, em última análise, do fato de ser direito positivo. Seus preceitos, por inserirem normas jurídicas no ordenamento, são hábeis, como quaisquer enunciados jurídicos-positivos, a inovar no sistema jurídico, seja pela ab-rogação, derrogação e criação ab initio de normas. Os conceitos conotados por seus enunciados podem identificar-se com aqueles consagrados em dispositivos já vigentes. Mas essa realidade não é necessária. Nem mesmo a necessidade de se proceder à exegese rigorosamente jurídica do texto constitucional implica a inexorável incorporação, pela Constituição, de conceitos jurídicos infraconstitucionais, …” VELLOSO (2005:87).


18 Com todas as vênias de estilo devidas à Corte Suprema, que não é infalível. Lembra-se, aliás, a afirmação atribuída a Nelson Hungria no sentido de que o STF “apenas tem o privilégio de errar por último”.
19 “Esta obra apesar de afirmar que o pensamento tipológico não é adequado à Ciência do Direito Tributário e do Direito Penal, campos onde o espaço reservado aos tipos é muito pequeno, é revolucionária apenas no sentido técnico-formal./Do ponto de vista material, a tese não destrói, mas afirma clássicos princípios jurídicos, os quais, não obstante, são melhor atendidos por meio dos conceitos determinados do que por meio das estruturas flexíveis e fluídas do pensamento de ordem, que são os tipos. Ela não rompe com a Ciência do Direito, pois, retificadas as questões terminológicas entre tipo e conceito, reconhece a importância do pensamento lógico-sistemático”. DERZI (2007:32). 20 “No entanto, tal posicionamento [tipicidade fechada fundada em conceitos] acaba construindo uma idéia de legalidade que se sobrepõe à sua própria finalidade, que é garantir o sentido material do Estado de Direito”. RIBEIRO (2009:82).
21 “No entanto, se Misabel de Abreu Machado Derzi reconhece a inexistência de uma estrutura tipológica fechada, parte de outro pressuposto teórico para entronizar o valor segurança jurídica no Direito Tributário. Segundo a referida autora, neste ramo da ciência jurídica, assim como no Direito Penal, em razão da necessidade exacerbada de segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos classificatórios sobre a estrutura tipológica. Como se vê, o reconhecimento da inexistência do tipo fechado, o que, aliás, é feito com extrema competência, leva aos mesmos resultados encontrados pela teoria que o entronizou: o fechamento dos conceitos de direito utilizados pelo legislador tributário”. RIBEIRO (2009:83-84).
“A concepção de Misabel Derzi, do ponto de vista substancial, se aproxima da de Alberto Xavier, embora tenham esses autores desenvolvido argumentos diferentes. Misabel proclama que o tipo é aberto mas o expulsa, juntamente com o conceito indeterminado, do campo tributário, onde prevalece apenas o conceito determinado fechado, ou os converte em conceitos determinados. Xavier diz que o tipo é fechado e o assimila ao conceito determinado. O resultado é o mesmo: ambos engessam no conceito fechado a possibilidade de aplicação do direito tributário”. TORRES (2006:9).
22 “Só um conceito geral abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas ‘a, b, c’, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características ‘a, b e c’. Diz-se, então, que há subsunção. Para o conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: ‘cada X é A ou não-A’. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão ‘ou um, ou outro’, Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não”. DERZI (2007:52-53).
23 “A ideia de cidadania está vinculada a um conjunto de direitos e deveres de que gozam ou a que estão submetidos os indivíduos pertencentes a uma comunidade. Pressupõe a igualdade de todos os cidadãos perante tal estatuto, impondo o dever de contribuir para o suporte financeiro do Estado e o direito de participação política./Ao lado do reconhecimento da supremacia da liberdade e dos direitos fundamentais frente aos demais valores constitucionais, é de se reconhecer que todos os direitos têm custos públicos./O custo de um Estado que tem como premissa a liberdade e como valor fundamental a dignidade da pessoa humana deve ser suportado por todos os seus membros. Essa é a ideia de cidadania fiscal, que se materializa no dever fundamental de pagar impostos./O imposto é assim entendido como a contribuição indispensável dos membros da comunidade para o Estado, a fim de que este possa atingir os seus objetivos, constitucionalmente delineados”. CAMPOS (2009:28). O Procurador da Fazenda Nacional Gustavo Caldas escreve sob a influência direta e declarada do jurista português Casalta Nabais, notadamente na destacada obra O dever fundamental de pagar impostos.
24 “Em geral, aborda-se a oposição entre o conceito classificatório de classe e o moderno, de tipo. Enquanto o conceito classificatório é seletivo e rígido, excluindo ou incluindo o objetivo que, de acordo com suas propriedades, pertença ou não ao conjunto, o tipo é um conjunto não delimitado, fluido que não trabalha com a relação de exclusão ‘ou … ou’ mais sim com um ‘até um certo grau’ ou ‘mais ou menos’ “. DERZI (2007:44-45).
25 “Tipo é a ordenação dos dados concretos existentes na realidade segundo critérios de semelhança. Nele há abstração e concretude, pois é o encontrado assim na vida social como na norma jurídica. Eis alguns exemplos de tipo: empresa, empresário, trabalhador, indústria, poluidor. O que caracteriza o tipo ‘empresa’ é que nele se contêm todas as possibilidades de descrição de suas características, independentemente de tempo, lugar ou espécie de empresa. O tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta, com as suas conexões de sentido. Segue-se, daí, que a noção de tipo admite as dessemelhanças e as especificidades, desde que não se transformem em desigualdade ou anormalidade. Mas o tipo, embora obtido por indução a partir da realidade social, exibe também aspectos valorativos. O tipo, pela sua própria complexidade, é aberto, não sendo suscetível de definição, mas apenas de descrição. A utilização do tipo contribui para a simplificação do direito tributário. A noção de tipo é largamente empregada também nas ciências sociais: Max Weber utilizou o conceito de tipos ideais. Jung fez circular a idéia dos tipos psicológicos”. TORRES (2006:2-3).
26 “Por essas razões, a indeterminação da linguagem humana da qual se serve o Direito, sempre dotada de caráter plurissignificativo, bem como a necessidade de adequação da lei à realidade fática, cada vez mais surpreendente, imprevisível e inexplicável com base nas lições extraídas do passado, fazem com que o legislador, inclusive o tributário, privilegie a utilização de tipo em detrimento dos conceitos abstratos, cada vez menos capazes de estabelecer conexões de sentido com o mundo dos fatos”. RIBEIRO (2009:96).
27 “Por outro lado, a idéia de uma tipicidade fechada também encarna uma impropriedade metodológica, revelando uma contradição em termos. Senão vejamos. […] De fato, segundo o posicionamento adotado pelo citado autor alemão [Karl Larenz] nas últimas edições de sua obra clássica [Metodologia da Ciência do Direito], a estrutura tipológica é sempre aberta, ao contrário do conceito abstrato, que em situações ideais apresenta-se fechado”. RIBEIRO (2009:83).
28 “Há quem fale em tipos abertos ou fechados. O tipo fechado não se distingue do conceito classificatório, pois seus limites são definidos e suas notas rigidamente assentadas./No entanto, como nova metodologia jurídica, em sentido próprio, os tipos são abertos, necessariamente abertos, com a características que apontamos. Quando o direito ‘fecha’ o tipo, o que se dá é a sua cristalização em um conceito de classe./Neste contexto, a expressão ‘tipo fechado’ será uma contradição e uma impropriedade”. DERZI (2007:58).
29 O Ministro GILMAR MENDES, ao votar no RE n. 357.950, demonstra a plena licitude da determinação ou densificação das noções constitucionais mais gerais utilizadas no campo da tributação: “Porém, como o Texto constitucional, inevitavelmente, adota esses conceitos de uso comum, precisamos, de fato, ter uma abertura para uma compreensão mais ampla desses institutos, sob pena de, em algum momento, incidirmos naquilo que muito se censura, de fazer-se a interpretação da Constituição de forma clara, segundo uma determinada lei ou determinada concepção dominante num dado momento histórico. […] Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição. Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade, […] As disposições legais a ela relativas têm, portanto, inconfundível caráter concretizador e interpretativo. E isto obviamente não significa a admissão de um poder legislativo ilimitado. Nesse processo de concretização ou realização, por certo serão admitidas tão-somente normas que não desbordem os múltiplos significados admitidos pelas normas constitucionais concretizadas”. No julgamento do HC n. 96.772, pelo Supremo Tribunal Federal, observa-se a manifestação, com feliz precisão, do Ministro CELSO DE MELLO no sentido da “legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea”.
30 O tributarista MARCO AURÉLIO GRECO aponta com propriedade o rumo dos debates e das considerações mais modernas acerca da idéia de “serviço”. Procura, o ilustre jurista, justamente afastar uma noção limitada e atrasada historicamente que restringe a noção de serviço a uma “obrigação de fazer” ou a uma “atividade humana em benefício alheio”. Eis as importantes palavras de MARCO AURÉLIO GRECO: “No passado recente, informado pela idéia de ‘causalidade’, um elemento fundamental para definir relevâncias era dado pela noção de atividade realizada. Daí apontarem-se tipos de atividades, suas características, qualidade etc., a partir das quis definiam-se os respectivos regimes e valores. À atividade ‘tal’ correspondia uma remuneração ‘qual’, certa atividade tinha valor maior ou menor do que outra atividade; maior a atividade, maior a remuneração; e assim por diante./ Esta visão levou à formulação da noção de serviço como um tipo de atividade que representaria determinado esforço humano exercido por alguém. A idéia de atividade é tão nítida a ponto de vivermos, no âmbito tributário, sob um regime de lista de atividades (‘serviços’). A lista é muito útil para identificar a matéria tributável e resolver eventuais conflitos de competência tributária, mas reafirma o critério básico, qual seja, apoiar-se na natureza de certas atividades. Neste contexto, a respectiva remuneração é tributariamente vista como a contraprestação da atividade exercida. Em suma, paga-se porque alguém ‘faz’ algo./O mundo moderno tem mostrado que a atividade não é mais o único elemento relevante para fins de definição dos valores das negociações realizadas. Se olhar do ângulo do produtor levou à identificação da atividade exercida como elemento relevante (inclusiva para fins de tributação), olhar do ângulo do cliente leva ao surgimento de uma outra figura que é a utilidade./Muito freqüentemente, as pessoas dispõem-se a pagar determinada remuneração não pela natureza ou dimensão da atividade exercida pela outra pessoa, mas, principalmente, pela utilidade que vão obter. O valor não está mais apenas na atividade do prestador, mas também na utilidade obtida pelo cliente./Diante desta realidade, utilizar o conceito de serviço (como expressivo de uma atividade) para fins de qualificação da matéria tributável é também deixar à margem da tributação significativa parcela da atividade econômica exercida no mercado e que é formada pelo fornecimento de utilidades, no mais das vezes imateriais e que resultam de atividades novas, não alcançadas pelo conceito tradicionalmente utilizado./ Isto mostra a insuficiência do conceito tradicional de serviço para alcançar tributariamente estas novas realidades em que, muitas vezes, o beneficiário não está buscando a atividade do outro, mas sim a utilidade que irá obter.” GRECO (2000:96-97).


31 Referência localizada em página do site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272 . Acesso em: 30 out. 2010.
32 “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3o., parágrafo segundo, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990).
33 “Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;” (art. 6o., inciso II, da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993).
34 Eis um exemplo emblemático: “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:” (art. 173, parágrafo primeiro).
35 Nesse sentido, as palavras de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES são elucidativas: “O ISSQN onera a circulação de bens que não são mercadorias, isso é, que não sejam bens materiais ou incorpóreos. O imposto municipal onera a circulação de bens materiais, de bens incorpóreos, considerandos serviços. Recai, assim o ISSQN, sobre a prestação, a título oneroso, realizada por uma pessoa em favor imposto oneradas pelo imposto são representadas como de venda de bens imateriais (fornecimento de trabalho a terceiros, locação de bens móveis e cessão de direitos)”. MORAES (1993:285-286). Não é outra a lição de CELSO RIBEIRO BASTOS: “Esses serviços devem ser entendidos no sentido econômico, ou seja, bens imateriais que se encontram na circulação econômica, em oposição aos bens materiais ou corpóreos. Abrangem, assim, além do fornecimento de trabalho, a locação de bens móveis, hospedagem e guarda de bens”. BASTOS (1991:271).
36 “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.
37 “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

Referências Bibliográficas

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1991.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 96.772. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 25 out. 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 116.121. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 25 out. 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 357.950. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 25 out. 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 31. Brasília. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 25 out. 2010.
CAMPOS, Gustavo Caldas Guimarães de. Execução fiscal e efetividade. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
CARVALHO, Cristiano. In: Marcelo Magalhães Peixoto e Rodrigo Santos Masset Lacombe (Coordenadores). Comentários ao Código Tributário Nacional. 2. ed. São Paulo: MP Editora, 2008.
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GRECO, Marco Aurelio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000.
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Imposto sobre serviços de qualquer natureza. In: Ives Gandra da Silva Martins (Coordenador). Curso de Direito Tributário. 2. ed. Vol. 2. Belém: CEJUP, 1993.
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reflexos do Novo Código Civil no Direito Tributário. In: Eduardo de Carvalho Borges (Coordenador). Impacto Tributário do Novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004.
RIBEIRO, Ricardo Lodi. Temas de Direito Constitucional Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
TORRES, Ricardo Lobo. O Princípio da Tipicidade no Direito Tributário. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, fev/mar/abr de 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado. com.br. Acesso em: 02 nov. 2010.
VELLOSO, Andrei Pitten. Conceitos e competências tributárias. São Paulo: Dialética, 2005.


Incentivos fiscais em tempos de crise: Impactos econômicos e reflexos financeiros

Autor: Matheus Carneiro Assunção, Bacharel em Direito pela UFPE, Bacharel em Administração pela UPE, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV, Pós-graduado em Direito Tributário pela USP, Mestrando na área de Direito Financeiro pela USP, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Procurador da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O presente artigo busca analisar os reflexos econômicos e financeiros dos incentivos fiscais concedidos pelo Governo Federal durante a crise internacional de 2008, bem como os impactos de tais medidas no federalismo fiscal brasileiro. O estudo também procura identificar a ligação entre os objetivos constitucionais que autorizam a intervenção do Estado sobre o domínio econômico e as desonerações tributárias realizadas no ápice dos efeitos da crise, quando ondas de incertezas no mundo geraram fortes retrações na produção e na demanda doméstica. Por fim, pretende evidenciar os reflexos das medidas anticíclicas adotadas entre 2008 e 2009 no sistema de repartição de receitas tributárias, especialmente os desequilíbrios nas finanças públicas de entes federados.

1 Introdução

A crise financeira desencadeada em 2008 empurrou os mercados globalizados em queda livre1. Atirado no mar de tormentas do capitalismo contemporâneo, o Brasil precisou adotar medidas céleres para conter os efeitos danosos da retração econômica, através da implementação de políticas anticíclicas. Nesse sentido, foram concedidos diversos incentivos fiscais pelo Governo Federal, no fito de fomentar a reconstrução das demandas domésticas negativamente afetadas, de maneira a garantir a continuidade do desenvolvimento nacional. A intervenção estatal, mais do que necessária, revelou-se vital.

Todavia, em função do modelo de repartição de receitas tributárias previsto na Constituição de 1988, as desonerações fiscais utilizadas para conter a crise acabaram produzindo reflexos financeiros negativos para os entes federados, comprometendo o equilíbrio de contas públicas e a continuidade de programas sociais, especialmente nos pequenos municípios.

O presente estudo busca analisar, de um lado, os impactos econômicos dos incentivos fiscais editados no contexto da crise internacional, identificando em que compasso podem ser empregados para promover o desenvolvimento nacional, bem como os parâmetros jurídicos que permitem o seu controle. De outro lado, pretende cotejar os reflexos financeiros dessas medidas no arranjo de partilhas característico do federalismo fiscal brasileiro.

Inevitavelmente, toda crise chega ao fim, mas não sem deixar marcas, tanto positivas quanto negativas. Algumas são claramente perceptíveis; outras exigem exames com lupas de maior alcance, não apenas focadas no campo da visão tributária, mas também econômica e financeira. Procuraremos, nas linhas seguintes, examinar algumas dessas marcas, com lentes multifocais.

2 Intervenção do Estado sobre o domínio econômico

O intervencionismo estatal é fenômeno concernente ao exercício de uma ação sistemática sobre a economia, “estabelecendo-se estreita correlação entre o subsistema político e o econômico, na medida em que se exige da economia uma otimização de resultados e do Estado a realização da ordem jurídica como ordem do bem-estar social”2. Pode ocorrer de forma direta ou indireta. Na intervenção direta, o Estado assume o exercício de atividades econômicas. Na indireta, age através da direção ou controle normativo3. A modalidade indireta, assim, configura uma “intervenção exterior, de enquadramento e de orientação que se manifesta em estímulos ou limitações, de vária ordem, à actividade das empresas”.4

Ensina Eros Roberto Grau5 que a intervenção do Estado pode se dar: (i) por absorção ou participação; (ii) por direção; (iii) por indução. A primeira hipótese representa uma intervenção no domínio econômico, ou seja, no âmbito de atividades econômicas em sentido estrito, atuando o Estado em regime de monopólio (intervenção por absorção) ou de competição (intervenção por participação). As duas outras hipóteses consubstanciam modalidades de intervenção sobre o domínio econômico, desenvolvendo o Estado o papel de regulador.

Através das normas de indução, o Estado “privilegia determinadas atividades em detrimento de outras, orientando os agentes econômicos no sentido de adotar aquelas opções que se tornarem economicamente mais vantajosas”6, mas não fixa sanções pela não-adesão à hipótese estimulada. Entretanto, o incentivo ao comportamento sugerido tende a ser bastante atrativo, na medida em que gera posições de vantagem no mercado para os agentes econômicos alcançados pelo comando normativo, o qual pode prever diferentes espécies e níveis de estímulos.

É no campo da intervenção por indução que o Estado pode se valer da política fiscal para alcançar finalidades específicas, “com a concessão de incentivos fiscais setoriais ou regionais, utilizando a maior ou menor incidência de carga tributária como mecanismo redutor de custos e estimulador de atividades econômicas”.7 Tais finalidades, porém, devem ter amparo na Constituição. Afinal, são nos valores por ela albergados que encontra ressonância a própria justificativa da intervenção estatal.

Vale ressaltar que a Constituição de 1988 prevê, em seu art. 170, que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social8. A ação do Estado sobre o domínio econômico, com efeito, não poderá olvidar tais fundamentos, e deverá pautar-se nos princípios e objetivos fixados no texto constitucional, dentre os quais a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inciso VII), a busca do pleno emprego (art. 170, inciso VIII) e a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II).

Embora referidos princípios e objetivos sejam dotados de elevado grau de abstração e generalidade, o que dificulta o controle finalístico da medida interventiva, constituem cânones a subsidiar o intérprete. Intervenções estatais despropositadas, em afronta à igualdade ou à proporcionalidade, não podem ser toleradas no contexto de um Estado Democrático e Social de Direito.

A face geralmente oculta da tributação – a desoneração fiscal – pode ser um eficiente instrumento de intervenção indutora do Estado, com vistas à promoção do desenvolvimento econômico. Mas cabe ressalvar: o uso desse instrumento deve atentar para as molduras traçadas pela Constituição, uma vez que a eficiência econômica, por si mesma, não legitima as ações estatais9.

3 Extrafiscalidade

Os tributos, além de terem a função arrecadatória de receitas para a manutenção do Estado, apresentam funções redistributiva e regulatória10. Podem, assim, oportunizar desde a redução de desigualdades sociais à regulação de mercados. Nesse sentido, a principal finalidade de muitos tributos “não será a de instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada”11.

Por meio da tributação (e da desoneração), possibilita-se ao Estado intervir sobre o domínio econômico de forma indireta, induzindo a adoção de determinados comportamentos. É a vertente da extrafiscalidade. Nas palavras de Geraldo Ataliba, a extrafiscalidade se configura pelo “emprego deliberado do instrumento tributário para finalidades não financeiras, mas regulatórias de comportamentos sociais, em matéria econômica, social e política”.12 Segue esta mesma linha o pensamento de Raimundo Bezerra Falcão, para quem “a extrafiscalidade é atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para o seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou re-ordenar a economia e as relações sociais”.13

Explica José Casalta Nabais14 que a extrafiscalidade pode ser traduzida no conjunto de normas que tem por finalidade dominante a consecução de resultados econômicos ou sociais, por meio da utilização do instrumento fiscal, e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas. De acordo com os ensinamentos de Roque Antonio Carrazza, a extrafiscalidade se caracteriza “quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir contribuintes a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”.15

As exações e desonerações tributárias, desse modo, se colocam como ferramentas para o incentivo ou coibição de condutas por parte dos destinatários normativos, contribuindo para a realização – ou até realizando diretamente – finalidades propugnadas pela Constituição Federal.16 Quando as exonerações são utilizadas para incentivar condutas que promovem a efetivação de objetivos constitucionais, com impactos no seio social, justifica-se a extrafiscalidade17. São esses objetivos e finalidades, em síntese, que legitimam a intervenção estatal.


Nota-se, porém, que o conceito de extrafiscalidade está relacionado a características não-arrecadatórias, isto é, não-fiscais, dos tributos. O próprio prefixo “extra” é indicativo dessa alusão “para além”, ou seja, de exceção ao padrão da simples fiscalidade. A distinção entre fiscalidade de extrafiscalidade, neste compasso, repousaria na finalidade da norma tributária. Tributos de cunho fiscal seriam instrumentos de arrrecadação, enquanto tributos extrafiscais seriam preponderantemente mecanismos de intervenção na ordem econômica e social18.

Todavia, conforme adverte Alfredo Augusto Becker19, na construção dos tributos não se ignora o finalismo extrafiscal, nem se esquece o fiscal, pois ambos coexistem: há apenas maior ou menor prevalência deste ou daquele finalismo. A presença de uma dessas finalidades não exclui necessariamente a outra. Mesmo tributos de caráter eminentemente arrecadatório, como o Imposto sobre a Renda, podem ser alterados com finalidades extrafiscais.

Com base na lição de Klaus Vogel, que identifica nas normas tributárias a função de distribuir a carga tributária (conforme critérios de justiça distributiva), a função indutora e a função simplificadora, Luís Eduardo Schoueri defende ser a extrafiscalidade gênero, do qual seriam espécie as normas tributárias indutoras20. Tais normas visam a alcançar determinadas finalidades, demandando do intérprete o cotejamento de elementos extratextuais, como o contexto histórico e econômico em que editadas. Daí a pertinência do método teleológico.

O método teleológico tem por escopo “apanhar a função de cada dispositivo legal dentro da estrutura da ordem jurídico-tributária e em seu relacionamento com as demais partes da ordem jurídica”21. Essa forma de interpretar o Direito parte da premissa de que é sempre possível atribuir um dado propósito às normas. Seu movimento interpretativo, conforme explica Tercio Sampaio Ferraz Jr., “parte das conseqüências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema”22. Nesse giro, considerações econômicas podem ser levantadas em sustentação do alcance de determinada finalidade pela norma jurídica tributária.

Com efeito, é possível afirmar que finalidades inerentes à estrutura de normas tributárias indutoras formam um substrato axiológico que não se pode ignorar. A circunstância de carecerem de positivação expressa não deve conduzir ao absurdo de negá-las23. Cabe ao intérprete avaliar, com base no método teleológico, a compatibilidade entre tais finalidades e o sistema constitucional.

4 Conceito, modalidades e efeitos dos Incentivos Fiscais

O Decreto n. 2.543A, de 05/01/1912, que estabelecia “medidas destinadas a facilitar e desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da maniçoba e da mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraída dessas árvores”, prevendo a isenção de impostos de importação, prêmios para aqueles que fizessem plantações regulares e inteiramente novas, além de outros incentivos, talvez tenha sido a experiência pioneira em da instituição de medidas de intervenção por indução no Brasil24. Já nesse momento se percebe a tendência de utilização de incentivos fiscais para o alcance de objetivos econômicos.

Desde tal antecedente histórico até os dias atuais, foram inúmeros os incentivos fiscais criados para viabilizar intervenções sobre o domínio econômico. Mas o que caracteriza esses instrumentos? Qual, afinal, a ideia por trás dos incentivos fiscais?

Numa concepção ampla, incentivos fiscais são medidas que estimulam a realização de determinada conduta25. Nesse sentido, “a concessão de incentivos fiscais se insere como instrumento de intervenção no domínio econômico a fim de que se possam concretizar vetores e valores norteadores do Estado”26.

De forma mais restritiva, parcela da doutrina entende que os incentivos constituem “medidas fiscais que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, aplicadas pelo Governo Central com a finalidade de desenvolver economicamente uma determinada região, ou um determinado setor de atividade”27. Seriam, portanto, incentivos fiscais “todas as normas que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, com a finalidade de estimular o desenvolvimento econômico de determinado setor de atividade ou região do país”28.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal seguiu esse conceito ligado à ideia de exclusão do crédito tributário, no julgamento dos Recursos Extraordinários n. 577.348 e 561.485, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandoski, o qual asseverou em seu voto condutor que “incentivos ou estímulos fiscais são todas as normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário”29.

Entretanto, não são apenas os casos de exclusão do crédito tributário30 que podem configurar incentivos fiscais. O conceito de incentivos fiscais abrange também outras formas de desoneração, como a redução de alíquotas ou mesmo a postergação do prazo de recolhimento de determinada exação.

A técnica da “alíquota zero” é ontologicamente diversa da isenção, e também se insere na categoria dos incentivos fiscais. Ao se estabelecer a alíquota de 0%, ocorre a nulificação do montante devido a título de tributo, em virtude de uma operação matemática de multiplicação. Isso não significa que o produto seja isento, mas apenas que sua alíquota foi fixada em valor nulificante. O resultado da conta, de qualquer modo, é notoriamente um incentivo.

Conforme definição de Rubens Gomes de Souza, um dos idealizadores do Código Tributário Nacional – CTN, a isenção é “favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido”31. Pressupõe, portanto, a existência de um “tributo devido”, de acordo com a lógica que guiou a redação do art. 175 do CTN.

Com a aplicação de alíquota zero, sequer chega a existir tributo devido, pois o valor resultante da incidência tributária é nulo. Na prática, o resultado financeiro é equivalente a uma isenção, porém as premissas teóricas são distintas. E é precisamente essa distinção que assegura a inaplicabilidade das restrições fixadas no art. 150, §6º, da Constituição Federal32 nos casos de alterações, pelo Poder Executivo, das alíquotas do Imposto de Importação, do Imposto de Exportação, do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, e do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos e Valores Mobiliários – IOF, com fundamento no art. 153, §1º, da Lei Maior33.

Enquanto a outorga de isenção de referidos tributos depende de lei específica, a alteração de alíquotas pode ser realizada por simples decreto do Poder Executivo, permitindo uma maior flexibilidade e agilidade normativa em matéria de regulação econômica através de políticas fiscais. Nesse mesmo viés, o art. 14, §3º, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal, exclui alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição da obrigatoriedade de estimativa prévia do respectivo impacto orçamentário-financeiro.

Tampouco se pode enquadrar a concessão de créditos tributários ou diferimentos de prazos para recolhimento na noção de “exclusão” de crédito. No entanto, é inegável que esses estímulos se amoldam à ideia de incentivo fiscal. Assim como ocorre com a redução da base de cálculo ou a concessão de isenção, o mecanismo de creditamentos gera para o particular, ao final, um saldo menor de despesas com o pagamento de obrigações tributárias. O adiamento do prazo para adimplemento de tais obrigações (moratória) também é uma espécie de vantagem operada no lado da arrecadação, pois o custo da postergação (juros e correção monetária) é assumido pelo Estado. Da mesma forma, anistias (perdão legal de infrações) e remissões34 (dispensa do pagamento de débitos tributários) podem ser adotados como espécies de incentivos fiscais.

Nessa perspectiva, pode ser considerado incentivo fiscal qualquer instrumento, de caráter tributário ou financeiro, que conceda a particulares vantagens passíveis de expressão em pecúnia, com o objetivo de realizar finalidades constitucionalmente previstas, através da intervenção estatal por indução. Essas vantagens podem operar subtrações ou exclusões no conteúdo de obrigações tributárias, ou mesmo adiar os prazos de adimplemento dessas obrigações. É possível, ainda, que autorizem transferências diretas destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, como acontece nas hipóteses previstas no art. 12, §3º, da Lei nº. 4.320/6435 (subvenções).

As subvenções e os subsídios, a nosso ver, configuram incentivos financeiros, implementados no lado das despesas do Estado, e não da arrecadação tributária. As demais hipóteses acima mencionadas se enquadram como incentivos tributários. De toda sorte, tais instrumentos (incentivos tributários e incentivos financeiros) são muitas vezes cambiáveis entre si, sendo um problema secundário a forma que adquirem. O que realmente acaba importando, seja para os agentes no mercado, seja para as finanças públicas, é a expressão pecuniária resultante do benefício, bem como sua eficiência para o sistema econômico36. Por representarem perda voluntária de receitas públicas, sua concessão deve estar devidamente lastreada em finalidades constitucionais, sob pena de malferir os próprios fundamentos da intervenção sobre a ordem econômica.

5 Parâmetros de controle

Incentivos fiscais se afirmam como instrumentos indutores de comportamentos voltados ao alcance de objetivos constitucionalmente estipulados como relevantes no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito. Nessa medida, sua utilização deve conciliar-se com a busca do bem comum, ditando-se por considerações de interesse coletivo, como a promoção do desenvolvimento econômico37.


O papel promocional dos incentivos fiscais, segundo a lição de Heleno Tôrres, consiste precisamente no “servir como medida para impulsionar ações ou corretivos de distorções do sistema econômico, visando a atingir certos benefícios, cujo alcance poderia ser tanto ou mais dispendioso, em vista de planejamentos públicos previamente motivados”A análise da legitimidade da concessão de benefícios fiscais fundamenta-se na verificação das finalidades da medida, e na sua pertinência com relação aos valores refletidos no texto constitucional. Será legítimo o incentivo fiscal concedido sob o amparo de desígnios constitucionais, como instrumento de promoção de finalidades relevantes à coletividade. Por via transversa, será ilegítimo (e, portanto, odioso) o benefício que se destinar a privilegiar pessoas ou situações específicas, em detrimento do princípio da igualdade; ou que não guarde pertinência com os objetivos constitucionais autorizadores da intervenção do Estado sobre a economia.

Com arrimo em Misabel Derzi, ressalta Schoueri38 que representam privilégios intoleráveis aqueles incentivos fiscais que, não fiscalizados em seus resultados, se estendem excessivamente no tempo, ou servem à concentração de renda ou proteção de grupos economicamente mais fortes, em detrimento da maioria da população, à qual são transferidos seus altos custos sociais.

O ordenamento jurídico, de fato, não se coaduna com privilégios odiosos. A concessão de incentivos fiscais que não sejam compatíveis com as finalidades constitucionais que fundamentam a intervenção estatal por indução é perfeitamente suscetível de controle jurisdicional. Contudo, quais parâmetros podem ser utilizados para avaliar essa compatibilidade?

A norma tributária indutora não pode ir além do ponto necessário para alcançar os objetivos constitucionais que a lastreiam. Tampouco deve ser editada sem prévia análise econômica da sua potencial eficiência na busca dos fins pretendidos pelo Estado. Precisa, enfim, observar a regra da proporcionalidade na intervenção econômica39.

O exame da proporcionalidade é realizado com base em três elementos, que se relacionam subsidiariamente entre si: (i) adequação; (ii) necessidade; (iii) proporcionalidade em sentido estrito. Um meio é considerado adequado quando for apto para promover o alcance de um determinado resultado40. Se implicar restrições a direitos fundamentais, somente será considerado necessário “caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”41. Por último, verifica-se a proporcionalidade em sentido estrito a partir de um juízo de ponderação acerca da intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da efetivação do direito que com ele colide, e que lastreia a adoção da medida42.

Além da proporcionalidade, a igualdade estrutural é também parâmetro para o controle da compatibilidade dos incentivos fiscais com o sistema constitucional. Para que haja observância ao princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal43), a medida de comparação eleita para realizar diferenciações deve manter relação fundada de pertinência com a finalidade que lastreia sua utilização, com base em suportes empíricos consideráveis44. Significa que se deve comprovar que o critério de distinção elegido fomenta a finalidade visada, em maior medida do que outros critérios possíveis. Essa finalidade precisa ser clara e coerente, já que é dever do Estado tratar a todos igualmente45, e apenas são admissíveis distinções se existirem motivos razoáveis.

Diante da necessidade de observância ao princípio da igualdade, o tratamento diferenciado em matéria tributária, decorrente da utilização de instrumentos extrafiscais, apenas será considerado legítimo quando: (i) não configurar irrazoável benefício individual; (ii) estiver ancorado em finalidade constitucional; (iii) decorrer de fator de discriminação e medida de comparação adequados.46

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é escassa no que tange a verificações aprofundadas dos critérios de controle das normas tributárias indutoras. Num primeiro momento, em precedentes da década de 1990, o STF evitou adentrar no mérito de medidas extrafiscais, afirmando serem atos discricionários do Poder Público. Na análise do Recurso Extraordinário n. 149.659, julgado em 1995, a Corte entendeu que a isenção “decorre do implemento de política fiscal e econômica, pelo Estado, tendo em vista determinado interesse social; envolve, assim, um juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo”47, não estando sujeita a controle material pelo Poder Judiciário. Nada obstante a premissa da discricionariedade do ato, já naquela época o Supremo Tribunal Federal consignou a necessidade de legitimação das isenções, que se destinam “a partir de critérios racionais, lógicos e impessoais estabelecidos de modo legítimo em norma legal, a implementar objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota da extrafiscalidade”48.

O STF também observou a via de mão dupla das normas tributárias indutoras, ou seja, a possibilidade de tais instrumentos serem utilizados para induzirem positiva ou negativamente comportamentos. Na hipótese de aumento de alíquotas de IPI sobre cigarros, destacou o Ministro Cezar Peluso a viabilidade da função inibidora, presente nos tributos de caráter extrafiscal proibitivo, refletido na elevada alíquota do IPI, com o nítido viés de desestímulo por indução na economia49.

De outra banda, examinando isenção fiscal de IPI sobre o açúcar de cana, concedida com base em critério espacial (art. 2º da Lei nº. 8.393/91), o STF reconheceu a ausência de conteúdo arbitrário na aludida norma tributária, afirmando que a sua concessão pela União Federal objetivou conferir efetividade ao art. 3º, incisos II e III, da Constituição da República. Ressaltou, ainda, que tal benefício pôs em relevo a função extrafiscal do IPI, “utilizado como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais”50. Tal precedente ilustra de forma clara a possibilidade de normas tributárias indutoras, como isenções sobre o IPI, serem utilizadas como instrumentos de promoção do desenvolvimento. O parâmetro de controle desses instrumentos acenado pelo STF seria a eventual arbitrariedade do Poder Público na sua concessão.

Todavia, pode ser tarefa extremamente difícil avaliar o grau de arbitrariedade de um benefício fiscal conjuntural. Por vezes, normas tributárias indutoras são empregadas com lastro em critérios de eficiência econômica, e não de justiça distributiva. Exemplos disto são os incentivos dirigidos a setores específicos durante a crise internacional, pautados em visões macroeconômicas sobre o comportamento da demanda doméstica e dos investimentos das empresas, e não na busca da equidade ou justiça social.

Tendo em vista que os incentivos fiscais se sujeitam rigorosamente aos ditames da Constituição, “devem ser concedidos a partir de análises técnicas da economia, que deve fornecer ao direito instrumentos úteis de busca das soluções para os problemas sociais”.51 Daí o papel de relevo do sistema econômico para o Direito Tributário. A partir de elementos objetivos da Economia é que se torna possível avaliar a adequação da intervenção indutora projetada, e consequentemente sua compatibilidade com o ordenamento constitucional. Essa adequação está relacionada à efetividade da medida jurídica, ou seja, à sua potencial capacidade de produzir os efeitos econômicos desejados. Quanto menor for a efetividade, menor o grau de adequação, e maior o desnível em relação ao objetivo constitucional que confere legitimidade à intervenção estatal. Caso esse grau de adequação revele assimetrias incompatíveis com os propósitos econômicos da intervenção, indicando a desproporção da medida adotada, a norma tributária indutora deverá ser retirada do sistema jurídico.

De modo semelhante, também deverá ser retirada do sistema a norma tributária indutora que viole o princípio da igualdade, concedendo benefício singular e irrazoável, ou elegendo medida de comparação ou fator de discriminação inadequados às finalidades constitucionais que fundamentam a indução econômica.

6 Impactos econômicos das medidas anticíclicas utilizadas pelo Governo

Em outubro de 2008, a economia americana desabou brutalmente, em virtude da total ruptura de confiança do mercado financeiro. Rapidamente, como um “efeito dominó”, o pânico se alastrou pelo mundo. Já não se podia acreditar na solidez dos bancos. Diante de um cenário de incertezas, o crédito tornou-se escasso, abalando o consumo.

Com a diminuição do consumo das famílias e dos investimentos das empresas, vigas estruturais do crescimento econômico, os números do Produto Interno Bruno – PIB são afetados, aumentando ainda mais o temor de recessões. Esse temor ocasiona efeitos prejudiciais na concessão de crédito. O resultado: menos dinheiro disponível, menos gastos, menos produção, menos crescimento, menos emprego. Os efeitos negativos de uma crise de confiança geram efeitos ainda mais negativos, e incertezas ainda maiores. É necessário agir rápido para evitar que esses efeitos não contaminem todos os setores da economia.

A redução da demanda doméstica tende a afetar bastante os setores industriais, principalmente o automotivo e o setor de bens de capital (relacionado a investimentos empresariais), os quais dependem diretamente da oferta de financiamentos. Em face do aumento do custo do crédito, provocado pelas incertezas da crise financeira, reduz-se o interesse pela aquisição de bens industrializados de alto valor, como os automóveis. De outra banda, empresas que dependem diretamente de financiamentos também passam a conter seus investimentos. A consequência é o abalo direto nos índices econômicos que medem o desempenho da indústria.


De fato, a crise intensificou a retração da indústria brasileira. No mês de dezembro de 2008, foi registrada desaceleração de 12,4% frente ao mês anterior, de acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sendo o pior resultado da série histórica, iniciada em 1991, influenciado principalmente pelo setor automobilístico, cuja produção caiu 39,7%52.

Diante desse cenário temeroso, medidas de estímulo à demanda interna são remédios indispensáveis. Dentre os instrumentos possíveis, a concessão de incentivos fiscais se destaca pela maleabilidade, celeridade e eficiência com que pode ser manejada pelo Poder Executivo, visando à retomada do crescimento econômico.

A possibilidade de estímulos na demanda agregada sob a forma de incentivos fiscais serem vistos como fonte de recuperação econômica foi analisada extensivamente por economistas norte-americanos após a crise de 1929. Pesquisas realizadas na década de 1940 já apontavam que a política fiscal revelou-se um efetivo instrumento de revigorar o fôlego da economia afetada pela crise53.

Uma das recomendações do Fundo Monetário Internacional, no tocante ao contorno da crise deflagrada em 2008, foi a promoção de medidas de estímulo fiscal até determinada data (como a redução de impostos sobre consumo durante um período certo)54. Instrumentos fiscais anticíclicos devem, a princípio, ter impacto transitório, sendo revistos tão logo a economia apresente os sinais de recuperação esperados.

Foi esse o principal caminho adotado pelo Brasil, por meio da redução das alíquotas de tributos com acento extrafiscal, notadamente o IPI e o IOF.

O IPI apresenta características que “o tornam adaptável às flutuações da política, das finanças, da conjuntura nacional e, até internacional”55. Pode ser manejado extrafiscalmente com bastante flexibilidade, em virtude previsão do art. 153, §1º, da Constituição.

Com o objetivo de aumentar a demanda interna os investimentos, evitando maiores retrações na produção industrial, as quais afetam o nível de emprego e as taxas de crescimento do país, foi promovida redução temporária (por prazo determinado) do IPI sobre veículos56, eletrodomésticos da linha branca, materiais de construção e bens de capital57. Paralelamente, reduziu-se a alíquota do IOF sobre crédito direto a pessoa física, no escopo de estimular a sua concessão58. Demais disso, alterouse a tabela do IRPF59, criando-se novas alíquotas, o que pragmaticamente implicou diminuições no valor final pago a título do imposto, aumentando de forma indireta o poder de consumo das famílias.

Se, por um lado, a redução de alíquotas do IPI apresenta função anticíclica típica, tendo sido concedida por tempo determinado e com gradual retorno após a verificação das condições econômicas que objetivavam promover, o mesmo não se pode afirmar com relação à alteração das faixas de incidência e novas alíquotas do IRPF, que configura medida anticíclica atípica, de efeitos permanentes.

A estimativa de renúncia de receitas tributárias decorrente de ações anticíclicas durante a crise, para o ano de 2009, foi inicialmente avaliada pelo Governo em 3.342 bilhões.60 As desonerações fiscais concedidas, destinadas a setores produtivos específicos e faixas de renda com capacidade de consumo, embora tenham gerado elevadas renúncias de receitas tributárias, contribuíram decisivamente para a frenagem dos efeitos negativos da crise no Brasil. A redução do preço final ao consumidor, em decorrência da aplicação de alíquotas menores do IPI (até zero), ocasionou um incremento nas vendas e, por conseguinte, na produção, evitando quedas acentuadas no nível de emprego. Nos meses de março e junho de 2009, quando os benefícios se encerrariam, houve intenso aumento nas vendas dos produtos alcançados pelas medidas indutoras. Automóveis e caminhões novos tiveram o melhor mês de março da história das montadoras no país, com um aumento de 36% em comparação com fevereiro de 2008, segundo dados da Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores61. Se não houvesse a desoneração, as quedas nas vendas de veículos provavelmente afetariam bastante a arrecadação dos Estados e Municípios, já que o volume do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores tenderia a ser significativamente menor.

Ademais, estima-se que a redução do IPI contribuiu para manter entre 50 mil e 60 mil empregos diretos e indiretos na economia brasileira no primeiro semestre de 200962. A demanda doméstica acabou sendo a indutora do crescimento em 2009 e no primeiro trimestre de 2010, principalmente pela menor afetação do consumo das famílias durante a crise, em face desonerações tributárias concedidas63.

As normas tributárias indutoras estruturadas durante a crise tiveram a importante função de estimular o crescimento econômico, por meio da redução do custo de impostos incidentes sobre o consumo, impulsionando a compra de bens de capital, automóveis e eletrodomésticos, de molde a incrementar os níveis da demanda doméstica. Contribuíram, assim, para a equalização das distorções provocadas no mercado em virtude da crise de crédito e da retração do consumo.

Percebe-se que, além de constituírem meios adequados (proporcionais) à promoção das finalidades constitucionais que embasaram a intervenção do Estado sobre o domínio econômico, as normas tributárias indutoras utilizadas pelo Governo para conter a crise se revelaram eficientes no alcance de seus objetivos. Tanto que geraram um aumento histórico da demanda nos setores alcançados pelos incentivos.

Por outro lado, constata-se que os benefícios concedidos não incorreram em afronta ao princípio da igualdade, uma vez que: (i) não denotam privilégios odiosos, pois foram destinados em caráter temporário, com objetivos de curto prazo claros e delimitados, aos setores mais prejudicados com a contração da demanda, e cujo impulso ocasionaria resultados econômicos potencialmente positivos; (ii) ancoram-se em finalidades constitucionais de promoção do desenvolvimento nacional e de busca do pleno emprego; (iii) elegeram fatores de discriminação e medida de comparação adequados a uma política fiscal anticíclica, que escalonou como metas prioritárias a retomada dos investimentos das empresas, o crescimento da demanda doméstica relacionada à indústria, e o estímulo ao crédito. O foco no setor automobilístico, de eletrodomésticos e de bens de capital se justifica em face dessas metas de curto prazo, de caráter políticoeconômico, e não a partir de considerações de justiça distributiva.

A compatibilidade com a regra da proporcionalidade e com o princípio da igualdade não significa, porém, a ausência de reflexos financeiros negativos das medidas adotadas pelo Governo Federal sobre o equilíbrio das finanças públicas dos entes subnacionais. Este equilíbrio, por sua vez, é fundamental para que possa ser garantido o desenvolvimento econômico nacional de modo harmônico na federação brasileira. Daí porque a correção de assimetrias financeiras negativas, decorrentes do uso de normas tributárias indutoras, se revela indispensável para a preservação da compatibilidade das medidas extrafiscais com as finalidades constitucionais que as lastreiam.

7 Reflexos financeiros dos incentivos fiscais concedidos durante a crise

Os incentivos fiscais oferecidos em virtude da crise financeira de 2008 alteraram substancialmente a arrecadação do IPI e do IR. Apenas em relação ao IPI, principalmente em virtude das medidas propostas pelo Governo no ano de 2009, houve decréscimo de aproximadamente 7,7 bilhões de reais na arrecadação líquida, 22% a menos do que em 200864. No primeiro trimestre de 2009, a diferença para o mesmo período do ano anterior foi cerca de 1,2 bilhões de reais a menos. Além disso, calcula-se a alteração da tabela de alíquotas do IRPF tenha gerado uma diminuição de quase R$ 520 milhões na arrecadação do primeiro trimestre de 2009, relativamente ao ano de 200865. De acordo com estudos do Ministério da Fazenda, as desonerações estimadas para o IRPF foram da ordem de 5 bilhões de reais66.

Essa diminuição abrupta da arrecadação tributária relacionada ao IPI e ao IR impactou sensivelmente nos valores das transferências constitucionais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. É que, conforme a previsão do art. 159 da Constituição Federal, parcelas do produto da arrecadação do IR e do IPI devem ser destinados aos entes subnacionais, mediante repasses aos chamados Fundos de Participação.

Segundo o texto constitucional, do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, quarenta e oito por cento devem ser entregues pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, da seguinte forma: a) 21,5 % ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE; b) 22,5% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM; c) 3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento; d) 1% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM.

Esse arranjo de partilhas de receitas tributárias é traço do modelo de federalismo fiscal cooperativo consagrado pela Constituição Federal de 1988. Nesse modelo, a repartição de receitas se coloca como um canal de coordenação que viabiliza a coexistência entre a descentralização de encargos e a centralização da arrecadação tributária67. Configura uma intrincada rede financeira que “cria para os entes políticos menores o direito a uma parcela da arrecadação do ente maior”68. Esta parcela visa a reduzir o descompasso entre os meios de arrecadação disponíveis e as necessidades de gastos dos entes federados, chamado de “brecha fiscal vertical” (vertical fiscal gap)69, e representa um importante mecanismo de equilíbrio das finanças das unidades subnacionais.


Com diminuição da arrecadação nacional do IPI e do IR, decorrente das desonerações fiscais realizadas pelo Poder Executivo, acabou sendo gravemente afetado o equilíbrio das finanças dos pequenos municípios, que dependem substancialmente das transferências constitucionais do FPM.

No mês de fevereiro de 2009, os repasses aos Fundos de Participação de que trata o art. 159 da Constituição Federal sofreram diminuição de 6,8%, comparativamente ao mês anterior. Em relação a fevereiro de 2008, houve decréscimo da ordem de 12% (cerca de R$ 485 milhões). Em março de 2009, tais repasses foram diminuídos em 20,1%, relativamente ao mês anterior, representando aproximadamente 11% a menos do que o mesmo período do ano de 2008. Por conseguinte, no primeiro trimestre de 2009, constatou-se diminuição de quase 750 milhões de reais nos montantes das transferências ao FPM, tomando como parâmetro o ano. Com o corte repentino nos valores dos repasses constitucionais, serviços públicos prestados à população de inúmeros Municípios passaram a ficar comprometidos, diante da inviabilidade financeira de arcar-se de forma autônoma com os custos de programas sociais.

Ainda em março de 2009, o presidente Luís Inácio Lula da Silva reconheceu a gravidade da situação dos Municípios, afirmando ser o problema “resultado de uma crise que não nasceu no Brasil, de uma crise que aconteceu nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, e que demorou mais para chegar aqui”, mas que não poderia permitir a paralisação das prefeituras70.

Evidenciou-se um conflito axiológico. De um lado, dispositivos tributários editados com a finalidade de estimular a demanda interna, de modo a garantir a manutenção do nível de empregos e o desenvolvimento econômico, valores constitucionalmente consagrados (artigos 3º, II, e 170, VIII). De outro, o reflexos de tais normas no sistema de repartição de receitas tributárias, ocasionando a diminuição brusca de repasses aos municípios, o consequente comprometimento de políticas públicas destinadas à efetivação de direitos fundamentais.

A percepção de que medidas eficientes para promover o crescimento econômico podem impactar negativamente na rede de artérias financeiras do federalismo fiscal e na efetivação de programas de melhorias sociais e investimentos em infraestrutura, os quais constituem pilares para o equilíbrio do desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos, remete à importância da compreensão de plenitude do desenvolvimento econômico.

O desenvolvimento econômico pressupõe não apenas o fator do crescimento, mas também melhorias no âmbito social. Para que essas melhorias sejam implementadas de modo eficiente no arranjo federativo brasileiro, é necessário garantir às unidades descentralizadas, mais próximas da população (municípios), recursos financeiros suficientes para fazer frente aos encargos públicos. Sem tais recursos, resta prejudicada a eficiência alocativa, um dos fundamentos para a descentralização de políticas públicas sociais.

No intuito de contornar o problema, após discussões no âmbito do Ministério da Fazenda, ocorreu a publicação da Medida Provisória nº. 462, de 14/05/2009, convertida na Lei nº. 12.058, de 13/10/2009, que dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos entes federados71.

Assim, a Lei nº. 12.058/2009, em seu art. 1º, previu o dever da União de prestar apoio financeiro, no exercício de 2009, aos entes federados que recebiam o FPM, mediante entrega do valor correspondente à variação nominal negativa entre os valores creditados a título daquele Fundo nos exercícios de 2008 e 2009, antes da incidência de descontos de qualquer natureza, de acordo com os prazos e condições nela previstos e limitados à dotação orçamentária específica para essa finalidade, fixada por meio de decreto do Poder Executivo.

As estimativas para os valores do apoio financeiro previsto na MP nº. 462/2009, correspondendo às diferenças negativas nos repasses do FPM apuradas no período de janeiro a março de 2009, em relação a igual período de 2008, atingiram a estimativa de R$ 755.008.284,5972, com creditamento em maio de 2009. O apoio prosseguiu nos meses subsequentes. Em junho de 2009, foram estimados R$ 197.827.847,7673; em julho, R$, 9.734.549,1874; em outubro, R$ 904.925.735,4275.

Por meio dessa compensação financeira, restou superado o risco de comprometimento da prestação de serviços municipais de interesse social e da continuidade dos projetos de investimento e demais políticas públicas voltadas à promoção do desenvolvimento econômico. Os efeitos das restrições reflexas, provocadas pelas desonerações tributárias editadas durante a crise, foram assim balanceados por normas financeiras de caráter corretivo, visando o retorno ao ponto de equilíbrio das finanças dos municípios e a harmonia do federalismo fiscal cooperativo. Tal equilíbrio é indispensável à garantia da forma federativa de Estado, cláusula pétrea constante do art. 60, §4º, I, da Constituição Federal de 1988.

Todavia, vale lembrar que os reflexos financeiros das reduções de alíquotas do IPI e das alterações de faixas do IR eram perfeitamente previsíveis, desde o momento em que foram cogitados como medidas de política fiscal anticíclica. Os instrumentos equalizadores tardaram a ser editados, dentro de um contexto emergencial. O próprio veículo adotado para a concessão do apoio financeiro (medida provisória, que pressupõe casos de urgência, a teor do art. 62 da Constituição Federal), evidencia que não houve planejamento prévio de compensação financeira concomitante à concessão dos incentivos.

O modelo de federalismo fiscal cooperativo adotado no Brasil, entretanto, não pode se reduzir ao apoio conjuntural da União. É preciso aprimorar mecanismos que garantam a autonomia financeira dos entes subnacionais mesmo em face de políticas fiscais anticíclicas, a fim de que evitar a dependência de auxílios emergenciais, sob liberalidade do Poder Executivo Federal. Sob esse prisma, o legado da crise traz novas oportunidades de repensar os atuais modelos de cooperação existentes, com vistas a um desenvolvimento econômico federativamente harmônico e sustentável.

8 Conclusões

As normas tributárias indutoras podem se revelar eficientes instrumentos de estímulo do comportamento dos agentes econômicos, promovendo o aumento da demanda, da produção, dos investimentos internos, e da oferta de emprego. Tais fatores são indispensáveis ao crescimento econômico, componente da equação geradora do desenvolvimento nacional.

Decerto, “o desenvolvimento depende da capacidade de cada país para tomar decisões que sua situação requer”76. À evidência, o Brasil demonstrou essa capacidade, reunindo condições para superar, com êxito, os efeitos problemáticos da crise internacional deflagrada em 2008. Parte desse sucesso decorreu da política de concessão de incentivos fiscais utilizados conforme critérios de eficiência, os quais se revelaram adequados aos objetivos fomentados pela intervenção do Estado na economia. A função equalizadora das desonerações tributárias indutoras pelo Governo Federal foi determinante para corrigir tendências de contração da demanda interna. Entretanto, essas medidas emergenciais, de curto prazo, não são suficientes para garantir a continuidade do desenvolvimento econômico.

Apesar das dificuldades e dos riscos, o Brasil soube nadar no mar caudaloso da crise internacional, mesmo tendo sido nele arremessado de súbito. Ferramentas eficientes de indução econômica instrumentalizaram a política fiscal anticíclica levada a cabo pelo Governo Federal. Mas distâncias muito maiores ainda precisam ser percorridas para que o país possa galgar uma posição no pódio das nações desenvolvidas. Para tanto, é preciso avançar no aprimoramento dos instrumentos jurídicos tendentes à promoção do desenvolvimento econômico em sua concepção plena, levando em consideração a realidade de profundos desequilíbrios regionais e sociais que marcam a federação brasileira.

A efetividade do art. 3º, II, da Constituição de 1988, para além do crescimento econômico (elemento quantitativo), depende de medidas coordenadas entre União, Estados e Municípios, tendentes a promover melhorias qualitativas no nível de bem-estar geral da sociedade, sem olvidar as peculiaridades do federalismo fiscal cooperativo. Nessa perspectiva, caso o emprego de normas tributárias indutoras pela União acarrete situações de desequilíbrio no arranjo de repartição de receitas com os entes subnacionais, deverão ser adotadas medidas de compensação financeira, suficientes para corrigir as assimetrias negativas geradas, preservando os pilares do federalismo fiscal. Do contrário, poderá restar desvirtuada a finalidade constitucional que embasa a própria intervenção econômica, malferindose a legitimidade da sua utilização, na medida em que for ameaçado o custeio de programas sociais a cargo dos municípios e o atendimento das necessidades da população. O poder do Estado de desonerar é amplo, mas não ilimitado, sujeitando-se às diretrizes normativas e valores contidos no texto constitucional, que balizam o controle das normas tributárias indutoras à luz da proporcionalidade, da igualdade e das finalidades nas quais se ancoram.

Os ventos econômicos que sopram promissoramente a favor do país no cenário de oportunidades pós-crise precisam, enfim, vir acompanhados de arranjos jurídicos de densidade axiológica e efetividade prática, compatíveis com os objetivos trazidos pela Constituição Federal de 1988, rumo a um desenvolvimento federativamente equilibrado e sustentável. 2008.77, 78.


Notas

1 Cf. STIGLITZ, Joseph E. Freefall: Free Markets and the Sinking of the Global Economy. London: Peguin Books, 2010.
2 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Congelamento de Preços: Tabelamentos Oficiais. Rio de Janeiro, Revista de Direito Público, p.76-77, jul./set. 1989.
3 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 100.
4 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 33. 5 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 148.
6 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 107.
7 CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Reflexões sobre o papel do Estado frente à atividade econômica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 1, n. 20. p. 73-74, 1997.
8 A respeito desse tema, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170”. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.950. Relator: Min. Eros Grau. julgamento em 03.11.05, Plenário, DJ de 02.06.06. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
9 Vale lembrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição.” In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 205.193. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 25.02.97, 1ª Turma, DJ de 06.06.97. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
10 Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Os Três Objetivos da Tributação. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p.8-11, São Paulo, 2008.
11 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623.
12 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966. p. 151.
13 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 196.
14 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 629.
15 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 106-107, nota de rodapé n. 66.
16 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 17. 17 Cf. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A Extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 47.
18 CORREIA NETO, Celso de Barros. Instrumentos Fiscais de Proteção Ambiental. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p. 142, São Paulo, 2008.
19 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623- 624.
20 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 27-34.
21 ZILVETI, Fernando Aurelio. O ISS, a Lei Complementar nº 116/03, e a Interpretação Econômica. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 104. p. 39, São Paulo, 2004.
22 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 289.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008. p. 524.
24 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 28.
25 Eis a lição de Pedro Herrera Molina: “incentivos tributarios son aquellas exenciones configuradas de tal modo que estimulan la realización de determinada conducta”. MOLINA, Pedro Herrera. La Execión Tributaria. Madrid: Colex, 1990. p. 57.
26 GADELHA, Gustavo de Paiva. Isenção Tributária: Crise de Paradigma do Federalismo Fiscal Cooperativo. Curitiba: Juruá, 2010. p. 98.
27 MOURA, Maria Aparecida Vera Cruz Bruni de. Incentivos Fiscais Através das Isenções. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (Coord.). Estudos de Problemas Tributários. São Paulo: José Bushatsky, 1971. p. 135.
28 CALDERARO, Francisco R. S. Incentivos Fiscais à Exportação. São Paulo: Resenha Tributária, 1973. p. 17.
29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 577.348 e Recurso Extraordinário n. 561.485. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em 13.08.09, Plenário, Informativo n. 555. Disponível a partir de: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
30 Código Tributário Nacional: “Art. 175. Excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia. Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela conseqüente.”
31 SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. p. 97.
32 “art. 150 […] § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativas a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, § 2º, XII, g. (Redação da EC 03/93)”
33 “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I – importação de produtos estrangeiros; II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III – renda e proventos de qualquer natureza; IV – produtos industrializados; V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI – propriedade territorial rural; VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar. § 1º – É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.”
34 CTN: “Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I – à situação econômica do sujeito passivo; II – ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III – à diminuta importância do crédito tributário; IV – a considerações de eqüidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V – a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.”
35 “§ 3º Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como: I – subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa; II – subvenções econômicas, as que se destinem a emprêsas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril.”
36 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência Fiscal Internacional: a Concessão de Incentivos Fiscais em face da Integração Econômica Internacional. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2009. p. 33.
37 Cf. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 70-71.
38 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 290.
39 Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 648.
40 Cf, ÁVILA, Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, n. 215. p. 172, São Paulo, 1999.
41 SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, n. 798. p. 38, São Paulo, 2002.
42 SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit.. p. 40.
43 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
44 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 61.
45 ÁVILA, op. cit., p. 69.
46 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 83.
47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 149.659. Relator: Min. Paulo Brossard. DJ de 31.03.1995. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.


48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 142.348. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 02.08.94, 1ª Turma, DJ de 24.03.95. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar n. 1.657-MC. Voto do Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento em 27.06.07, Plenário, DJ de 31.08.07. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 360.461. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 06.12.05, 2ª Turma, DJE de 28.03.08. Disponível em: http://www. stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
51 ELALI, André de Souza Dantas. Tributação e Regulação Econômica: um Exame da Tributação como Instrumento de Regulação Econômica na Busca da Redução das Desigualdades Regionais. São Paulo: MP, 2007. p. 117.
52 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u497886.shtml. Acesso em: 11 set. 2010.
53 Cf. SMITHIES, Arthur. The American Economy in the Thirties. The American Economic Review, vol. 36, 1946, pp. 11-27. Apud SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
54 SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. p. 8-9. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
55 BOTALLO, Eduardo Domingos. IPI: Princípios e Estrutura. São Paulo: Dialética, 2009. p. 22.
56 Vide Decreto nº. 6.687, de 11 de dezembro de 2008, e Decreto nº 6.743, de 15 de janeiro de 2009.
57 Vide Decreto nº. 6.825, de 17 de abril de 2009 e Decreto nº. 6.890, de 29 de junho de 2009.
58 Vide Decreto nº. 6.691, de 11 de dezembro de 200


Temporalidade e segurança jurídica – Irretroatividade e anterioridade tributárias

Autor: Heleno Taveira Torres, Professor e Livre-Docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Doutor em Direito Tributário (PUC-SP). Presidente da Comissão de Graduação da Faculdade de Direito, Membro do Conselho Universitário e do Conselho de Graduação da USP. Vice-Presidente da International Fiscal Association – IFA e da Direção Executiva do Instituto Latinoamericano de Derecho Tributario – ILADT. Advogado.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A temporalidade das normas tributárias assume cada vez mais papel de preponderância na conformação de condutas do Fisco e dos contribuintes, dada a necessidade de previsibilidade e de contenção da retroação gravosa. Para proteger a previsibilidade, a confiança e a estabilidade no tempo, o ordenamento constitucional conta com as garantias, enquanto limites objetivos. A segurança jurídica e a certeza do direito conferem a todos o direito de sujeitarem-se unicamente à lei previamente existente, vedada qualquer retroatividade (lex prospicit, non respicit). Para tudo o que se possa considerar como “novo” conteúdo, deveras, aplicar-se-á o princípio de proibição da retroatividade, dos arts. 5.º, XXXVI, e 150, III, a, da CF. Lembrando as palavras de Canotilho: “os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial.”

1 A segurança jurídica da temporalidade no Sistema Constitucional Tributário brasileiro

O homem encontra no tempo a fonte das suas maiores inseguranças. Existir é coincidir em uma temporalidade contínua na qual somente por uma interpretação do “tempo” pode-se definir o “agora”, o “passado” e o “futuro”. O tempo interpretado equivale à constituição em linguagem daquela ontologia que é o “ser” no tempo”, pois, como diz Heidegger, só a “temporalidade possibilita a unidade da existência”.1 O direito organiza essa unidade de medida e, por cortes hermenêuticos, “cria” o “tempo público” e “ordena” o viver no tempo.

O tempo é um fato, um dado da realidade construída pela linguagem, mas o direito não se poderia aplicar sem o tempo “do” fato. Nesse processo heurístico e institucionalizante da temporalidade, o direito cria seus mecanismos para organizar a atividade do homem e do Estado ao longo desse contínuo marcado pelos fatos jurídicos.

A generalidade das normas jurídicas perfaz-se na temporalidade do direito2 e, por isso mesmo, tem sua duração definida pela vigência, seja esta ilimitada ou provisória. Os tipos abstratos contidos na generalidade positiva da norma permitem que o aplicador os oriente para qualquer ponto da temporalidade, segundo os fatos ocorridos, daí a necessidade de criação de critérios de definição quanto ao tempo do fato e certeza quanto à aplicabilidade da lei no tempo. Diz-se, costumeiramente, que toda norma deve ser irretroativa e que seus efeitos protraem-se para o futuro; com isso, qualquer retroatividade seria uma excepcionalidade.

Entretanto, vale atentar para o fato de que toda norma jurídica possui uma bidimensionalidade temporal, ou seja, pode ser aplicada tanto para disciplinar fatos futuros quanto para alcançar fatos passados, salvo nas hipóteses abrangidas pelas “regras de bloqueio” que vedem seus efeitos retroativos. Portanto, na falta dessas regras, somente construções amparadas na segurança jurídica ou no princípio de confiança legítima podem conter essa “disponibilidade” bidimensional da lei na regência do tempo.3 Dito de outro modo, na falta de “regras de bloqueio da retroatividade” expressas (v.g., art. 5.º, XXXVI, art. 150, III, a, da CF; disposição expressa da própria lei; LICC; art. 105 e 106, do CTN etc.), caberia ao sujeito afetado a possibilidade de alegar o princípio de confiança e estabilidade como proteção do estado de segurança que se exige do ordenamento, para conter a retroação normativa (regras de bloqueio da retroatividade implícitas). Esta “dominação” jurídica do tempo queda-se, assim, garantida pela segurança jurídica nas suas distintas formas de expressão.

Nesse processo de juridicização da temporalidade normativa, o direito prescreve o “decurso temporal” entre os “termos” inicial (a quo) e final (ad quem), qualifica o início da vigência, cria bloqueios normativos para retroações, estabelece efeitos para a datação do tempo público e gera ficções temporais. O próprio tempo legal é uma ficção do tempo como serem- si. E além desses aspectos, pertinentes ao tempo “no” sistema jurídico, não se pode olvidar do tempo “do” direito,4 que em tudo influi, no curso da sua historicidade e experiências da secularidade dos institutos, conceitos e aplicações do direito posto e do direito pressuposto.5 Nesse sentido, o direito constrói seu “tempo” na temporalidade que o faz presente.

As regras de anterioridade, anualidade e irretroatividade tem regime e eficácia típica de “garantia”. E ainda que o art. 150, caput, da CF, silenciasse sobre assegurar as garantias previstas, posto serem estes princípios que integram o conteúdo da garantia maior, que é a segurança jurídica, e pela função que estas exercem no sistema constitucional, de proteção de princípios de direitos e liberdades fundamentais, o regime de garantia teria preeminência sobre qualquer outro. Como já assentamos em passagem específica a respeito, nada impede que garantias possam se qualificar como princípios. A única diferença fica por conta da imponderabilidade, quando em eventual colisão com qualquer princípio. Neste caso, a garantia há de prevalecer, pelo efeito de proteção dos valores dos princípios que lhe são inerentes, como é o caso do princípio de não surpresa.

Somente princípios veiculam valores passíveis de preferibilidade. As garantias são princípios como “limites objetivos”6 e visam a proteger outros princípios que veiculam valores pertinentes a direitos ou liberdades fundamentais.

A estabilidade, estimabilidade, calculabilidade ou previsibilidade7 do direito integram a segurança jurídica na ordem temporal, pela previsão expressa das garantias de não-surpresa e de vedação de regulação ex post facto; e, assim, o respeito aos direitos adquiridos, à autoridade da coisa julgada, enquanto preservação da regra patere legem quam ipse fecisti, segundo a qual a autoridade deve suportar e respeitar a regra editada,8 além de determinação clara e objetiva de prazos de prescrição e decadência.

A segurança jurídica da norma tributária no tempo e do tempo da norma (estabilidade temporal) requer, ademais de todos os aspectos já assinalados, determinação objetiva quanto à frequência de exigibilidade dos tributos a cada exercício financeiro, por unicidade, renovação periódica, exigência provisória ou trato sucessivo; clara especificação quanto ao início da vigência das leis e tratamento da vacatio legis; a tipificação, tributo a tributo, incidência por incidência, do critério temporal da regra matriz de incidência, e, igualmente, toda a designação temporal dos atos ao longo dos procedimentos e processos de cobrança do tributo, a exemplo do lançamento, dos casos de extinção ou de suspensão da exigibilidade, inclusive quanto à decadência e prescrição, afora isenções, sanções aplicáveis ou obrigações formais.

Assim, o direito propõe-se regular as relações no tempo tanto como proibição da retroatividade do não benigno9, quanto em relação à vigência para o futuro.

Diante do amplo arquétipo de garantias constitucionais de estabilidade temporal em matéria tributária previsto na Constituição, e da própria norma geral em matéria de “legislação tributária”, que é o Código Tributário Nacional – CTN, especialmente pelos arts. 105, 106 e 146, confirma-se a vedação sistêmica do ordenamento brasileiro contra qualquer retroação de efeitos por atos legislativos, administrativos ou judiciais com efeitos erga omnes, excetuados unicamente os casos de fiscalizações sobre fatos não conhecidos pela Administração em lançamentos anteriores e as decisões em processos judiciais ou administrativos de casos concretos.

2 As garantias de irretroatividade , anua lidade e anterioridade no direito brasileiro

Para proteger a previsibilidade, a confiança e a estabilidade no tempo, o ordenamento constitucional conta com as garantias de irretroatividade, anterioridade e anualidade das leis tributárias. A garantia de irretroatividade do não benigno é princípio basilar da segurança jurídica. Mesmo nas constituições que não o contemplam expressamente, como na Alemanha,10 Itália,11 França,12 Espanha13 ou na Bélgica,14 ainda assim se aceita o postulado (teórico), confirmado em jurisprudência, da irretroatividade das leis tributárias.

Veremos que, no Brasil, são sobremodo relevantes os meios constitucionais adotados para afirmar a efetividade do princípio-garantia da segurança jurídica, por meio do art. 5.º, XXXVI, e do art. 150, III, da CF,15 para proteger os fatos e situações jurídicas consolidados no passado contra qualquer tentativa de modificação posterior; bem como para impedir inovação ou aumento de tributo sobre fatos anteriores tanto à publicação (irretroatividade) quanto à entrada em vigor da lei (anterioridade). Por conseguinte, como observa Tercio Sampaio Ferraz Jr., “a anterioridade, como a irretroatividade, é expressão do direito à segurança”.16 E acrescentamos: no Brasil, a certeza jurídica e a garantia de estabilidade de situações jurídicas asseguradas pela Constituição são o que nos diferencia de experiências alienígenas com significativa vantagem.

No cenário internacional, poucos países contemplam a irretroatividade tributária na Constituição, independentemente do princípio da proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito ou de uma cláusula de irretroatividade geral. Exemplos marcantes são Colômbia e Portugal. Outro país que assim o prevê é a Grécia, cuja Constituição traz em seu artigo 78, § 2 e 3, a previsão expressa de que um tributo ou qualquer outro ônus financeiro não pode ser cobrado por meio de lei retroativa, não obstante traga como hipóteses de exceção os impostos de importação, exportação e os impostos sobre o consumo.


Um grupo importante de países, porém, preferiu adotar a irretroatividade geral, com extensão às normas tributárias. Neste, encontram-se as Constituições da Bolívia, da Noruega, do México, do Paraguai e da Espanha. É bem verdade que este último país integra um subgrupo que adota a irretroatividade geral mitigada, pois o faz dentro de certas condições ou restrições materiais, como se vê no seu artigo 9(3), ou seja, restrita às disposições sancionadoras não favoráveis, restritivas de direitos individuais ou como arbitrariedade de autoridades.

Outro grupo de países integra-se por aqueles que possuem Constituições que não preveem explicitamente o princípio da irretroatividade, ainda que possa ser deduzido como corolário da legalidade. Este é o caso da Constituição do Peru, que dispõe sobre a tributação em seu artigo 74.

Na Alemanha, a Lei Fundamental de Bonn não trouxe uma regra expressa de proibição da retroatividade para as leis tributárias, limitandose ao direito penal, o que não é aplicável por analogia ao direito tributário, como explica Klaus Tipke.17 Diante disso, a Constituição transferiu para o Tribunal Constitucional a competência para definir diante do caso concreto as hipóteses de cabimento da irretroatividade das leis tributárias, o que somente seria possível a partir da segurança jurídica e do princípio do Estado de Direito.

Na nossa história constitucional, a garantia da irretroatividade das leis, em sentido amplo, aplicável a toda e qualquer matéria, veio expressa nas constituições de 1824 e de 1891, mantendo-se nas posteriores apenas para a lei penal.18 Em matéria tributária, a garantia de proibição da retroatividade das leis que instituem ou aumentam tributos19 só havia aparecido de forma expressa na Constituição de 1934.

Por outro lado, a garantia da anterioridade tributária, que assegura o princípio da não surpresa, ou seja, a segurança jurídica do tempo futuro,20 é fruto de considerável evolução ao longo da nossa história constitucional. No passado, esta garantia equivalia ao princípio da anualidade orçamentária, cuja finalidade era diversa, pois tinha como função autorizar os tributos a serem cobrados no exercício posterior.

Este foi o regime assentado nas Constituições de 1824, 1934, 1946 e 1967. Devia-se à noção de orçamento como “ato-condição” (Duguit) outrora adotado entre nós. Este modelo somente foi modificado com a Emenda 1, de 1969, para contemplar a continuidade das receitas exigíveis sem necessidade de autorização orçamentária anual.

Surge, assim, a anterioridade da lei tributária, sem prejuízo de a garantia da anualidade continuar a existir, agora, com renovadas funções, afora aquela da demarcação do exercício financeiro: para os fins de balizamento da própria anterioridade, quanto à publicação da lei (i) e para periodização dos tributos anuais, geralmente aqueles incidentes sobre propriedade de bens ou rendas (ii).

Na Constituição vigente, a anualidade, combinada com a irretroatividade e anterioridade das leis tributárias que instituem ou majoram tributos (art. 150 – III, da CF), adicionadas do regime geral de vedação da irretroatividade para modificar os atos aperfeiçoados no passado ou os direitos adquiridos, do art. 5.º, XXXVI, configuram o regime da segurança jurídica na função de estabilidade no tempo do nosso Sistema Constitucional Tributário.21

Reforça-se, assim, o estatuto constitucional do contribuinte, mediante substancial proteção a mudanças inopinadas, múltiplas cobranças anuais de tributos sobre patrimônio ou renda, retrospectividade de leis que instituam ou aumentam tributos, bem como daquelas que tenham por finalidade modificar atos ou direitos aperfeiçoados em tempos pretéritos. Com esse esforço de certeza jurídica, (a) contra modificações de situações jurídicas estabilizadas antes da vigência da lei e (b) contra tipificação de fatos tributários verificados no passado por leis novas que instituam ou aumentem tributos, poucas constituições estrangeiras oferecem regimes semelhantes.

Some-se a essas duas hipóteses o princípio de irretroatividade da lei penal (art. 5.º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina”), que surte eficácia em relação à tipicidade dos crimes contra a ordem tributária ou das sanções administrativas, dada a vinculação do art. 106, do CTN, com efeitos equivalentes para as normas instituidoras de regras tributárias sancionatórias ou mais gravosas.

3 A segurança jurídica esta bilizadora do passado: a garantia de irretroatividade das leis tributárias

A garantia da irretroatividade de leis que criem ou aumentem tributos consiste em vedação expressa para cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Segundo Gabba, o único direito adquirido, quanto à irretroatividade, é o de não suportar imposto maior do que aquele estabelecido pela lei atualmente em vigor.22 Contudo, isso precisa ser entendido em um sentido amplo que envolva todos os elementos da norma tributária, e.g., apuração de créditos, titularidade de sujeição passiva e outros. Como observado por Geraldo Ataliba: “O Estado não surpreende seus cidadãos; não adota decisões inopinadas que os aflijam”.23 Verdadeiramente, ao Estado deve impor-se uma ética legislativa coerente com a ordem constitucional e esta, por todos os princípios e garantias consagrados, veda, com firmeza, a surpresa e a retroação em matéria tributária. E a razão parece simples: somente manifestações de capacidade contributiva ao tempo da vigência da lei podem ser alcançadas para a incidência tributária.

O princípio da irretroatividade das leis na esfera tributária representa o respeito ao direito adquirido de ser tributado em relação a fatos geradores segundo os demonstrativos de capacidade contributiva no momento da sua constituição. Isso porque aquele que evidencia capacidade contributiva na ausência de previsão legal que a qualifique como passível de exação tributária ou que a alcance em certos limites, adquire o direito de não ser tributado em medida diversa daquela então vigente ao momento de aperfeiçoamento do fato jurídico tributário.

Não parece correto supor que a regra geral do ordenamento consiste na máxima de que toda lei gera efeitos apenas para o futuro (lex prospicit, non respicit), defeso a qualquer disposição normativa alcançar fatos anteriores à sua vigência. Mais do que um exercício de ontologismo, este aforismo jurídico dissolve-se na complexidade do direito. É preciso construir argumentos coerentes com os paradigmas, princípios e garantias adotados pelo direito positivo.

No caso do direito tributário brasileiro, para os demais casos (exclusive instituição ou aumento de tributo), o art. 105 do CTN veda a irretroatividade em geral, ao garantir a todos que a legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes.24 Os fatos pendentes, ao serem alcançados pelas leis novas, sofrem exclusão da proibição de retroatividade para aquelas situações jurídicas ou de fato iniciadas no passado e cujo fato material ainda não se tenha por aperfeiçoado. E isso valerá tanto para o fato jurídico tributário de obrigações principais (art. 113 do CTN) quanto para obrigações acessórias (art. 114 do CTN), ambos compreendidos nas hipóteses dos art. 116 e 117 do CTN, no que especifica as modalidades dos facta pendentia.

É verdade que, em termos literais, a redação do texto constitucional, aparentemente, não traz um impedimento absoluto à retroatividade das leis tributárias na sua totalidade de hipóteses. A vedação constitucional limita-se em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que houver instituído ou aumentado tributo(art. 150, III, a, da CF).

Contudo, numa interpretação sistemática, em combinação com o inc. XXXVI do art. 5.º, verifica-se que a aplicação da norma tributária tampouco poderá retroagir para agravar situações consolidadas no passado ou para modificação de critérios de aplicação de tributos, multas ou qualquer tipo de obrigação mais gravosa,25 como nos casos de regimes de fiscalização, das demais modificações de critérios da regra matriz de incidência, de sanções administrativas ou capitulações de ilícitos que sejam abrandados ou extintos et caterva (arts. 105 e 146 do CTN).26

O princípio da interdição de retroatividade veda tudo aquilo que consista em inovação de obrigações ou deveres mais gravosos para os contribuintes e se constitui como verdadeiro direito fundamental, que não se pode restringir, amesquinhar ao conteúdo de “instituição” ou de “aumento” de tributo, aplicando-se a tudo o quanto possa ser arbitrário e cause prejuízos ou danos de qualquer tipo ao contribuinte, como criação de obrigações acessórias, aumento de multas e outros.

A retroação do mais benigno (lex milior) vê-se admitida pelo ordenamento. Basta ver o que dispõe o art. 150, § 6º, da CF, ao autorizar que a lei possa instituir remissões, anistias ou modificações que sejam mais benignas ao contribuinte. Seria inconcebível que o direito não pudesse retroagir, até mesmo para corrigir situações de injustiça ou de técnicas inadequadas ao tributo aplicado.27

A partir desse quadro normativo e teórico de possibilidades, a garantia da irretroatividade tributária, decorrente do princípio de segurança jurídica, veda a retroação de efeitos ao não benigno. E o impedimento de retroação dos efeitos das normas tributárias impositivas retira do legislador, do juiz ou do agente da Administração28 a possibilidade de alcançar fatos anteriores ao início da vigência das leis tributárias que instituam ou aumentem os tributos já existentes (irretroatividade constitucional) ou de qualquer outro efeito em matéria tributária mais gravoso (garantia de estabilidade funcional no tempo do art. 105 do CTN). Não se poderia esperar menos do princípio da irretroatividade.29


Misabel Derzi postula a intercorrência de um “poder judicial de tributar”, no qual o princípio da irretroatividade para instituir ou aumentar tributos, em face da proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva, seria limitação inequívoca, com vistas a preservar o contribuinte contra mutações inopinadas de jurisprudência.30 Esse entendimento, ainda que em menor sofisticação, encontra-se também em Klaus Tipke,31 amparado no que chama de “base de confiança”, para fundamentar o que ele denomina de postulado de proibição de jurisprudência retroativa agravante, como tutela da confiança na “orientação” dos tribunais.

Como diz Canotilho, “os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial”.32 Neste passo, os atos legislativos, judiciais ou executivos não podem retroagir para agravar situações ou imputar obrigações, mas devem respeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido no passado. Igualmente, devem criar condições de certeza e estabilidade para o futuro. Deveras, a coisa julgada não pode ser ferida por ato de qualquer espécie, seja este judicial, administrativo ou legislativo.

Questão controvertida põe-se para as isenções tributárias. Em geral, isenções deverão ser sempre prospectivas, nunca retroativas. Qualquer isenção para o passado assumiria o caráter de típica remissão ou de anistia. Por isso, quando não atendidos os pressupostos para remissão ou anistia, esta retroatividade pode ser vista como espécie de privilégio odioso e inconstitucional.

No que concerne à anterioridade, a revogação de isenções dependerá de uma série de aspectos. Caso concedida com prazo certo, ao término deste, o tributo deve recuperar sua exigibilidade, sem qualquer restrição. Não há surpresa que justifique sua permanência. Diferentemente, a revogação de isenções sem prazo certo ou sob qualquer outra condição que permita ao beneficiário reconhecer sua cessação, ou, igualmente, o caso da revogação de isenções com prazo certo, mas antes que este seja esgotado, haverá sempre o efeito equivalente à “instituição” ou “majoração” de tributo, razão pela qual o princípio da anterioridade, segundo a espécie de tributo, deverá ser observado integralmente, como garantia de segurança jurídica.

4 Autorizações para retroatividade no direito tributário brasileiro e o princípio da coerência do ordenamento

Para preservação da segurança jurídica e da certeza do direito, a aplicação retroativa de leis tributárias é admitida em hipóteses excepcionais, as quais estão descritas no art. 106 e 112 do CTN33, como que em oposição à regra geral, segundo a qual a lei vigora e surte efeitos somente para o futuro (lex prospicit, non respicit). Uma máxima que supostamente labora a favor da segurança, mas que poderia revestir-se de notável insegurança caso não contemplasse hipóteses de reconhecimento da permissão para retroagir.

Basicamente, esse efeito de retroação está autorizado nos casos de leis interpretativas (i), de leis sancionadoras mais benignas (ii) e de atos de aplicação do direito tributário ainda não definitivamente julgados (iii).

As leis mais benignas, nessa hipótese, ganham espaço inconteste, ainda que não se admita sua qualificação com excessiva amplitude. O art. 112 do CTN estabelece que, em caso de dúvida, a lei tributária deverá ser interpretada de modo favorável ao contribuinte, especialmente quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão de seus efeitos (i) e à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação (ii), ademais da capitulação legal do fato (iii) e da autoria, imputabilidade, ou punibilidade (iv). Como ensina Antonio Roberto Sampaio Doria: “A exemplo das leis penais benéficas em sentido estrito, também as normas tributárias, definindo infrações tributárias simples e respectivas sanções, retroagem, se benéficas, para favorecer o infrator.” 34 Portanto, no âmbito da tipificação dos ilícitos, da imputação de responsabilidade ou da aplicação de sanções, a lei nova benigna amplianda poderá ser alegada, ainda que os fatos tenham ocorrido em período anterior, seguido de auto de infração ou emprego de medida coercitiva de qualquer espécie, o que se aplica inclusive aos responsáveis tributários.

E não poderia ser diferente, afinal, a proibição de retroatividade das leis tributárias restringe-se aos conteúdos gravosos, aqueles que acrescem dificuldades ou onerosidades, que suprimem vantagens ou restringem direitos dos contribuintes, enfim, aqueles que causam qualquer pertubação sobre a situação estabilizada pela confiança ao tempo de um “comportamento juridicamente relevante” (planejamento tributário, pagamento de tributo, cumprimento de condições para obtenção de direito ou de isenção etc). Portanto, a retroação das leis mais benignas não ofende qualquer princípio ou valor jurídico; antes, apresenta-se como medida de equilíbrio e de coerência sistêmica entre segurança jurídica e direitos fundamentais.

Ao lado destas hipóteses, para todos os demais casos, a lei nova mais benigna poderá ser aplicada em se tratando de ato não definitivamente julgado. Afasta-se, assim, a retroatividade do mais benigno daqueles casos onde não se tenha controvérsias. Assim, em atenção ao princípio de coerência do ordenamento jurídico, enquanto não julgado o caso que tenha em discussão determinada matéria jurídica contemplada em lei nova mais benéfica, esta se deve aplicar na sua integralidade.

Trata-se do disposto no art. 106, II, “b” do CTN, verbis:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:

b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;

A condição excepcional não abrange a ilicitude decorrente de fraude ou da falta do pagamento do tributo. Em qualquer outro caso, quando a lei nova exclui do ordenamento exigência que se havia ou expressa disposição que impunha conduta proibida ou obrigatória, o contribuinte terá direito de alegar essa regra em qualquer fase ou tipo de processo, administrativo ou judicial, e até mesmo no âmbito de recursos nos tribunais superiores. A jurisprudência Supremo Tribunal Federal é pacífica desde 1967 para admitir a aplicação retroativa da legislação mais benéfica ao contribuinte, nas hipóteses de atos não definitivamente julgados, enquanto perdurar a disponibilidade para arguir, em qualquer esfera, seu cabimento.35 O Superior Tribunal de Justiça também reconhece a aplicação retroativa de ato não definitivamente julgado, atendidos os requisitos do CTN.36

Por fim, nos casos das chamadas “leis interpretativas”, assim entendidas aquelas que não acrescem inovação mais gravosa ou benéfica aos contribuintes, estas terão equivalente efeito retroativo no nosso ordenamento, como já o reconheceu o STF em diversas oportunidades.37 Nesse particular, o CTN, assim dispôs: “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados.” Nesse particular, pelo princípio da coerência, as leis interpretativas somente podem ser aplicadas quando não prevejam tratamentos gravoso, pela vedação genérica do ordenamento à retroatividade do que for não benigno.

Como “lei” interpretativa (defeso o emprego desse sentido para atos administrativos normativos), sua eficácia permite que se possa aplicar retroativamente “em qualquer caso”, seja a que título for, quer dos elementos da estrutura fundamental da norma tributária quer sobre procedimentos, desde que coincida com o mesmo âmbito de competência e conteúdo material da lei interpretada, vedada qualquer inovação material ou formal.

A permissão de retroatividade das leis aplica-se às regras específicas do lançamento tributário. A partir da vigência, em conformidade com o art. 144 do CTN, o lançamento deverá reportarse necessariamente à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, no que concerne à matéria do fato jurídico tributário, ainda que posteriormente modificada ou revogada. Desse modo, não há qualquer retroatividade na aplicação do lançamento sobre fatos verificados no passado, para os fins do lançamento tributário, cujo tratamento jurídico e regime aplicáveis hão de ser aqueles em vigor ao momento do respectivo fato.

A exceção, prevista no § 1º do referido art. 144, autoriza a retroatividade das leis que aplicam ao lançamento novos critérios de apuração (i), introduzem novos processos de fiscalização, ampliados os poderes de investigação das autoridades administrativas (ii), ou outorgam ao crédito maiores garantias ou privilégios (iii), desde que não instituam gravames retroativos ou modifiquem a regra matriz de incidência dos tributos. Segundo Aliomar Baleeiro, por serem disposições de natureza processual, têm eficácia imediata para aplicação aos casos pendentes38 de lançamento, investigação e emprego de garantias ou privilégios.

É induvidoso que por “novos critérios de apuração” não se pode conceber os procedimentos inerentes à apuração da base de cálculo. Numa interpretação conforme a Constituição, presente a proibição de retroatividade das leis que aumentam tributos, resta defeso admitir que a “apuração” da base de cálculo possa ser objeto de lei retroativa. Nesse caso, somente tem cabimento falar em critérios formais de lançamento para a determinação da matéria tributável, sem qualquer modificação dos elementos de quantificação do tributo. Regras que modificam os critérios de apuração do lucro líquido, a formação das receitas ou da presunção de rendimentos não podem ter efeito retroativo; diversamente, o procedimento de atuação administrativa na formação do lançamento poderá ser objeto de retroatividade, por não significar câmbio de expectativas do contribuinte.


No conceito de processos de fiscalização e de poderes de investigação das autoridades administrativas devem ser considerados apenas aqueles tipicamente administrativos e que não signifiquem inovações de exigências condutas ou de obrigações acessórias retroativas contra o contribuinte. Nesse grupo, por exemplo, não podem ser inseridos os métodos de controle de elusão tributária, métodos de controle de preços de transferência ou introdução de exigências onerosas ou gravosas para o contribuinte, para os fins de aplicação retroativa. Limita-se, assim, aos poderes de acesso a documentos ou dados, como o sigilo bancário e outros.

De igual modo, as leis que outorgam ao crédito maiores garantias ou privilégios, ao tempo que não se convertem em modificação do regime aplicável ao fato jurídico tributário, podem perfeitamente aplicar-se ao crédito formado a partir do momento em que se aperfeiçoa o lançamento.

5 Considerações finais

Como visto, a segurança jurídica e a certeza do direito conferem a todos o direito de sujeitarem-se unicamente à lei previamente existente, vedada qualquer retroatividade (lex prospicit, non respicit). Para tudo o que se possa considerar como “novo” conteúdo, deveras, aplicar-se-á o princípio de proibição da retroatividade, dos arts. 5.º, XXXVI, e 150, III, a, da CF.

Nas palavras de César García Novoa, “la seguridad jurídica otorga al particular un derecho a la certeza, no un derecho al mantenimiento de una determinada tributación”.39 Esta excepcionalidade encontra-se nos mais recentes diplomas normativos, como nos “códigos tributários” (leis gerais ou estatutos dos contribuintes) de diversos países, a exemplo de Itália, Espanha, Portugal e outros.40 Não é simples uso ou tradição. Efetivamente, nada impede que a lei cumpra aquele papel que muitas vezes é deixado à regulamentação, para esclarecer ambiguidades ou situações causadoras de dúvidas que poderiam ensejar longos conflitos ou afetações à eficácia da lei, nos atos de sua aplicação. E como o regulamento não pode e não deve retroagir, somente à “lei” pode-se conferir este efeito.

A segurança jurídica exige o acertamento das situações previstas em lei quando do seu cumprimento.41 Essa é a razão pela qual, a título de preservação da confiança legítima dos contribuintes perante a Administração, autoriza-se o afastamento de multas, nos termos do art. 106, I, do CTN, nas hipóteses de “leis interpretativas”; bem como de multas e juros de mora, nos termos do parágrafo único, do art. 100, do CTN, se e enquanto perdurou “prática reiterada da Administração” suficiente para gerar o estado de confiança assinalado.

Em vista disso, é de admitir que a lei, e somente a lei – defeso este recurso a qualquer tipo de ato regulamentar de caráter administrativo, por expressa vedação constitucional e do próprio CTN –, possa “retroagir” e cumprir essa função especificadora ou interpretativa das leis anteriormente publicadas. Nenhum ato administrativo tributário, portanto, pode ter efeito retroativo prejudicial no ordenamento jurídico brasileiro. Somente a “Lei” pode retroagir, e dentro de condições muito limitadas, como estabelece o art. 106 do CTN.

Notas

1 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 11. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2004. v. 2. p.123 e ss.; para um estudo do tempo e o direito: OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2001; ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; ASKIN, I. F. O problema do tempo: sua interpretação filosófica. São Paulo: Paz e Terra, 1969; RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1997. t. III.
2 CAPOZZI, Gino. Temporalità e norma. 4. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 2000. p. 262 e ss.; HUSSERL, Gerhart. Diritto e tempo. Tradução de Renato Cristin. Milano: Giuffrè, 1998. p. 3-60.
3 Como enfatiza Juha Raitio, da Universidade de Helsinki: “The principle of non-retroactivity can be linked to the legitimate expectations of the citizens” (RAITIO, Juha. Legal certainty, non-retroactivity and periods of limitation in EC law. Legisprudence. Oxford: Hart Publishing, 2008, v. 2, n. 1, p. 4).
4 BRETONE, Mario. Diritto e tempo nella tradizione europea. Bari: Laterza, 2004. p. 33 e ss.
5 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
6 A diferenciação entre princípios que veiculam “valores” e princípios como “limite objetivo” adotada por Paulo de Barros Carvalho, é de fundamental relevância para a análise da matéria. Ainda que a noção de “garantia” tenha, neste estudo, funções de princípios como “limites objetivos”, diferenciase pelo caráter protetivo de outros direitos e liberdades fundamentais que lhe atribuímos, tanto mais naqueles casos referidos expressamente no âmbito do art. 150 da CF (garantias asseguradas ao contribuinte). Como alude Paulo de Barros Carvalho: “Entrevemos na consideração do signo ‘princípio’, distinguindo-o como ‘valor’ ou como ‘limite objetivo’, um passo decisivo, de importantes efeitos práticos. Isso porque, se reconhecermos no enunciado prescritivo a presença de um valor, teremos que ingressar, forçosamente, no campo da Axiologia, para estudá-lo segundo as características próprias das estimativas” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 159).
7 Diz Anne-Laure Valembois: “Stabilité et previsibilité sont en effet les deux exigences qu’implique la sécurité juridique dans sa dimension temporelle” (VALEMBOIS, Anne-Laure. La constitutionnalisation de l’exigence… cit., p. 201; cf. RAITIO, Juha. The principle of legal certainty in EC law. Dordrecht: Kluwer, 2003, p. 201 e ss.).
8 SCHERMERS, Henry G.; WAELBROECK, Denis F. Judicial protection in the European Union. Hague: Kluwer, 2001. p. 84.
9 Interessante observar que esta formulação foi acolhida por constituições mais recentes e de influência lusófona. O art. 207 da Constituição de Moçambique, de 1990, prevê que “as leis só têm efeito retroactivos quando beneficiam os cidadãos e outras pessoas jurídicas”. De forma menos incisiva, tem-se o art. 96 da Constituição de Cabo Verde, de 1992, como segue: “A lei fiscal não tem efeito retroactivo, salvo se tiver conteúdo mais favorável para o contribuinte”. Para um exame dessas diferenciações, veja-se: GOUVEIA, Jorge Bacelar. A proibição da retroactividade da norma fiscal na Constituição portuguesa. In: CAMPOS, Diogo Leite de. Problemas fundamentais do direito tributário. Lisboa: Vislis, 1999. p. 39 e ss.
10 Na Alemanha não há regra expressa que proíba a retroatividade das leis tributárias. Em vista disso, a doutrina esforça-se para construir esse princípio a partir daqueles do Estado de Direito, da segurança jurídica, da confiança legítima e da efetividade dos direitos fundamentais, ademais da retroatividade das leis penais. Cf. TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. v. 1. p. 247-259. TIPKE, Klaus. La retroattività nel diritto tributario. In: AMATUCCI, Andrea (Coord.). Trattato di diritto tributario. Padova: Cedam, 1994. v. 1, t. I, p. 437-447; BOZZA, Nadya. I principi e la tutela del contribuinte nell’abgabenordung e le esperienze pratiche. Il fisco, Roma: Il Fisco, 2003. n. 10. p. 61-76.
11 Na Itália, este princípio, no âmbito da interpretação constitucional, foi elaborado a partir da irretroatividade da lei penal e dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva, integridade do patrimônio e até mesmo da dignidade da pessoa humana. Cf. MICHELI, Gian Antonio. Corso di diritto tributario. 8. ed. Torino: Utet, 1989. p. 64; MELIS, Giuseppe. Interpretazione autentica, retroattività e affidamento del contribuente: brevi riflessioni su talune recenti pronunzie della corte costituzionale. Rassegna Tributaria, Roma: 1997. v. 45, n. 4, p. 864-880. SANTI, Giovanni Grottanelli de. Profili costituzionali della irretroattività delle leggi. Milano: Giuffrè, 1970. Recentemente, porém, o art. 3.º da Lei 212, de 27 de julho de 2000, que introduziu o “Statuto dei diritti del contribuente”, introduziu tanto o princípio da irretroatividade quanto aquele da anterioridade em matéria tributária: “1. Salvo quanto previsto dall’articolo 1, comma 2, le disposizioni tributarie non hanno effetto retroattivo. Relativamente ai tributi periodici le modifiche introdotte si applicano solo a partire dal periodo d’imposta successivo a quello in corso alla data di entrata in vigore delle disposizioni che le prevedono. 2. In ogni caso, le disposizioni tributarie non possono prevedere adempimenti a carico dei contribuenti la cui scadenza sia fissata anteriormente al sessantesimo giorno dalla data della loro entrata in vigore o dell’adozione dei provvedimenti di attuazione in esse espressamente previsti” (Cf. FANTOZZI, Augusto. Il diritto tributario. 3. ed. Torino: Utet, 2003, p. 199 e ss.; FALSITTA, Gaspare. Manuale di diritto tributario: parte generale. 6. ed. Padova: Cedam, 2008. p. 97-112; MASTROIACOVO, Valeria. I limiti alla retroattività nel diritto tributario. Milano: Giuffrè, 2005).
12 Na França prepondera a aplicação do regime civilístico ao direito tributário, mediante aplicação do art. 2.º do Código Civil: “La loi ne dispose que pour l’avenir; elle n’a point d’effet rétroactif”; com o que dispõe o art. 5.º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “La Loi n’a le droit de défendre que les actions nuisibles à la Société. Tout ce qui n’est pas défendu par la Loi ne peut être empêché, et nul ne peut être contraint à faire ce qu’elle n’ordonne pas”. Ver: MALINVAUD, Philippe. L’étrange montée du contrôle du juge sur les lois rétroactives. 1804-2004, Le Code civil, un passé, un présent, un avenir. Paris: Dalloz, 2004. p. 671-692; DEBAT, Olivier. La rétroactivité et le droit fiscal. Paris: Defrénois, 2006. p. 146 e ss.; Commission des Finances du Senat – Cefep. Loi fiscale, rétroactivité et sécurité juridique: quelle conciliation? Revue de Droit Fiscal, n. 17, p. 622-629, Paris: Lexis Nexis, 1999; LEMAIRE, Fabrice. Actualité du principe de rétroactivité de la loi fiscale. RJF, n. 3. p. 186-190, Paris: Levallois Perret, 1999.
13 No direito espanhol a Constituição não comporta um princípio semelhante. Recentemente, a Ley General Tributaria 58, de 17 de dezembro de 2003, introduziu avanços significativos, mas ainda de reduzida segurança jurídica. Cf. art. 10. “Ámbito temporal de las normas tributarias. 1. Las normas tributarias entrarán en vigor a los veinte días naturales de su completa publicación en el boletín oficial que corresponda, si en ellas no se dispone otra cosa, y se aplicarán por plazo indefinido, salvo que se fije un plazo determinado. 2. Salvo que se disponga lo contrario, las normas tributarias no tendrán efecto retroactivo y se aplicarán a los tributos sin período impositivo devengados a partir de su entrada normas que regulen el régimen de infracciones y sanciones tributarias y el de los recargos tendrán efectos retroactivos respecto de los actos que no sean firmes cuando su aplicación resulte más favorable para el interesado” (NOVOA, César García. Los límites a la retroactividad de la norma tributaria en el derecho español. Tratado de derecho tributario. Lima: Palestra, 2003. p. 433-485).


14 Cf. o interessante estudo relativo à construção da jurisprudência belga quanto a esta matéria: KIRKPATRICK, John; GARABEDIAN, Daniel. Examen de Jurisprudence (1991 à 2007). Les impôts sur les revenus et les sociétes – principes généraux. Revue Critique de Jurisprudence Belge. p. 251-337, Bruxelles: Larcier, 2.º trim. 2008. 15 Como consta do voto do Min. Célio Borja: “O art. 150 da Constituição tornou explícito que a lei não pode impor obrigações tributárias a fatos ocorridos antes de sua vigência (inc. III, alínea a) nem, tampouco, a fatos ocorridos no exercício em que editada (inc. III, b)” (STF, Pleno, ADIn 513, rel. Min. Célio Borja, j. 14.06.1991.
16 .FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade… cit., p. 234.
17 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário cit., p. 247. Cf. MAURER, Hartmut. Contributos para o direito do estado. HECK, Luís Afonso (Trad.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 68.
18 Constituições brasileiras anteriores: Irretroatividade: Constituição Política do Império do Brazil de 1824: “Art. 171. Todas as contribuições directas, á excepção daquellas, que estiverem applicadas aos juros, e amortisação da Divida Publica, serão annualmente estabelecidas pela Assembléa Geral, mas continuarão, até que se publique a sua derogação, ou sejam substituidas por outras”. “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. […] III. A sua disposição não terá effeito retroactivo”. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891: “Art 11. É vedado aos Estados, como à União: […] 3.º – prescrever leis retroativas”. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934: “Art 17. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] VII – cobrar quaisquer tributos sem lei especial que os autorize, ou fazê-lo incidir sobre efeitos já produzidos por atos jurídicos perfeitos”. Anterioridade: Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937: “Art 68. O orçamento será uno, incorporando-se obrigatoriamente à receita todos os tributos, rendas e suprimentos de fundos, incluídas na despesa todas as dotações necessárias ao custeio dos serviços públicos”. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946: “Art 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 34. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967: “Art 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 29. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”. Emenda Constitucional 1 de 1969: “Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: […] § 29. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o impôsto sôbre produtos industrializados e o imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição”. Mais tarde modificado, nos seguintes termos: “§ 29 Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados e outros especialmente indicados em lei complementar, além do imposto lançado 8, de 1977).
19 CF, art. 150. “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] III – cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; […]”.
20 CF, art. 150, III: “[…] b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003) […] § 1.º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I. (Redação dada pela Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003)”.
21 Esta construção deve-se em muito à larga contribuição que Sacha Calmon e Misabel Derzi ofertaram ao exame do tema em nosso País. Cf. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 246 e ss.; sobre a segurança jurídica na aplicação da irretroatividade, ver: SANCHES, J. L. Saldanha. Manual de direito fiscal. Coimbra: Coimbra Ed., 2002. p. 75-97.
22 GABBA, C. F. Teoria della retroattività delle leggi. 2. ed. Torino: Unione Tipografica Editrice, 1884. v. 1, p. 266.
23 ATALIBA, Geraldo. Anterioridade da lei tributária, segurança do direito e iniciativa privada. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 50, p. 16, São Paulo: RT, 1983; como diz Eduardo Maneira: “O princípio da não surpresa da lei tributária é instrumento constitucional que visa a garantir o direito do contribuinte à segurança jurídica, essência do Estado de Direito, qualquer que seja a sua concepção” (Cf. MANEIRA, Eduardo. Direito tributário: o princípio da não surpresa. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 161).
24 Na combinação dos artigos 105 e 116 do CTN, a noção de fatos geradores pendentes revela que situações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor não são consideradas como “atos jurídicos perfeitos” e quedam-se passíveis de tributação com o adimplemento de condição (situação jurídica) ou com o aperfeiçoamento do suporte fático (situação de fato). Como observa Tercio Sampaio Ferraz Jr.: “Aqui toma sentido a noção de fatos geradores pendentes. Pendentes no tempo cronológico com sentido cultural, humano, os eventos só se completam quando termina o prazo, mas o término do prazo apenas lhes dá um sentido solidário, não os altera como fatos nem os anula. O princípio da anterioridade, assim, impede que os eventos componentes de um fato gerador, mesmo pendente de um momento final, sejam atingidos por uma lei publicada durante o período formador. Do contrário, romper-se-ia a solidariedade entre os eventos como um contínuo segmentado num tempo determinado” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade no campo tributário. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de direito constitucional tributário: estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 236). COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 257. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário cit., p. 175; RABELLO FILHO, Francisco Pinto. O princípio da anterioridade da lei tributária. São Paulo: RT, 2002.
25 Cf. RAMOS, Elival da Silva. A proteção aos direitos adquiridos no direito constitucional brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 150.
26 Como observa Federico Arcos Ramírez: “No parece posible elaborar un concepto abstracto de retroactividad que determine, de un modo más o menos exacto y apriorístico, lo que pueden o no hacer legisladores e intérpretes. Ello obedece, por un lado, a la dificultad para fijar una línea divisoria entre el pasado y el presente, distinción que en el plano jurídico resulta mucho más compleja de lo que pueda resultar en el devenir de la naturaleza; por otro, en que el problema no está en las leyes sino en las características de las situaciones sobre las que recaen que, por definición, son extraordinariamente variadas y merecedoras de una protección muy diversa frente a las normas innovadoras” (ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica. Una teoría formal. Madrid: Dykinson, 2000. p. 429).
27 “Uma absoluta proibição da retroactividade de normas jurídicas impediria as instâncias legiferantes de realizar novas exigências de justiça e de concretizar as ideias de ordenação social positivamente plasmadas na Constituição” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria… cit., p. 254). “Sólo la lege previa hace posible el cálculo de las repercusiones jurídicas de nuestras acciones, lo que resultaría del todo imposible si el Derecho actuara ex post facto. Por otra parte, no tanto la creación como la aplicación retroactiva de una ley abre un espacio a la arbitrariedad que socava todo sentimiento de confianza en el Derecho” (ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica… cit., p. 429; cf. PIZZON, Thommas. La sécurité juridique. Paris: Defrénois, 2009. p. 215).
28 É exigência de segurança jurídica que a irretroatividade seja vinculante para todos os poderes. São firmes as palavras de Geraldo Ataliba nesse sentido: “Ora, ou a prática constitucional encerra uma sólida promessa de segurança jurídica – a ser observada pelo legislador e pela Administração, e garantida pelo judiciário – ou torna-se ridículo e descabido falar-se em Constituição neste País” (ATALIBA, Geraldo. Anterioridade da lei tributária… cit., p. 12). Ou, na voz de Misabel Derzi: “O princípio da irretroatividade é direito e garantia fundamental de todos os cidadãos, que se impõe contra o Estado. Seja o Estado legislador, administrador ou juiz, a irretroatividade somente pode ser invocada em favor do contribuinte” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência… cit., p. 469).
29 “Alguns princípios, como o princípio da segurança jurídica e o princípio de confiança do cidadão, podem ser tópicos ou pontos de vista importantes para a questão da retroactividade, mas apenas na qualidade de princípios densificadores do princípio do estado de direito eles servem de pressuposto material à proibição da retroactividade das leis. Não é pela simples razão de o cidadão ter confiado na nãoretroactividade das leis que a retroactividade é juridicamente inadmissível; mas o cidadão pode confiar na não-retroactividade quando ela se revelar ostensivamente inconstitucional perante certas normas ou princípios jurídico-constitucionais.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria… cit., p. 254).
30 Em complementação, esclarece: “Enfim, o núcleo central deste trabalho limita-se ao exame da proteção da confiança, da boa-fé objetiva e da irretroatividade, em relação às modificações da jurisprudência, pondo em segundo plano os efeitos dos mesmos princípios em relação ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 607). A modificação de jurisprudência deve sempre motivar a adoção de efeitos prospectivos, como se vê em decisão do Min. Carlos Ayres Britto: “O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto” (STF, Pleno, Conflito de Competência 7.204/MG, rel. Min. Carlos Britto, j. 29.06.2005).


31 “A aplicação do Direito em matéria tributária pelos funcionários da Administração e adeptos da profissão de consultores tributários cumpre a função de orientar quanto a preceitos administrativos e a Jurisprudência. Se bem que preceitos administrativos juridicamente sejam dirigidos apenas a autoridades e sentenças façam coisa julgada apenas perante as partes processuais, os mesmos formam faticamente, em verdade, uma base de confiança para os sujeitos passivos e seus consultores” (TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário cit., p. 258-259).
32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 251.
33 NOVOA, César García. Los límites a la retroactividad de la norma tributaria en el derecho español. In: CARVALHO, Paulo de Barros. Tratado de derecho tributario. Lima: Palestra, 2003. p. 433-485; Cf. MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. O princípio constitucional da irretroatividade da lei: a irretroatividade da lei tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
34 DORIA, Antonio Roberto Sampaio. Da lei tributária no tempo. São Paulo: 1968, s.l, p 310-338.
35 “Executivo fiscal. Aplicação de lei nova, com retroatividade benigna, admitida as questões fiscais, para situações jurídicas em curso. O lançamento administrativo foi examinado sob o prisma da legalidade. Recurso extraordinário indeferido e agravo não provido.” (AI 39394/SP, Relator Ministro Evandro Lins, j. 07.03.67, DJ 26.04.67, p. 1137). “Tributário. Beneficio da Lei 1.687-79, art-5. Redução da multa para 5%. Ato definitivamente julgado – Artigo 106 II, ‘c’, do CTN. Se a decisão administrativa ainda pode ser submetida ao crivo do Judiciário, e para este houve recurso do contribuinte, não há de se ter o ato administrativo ainda como definitivamente julgado, sendo esta a interpretação que há de dar-se ao art-106, II, ‘c’ do CTN. E não havendo ainda julgamento definitivo, as multas previstas nos arts. 80 e 81 da lei n. 4502/64, com a redação dada pelo art-2., alterações 22 e 23 do decreto-lei n. 34/66, ficam reduzidas para 5% se o débito relativo ao IPI houver sido declarado em documento instituído pela Secretaria da Receita Federal ou por outra forma confessado, até a data da publicação do Decreto-lei 1680-79, segundo o beneficio concedido pelo art-5. Da lei 1687/79. Acórdão que assim decidiu e de ser confirmado.” (RE 95900/BA, Relator Ministro Aldir Passarinho, j. 04.12.84, DJ 08.03.85, p. 2602).
36 “1. Posicionamento de ambas as Turmas que compõem a Primeira Seção deste Tribunal no sentido de reconhecer a retroatividade benigna (art. 106 do CTN) provocada pela revogação dos artigos 43 e 44 da Lei 8.541/92, que continham normas com caráter de penalidade e estabeleciam a incidência em separado do imposto de renda sobre o valor da receita omitida. 2. Precedentes citados: AgRg no REsp n. 716.208/PR, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 6/12/2009 e REsp n. 801.447/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 26/10/2009.” (AgRg no REsp 1106260 / PR, Ministro BENEDITO GONÇALVES, DJe 04/03/2010). Cf. ainda: AgRg no REsp 954521 / ES. Ministro JOSÉ DELGADO (1105) DJ 22/11/2007 p. 206.
37 “É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autentica. – as leis interpretativas – desde que reconhecida a sua existência em nosso sistema de direito positivo – não traduzem usurpação das atribuições institucionais do judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisao funcional do poder. – mesmo as leis interpretativas expõem-se ao exame e a interpretação dos juizes e tribunais. Não se revelam, assim, espécies normativas imunes ao controle jurisdicional. – a questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória editada pelo Presidente da Republica. – o princípio da irretroatividade ‘somente’ condiciona a atividade jurídica do estado nas hipóteses expressamente previstas ela constituição, em ordem a inibir a ação do poder público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao ‘status libertatis’ da pessoa (cf, art. 5º, Xl), (b) ao ‘status subjectionais’ do contribuinte em matéria tributaria (cf, art. 150, iii, “a”) e (c) a ‘segurança’ jurídica no domínio das relações sociais (cf, art. 5º, xxxvi). – na medida em que a retroprojeção normativa da lei ‘não’ gere e ‘nem’ produza os gravames referidos, nada impede que o estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. – as leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, ‘ordinariamente’, dispor para o futuro. O sistema jurídico- constitucional brasileiro, contudo, ‘não’ assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade. – a questão da retroatividade das leis interpretativas”. (ADI-MC 605-DF. Rel. Min. Celso de Mello. Julgamento: 23/10/1991).
38 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 794.
39 GARCÍA NOVOA, César. El principio de seguridad jurídica… cit., p. 193.
40 Cf. FANTOZZI, Augusto. Il diritto tributario. 3. ed. Torino: Utet, 2003. p. 199 e ss.; FALSITTA, Gaspare. Manuale di diritto tributario: parte generale. 6. ed. Padova: Cedam, 2008. p. 97-112; DEBAT, Olivier. La rétroactivité et le droit fiscal. Paris: Defrénois, 2006. p. 146 e ss.; MASTROIACOVO, Valeria. I limiti alla retroattività nel diritto tributario. Milano: Giuffrè, 2005; MELIS, Giuseppe. Interpretazione autentica, retroattività e affidamento del contribuente: brevi riflessioni su talune recenti pronunzie della corte costituzionale. Rassegna Tributaria, v. 45, n. 4, p. 864-880, Roma: 1997; TIPKE, Klaus. La retroattività nel diritto tributario. In: AMATUCCI, Andrea (Coord.). Trattato di diritto tributario cit., p. 437-447; GOUVEIA, Jorge Bacelar. A proibição da retroactividade da norma fiscal na Constituição portuguesa. In: CAMPOS, Diogo Leite de. Problemas fundamentais do direito tributário. Lisboa: Vislis, 1999. p. 39 e ss.; NABAIS, José Casalta. Direito fiscal. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 87.
41 Como anotara Fernando Sainz de Bujanda, “la seguridad, en su doble manifestación – certidumbre del Derecho y eliminación de la arbitrariedad – ha de considerarse ineludiblemente en función de la legalidad y de la justicia. Esta última y la seguridad son valores que se fundamentan mutuamente y que, a su vez, necesitan de la legalidad para articularse de modo eficaz” (SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Reflexiones sobre un sistema de derecho tributario español – en torno a la revisión de un programa. In: Hacienda y Derecho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos,


Reflexão sobre a introdução da arbitragem tributária

Autor: José Casalta Nabais, Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

A reflexão sobre a introdução do instituto da arbitragem tributária, que é como quem diz do instituto da arbitragem no direito dos impostos, que nos solicitaram, andará à volta da tentativa de resposta a esta questão: garantirá o actual monopólio estadual da justiça tributária a ideia em que se consubstancia o Estado de Direito, a qual, como é sabido, teve e tem no direito fiscal um dos seus mais importantes pilares fundacionais? Uma pergunta cuja resposta vamos procurar dar através de quatro passos. Primeiro, algumas ideias sobre a jurisdição no Estado de Direito, seja como uma função e um poder do Estado, seja como a garantia por excelência das pessoas face ao mesmo Estado. Depois, como a arbitragem constitui um meio, mais um meio de resolução de litígios, não será inteiramente descabido interrogarmo-nos sobre as vias que actualmente podem quer evitar quer solucionar os litígios sem que estes tenham de ser objecto de um processo jurisdicional. A seguir, centrando-nos mais no tema que intitula este escrito, faremos algumas considerações sobre a introdução do instituto da arbitragem tributária, tendo em conta, desde logo, a base constitucional expressa do art. 209º, nº 2º, da Constituição. Por fim, impõe-se uma alusão à autorização legislativa relativa à arbitragem tributária contida na Lei do Orçamento do Estado para 2010 (LOE/2010). Encerramos esta reflexão com brevíssimas considerações finais.

1 A jurisdição no Estado de Direito

E a primeira reflexão prende-se com o sentido e o alcance da jurisdição no Estado de Direito. A tal respeito, parece-nos óbvio que a existência de uma jurisdição, de um poder judicial, de um poder entregue a tribunais, que se apresentem como órgãos independentes do poder político e administrativo e que decidam com imparcialidade os litígios jurídicos que lhe sejam submetidos pelas partes, pelos litigantes, constitui um verdadeiro pressuposto do próprio Estado de Direito. Efectivamente, sem a existência e o funcionamento de um poder estadual desse tipo, de um poder judicial, por certo que não poderemos afirmar que estamos perante um Estado de Direito. Por conseguinte, o Estado não pode deixar de ser titular e de exercer a função judicial, fornecendo assim o correspondente serviço de justiça. O que, naturalmente, nada nos diz quanto às específicas possibilidades de realização dessa função estadual. Realização que, como vai subentendido nas nossas palavras, não passa apenas pela instituição e funcionamento de um modelo único de justiça, podendo a mesma ser concretizada segundo modelos relativamente diversificados.

Pois, sendo a jurisdição simultaneamente uma função exercida por um dos poderes do Estado e a garantia por excelência das pessoas inclusive face a esse mesmo Estado, compreende-se que o entendimento dessa função no quadro das funções e poderes do Estado, de um lado, e da mencionada garantia, de outro lado, não seja inteiramente idêntico em toda a parte. Daí que também o papel da jurisdição na realização do Estado de Direito possa ter graduações, apesar da indiscutível aproximação actual dos sistemas consubstanciada no papel reconhecido à função jurisdicional na realização do Direito tanto em abstracto, ao nível da criação das normas jurídicas, como em concreto, ao nível da sua hodierna realização através da aplicação dessas normas. Diversidade que pode ser ilustrada com a compreensão da jurisdição no mundo anglo-saxónico, em que a sua visão como uma função a ser exercida pelo Estado, como um poder do Estado, se apresenta aí bastante esbatida. O que facilita a compreensão da verdadeira missão do juiz que é a de solucionar litígios e não tanto a de exercer ou afirmar um poder do Estado. Daí os amplos poderes de que o juiz dispõe nesse sistema para pôr termo aos processos através da promoção das mais variadas e criativas praticas conciliatórias e diversificados tipos de acordos entre as partes.

1.1 Uma função do Estado

Pois bem, olhando para o Estado, a jurisdição apresenta-se-nos como uma função exercida por um poder do Estado. Trata-se de uma das três (em rigor, das quatro) funções estaduais que, muito embora o Estado sempre tenha desempenhado, acabaram por ganhar especial protagonismo com a instituição do Estado Constitucional no século XVIII2. Instituição intrinsecamente ligada à necessidade de dividir o exercício dessas funções, por poderes ou complexos orgânicos essencialmente diferentes, de modo a assim prevenir e evitar a absolutização do poder, o poder absoluto, contra o qual justamente foi erguida a construção que conhecemos pelo nome de Estado Constitucional.

Por isso, entre nós, numa tradição republicana, que faz todo o sentido como vamos ver, os tribunais aparecem-nos como órgãos de soberania, ao lado, portanto, dos demais órgãos de soberania, a saber: o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo. Uma qualificação que a actual Constituição afirma não só ao proceder à enumeração dos órgãos de soberania (art. 110º, nº 1), mas também ao definir a própria função dos tribunais (art. 202º, nº 1).

E faz todo o sentido para quem, como nós, perfilhe a ideia de que o conceito de soberania é um conceito que comporta um inequívoco sentido jurídico e, por conseguinte, um sentido que não se identifica com um poder ilimitado e incondicionado, com um poder que não conhece limites de ordem interna ou de ordem externa3. Pelo que um órgão para ser soberano não carece de um poder ilimitado, como o conceito político de soberania, por via de regra, parece pressupor, mas antes ser detentor de um poder que, na ordem jurídica em que se insere, se apresenta como um “poder jurídico supremo”, um poder que não conhece outros limites senão os materializados na própria Constituição ou os que por esta sejam autorizados.

Um poder que os tribunais portugueses têm desde a primeira constituição republicana, a Constituição de 1911, a qual, por um lado, introduziu em Portugal o controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis, segundo o modelo norte-americano da judicial review of legislation, e, por outro lado, em coerência com essa inovação (ao que julgamos pioneira no espaço europeu), passou a designar os órgãos supremos do Estado por órgãos de soberania, ordenando-os, de resto, no próprio texto constitucional segundo a importância dos mesmos no correspondente modelo de governo. Uma visão das coisas que foi mantida tanto na Constituição de 1933 como na actual Constituição (de 1976). Por conseguinte, os tribunais portugueses constituem órgãos de soberania porque, no quadro da Constituição e no que respeita ao nosso sistema de direito interno, se apresentam como órgãos jurídicos supremos4.

Compreende-se facilmente que, a partir da sua perspectivação como função estadual e como função soberana, a função jurisdicional se apresente de algum modo avessa a ser partilhada com os particulares, com os privados, sobretudo quando se reporta àquele sector da justiça que tem por objecto litígios de natureza pública, em que ao poder judicial não se pede que dirima conflitos entre privados, mas antes que julgue a correcção jurídica dos actos praticados pelos outros órgãos estaduais, ou seja, que, a seu modo, julgue os outros poderes estaduais. Por conseguinte, entendida a jurisdição como um poder e um poder cujo exercício cabe a órgãos soberanos, torna-se muito difícil aceitar, por incompatibilidade evidente, a instituição da arbitragem, sobretudo no domínio da justiça pública, mais especificamente no domínio da justiça administrativa e fiscal. Pois, resulta da sua natureza, que o poder não é atribuído para ser cedido ou ser partilhado, mas para ser efectivamente exercido. Assim, uma tal perspectiva joga claramente no sentido do monopólio estadual da função judicial.

Muito embora seja de acrescentar que, todavia, o monopólio da resolução dos litígios jurídicos a favor da função judicial respeita a uma função passiva do Estado, pois os litígios apenas podem ser levados a juízo pelas partes e jamais pelo tribunal5. O que revela uma diferença muito significativa face às demais funções soberanas do Estado, que têm carácter essencialmente activo. Uma característica da função jurisdicional que, naturalmente, não pode deixar de ir no sentido de relativizar um pouco as afirmações anteriores.

1.2 A garantia por excelência das pessoas

Mas a jurisdição é, numa outra perspectiva, na perspectiva dos cidadãos, de resto a mais comum, uma garantia, ou melhor a verdadeira garantia das pessoas. Pois, quando se fala em garantia pensa-se imediatamente na garantia jurisdicional, na garantia assegurada através do funcionamento do conjunto dos tribunais. O que não deixa de decorrer de diversos preceitos constitucionais, com especial destaque para o art. 20º e para os nºs 4 e 5 do art. 268º da Constituição. Nesta visão das coisas, a jurisdição apresenta-se, não tanto como um poder do Estado, mas antes como uma garantia das pessoas, uma garantia para assegurar a realização dos direitos e interesses legalmente protegidos destas. Garantia que, num importante sector da justiça, acaba mesmo revelando-se como um poder contra o Estado, incluindo-se neste obviamente o próprio poder judicial.

Naturalmente que uma tal perspectiva, centrada já não no Estado como a anterior, mas na realização dos direitos e interesses legalmente protegidos das pessoas, não apresenta os obstáculos que revela aquela. Agora o que há que perguntar já não é pelo exercício de uma função soberana, de um poder estadual, mas antes como assegurar a realização dos direitos e interesses legalmente protegidos das pessoas. O que pode passar justamente por, relativamente à resolução dos litígios, deixar aos interessados, aos litigantes, a escolha do órgão para os decidir e, bem assim, o correspondente processo a seguir. Mais, atendendo ao actual contexto de morosidade da justiça, que se apresenta cada vez mais como um verdadeiro problema estrutural do Estado de Direito, podemos mesmo questionarnos se uma recusa ampla da arbitragem não acaba constituindo uma violação dos direitos de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva, mediante a obtenção de uma decisão judicial em prazo razoável.


Pelo que a abertura à arbitragem, incluindo no reduto formado pelo sector do direito dos impostos, se, por um lado, não põe em causa a ideia de Estado de Direito, por outro lado, parece constituir mesmo uma das formas pelas quais pode passar a sua concretização nos dias de hoje. Por isso, afigura-se-nos que essa via de resolução de litígios não pode, num quadro que se paute por um mínimo de realismo, ser liminarmente dispensada.

De um lado, constituindo a jurisdição a garantia por excelência, o Estado não pode deixar de exercer a função jurisdicional, colocando à disposição das pessoas o correspondente serviço de justiça. O que, em contrapartida, não significa erigir essa via em via necessária e única de obtenção da justiça relativamente a todos e quaisquer litígios. Significa antes que essa via não tem que ser única ou exclusiva. Ou seja, em suma, nem privatização nem monopólio estadual da justiça.

De outro lado, é preciso ter em devida conta a situação actual de sistemas jurídicos como o nosso, em que cada vez mais nos deparamos com um fenómeno de verdadeiro “totalitarismo do direito”6 que, entre as suas múltiplas consequências nefastas, tem conduzido, no que à acção dos tribunais diz respeito, a níveis de litigação e consequente volume de pendências judiciais absolutamente incomportáveis para o sistema. Por isso mesmo, não admira que a arbitragem, também a partir desse fenómeno, disponha de um ambiente propício, constituindo assim um instituto que vem sendo admitido um pouco por toda a parte mesmo no respeitante aos litígios cuja solução tem a sua sede no direito público. Efectivamente, bem podemos dizer que as exigências implicadas na praticabilidade do sistema jurídico e, bem assim, do sistema judicial não nos deixam presentemente outra alternativa7.

2 O quadro amplo da resolução dos litígios

Perspectivando agora o problema em análise já não a partir do significado e alcance da jurisdição no Estado de Direito, seja como função ou poder judicial, seja como garantia das pessoas sobretudo face ao Estado e demais poderes públicos, mas antes a partir dos litígios cuja solução a jurisdição visa alcançar, é de assinalar que essa solução não pode perder de vista um plano mais geral e abrangente face ao actual crescimento exponencial da litigação em relação ao qual o Estado de Direito tem de se mobilizar no sentido seja de uma actuação efectiva de prevenção dos litígios, seja para a abertura a formas não jurisdicionais, mormente administrativas, de solução desses mesmos litígios. Algumas considerações a este respeito.

2.1 A prevenção dos litígios

E uma primeira consideração, a fazer a este propósito, prendese com a necessidade de ter presente que a justiça fiscal, como a justiça administrativa ou qualquer outra, tem por objectivo solucionar, resolver conflitos. O que apenas será viável se o número litígios a que a ordem jurídica dá origem for compatível com a capacidade de resposta do sistema para a sua solução8.

Por isso, o melhor sistema de justiça não é tanto o que tem uma grande capacidade para solucionar litígios, um objectivo difícil de alcançar mesmo por parte de países mais ricos, mas aquele que tem uma grande capacidade de prevenir ou evitar litígios, desincentivando-os. Ou seja, em termos mais rigorosos, capacidade real, e não apenas capacidade virtual, para solucionar em termos amplos os litígios.

Num tal quadro, compreende-se que os actuais problemas da justiça, passem, desde logo, pela importância que deve ser dada às medidas de organização social como parte importante da política fiscal, ou seja, às medidas de política fiscal com as quais se pretende melhorar a organização social básica, neste caso a organização básica que constitui o suporte das Finanças Públicas9. O que implica, designadamente, estar sempre aberto à interrogação sobre a origem, a prevenção e a resolução dos conflitos, ter presente uma preocupação permanente com a simplificação e melhoria técnica do ordenamento jurídico fiscal e abandonar a velha ideia de que a aplicação das normas jurídicas sobre impostos passa exclusivamente pela actuação unilateral da Administração Fiscal. Ou seja, na adopção de quaisquer medidas no respeitante ao sistema fiscal, não podemos esquecer os conflitos ou litígios que as mesmas podem originar, a premente necessidade de simplificação exigida pelo sistema e a imprescindível convocação da colaboração dos contribuintes para uma lograda aplicação das leis dos impostos10.

Uma missão que tem naturalmente diversos actores, entre os quais sobressai o legislador, cuja actuação se revela verdadeiramente decisiva, em virtude, desde logo, de se traduzir numa intervenção que se situa a montante da acção dos demais. E, embora uma tal missão esteja sobretudo na mão do legislador do direito substantivo, cujas soluções não podem ser adoptadas sem ter devidamente presente essas preocupações, o certo é que também a legislação processual desempenha um importante papel nesse domínio, não podendo, por conseguinte, alhear-se dum tal problema.

Na verdade, o legislador, qualquer legislador, não pode, hoje em dia, deixar de permanentemente realizar um exigente teste através do qual proceda à avaliação dos impactos, designadamente económicos, que as soluções legais propostas podem desencadear, reportem-se estas ao direito substantivo ou ao direito processual11. Uma avaliação que, em domínios como o aqui em consideração, o respeitante ao direito dos impostos, não poderá deixar de ser perspectivada e analisada tendo em devida conta, não só os resultados, designadamente os montantes de receita fiscal que a disciplina dos impostos visa proporcionar, mas também e de modo muito particular os volumes de litigação que cada lei ou alteração legislativa possa ocasionar, os quais, mais tarde ou mais cedo, não deixarão de se repercutir negativamente na obtenção das receitas12.

Mais especificamente, o legislador precisa de estar alertado para obstar a que as soluções legais constituam elas próprias um autónomo suporte de litigação, alimentando litígios artificiais. Pois é sabido como muita da litigação actual não se inscreve num genuíno exercício da garantia jurisdicional orientada para a resolução de reais litígios, isto é, de litígios que a interpretação das normas jurídicas e sua aplicação aos casos da vida efectivamente ocasionam, mas antes num quadro mais ou menos sofisticado de expedientes dirigidos a um ganho de causa traduzido num ganho de tempo e numa concomitante obstrução à efectiva realização da justiça, em que, ao fim e ao cabo, mais não temos do que uma utilização abusiva do processo ancorada exclusivamente na morosidade da justiça activamente aproveitada ou mesmo provocada por qualificados actores processuais.

Daí que, como assinalámos noutro lugar, a propósito da reforma do direito processual tributário, exigida pela necessidade de pôr esse sector do direito em consonância com o direito processual administrativo, na configuração que este passou a ter com a reforma protagonizada pela aprovação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)13, em qualquer reforma legislativa, e naturalmente numa reforma do direito processual tributário, como era a que então estava sob a nossa observação, constitui irrecusável incumbência do legislador ter em devida conta a eventual litigação que a disciplina adjectiva dos impostos implicada nessa reforma pudesse vir a fomentar ou a impedir. O que nos revela, por certo, um dos mais importantes e significativos vectores de avaliação do impacto que as soluções legais podem desencadear no domínio do fomento ou incentivo à litigação, sobretudo no respeitante à litigação artificial, que um sistema de justiça fiscal complexo e pesado, pautado por uma ideia basicamente quantitativa da garantia jurisdicional, facilmente pode provocar14.

2.2 A solução administrativa de litígios

Depois, é de sublinhar que a solução de litígios não pode ser uma reserva absoluta dos tribunais, confundindo o sistema de justiça com o sistema dos tribunais. Pois não nos podemos esquecer que os países mais progressivos, com a ideia de Estado de Direito estabilizada há centenas ou várias dezenas de anos, solucionam a maior parte dos litígios, incluindo os que surgem no agitado domínio do direito dos impostos, em sede administrativa (lato sensu). O que, devemos assinalar, não admira nem impressiona, se tivermos, como se impõe, em devida conta o law on facts e não apenas, como é a nossa natural tendência, o law on books.

Desde logo, é preciso ter presente que a realização ideia de direito não constitui um exclusivo do poder judicial, como a velha inimizade ao Executivo, herdada do “Estado de polícia” do século XVIII, durante muito tempo deu a entender. Uma ideia que, consubstanciada na tendencial crença de que só os tribunais estão em condições de realizar a ideia de direito e de assegurar, assim, um verdadeiro due process of law, tem entre nós resistido de uma maneira particularmente visível.

Uma concepção de todo inaceitável no Estado de Direito, em que, como é sabido, por força da sua própria natureza, todos os poderes, naturalmente cada um a seu modo, participam na realização da ideia de direito. Por isso, o que é correcto e deve ser tomado muito a sério é antes a ideia de que todos os poderes do Estado contribuem, cada um deles a seu modo, para a concretização do Estado de Direito.

E entre esses poderes do Estado, não podemos esquecer que tem especial relevo, por se tratar dum poder operacional, ao qual cabe aplicar e executar o ordenamento jurídico no dia a dia, a Administração. Por isso é que na generalidade dos países, com um Estado de Direito desenvolvido, constitua normalidade perene a maior parte dos litígios surgidos, mesmo no campo das relações jurídicas tributárias, caber na competência da própria Administração, embora como o recurso a ampla colaboração dos contribuintes, muitas vezes concretizada em acordos ou contratos.


Uma realidade bem visível na generalidade dos países, mormente naqueles cujos regimes jurídicos constitucionais mais se aproximam do nosso, como é o caso da Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos da América, etc.15 Países em que encontramos seja a exigência de uma impugnação administrativa necessária, seja a abertura relativamente ampla para a celebração de acordos entre a Administração Tributária e os contribuintes e demais sujeitos passivos.

Deparamo-nos com a primeira das situações, por exemplo, na Alemanha, com a “impugnação extrajudicial” (Einspruch)16 e em Espanha com as clássicas reclamaciones económico-administrativas17. Por seu turno, encontramos a segunda das situações, por exemplo, em Itália com o accertamento con adesione (sucessor do bem conhecido e já clássico concordato tributario)18, em Espanha com a acta con acuerdo (instituto introduzido na nova versão da Ley General Tributaria, em vigor desde Julho de 2004, o qual, devemos acrescentar, mais não é do uma cópia do referido instituto italiano)19, ou mesmo na Alemanha (em que na alternativa entre a colaboração e a confrontação dos contribuintes com a Administração Fiscal, se opta claramente pela primeira) com os acordos sobre os factos (Tatsächliche Verständigung)20.

Um quadro em que é de destacar o que ocorre nos Estados Unidos da América, país que, por ser mais sensível à actuação ex ante, prevenindo os litígios, do que à procura de remédios ex post, sempre se mostrou aberto aos mais diversos tipos de acordos entre o Internal Revenue Service e os contribuintes, como são designadamente os acordos conclusivos (close agreements) e as promessas de compromisso (offerts in compromise)21.

Por conseguinte, é bom que nos convençamos que persistir ou insistir naquela visão das coisas é, com toda a certeza, prestar um mau serviço à justiça, à nobre função dos nossos tribunais. Pois entregar a solução de todos os litígios tendencialmente aos tribunais, muitas vezes contabilizando milhares e milhares de bagatelas jurídicas sem a menor dignidade judicial, que não raro conseguem percorrer todas as instâncias judiciais, o que obtemos é o bloqueio ou a quase paralisia do funcionamento do sistema judicial. Uma situação que, é importante sublinhá-lo, para além de descredibilizar todo o edifício que suporta o sistema de justiça, não será inteiramente ultrapassável, a nosso ver, através dessa espécie de “outsourcing judicial” que, no quadro mais amplo do apelo à “resolução alternativa de litígios”, acaba por configurar uma certa “privatização” da justiça ou, noutros termos, da função judicial. Uma realidade em justamente acaba por sobressair, como sua expressão mais qualificada, a arbitragem.

Trata-se, todavia, de uma via de solução de litígios bem mais ampla do que concretizada na arbitragem, a qual pode desempenhar um papel não despiciendo no aliviar dos tribunais da litigação que a complexidade real das actuais sociedades vem propiciando. Sobretudo se essa resolução alternativa de litígios for entendida em termos tais que a mesma seja perspectivada não exclusivamente como remédio ex post para o bloqueio dos tribunais, mas sobretudo como remédio que, ex ante, obste a que essa situação possa vir a ter lugar. Pois não nos podemos esquecer de que, ao lado de uma visível, e por vezes ostensiva, complexidade artificial suportada não raro pelos mais diversos e poderosos interesses organizados22, não há a menor dúvida de que nos deparamos, hoje em dia, nesta sociedade altamente tecnológica e particularmente sofisticada, própria da pós-modernidade, com uma efectiva complexidade real, a qual, obviamente, não podemos deixar de enfrentar com a coragem que se impõe.

Ora, é justamente no quadro desta sociedade, em que a actuação administrativa se encontra fortemente envolvida em importantes sectores por exigentes requisitos de ordem técnica e económica, que se vem reflectindo presentemente sobre o verdadeiro sentido da jurisdição administrativa, como suporte da garantia a uma tutela jurisdicional efectiva dos administrados. Reflexões que têm conduzido à proposta de novos caminhos em sede da justiça administrativa, entre os quais se conta o da recuperação e desenvolvimento do controlo extrajudicial prévio e obrigatório das decisões administrativas de base técnica e económica23. Uma via através da qual se visa proceder, numa primeira fase, ao teste das decisões administrativas num ambiente dialéctico consentâneo com a sua natureza genética, já que assente numa discussão de argumentos entre iguais, capaz de trazer ao respectivo procedimento os meios .adequados a que, numa segunda fase, quando a questão seja colocada perante tribunal, este possa submetê-la aos testes típicos do controlo jurisdicional no âmbito da ampla discricionariedade técnica presente nessas decisões24.

Por conseguinte, o que é de rejeitar, isso sim, é que o recurso à arbitragem ou, mais em geral, a resolução alternativa de litígios ex post, seja utilizado para dar cobertura a uma hiperlitigação em larga medida artificial. Ou seja, a uma litigação provocada à maneira de uma indústria25, alimentada por uma visão das garantias dos administrados que tem por base um sistema de garantia de verdadeira monocultura judicial. E, sobretudo, que essa via da “privatização” acabe por se apresentar, ao fim e ao cabo, como a única via que nos resta na actual sociedade perante a qual nada mais há a fazer senão resignarmo-nos.

Uma indústria que, no actual quadro de aceitação crescente da responsabilidade civil extracontratual do Estados e demais pessoas colectivas públicas, titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, pode conduzir a que o tempo cada vez mais dilatado dispendido na mencionada litigação passe a correr por conta desses responsáveis, que o mesmo é dizer, dados os limitados termos em que é previsível que venha a ser exercido o direito de regresso, em grande medida por conta dos contribuintes, aos quais acabam assim por ser endossadas as quantias decorrentes dessa responsabilidade26. O que, atenta a situação já de si verdadeiramente insuportável, que se vive no domínio das finanças públicas, em que o esforço fiscal dos contribuintes se encontra no limite, constituirá mais um factor da insustentabilidade financeira do Estado em que vivemos.

3 A introdução da arbitragem tributária

Em relação à introdução da arbitragem no nosso sistema jurídico público, bem podemos dizer que se tem assistido a um percurso em tudo idêntico ao que foi percorrido pela figura do contrato no direito público. Com efeito, de uma total rejeição dos contratos de direito público, focada na rejeição dos contratos administrativos, por absoluta incompatibilidade com sua natureza pública, passouse, com o andar do tempo, a um ampla admissibilidade de tais contratos, ao ponto de, hoje em dia, a actuação contratual constituir uma forma de actuação dos órgãos administrativos alternativa à do acto administrativo, como constava do art. 197º do Código da Procedimento Administrativo (CPA) e agora está estabelecido no art. 278º do Código dos Contratos Públicos27. Uma evolução que, embora em muito menor escala, não deixou de se verificar também em sede do direito fiscal, por certo um dos sectores do ordenamento jurídico mais refractários à figura do contrato28.

Pois bem, a idêntica evolução se vem assistindo actualmente no respeitante à admissão da arbitragem no direito público, administrativo e fiscal. O que, a seu modo, não surpreende, já que a abertura à arbitragem não deixa de ser, em larga medida, uma manifestação da abertura ao contrato. Evolução essa que teve concretização, no que à arbitragem administrativa diz respeito, na reforma da jurisdição administrativa levada a cabo nos anos de 2002 a 2004, encontrando-se consagrada nos art.s 180º a 187º do CPTA, e, relativamente à arbitragem tributária29, no seu reconhecimento operado pela recente autorização legislativa concedida ao Governo para a instituir (art. 124º da LOE/201030).

Uma instituição que, para além de não lhe faltar base constitucional expressa, a permitir a instituição de tribunais arbitrais em termos relativamente amplos, encontra algum paralelo no actual procedimento de revisão da determinação da matéria tributável por métodos indirectos e impõe-se pelo facto de a abertura legal à arbitragem administrativa não conter adequado suporte para a arbitragem tributária. Uma palavra muito rápida sobre estes aspectos31.

3.1 A base constitucional expressa

Quanto à base constitucional, ela é cristalina, pois o nº 2 do art. 209º da Constituição limita-se a prescrever que “podem existir tribunais arbitrais”, não estabelecendo no quadro desse preceito quaisquer limites à sua instituição, os quais serão apenas os que resultarem de outras normas ou princípios constitucionais. Pelo que apenas será de excluir a possibilidade de instituição de tribunais arbitrais para a solução de litígios que Constituição submeta aos tribunais em geral que não os tribunais arbitrais ou digam respeito a direitos de carácter indisponível32.

Isto significa que não se poderá recorrer à arbitragem para resolver litígios para os quais a Constituição imponha a intervenção dos tribunais não arbitrais ou respeitem a matérias para as quais a lei imponha uma solução estritamente vinculada. Por conseguinte, não contém a Constituição qualquer disposição específica a vedar a instituição de tribunais arbitrais no direito dos impostos ou, mais em geral, no domínio das relações jurídicas tributárias. Os limites constitucionais à arbitragem num tal domínio são exactamente os mesmos que valem em geral.

Por isso, a Constituição não fecha a porta à existência de tribunais arbitrais para a solução de litígios de natureza tributária, nos quais se incluem, designadamente, os litígios respeitantes aos actos de liquidação de tributos e a demais actos em matéria tributária33. O que é preciso, para se poder recorrer à arbitragem num tal domínio, é que a solução do litígio não disponha de uma solução inteiramente ditada pela lei, seja porque de todo esta a não prescreve, seja porque o litígio respeita a aspectos que não dispõem de uma solução estritamente vinculada na lei.


Pois, caso se verifique uma solução inteiramente contida e determinada na lei, admitir que um litígio, que tenha essa solução, possa ser dirimido pela via arbitral, significaria abrir a porta à possibilidade de substituição da solução legal por uma solução arbitral. O que, atenta a divisão e a interdependência de poderes recortadas na Constituição, parece de todo inadmissível. Com efeito, se o legislador pretende abrir a porta a uma solução arbitral, relativamente a matéria que apenas comporta uma solução estritamente legal, então que o diga especificamente, alterando previamente a lei que contém essa solução legal vinculada.

Significa isto que a arbitragem apenas poderá ser admitida relativamente a matérias nas quais a Administração Fiscal goze de uma margem de livre decisão em qualquer das modalidades que esta conhece. Uma realidade que, como é sabido, tem múltiplas e diversificadas manifestações também no direito fiscal, com destaque para aqueles domínios de evidente complexidade técnica, em que o legislador se encontra verdadeiramente impossibilitado de estabelecer soluções inteiramente recortadas na lei e, por conseguinte, estritamente vinculadas34. Por isso, domínios tais como os dos preços de transferência, da aplicação da cláusula geral anti-abuso e de outras normas dirigidas à prevenção da evasão e fraude fiscais, da avaliação da matéria tributável por métodos indirectos e da fixação de valores patrimoniais, encontram-se certamente entre os que podem ser candidatos à arbitragem.

3.2 A insuficiência da base do direito administrativo

Poder-se-ia dizer que o estabelecimento de uma arbitragem tributária não faz sentido, sendo desnecessária, já que a mesma beneficia da base legal estabelecida em sede da jurisdição administrativa. Mais especificamente, a abertura a uma tal arbitragem já constaria dos referidos arts. 180º a 187º do CPTA.

Uma ideia para cujo suporte se pode invocar, de resto, o facto de o direito fiscal constituir, pelo menos no que ao domínio ora em análise respeita, um ramo especial do direito administrativo35, bem como a circunstância de o direito judiciário fiscal se encontrar unificado com o direito judiciário administrativo no Estatuto do Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e de o CPTA constituir direito de aplicação subsidiária face ao Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) ( v. a alínea c) do art. 2º deste Código). Todavia, constituindo a introdução da arbitragem tributária no nosso sistema jurídico uma matéria tão importante e manifestamente inovadora, parece evidente que a mesma não pode resultar da disciplina da arbitragem administrativa que veio a encontrar acolhimento nos art.s 180º a 187º do CPTA. Tanto mais que, do longo processo que conduziu à aprovação e entrada em vigor desse Código, nada se deduz nesse sentido. Antes bem pelo contrário, em todo esse processo o que se teve em vista foi sempre e apenas a disciplina do processo nos tribunais administrativos nos moldes verdadeiramente revolucionários que acabou por prevalecer. De resto, perante a autonomia do processo tributário, fundada aliás em longa tradição e materializada presentemente no CPPT, não deixaria de ser estranho, para não dizer anómalo, que a arbitragem tributária viesse a fazer a sua aparição através de porta alheia, como é, indiscutivelmente, o CPTA. Muito diferente, por certo, já seria se a arbitragem tivesse sido objecto de acolhimento no ETAF.

O que, tudo somado, leva a concluir que a arbitragem tributária continuou sem suporte legal até à aprovação da LOE/2010, em cujo art. 124º se contem uma ampla e generosa autorização legislativa ao Governo para “instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”. E embora a sua instituição ainda se não tenha verificado, por ainda não ter sido utilizada a mencionada autorização legislativa, tudo leva a crer que vamos assistir à efectiva introdução da arbitragem tributária no nosso sistema jurídico a curtíssimo prazo.

Muito embora seja de assinalar que o modus operandi da arbitragem não seja de todo desconhecido do direito fiscal. Efectivamente, a seu modo, ele tem assento no procedimento de revisão da matéria tributável fixada com recurso a métodos indirectos. Uma palavra sobre este aspecto.

3.3 A revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos

Apesar de se tratar de um procedimento, o procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos, a decorrer por conseguinte na Administração Fiscal, e não de um processo judicial, o certo é que, como resulta claramente do seu regime jurídico, fixado nos arts. 91º e 92º da Lei Geral Tributária (LGT), estamos aí, em certa medida, perante a solução de um litígio em tudo idêntica à que é alcançável em sede do processo arbitral36.

Com efeito, no caso da determinação da matéria tributável fixada por métodos indirectos ou mediante avaliação indirecta, isto é, através de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha37, a sua impugnação judicial apenas pode ser levada a cabo aquando da impugnação judicial da correspondente liquidação. Todavia, para que a discussão da legalidade da determinação da matéria tributável por métodos indirectos, possa ter lugar é necessário que antes o contribuinte tenha, a título de reclamação prévia, desencadeado o mencionado procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos da competência de um órgão de natureza arbitral e pericial38.

Um órgão de natureza arbitral porque na sua estrutura e modus decidendi se assemelham aos órgãos arbitrais, uma vez que: 1) é constituído paritariamente por um perito designado pela administração tributária (que conduzirá o procedimento) e por um perito indicado pelo contribuinte (a que, a requerimento do contribuinte ou da administração tributária, pode ainda juntar-se um perito independente); 2) decide com base num procedimento assente num debate contraditório com vista a estabelecer um acordo quanto ao valor da matéria tributável a considerar para efeitos da liquidação do imposto; 3), em caso de falta de acordo (no prazo de 30 dias a contar do início do procedimento), cabe ao órgão competente para a fixação da matéria tributável resolver de acordo com o seu prudente juízo e tendo em conta as posições de ambos os peritos; e 4) a intervenção de um perito independente, a requerimento do contribuinte ou a pedido da Administração tributária, não tem outra consequência senão a de a decisão de revisão ter de fundamentar a sua adesão ou rejeição do parecer elaborado por esse perito, bem como o de a impugnação administrativa ou judicial dessa decisão, quando seja em sentido diferente do parecer do perito independente e do perito do contribuinte, ter efeito suspensivo independentemente da prestação de garantia 39.

Por conseguinte, não se pode firmar que o nosso direito fiscal desconhece por completo a técnica arbitral na resolução de litígios, a qual não perde o seu significado de realização da justiça, isto é, de restabelecimento da paz jurídica, pelo facto de se concretizar numa solução administrativa e não jurisdicional. De resto, para além de sermos muito críticos de todo um lastro de pensamento, que no actual quadro constitucional tem favorecido imenso o fenómeno que, noutro lugar e a outro propósito, designámos por “fuga para o juiz”, há que lembrar e sublinhar que os litígios não podem deixar de dispor de outras vias de solução, ao lado da solução jurisdicional. Uma ideia que tem, aliás, inequívoca expressão no nº 3 do art. 202º da Constituição, quando dispõe que “a lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos”40.

4 Alusão à autorização legislativa da LOE/2010

Finalmente uma alusão, muito rápida, à autorização legislativa concedida ao Governo constante do art. 124º da LOE/201041. O que faremos através de algumas poucas observações.

Desde logo, é visível a extensão ou amplitude da autorização legislativa. O que tem diversas expressões. De um lado, nos termos do nº 2 desse preceito, o processo tributário arbitral apresenta-se como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. De outro lado, quanto ao objecto do processo arbitral tributário, este pode incluir, segundo a alínea a) do nº 4, “os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária”. Enfim, nos termos da alínea b) desse mesmo nº 4, o Governo é autorizado a proceder à “definição, como fundamento do processo arbitral tributário, da ilegalidade ou da lesão ou o risco de lesão de direitos ou interesses legítimos, e como efeitos da sentença proferida a final pelo tribunal arbitral, da anulação, da declaração de nulidade ou de inexistência do acto recorrido ou do reconhecimento do direito ou do interesse legalmente protegido dos contribuintes”.

O que nos revela uma abertura à arbitragem tributária particularmente ampla, pois a ela se pode recorrer para dirimir a generalidade dos litígios tributários Pois o efectivo limite que podemos referir, que, de resto, se não coloca nem no plano dos litígios a resolver, nem no plano dos fundamentos que suportam o litígio, mas antes no paradigma ou critério normativo para a sua resolução, é constituído pela inadmissibilidade do recurso à equidade, pois, nos termos da línea c) do referido nº 4, o decreto-lei autorizado deve determinar que “o julgamento do tribunal arbitral é feito segundo o direito constituído, ficando vedado o recurso à equidade”.

Uma opção que se compreende42, mas em relação à qual devemos, todavia, assinalar que está longe de se revelar uma solução estritamente necessária, pois, para além de o julgamento segundo a equidade não se encontrar interdito na arbitragem administrativa, sendo, de resto, expressamente acolhido no art. 186º, nº 2, do CPTA, a equidade não é uma ideia de todo estranha ao direito dos impostos, como o demonstra, com evidente limpidez, a tradicional e relativamente ampla admissibilidade das chamadas “medidas equitativas” bem conhecidas do direito fiscal alemão, algumas das quais não deixam de ter expressão também entre nós43. Pelo que, em nosso modo de ver, não encontramos obstáculo insuperável ao julgamento segundo a equidade na arbitragem tributária, conquanto que se perfilhe uma concepção “moderada” ou “integrativa” da equidade, isto é, uma concepção que não ignora o direito constituído, antes o adapta ou molda ao espírito do sistema em face das concretas circunstâncias do caso44.


Muito embora, em sentido inverso à ampla abertura à arbitragem tributária em análise, se possa assinalar também que a autorização legislativa, que a recorta, não faz qualquer referência ao recurso à arbitragem em sede dos contratos fiscais. O que é, por certo, dispensável no respeitante às liquidações contratuais de tributos, pois sempre estaremos aí perante actos de liquidação no sentido amplo que parece ser o subjacente ao dessa autorização45. Mas o mesmo já se não pode dizer relativamente aos contratos fiscais em sentido estrito, os contratos relativos à concessão de incentivos ficais cuja disciplina consta agora, fundamentalmente, do art. 41º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, do Código Fiscal do Investimento46 e do Decreto-Lei nº 150/2009, de 23 de Setembro47, uma vez que nenhum destes diplomas legais parece ter revogado o disposto no nº 1 do art. 9º do Decreto-Lei nº 203/2003, de 10 de Setembro, em que se dispõe que “para dirimir os litígios emergentes da interpretação e aplicação dos contratos de investimento podem as partes convencionar o recurso à via arbitral, com excepção do que diga respeito a matéria relativa aos incentivos fiscais”48.

Depois, na medida em que, de acordo com o estabelecido no nº 3 do art. 124º em análise, se configura a arbitragem tributária como um direito potestativo dos contribuintes, autoriza-se o Governo a estabelecer um regime jurídico de efectiva desigualdade das partes, invertendo por completo a relação administrativa de supra / infra-ordenação entre a Administração Fiscal e os contribuintes49, ou seja, transformando essa relação numa relação de supra / infra-ordenação entre os contribuintes e a Administração Fiscal.

O que se nos afigura uma solução que afronta os princípios constitucionais concretizadores da própria ideia de Estado de Direito. Pois se parece aceitável que uma relação administrativa de supra / infraordenação entre a Administração Fiscal e os contribuintes se possa converter numa relação administrativa de natureza paritária, como é seguramente a relação entre as partes na arbitragem50, já não vemos como possa aceitar-se que uma relação administrativa de supra / infra-ordenação entre a Administração Fiscal e os contribuintes se transforme numa relação de supra / infra-ordenação invertida. Na verdade, na solução para que abre a porta a autorização legislativa, deparamo-nos com uma subordinação, para não dizermos uma subjugação, da Administração Fiscal para a qual não encontramos qualquer explicação num Estado de Direito.

Subordinação que se agrava com a autorização constante da alínea h) do referido nº 4, que consagra, como regra, a irrecorribilidade da sentença proferida pelo tribunal arbitral51. O que significa que a Administração Fiscal, em caso de litígio com os contribuintes, por um lado, é forçada a uma jurisdição arbitral e, por outro lado, é-lhe negado o acesso à justiça estadual. A que acresce ainda a circunstância de, nos termos da alínea n) do referido nº 4, se autoriza “a consagração da responsabilidade da parte vencida pela totalidade dos honorários e despesas dos árbitros, podendo ser estabelecidos critérios de limitação da responsabilidade da administração tributária, designadamente o do montante das custas judiciais e dos encargos que seriam devidos se o contribuinte tivesse optado pelo processo de impugnação judicial ou pela acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

Em suma, um conjunto de soluções que conduzem ao seguinte resultado cumulativo em cascata: a Administração Fiscal, depois de forçada à arbitragem, é impedida de se socorrer da justiça estadual e, em caso de ser vencida, ainda terá de pagar a totalidade dos honorários e despesas dos árbitros. Encargos que, todavia, podem ser atenuados, limitando-os ao montante das custas judiciais e dos encargos que seriam devidos se o contribuinte tivesse optado pelo processo de impugnação judicial ou pela acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Um resultado que, se não for desconforme com a ideia de Estado de Direito, então é caso para perguntar o que será o Estado de Direito.

Ainda a respeito da autorização legislativa em análise, questionamonos se a constituição e funcionamento dos tribunais arbitrais tributários não deve ter um regime comum com o dos tribunais arbitrais administrativos, regime este a constar da lei especial para a qual remetem os art.s 180º, nº 1, e 181, nº 2, do CPTA. No sentido de um regime comum pode invocarse a unidade do direito judiciário administrativo e fiscal contido no ETAF, muito embora, como referimos, a arbitragem administrativa tenha sido introduzida no sistema não pela via do ETAF, como de algum modo seria se esperar, mas antes pela porta do CPTA.

5 Considerações finais

Depois destes desenvolvimentos mais ou menos avulsos sobre a arbitragem tributária e tendo presente o recorte da admissão dessa arbitragem na autorização legislativa em causa, seria de nos interrogar sobre os efectivos méritos e deméritos previsíveis da introdução desse instituto no nosso direito dos impostos. O que, como bem se compreenderá, não estamos em condições de desenvolver aqui. Todavia, sempre diremos que não se podem depositar demasiadas esperanças na arbitragem tributária. Desde logo, é óbvio que a arbitragem não vai resolver o problema, verdadeiramente dramático para o Estado de Direito dos dias de hoje, da elevadíssima pendência nos tribunais fiscais, até porque uma parte muito significativa dessa pendência se reporta a processos insusceptíveis de solução arbitral, como é a relativa ao processo de execução fiscal. Para esse problema de natureza excepcional requer-se, a nosso ver, uma solução também de carácter excepcional, que não poderá deixar de passar por uma solução legislativa com amplo suporte político e aberta a acordos de natureza transaccional tão flexíveis e amplos quanto possível52.

Depois, entre as vantagens geralmente apontadas à arbitragem, referem-se as de proporcionar uma justiça mais célere e mais barata. Quanto à celeridade, não temos dúvidas, embora não devamos esquecer que dessa celeridade beneficiarão basicamente os que puderem socorrerse da arbitragem, que serão, em princípio, os que disponham de mais meios económicos, uma vez que o acréscimo de celeridade que o recurso à arbitragem vai proporcionar na justiça pública, em virtude dos processos que passarão a ser decididos pela arbitragem, será, a nosso ver, sempre relativamente diminuto.

Já, no respeitante a ser mais barata, temos dúvidas. É certo que a “privatização” da justiça, protagonizada pela arbitragem tributária, não encarece automaticamente a justiça, designadamente por aos encargos com a justiça pública se somarem os encargos com a justiça privada, pois aos primeiros sempre haverá que subtrair os encargos com os processos que, desviados da justiça pública, venham a ser remetidos para a arbitragem. Por outro lado, nos termos da autorização legislativa, a responsabilidade da Administração Fiscal com as custas judiciais e demais encargos pode ser limitada às custas e encargos que seriam devidos se o contribuinte tivesse optado pelo processo de impugnação judicial ou pela acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

Tendo, porém, em conta que a arbitragem ficará, por via de regra, mais cara do que a justiça pública, então os custos globais com a realização da justiça tributária acabarão sendo maiores do que aqueles que resultariam da existência apenas de justiça pública53. O que não significa, obviamente, rejeitar a arbitragem tributária, mas apenas chamar a atenção para a necessidade de ponderar devidamente os seus prós e contras, o que passa aqui, em larga medida, por um verdadeiro trade-off entre a necessária celeridade do processo e os inevitáveis maiores custos da justiça tributária.

A que acresce que a admissão da arbitragem tributária pode inscrever-se num quadro bem pouco lisonjeiro para a garantia fundamental de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva em sede das relações tributárias. Uma vez que, por não se encontrar assegurado algo idêntico a um mínimo existencial em sede de efectivação dessas garantias fundamentais, que, não nos esqueçamos, integram os direitos, liberdades e garantias fundamentais, é bem possível que se venha a verificar-se num tal sector algo que, todavia, se tenta evitar relativamente aos direitos económicos, sociais e culturais, como o direito à saúde, à educação e à segurança social, em que os mais favorecidos asseguram o exercício desses direitos através do mercado privado eficiente, os menos favorecidos acabam realizando tais direitos através do recurso a serviços públicos de carácter mais ou menos assistencial.

Anexo

Artigo 124º da LOE/2010 (Lei nº 3-B/2010, de 28 de Abril)

Arbitragem em matéria tributária
1 — Fica o Governo autorizado a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária.
2 — O processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.
3 — A arbitragem tributária visa reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, devendo ser instituída de modo a constituir um direito potestativo dos contribuintes.
4 — O âmbito da autorização prevista no presente artigo compreende, nomeadamente, as seguintes matérias:
a) A delimitação do objecto do processo arbitral tributário, nele podendo incluir-se os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária;
b) A definição, como fundamento do processo arbitral tributário, da ilegalidade ou da lesão ou o risco de lesão de direitos ou interesses legítimos, e como efeitos da sentença proferida a final pelo tribunal arbitral, da anulação, da declaração de nulidade ou de inexistência do acto recorrido ou do reconhecimento do direito ou do interesse legalmente protegido dos contribuintes;
c) A determinação de que o julgamento do tribunal arbitral é feito segundo o direito constituído, ficando vedado o recurso à equidade;


d) A definição dos efeitos da instauração do processo arbitral tributário, harmonizando -os com os previstos para a dedução de impugnação judicial, designadamente em termos de suspensão do processo de execução fiscal e de interrupção da prescrição das dívidas tributárias;
e) A definição do modo de constituição do tribunal arbitral, subordinando -o aos princípios da independência e da imparcialidade e prevendo, como regra, a existência de três árbitros, cabendo a cada parte a designação de um deles e aos árbitros assim escolhidos a designação do árbitro -presidente e a definição do regime de impedimento, afastamento e substituição dos árbitros;
f) A fixação dos princípios e das regras do processo arbitral tributário, em obediência ao princípio do inquisitório, do contraditório e da igualdade das partes e com dispensa de formalidades essenciais, de acordo com o princípio da autonomia dos árbitros na condução do processo;
g) A fixação, como limite temporal para a prolação da sentença arbitral e subsequente notificação às partes, do prazo de seis meses a contar do início do processo arbitral tributário, com possibilidade de prorrogação, devidamente fundamentada, por idêntico período;
h) A consagração, como regra, da irrecorribilidade da sentença proferida pelo tribunal arbitral, prevendo a possibilidade de recurso, para o Tribunal Constitucional, apenas nos casos e na parte em que a sentença arbitral recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada;
i) A definição dos efeitos da apresentação do recurso da sentença do tribunal arbitral, em particular quanto à manutenção da garantia prestada e ao regime da suspensão do processo de execução fiscal;
j) A definição do regime de anulação da sentença arbitral com fundamento, designadamente, na não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, na oposição dos fundamentos com a decisão e na falta de pronúncia sobre questões que devessem ser apreciadas ou na pronúncia de questões que não devessem ser apreciadas pelo tribunal arbitral;
l) A atribuição à sentença arbitral, que não tenha sido objecto de recurso ou de anulação, da mesma força executiva que é atribuída às sentenças judiciais transitadas em julgado;
m) A definição dos montantes e do modo de pagamento dos honorários e das despesas dos árbitros, fixando os critérios de determinação dos honorários em função do valor atribuído ao processo e da efectiva complexidade do mesmo e estabelecendo valores mínimos que ofereçam garantias qualitativas na composição do tribunal arbitral, podendo ainda prever -se a possibilidade de redução de honorários, fixando os respectivos pressupostos e montantes, nas situações de incumprimento dos deveres dos árbitros;
n) A consagração da responsabilidade da parte vencida pela totalidade dos honorários e despesas dos árbitros, podendo ser estabelecidos critérios de limitação da responsabilidade da administração tributária, designadamente o do montante das custas judiciais e dos encargos que seriam devidos se o contribuinte tivesse optado pelo processo de impugnação judicial ou pela acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária;
o) A aplicação adaptada, para efeitos da nomeação dos árbitros, mediadores ou conciliadores do regime dos centros de arbitragem previsto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos; p) A revisão da legislação tributária cuja necessidade de modificação decorra da presente autorização legislativa;
q) A consagração de um regime transitório que preveja a possibilidade de os contribuintes submeterem ao tribunal arbitral a apreciação dos actos objecto dos processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão, em primeira instância, nos tribunais judiciais tributários, com dispensa de pagamento de custas judiciais.

Notas

1 Este texto corresponde a uma versão reformulada e ampliada do inicialmente elaborado, a solicitação do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), para integrar a publicação por este patrocinada com o título: Arbitragem no Direito Público. Coimbra: Coimbra, 2010.
2 Segundo a divisão tripartida ancorada na conhecida teoria da separação de poderes do Barão de MONTESQUIEU, uma teoria reconhecidamente tributária, aliás, das ideias de JOHN LOCKE.
3 Caso em que a soberania se apresenta como um conceito meramente político, o qual se compagina apenas com o “Estado absoluto”. Com um tal sentido a ideia de Estado de Direito encontra-se afectada de uma verdadeira contradição nos próprios termos, já que o Estado ou é soberano ou é de Direito.
4 V. neste sentido, o nosso livro O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Almedina: Coimbra, 1998. p. 290 e ss. (299). Poder que, devemos acrescentar, veio a ser limitado, de um lado, pela instituição do Tribunal Constitucional (que passou a ter a última palavra na generalidade dos casos de controlo da constitucionalidade realizado pelos tribunais) e, por outro lado, pela integração europeia, a qual veio limitar esse carácter soberano relativamente a todos os órgãos de soberania.
5 V. o nosso estudo o nosso estudo «A revogação do acto tributário na pendência da impugnação judicial», agora em Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal. v. II, Almedina: Coimbra, 2008. p. 131 e ss. (142).
6 Concretizado no peso tentacular que o direito cada vez mais descartável e o correspondente exército de juristas têm na sociedades contemporânea. Trata-se de uma expressão que ouvimos ao Professor José Francisco de Faria Costa para caracterizar esse fenómeno, o qual, à maneira dos conhecidos três estádios de Auguste Comte, terá sucedido no século XXI ao “totalitarismo da política”, próprio do século XX, do mesmo modo que este terá sucedido ao anterior “totalitarismo da religião” – cf. o nosso estudo «Responsabilidade civil da Administração Fiscal», agora em Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal. v. III, Almedina: Coimbra, 2010. p. 145 e ss. (148).
7 Sobre o princípio da praticabilidade como limite à plena operacionalidade de alguns dos clássicos princípio constitucionais do direito fiscal, v. o nosso livro O Dever Fundamental de Pagar Impostos, cit., p. 335 e s. e 373 e ss., bem como REGINA HELENA COSTA, Praticabilidade e Justiça Tributária. Exeqübilidade de Lei Tributária e Direitos do Contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007.
8 Não nos podemos esquecer que o melhor litígio é o que não chega a existir, valendo aqui, a seu modo, a velha regra da sabedoria popular que vale mais prevenir do que remediar.
9 Em que o problema do efectivo controlo da despesa pública, como a razão de ser do controlo relativo aos impostos, não pode deixar de estar presente, ao contrário do que tem vindo a acontecer – v. sobre o esquecimento relativo ao “poder de gastar”, o nosso estudo, «A constituição fiscal de 1976, sua evolução e suas desafios», agora em Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal. Almedina: Coimbra, 2005. p. 145 e ss.
10 V., sobre tais aspectos, FERREIRO LAPATZA (Dir.), La Justicia Tributaria en España. Informe sobre las relaciones entre la Administración y los contribuyentes y la resolución de conflictos entre ellos. Marcial Pons: Madrid, 2005. p. 21 e ss.
11 Uma avaliação que, sobretudo no mundo anglo-saxónico, desde há muito, se tornou prática corrente, mesmo antes da doutrina da “análise económica do direito” a ter vindo, naturalmente, a favorecer. V. a respeito e por todos, CARLOS DA COSTA MORAIS. Sistema de avaliação do impacto das normas jurídicas, Cadernos de Ciência da Legislação, 32, p. 39 e ss, out./dez. 2002.
12 Para uma análise interessante e esclarecedora em termos de custos-benefícios da litigação, que o legislador em geral e o legislador processual em particular não pode, de todo, ignorar, sob pena de fazer reformas inteiramente desfasadas da realidade e, por conseguinte, totalmente inexequíveis, v. MIGUEL CARLOS TEIXEIRA PATRÍCIO. A Análise Económica da Litigação, Almedina: Coimbra, 2005.
13 Em aplicação desde 2004 – v.. o nosso estudo «Considerações sobre o Anteprojecto de Revisão da LGT e do CPPT dirigida à harmonização com a Reforma da Justiça Administrativa», agora em Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal. v. II, cit., p. 160 e s.
14 Quanto à ideia de uma garantia jurisdicional quantitativa, um aspecto, porventura dos mais expressivos, do que vimos designando por discurso quantitativo dos direitos – v. o nosso escrito «Algumas reflexões criticas sobre os direitos fundamentais», agora em Por uma Liberdade com Responsabilidade – Estudos sobre Direitos e Deveres Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2008. p. 87 e ss.
15 V., em geral, FERREIRO LAPATZA (Dir.), La Justicia Tributaria en España, cit., p. 153 e ss. No mesmo sentido, embora tendo em conta a situação anterior, v. a Revista Euroamericana de Estudios Tributarios, nº 2/1999, número subordinado ao tema: Los Tribunales Administrativos en Matéria Tributaria, bem como SERGIO ALBURQUENQUE, La Revisión en Vía Administrativa de los Actos Tributários: La Tutela Prejudicial de los Derechos y Garantías del Contribuyente. Notas para un Estudio Comparado, polic., Universidad Complutense de Madrid, 2003.


Refis da Crise: andamento da Representação

A Diretoria do SINPROFAZ se reuniu recentemente com a Dra. Ana Carolina Maia, Procuradora da República responsável pela Representação do Refis da Crise.


O desvio do FUNDAF como despesa vinculada

Presidente e diretor do SINPROFAZ tratam da destinação dos recursos do FUNDAF em artigo publicado no site Jus Navigandi.


Atuação na Câmara e no Senado em prol da carreira de PFN

Presidente do SINPROFAZ debateu temas de interesse da PGFN e da Advocacia Pública Federal com deputado e senador do estado de Goiás.


Presidente e vice do SINPROFAZ em atuação permanente no Congresso

Dirigentes visitaram deputado e senadora para tratar dos pleitos da Advocacia Pública Federal e também de demandas específicas da carreira de Procurador da Fazenda Nacional.


SINPROFAZ atua para agilizar as promoções na carreira de PFN

Em ofícios encaminhados às autoridades competentes, Sindicato solicita urgência na edição dos atos materiais imprescindíveis ao processamento do resultado final das promoções.


Celeridade judicial exige cautela

Por Sebastião Gilberto Mota Tavares

Em vários momentos – muito deles, inclusive, nesta Preclara Revista –, temos nos manifestado acerca de toda a problemática que envolve o controle de constitucionalidade das leis. Aparentemente, falar em termos de problemas ao derredor do controle pode soar como aleivosia incoadunável com o atual estágio da Ciência do Direito a respeito do assunto. Realmente, a doutrina do controle, tal como a regularidade das auroras, não requer mais quaisquer discussões. Sabemos quais são as suas espécies e os seus métodos, bem como seus focos e limites e a necessária densidade normativa do ato para galgar as alturas de objeto do controle. Por tais razões é que dizemos, por exemplo, que o controle de constitucionalidade das leis não pode se efetivar sobre os atos legislativos interna corporis, ensinamento vindo desde as clássicas lições do Chief of Justice John Marshall. A estabilidade da doutrina acerca do controle faz-nos desconfiar, à primeira vista, da utilização da expressão “problemática do controle”.

A sensação da imprestabilidade da expressão “problemática do controle” mais se avulta acaso levemos em consideração outra sorte de estabilidade jurídica, aquela atinente à caudal jurisprudencial existente sobre a questão, sobretudo, como não poderia deixar de ser, daquela advinda do Supremo Tribunal Federal. De fato, nossa Corte Maior possui iterativas decisões e precedentes que formam como que retrato ou arcabouço bem estável e fossilizado da doutrina de controle entre nós. Utilizando aquele mesmo tópico, é jurisprudência consagrada entre nós que os atos legislativos interna corporis só podem ser questionados judicialmente pelo parlamentar, quer dizer, por vereadores, deputados e senadores. E por ninguém mais. Aliás, enlevar-me-ia realçar que a consagração jurisprudencial da legitimidade extraordinária do parlamentar para questionar os interna é atitude alvissareira e vanguardista do nosso Supremo Tribunal, que representa já um desenvolvimento se levarmos em consideração os contornos clássicos do problema, que nem sequer admitiam o controle dos interna pelos parlamentares, se levarmos em consideração a pura doutrina americana provinda do Chief.

O vanguardismo constitucionalista do Supremo Tribunal dantes falado, desafortunadamente, há cerca de quase 50 anos, não ultrapassou o ponto da legitimidade extraordinária dos parlamentares. À semelhança das velhas Índias para os desbravadores marítimos medievos, a doutrina do controle não vai além da possibilidade do controle por parlamentares. Recebemos a doutrina original, fizemos alguns avanços e chegamos ao ápice consubstanciado no controle dos interna pelos parlamentares. A partir deste limite, passamos a entrar em território desconhecido, pois quase nada se vê a respeito. Talvez por isso é que nos assusta, em primeiro relance, a utilização da expressão “problemática do controle”. Atual e aparentemente, não há qualquer tópico não resolvido na doutrina do controle como ele é vivenciado no Brasil.

Entrementes, temos defendido, com bastante zelo e parcimônia, a existência, sim, de um vanguardismo constitucional, o qual, longe de ter sido criado por alguém – e muito menos nos colocaríamos em tal posição –, viceja quando alguns casos concretos são julgados e divulgados por nossa Justiça, mais especialmente, pelo Supremo Tribunal. A esse propósito, aliás, permita-me o nobre leitor mencionar caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal que vem precisamente em alento ao quanto estamos a dizer, i.e., que, de fato, algumas questões judiciais e/ou doutrinárias parecem desafiar a tranquilidade da doutrina do controle, desanuviando, quem sabe, potencialidade para provocar certa discutição ou, como prefiro dizer, certo vanguardismo. Estamos a falar do Mandado de Segurança – MS n. 27.971/DF, impetrado pelo então Deputado Federal Flávio Dino, em face dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, objetivando o funcionamento efetivo, no que diz respeito à tramitação das medidas provisórias, da comissão mista prevista no artigo 62, parágrafo 9º, da Constituição Federal. Em face do que consagrado, doutrinária e jurisprudencialmente, tendo perdido a sua condição de parlamentar, o citado MS foi extinto sem resolução do mérito, pois os interna só podem ser questionados por quem seja parlamentar.

Tal notícia foi estampada em recente edição desta Revista, pelo que, mais uma vez, não poderíamos nos furtar à discussão a que ela convida. Perguntemos: será que poderíamos problematizar a questão, tornando-a exposta ao debate? É possível ultrapassar este ponto? É possível avançar? Talvez sim, desde que intuamos que a legitimidade processual, apesar de com ela não se confundir, possui íntima relação com o bem da vida buscado pela parte, ou seja, com o mérito pela mesma posta através da causa. Dessa forma, acaso possamos assentar a legitimidade processual em outros parâmetros que não sejam exclusivamente aqueles genuinamente processuais, talvez possamos avançar sim. E quais seriam esses parâmetros? Para nós, a cláusula do devido processo legislativo ou, como alguns preferem, do devido processo legislativo constitucional.

Admitindo a existência, como cláusula implícita e decorrente do devido processo legal, do princípio fundamental do devido processo legislativo, poderíamos mudar, senão totalmente, pelo menos, muito agudamente o desfecho que teve aquele MS e outros tantos procedimentos nos quais se questionam o procedimento interno das casas legislativas. Dessa maneira, o devido processo legislativo, por outorgar a qualquer cidadão brasileiro – e, de maneira geral, a qualquer cidadão –, a prerrogativa de questionar a validade do procedimento parlamentar faria com que a parte impetrante daquele MS, mesmo tendo perdido a qualidade de parlamentar, não perdesse, todavia, a sua legitimidade para continuar questionando a inexistência da formação das comissões mistas no procedimento das medidas provisórias. É isto que, com a vênia ao nobre leitor, esperamos ter desenvolvido e demonstrado em nosso livro intitulado “Controle Jurisdicional Preventivo da Lei: O Devido Processo Legislativo” (RJ: Lumen Juris).

Sendo o devido processo legislativo direito fundamental de qualquer cidadão e, portanto, de estatura constitucional, é fácil concluir que, mesmo o cidadão não detendo a qualidade de parlamentar, afigura-se como prerrogativa inalienável sua pretender anular o processo legislativo que não observe, não apenas as normas constitucionais, como também, as normas regimentais. Consequentemente, se já tivéssemos admitido a existência do devido processo legislativo, o citado MS jamais poderia ter sido extinto sem resolução do mérito por perda da condição de parlamentar. Aliás, dada a importância que as medidas provisórias adquiriram em nosso sistema jurídico-normativo, abrimos capítulo específico para defender que, em caso de desrespeito ao devido processo legislativo – por exemplo, a inexistência das comissões mistas previstas regimentalmente para instrução e deliberação preliminar das medidas, objeto precisamente do MS em testilha –, o procedimento parlamentar da medida provisória resta total e absolutamente nulo e, por isso, nula, por via de consequência, seria a própria lei de conversão na qual a medida se convolou. Note-se: a lei não seria anulável; seria nula, desembaraçando o cidadão de quaisquer obrigações legais.


Talvez tenhamos enorme dificuldade de admitirmos o devido processo legislativo, que se encontra seguramente dentro do que denominamos de vanguardismo constitucional, precisamente por conta de sua mais drástica e perceptível consequência, a saber, tornar nula, no caso, a lei na qual a medida provisória se transforma. Imaginemos, no atual momento, em que se guinda radicalmente pela retirada, tanto quanto for possível, do Poder Judiciário das lides, pressionando o cidadão a não ingressar com ações, a capitular, a não recorrer, a desistir, a conciliar (mesmo contra a sua vontade), imaginemos – continuo – se seria possível admitirmos tese que permitiria a qualquer cidadão obter de qualquer juiz (já que tal cláusula pode ser reclamada via controle difuso) provimento que o desobrigasse das medidas provisórias? Tenderíamos a aumentar o arco de “litigiosidades latentes”, incoadunável com o atual pensamento de que, quanto menos ações e recursos, melhor – ainda que, para tanto, tenha a população que se utilizar de suas próprias mãos para fazer Justiça.

Entre aumentar, talvez desmesuradamente, as ações e reter o cidadão, retirando-lhe o direito fundamental ao devido processo legislativo – apenas mirando na diminuição das ações, evitando piorar a morosidade –, preferimos permitir-lhe questionar os atos legislativos interna corporis, pois o contrário equivale a fazer da Justiça uma não-Justiça. Ao revés, admitindo-o, possibilitaríamos, quem sabe, iniciarmos candente e vigorosa reforma política, porque feita pelo próprio titular da soberania – o Povo – e indicando ao legislador que o seu direito de legislar não é absoluto ou infrene. Talvez o mais crasso efeito político da cláusula seja este: descortinar ao legislador que não se pode admitir o abuso do seu direito de legislar.

Teríamos outros campos para o desenvolvimento do devido processo legislativo. Considerando que tal cláusula outra coisa não é que não bem elaborar a lei, nos estritos parâmetros constitucionais e regimentais, poderíamos dizer que, para que a lei possa ser bem elaborada, é preciso que seja instruída nas diversas comissões temáticas, cuja função outra não é senão a especialização do parlamentar em dada matéria. Assim, por exemplo, a CCJ tem por escopo primordial a especialização do parlamentar na matéria constitucional, em especial, na Constituição. Ora, ao confrontar os projetos de lei à Constituição, outra coisa a CCJ não faz senão controle de constitucionalidade, que bem poderia ser chamado de “legisferante”, uma das formas – a outra é o veto – não jurisdicionais de controle preventivo no sistema brasileiro.

Pois bem. Quanto mais a CCJ aprofunda-se no controle legisferante de constitucionalidade, tanto mais reforçada será a presunção da constitucionalidade das leis. Para nós, portanto, tal princípio não é algo monolítico, “inteiro”, mas vai depender do grau de aprofundamento da CCJ na análise da compatibilidade vertical da proposição em face da Constituição. É precisamente aí que reside mais um vanguardismo da tese: a lei não nasce com a presunção de constitucionalidade, como se fosse algo já dado, completo, mas sim, com uma presunção de constitucionalidade, quer dizer, com uma presunção variável em função do grau de verticalização utilizado pela CCJ na deliberação da proposição. Em outras palavras: a lei que nasce (quer dizer, que é promulgada e, ato contínuo, publicada) não nasce “inteiramente constitucional”, mas “proporcionalmente constitucional”, pois, quanto mais íngreme for o trabalho da CCJ tanto mais forte será a presunção; sendo o contrário também verdadeiro.

Dizer que o princípio da presunção tem origem no trabalho desempenhado pela(s) CCJ(s) e é a ele diretamente proporcional, possui inúmeras e interessantes consequências, como aumentar a responsabilidade política dos membros da(s) CCJ(s) e a participação política dos cidadãos, pois são estes que deverão cobrar por tal responsabilidade, rediscutindo o tema – quase esquecido entre nós, brasileiros – da nomogênese jurídica como fator visceral para o deferimento de cautelares nas ações diretas de inconstuticionalidade e assim por diante.

A limitação de espaço não nos permite ir mais longe. Em todo caso, seja no caso concreto do MS supra referido, seja nas inúmeras discussões teóricas que podemos encetar a partir do devido processo legislativo, o que nos conforta é que, embora limitados pelo espaço – e agradecemos o muito que já nos foi dado – e nosso pensamento, não o são o Constitucionalismo e seus movimentos vanguardistas.


Sebastião Gilberto Mota Tavares é procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito pela UF-PE, escritor e assessor jurídico na Câmara dos Deputados.

Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2011

Link para publicação original: http://www.conjur.com.br/2011-ago-27/inflacao-legislativa-exige-cautela-especialmente-direito-penal


Questionar processo legislativo é direito dos cidadãos

Por Sebastião Gilberto Mota Tavares

Em vários momentos – muito deles, inclusive, nesta Preclara Revista –, temos nos manifestado acerca de toda a problemática que envolve o controle de constitucionalidade das leis. Aparentemente, falar em termos de problemas ao derredor do controle pode soar como aleivosia incoadunável com o atual estágio da Ciência do Direito a respeito do assunto. Realmente, a doutrina do controle, tal como a regularidade das auroras, não requer mais quaisquer discussões. Sabemos quais são as suas espécies e os seus métodos, bem como seus focos e limites e a necessária densidade normativa do ato para galgar as alturas de objeto do controle. Por tais razões é que dizemos, por exemplo, que o controle de constitucionalidade das leis não pode se efetivar sobre os atos legislativos interna corporis, ensinamento vindo desde as clássicas lições do Chief of Justice John Marshall. A estabilidade da doutrina acerca do controle faz-nos desconfiar, à primeira vista, da utilização da expressão “problemática do controle”.

A sensação da imprestabilidade da expressão “problemática do controle” mais se avulta acaso levemos em consideração outra sorte de estabilidade jurídica, aquela atinente à caudal jurisprudencial existente sobre a questão, sobretudo, como não poderia deixar de ser, daquela advinda do Supremo Tribunal Federal. De fato, nossa Corte Maior possui iterativas decisões e precedentes que formam como que retrato ou arcabouço bem estável e fossilizado da doutrina de controle entre nós. Utilizando aquele mesmo tópico, é jurisprudência consagrada entre nós que os atos legislativos interna corporis só podem ser questionados judicialmente pelo parlamentar, quer dizer, por vereadores, deputados e senadores. E por ninguém mais. Aliás, enlevar-me-ia realçar que a consagração jurisprudencial da legitimidade extraordinária do parlamentar para questionar os interna é atitude alvissareira e vanguardista do nosso Supremo Tribunal, que representa já um desenvolvimento se levarmos em consideração os contornos clássicos do problema, que nem sequer admitiam o controle dos interna pelos parlamentares, se levarmos em consideração a pura doutrina americana provinda do Chief.

O vanguardismo constitucionalista do Supremo Tribunal dantes falado, desafortunadamente, há cerca de quase 50 anos, não ultrapassou o ponto da legitimidade extraordinária dos parlamentares. À semelhança das velhas Índias para os desbravadores marítimos medievos, a doutrina do controle não vai além da possibilidade do controle por parlamentares. Recebemos a doutrina original, fizemos alguns avanços e chegamos ao ápice consubstanciado no controle dos interna pelos parlamentares. A partir deste limite, passamos a entrar em território desconhecido, pois quase nada se vê a respeito. Talvez por isso é que nos assusta, em primeiro relance, a utilização da expressão “problemática do controle”. Atual e aparentemente, não há qualquer tópico não resolvido na doutrina do controle como ele é vivenciado no Brasil.

Entrementes, temos defendido, com bastante zelo e parcimônia, a existência, sim, de um vanguardismo constitucional, o qual, longe de ter sido criado por alguém – e muito menos nos colocaríamos em tal posição –, viceja quando alguns casos concretos são julgados e divulgados por nossa Justiça, mais especialmente, pelo Supremo Tribunal. A esse propósito, aliás, permita-me o nobre leitor mencionar caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal que vem precisamente em alento ao quanto estamos a dizer, i.e., que, de fato, algumas questões judiciais e/ou doutrinárias parecem desafiar a tranquilidade da doutrina do controle, desanuviando, quem sabe, potencialidade para provocar certa discutição ou, como prefiro dizer, certo vanguardismo. Estamos a falar do Mandado de Segurança – MS n. 27.971/DF, impetrado pelo então Deputado Federal Flávio Dino, em face dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, objetivando o funcionamento efetivo, no que diz respeito à tramitação das medidas provisórias, da comissão mista prevista no artigo 62, parágrafo 9º, da Constituição Federal. Em face do que consagrado, doutrinária e jurisprudencialmente, tendo perdido a sua condição de parlamentar, o citado MS foi extinto sem resolução do mérito, pois os interna só podem ser questionados por quem seja parlamentar.

Tal notícia foi estampada em recente edição desta Revista, pelo que, mais uma vez, não poderíamos nos furtar à discussão a que ela convida. Perguntemos: será que poderíamos problematizar a questão, tornando-a exposta ao debate? É possível ultrapassar este ponto? É possível avançar? Talvez sim, desde que intuamos que a legitimidade processual, apesar de com ela não se confundir, possui íntima relação com o bem da vida buscado pela parte, ou seja, com o mérito pela mesma posta através da causa. Dessa forma, acaso possamos assentar a legitimidade processual em outros parâmetros que não sejam exclusivamente aqueles genuinamente processuais, talvez possamos avançar sim. E quais seriam esses parâmetros? Para nós, a cláusula do devido processo legislativo ou, como alguns preferem, do devido processo legislativo constitucional.

Admitindo a existência, como cláusula implícita e decorrente do devido processo legal, do princípio fundamental do devido processo legislativo, poderíamos mudar, senão totalmente, pelo menos, muito agudamente o desfecho que teve aquele MS e outros tantos procedimentos nos quais se questionam o procedimento interno das casas legislativas. Dessa maneira, o devido processo legislativo, por outorgar a qualquer cidadão brasileiro – e, de maneira geral, a qualquer cidadão –, a prerrogativa de questionar a validade do procedimento parlamentar faria com que a parte impetrante daquele MS, mesmo tendo perdido a qualidade de parlamentar, não perdesse, todavia, a sua legitimidade para continuar questionando a inexistência da formação das comissões mistas no procedimento das medidas provisórias. É isto que, com a vênia ao nobre leitor, esperamos ter desenvolvido e demonstrado em nosso livro intitulado “Controle Jurisdicional Preventivo da Lei: O Devido Processo Legislativo” (RJ: Lumen Juris).

Sendo o devido processo legislativo direito fundamental de qualquer cidadão e, portanto, de estatura constitucional, é fácil concluir que, mesmo o cidadão não detendo a qualidade de parlamentar, afigura-se como prerrogativa inalienável sua pretender anular o processo legislativo que não observe, não apenas as normas constitucionais, como também, as normas regimentais. Consequentemente, se já tivéssemos admitido a existência do devido processo legislativo, o citado MS jamais poderia ter sido extinto sem resolução do mérito por perda da condição de parlamentar. Aliás, dada a importância que as medidas provisórias adquiriram em nosso sistema jurídico-normativo, abrimos capítulo específico para defender que, em caso de desrespeito ao devido processo legislativo – por exemplo, a inexistência das comissões mistas previstas regimentalmente para instrução e deliberação preliminar das medidas, objeto precisamente do MS em testilha –, o procedimento parlamentar da medida provisória resta total e absolutamente nulo e, por isso, nula, por via de consequência, seria a própria lei de conversão na qual a medida se convolou. Note-se: a lei não seria anulável; seria nula, desembaraçando o cidadão de quaisquer obrigações legais.

Talvez tenhamos enorme dificuldade de admitirmos o devido processo legislativo, que se encontra seguramente dentro do que denominamos de vanguardismo constitucional, precisamente por conta de sua mais drástica e perceptível consequência, a saber, tornar nula, no caso, a lei na qual a medida provisória se transforma. Imaginemos, no atual momento, em que se guinda radicalmente pela retirada, tanto quanto for possível, do Poder Judiciário das lides, pressionando o cidadão a não ingressar com ações, a capitular, a não recorrer, a desistir, a conciliar (mesmo contra a sua vontade), imaginemos – continuo – se seria possível admitirmos tese que permitiria a qualquer cidadão obter de qualquer juiz (já que tal cláusula pode ser reclamada via controle difuso) provimento que o desobrigasse das medidas provisórias? Tenderíamos a aumentar o arco de “litigiosidades latentes”, incoadunável com o atual pensamento de que, quanto menos ações e recursos, melhor – ainda que, para tanto, tenha a população que se utilizar de suas próprias mãos para fazer Justiça.


Entre aumentar, talvez desmesuradamente, as ações e reter o cidadão, retirando-lhe o direito fundamental ao devido processo legislativo – apenas mirando na diminuição das ações, evitando piorar a morosidade –, preferimos permitir-lhe questionar os atos legislativos interna corporis, pois o contrário equivale a fazer da Justiça uma não-Justiça. Ao revés, admitindo-o, possibilitaríamos, quem sabe, iniciarmos candente e vigorosa reforma política, porque feita pelo próprio titular da soberania – o Povo – e indicando ao legislador que o seu direito de legislar não é absoluto ou infrene. Talvez o mais crasso efeito político da cláusula seja este: descortinar ao legislador que não se pode admitir o abuso do seu direito de legislar.

Teríamos outros campos para o desenvolvimento do devido processo legislativo. Considerando que tal cláusula outra coisa não é que não bem elaborar a lei, nos estritos parâmetros constitucionais e regimentais, poderíamos dizer que, para que a lei possa ser bem elaborada, é preciso que seja instruída nas diversas comissões temáticas, cuja função outra não é senão a especialização do parlamentar em dada matéria. Assim, por exemplo, a CCJ tem por escopo primordial a especialização do parlamentar na matéria constitucional, em especial, na Constituição. Ora, ao confrontar os projetos de lei à Constituição, outra coisa a CCJ não faz senão controle de constitucionalidade, que bem poderia ser chamado de “legisferante”, uma das formas – a outra é o veto – não jurisdicionais de controle preventivo no sistema brasileiro.

Pois bem. Quanto mais a CCJ aprofunda-se no controle legisferante de constitucionalidade, tanto mais reforçada será a presunção da constitucionalidade das leis. Para nós, portanto, tal princípio não é algo monolítico, “inteiro”, mas vai depender do grau de aprofundamento da CCJ na análise da compatibilidade vertical da proposição em face da Constituição. É precisamente aí que reside mais um vanguardismo da tese: a lei não nasce com a presunção de constitucionalidade, como se fosse algo já dado, completo, mas sim, com uma presunção de constitucionalidade, quer dizer, com uma presunção variável em função do grau de verticalização utilizado pela CCJ na deliberação da proposição. Em outras palavras: a lei que nasce (quer dizer, que é promulgada e, ato contínuo, publicada) não nasce “inteiramente constitucional”, mas “proporcionalmente constitucional”, pois, quanto mais íngreme for o trabalho da CCJ tanto mais forte será a presunção; sendo o contrário também verdadeiro.

Dizer que o princípio da presunção tem origem no trabalho desempenhado pela(s) CCJ(s) e é a ele diretamente proporcional, possui inúmeras e interessantes consequências, como aumentar a responsabilidade política dos membros da(s) CCJ(s) e a participação política dos cidadãos, pois são estes que deverão cobrar por tal responsabilidade, rediscutindo o tema – quase esquecido entre nós, brasileiros – da nomogênese jurídica como fator visceral para o deferimento de cautelares nas ações diretas de inconstuticionalidade e assim por diante.

A limitação de espaço não nos permite ir mais longe. Em todo caso, seja no caso concreto do MS supra referido, seja nas inúmeras discussões teóricas que podemos encetar a partir do devido processo legislativo, o que nos conforta é que, embora limitados pelo espaço – e agradecemos o muito que já nos foi dado – e nosso pensamento, não o são o Constitucionalismo e seus movimentos vanguardistas.


Sebastião Gilberto Mota Tavares é procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito pela UF-PE, escritor e assessor jurídico na Câmara dos Deputados.

Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2011

Link para publicação original: http://www.conjur.com.br/2011-ago-07/qualquer-cidadao-poder-questionar-processo-legislativo


Outro ponto de vista em relação à atuação da AGU

Autor: Allan Titonelli Nunes, Procurador da Fazenda Nacional

Data de publicação: 26 de julho de 2011

Veiculo: Revista Consultor Jurídico

A intenção do Legislador Constituinte ao incluir a Advocacia Pública entre as Funções Essenciais à Justiça, inserida expressamente no capítulo, IV, seção II, da Carta Magma, foi criar um órgão técnico capaz de prestar auxílio ao Governante e, ao mesmo tempo, resguardar os interesses sociais.

A construção de uma Advocacia Pública conforme os anseios Constitucionais têm sido feita gradativamente. Para o bem do nosso Estado Democrático de Direito é necessário que essa mudança ocorra o mais rápido possível, considerando a necessidade da criação de uma efetiva carreira de apoio; modernização das instalações e funcionalidades técnicas dos sistemas de informática; implantação de remuneração isonômica em relação às demais Funções Essenciais à Justiça, evitando o elevado índice de evasão e instituição de prerrogativas isonômicas àquelas existentes para os Juízes e Promotores, para dar condições de igualdade no enfrentamento judicial.

A AGU não é a vilã da prestação jurisdicional, mas sim a salvaguarda de um Estado Democrático de Direito mais célere e eficaz, pois mesmo com essas dificuldades, obteve êxitos, descritos no relatório de gestão de 2010, como: R$ 2,026 trilhões economizados/arrecadados; 31.142 execuções fiscais ajuizadas relativas às autarquias e fundações públicas federais, com ressarcimento de R$ 24,3 milhões; 1.292 ações de ressarcimento ajuizadas; arrecadação de R$ 1,5 bilhão de contribuições sociais na Justiça do Trabalho; arrecadação de 13,3 bilhões de valores inscritos em Dívida Ativa da União; bloqueio de R$ 582 milhões desviados por corrupção; vitória na maior ação judicial da história da AGU, com economia de R$ 2 trilhões; acompanhamento diário de 683 ações do PAC e empreendimento estratégicos; repatriação de obras de arte no valor de U$ 4 milhões; conciliação administrativa de disputas judiciais envolvendo Órgãos Federais; redução da judicialização de matérias pacificadas, através da edição de súmulas, eximindo a interposição de recursos; entre outras.

No que tange ao alcance de uma prestação jurisdicional mais célere, respeitando as garantias fundamentais do processo, devemos dizer que a Escola processualística moderna tem como escopo resolver esse desafio.

Atendendo aos anseios da sociedade, o Poder Constituinte Derivado introduziu, através da Emenda Constitucional 45/2004, o inciso LXXVIII, ao art. 5º, que assim dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”[1]

Essa alteração Constitucional decorreu, em certa medida, da constatação de que o Direito Processual, como instrumento para consecução do direito material, não vinha sendo concretizando, em razão da morosidade do Judiciário, da não satisfação do direito a todos os legitimados,

Nesse sentido, o Processo Civil Brasileiro vem sofrendo diversas alterações que objetivam dotar os jurisdicionados de mecanismos mais eficazes para a concretização do direito.

Entretanto, no entendimento de Humberto Theodoro Jr., para alcançar uma prestação jurisdicional mais célere é necessário diminuir, ao máximo, o “tempo morto do processo”, período em que o processo segue seu trâmite na secretaria ou serventia.

Acresce-se às observações anteriores o fato de que, após a Constituição de 1988, houve um crescente e paulatino acesso universal à prestação jurisdicional, o que, por certo, ocasionou uma sobrecarga de trabalho ao Poder Judiciário.

Com essa contextualização podemos rebater as acusações de que a União seria a responsável pela lentidão da prestação jurisdicional. A União, realmente, é parte em grande quantitativo de processos que tramitam na Justiça Federal, mas esse fato não é por acaso.

O Estado Brasileiro, constituído pela República Federativa do Brasil, é organizado político-administrativamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme preconiza o artigo 1º c/c artigo 18, da CRFB.

Assim, as políticas planejadas, desenvolvidas e executadas pelos Entes Federados, comumente referidas como políticas públicas, decorrem da repartição de competência administrativa e legislativa da Federação Brasileira.

Observe-se que a Constituição Federal de 1988 incumbiu à União grande parte dos serviços dirigidos à República Federativa do Brasil, exigindo-se a construção de um Estado prestador de serviços, Welfare State, representado pelo Estado do Bem Estar Social.

É natural que sendo a União reguladora de grande parte das relações sociais seja muito acionada em Juízo, da mesma forma como defenderá seus interesses ajuizando as ações cabíveis.

Por todos esses motivos, a organização do Estado brasileiro comporta a movimentação de todo um arcabouço administrativo, meticuloso e burocrático. Sua organização e funcionamento não se comparam a uma empresa privada em termos de eficiência e planejamento, por ter uma gestão mais complexa.

Considerando que cabe à Advocacia-Geral da União a representação judicial e extrajudicial da União, lato senso, importará dizer que seus membros exercerão um papel, diretamente ou indiretamente, relacionada à concretização das políticas públicas do Estado Brasileiro, aqui tomado como sinônimo de União. Diante dessa perspectiva, é dever dos membros da Advocacia-Geral da União darem suporte à execução orçamentária das competências da União, desde que as ações sejam constitucionais e legais. Essa aferição será realizada no caso concreto, ou por meio das normas regulamentares expedidas pela Advocacia-Geral da União, através da atuação de um profissional técnico, imparcial e altamente qualificado, não sujeito às pressões políticas, o que trará um ganho de qualidade para a política pública escolhida.

A atuação da Advocacia-Geral da União na fase do planejamento, formação, elaboração, implementação e execução da política pública está propiciando um planejamento estratégico do Estado, bem como a redução de demandas.

Nesse pormenor, é bom ressaltar que a atuação da AGU transcende a defesa míope da União, ajudando atender as atribuições que o Estado moderno requer, precipuamente a viabilização das políticas públicas em favor da sociedade, em última análise, resguardará o interesse público, consubstanciado pela defesa do bem comum.

Enfim, não há como dotar o Estado de várias atribuições sem dar condições mínimas para o mesmo executá-las, motivo pelo qual a AGU exerce o papel estratégico na defesa do patrimônio público, dos interesses dos cidadãos e da Justiça.

Portanto, a judicialização, tendo a União como parte, está ligada ao tamanho do Estado que nossa Constituição traçou.

Notas

[1] BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm Acesso em 10.07.2011.

 

Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e presidente do SINPROFAZ.

Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2011

Link para publicação original:http://www.conjur.com.br/2011-jul-26/outro-ponto-vista-relacao-atuacao-advocacia-geral-uniao


Sem investimento, PGFN arrecada menos do que pode

Autor: Allan Titonelli Nunes, Procurador da Fazenda Nacional

Data de publicação: 17 de julho de 2011

Veiculo: Revista Consultor Jurídico – CONJUR

 

A atividade financeira do Estado moderno está ligada à necessidade de captar, gerir e executar os recursos públicos para a concretização dos interesses da sociedade.

Para o alcance dos objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado será necessária a arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização daqueles.

Ocorre que para a construção de um país mais igualitário, diminuindo a desigualdade social existente, é primordial que todos contribuam, na medida de suas possibilidades. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações.

Nesse pormenor, o ordenamento jurídico brasileiro incumbiu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a arrecadação dos tributos e demais receitas não pagas e inscritas em dívida ativa da União. Tendo a Lei Complementar 73/1993 atribuído à PGFN a responsabilidade pela[1]: a) apuração da liquidez e certeza da dívida ativa da União de natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança, amigável ou judicial; b) representação da União, na execução de sua dívida ativa de caráter tributário; c) exame prévio da legalidade dos contratos, acordos, ajustes e convênios que interessem ao Ministério da Fazenda, inclusive os referentes à dívida pública externa, e promoção da respectiva rescisão por via administrativa ou judicial; e d) representação da União nas causas de natureza fiscal.

Assim, o procurador da Fazenda Nacional é o agente capaz de garantir a isonomia entre o devedor e o cidadão que paga seus tributos, através da cobrança dos créditos da União. Na medida em que todos passarem a contribuir haverá maior disponibilidade de caixa para a execução das políticas públicas, bem como possibilitará a realização de uma maior transferência da carga tributária, saindo da incidência sobre consumo para a renda.

Para a concretização desse anseio o princípio da capacidade contributiva deverá ser o vetor de interpretação e execução do Sistema Tributário Nacional, onde cada cidadão contribuirá na medida de suas riquezas, concretizando, consequentemente, a isonomia tributária.

Logo, considerando as reiteradas manifestações do governo federal de maior racionalidade e eficiência nos gastos da União e do ajuste fiscal, deveria haver uma melhor estruturação da PGFN. Isso porque a adoção de medidas tendentes à diminuição do estoque da dívida da União pode resultar em receitas “extras” para a União implementar suas políticas públicas. Nesse contexto, as reportagens (Conjur[2] e Estadão[3]: “Passivo judicial da União ultrapassa R$ 390 bilhões”, O Globo[4]: “Governo vai atrás de R$32 bi em dívidas este ano”) destacaram o papel estratégico da PGFN na recuperação dos créditos federais.

Sendo certo que mesmo sem haver carreira de apoio, estrutura física, técnica e instrumental adequada para o exercício das atividades dos procuradores da Fazenda Nacional e sem a nomeação de todo seu quadro de procuradores, a PGFN apresentou resultados excelentes no ano de 2010, os quais passam a ser relatados[5]:

  1. A atuação judicial da PGFN evitou uma perda de R$ 567.575.263.751,93 dos cofres da União. Resultado do sucesso em causas judiciais discutidas no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Regionais Federais.
  2. No ano de 2010, a PGFN arrecadou o montante de R$ 16.221.010.504,74 para os cofres da União.
  3. Considerando-se o total arrecadado e a despesa total da PGFN, no ano de 2010, pode-se dizer que para cada R$ 1,00 alocado na PGFN, o órgão retornou à sociedade e ao Estado, aproximadamente, R$ 34,47.
  4. Ainda considerando o total arrecadado e o número de procuradores da Fazenda Nacional em 2010 (2.043, dois mil e quarenta e três procuradores), pode-se dizer que cada procurador arrecadou, em média, R$ 7.939.799,56 para a União.

A publicação “Os Números da PGFN”[6] possui diversos outros dados referentes ao órgão em destaque, os quais deixam de ser citados face a análise perfunctória da questão neste artigo.

Pelos números divulgados pode-se perceber que a PGFN é superavitária e autossustentável. Outrossim, apesar de ser um órgão estratégico para a União, há deficiências estruturais que podem ser eliminadas. Essa realidade pode ser alterada com a adoção de algumas medidas como: a criação de uma carreira de apoio; modernização das instalações e funcionalidades técnicas do sistema de informática; implantação de remuneração isonômica em relação às carreiras essenciais à Justiça, evitando o elevado índice de evasão de procuradores e demais membros da AGU; diminuição do número de processos por procurador, através da nomeação de todo o quadro de procuradores da Fazenda Nacional; instituição de prerrogativas isonômicas àquelas existentes para os juízes e promotores, visando dar condições de igualdade no enfrentamento judicial; entre outras.

A demora na implantação dessas soluções resulta em um aproveitamento inferior ao que o órgão poderia estar atingido. Em época de anúncio de contenção de gastos o planejamento estratégico deve ser valorizado, motivo pelo qual o investimento na PGFN é lucro, uma vez que, levando em conta os dados de 2010, cada R$ 1,00 empregado resultou em um retorno de R$ 34,47 à sociedade e ao Estado. Essas considerações servem como um alerta para o governo federal, o qual tem pautado sua atuação na valorização das soluções técnicas.

Notas

[1] Atribuições previstas nos incisos do Art. 12, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. BRASIL. Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Disponível em:
[2] Disponível em:
[3] Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110130/not_imp672968,0.php Acesso em: 05.01.2011.
[4] Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/01/23/governo-vai-atras-de-32-bilhoes-em-dividas-este-ano-923589701.asp Acesso em: 01.05.2011.
[5] Disponível em : http://www.pgfn.fazenda.gov.br/h_37806_interpgfn_site/noticias/a-pgfn-em-numeros-2010 Acesso em: 10.05.2011.
[6] GADELHA, Marco Antônio. Os Números da PGFN. Sinprofaz. Brasília: 2008. Disponível em :

 

Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e diretor secretário do SINPROFAZ.

Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2011

Link para publicação:http://www.conjur.com.br/2011-jul-17/devido-falta-investimento-pgfn-arrecada


A antecipação de tutela sem a oitiva da União – certidão de regularidade fiscal – prejuízos sofridos pela sociedade

Autor: Alexandre Carnevali da Silva, Procurador da Fazenda Nacional

Data de publicação: setembro 2011

Veículo: Revista Justiça Fiscal edição nº 09

 

Prezado leitor há um grave problema no dia a dia processual, sempre esquecido pela enorme carga de trabalho que reside no elevado número de processos ajuizados, mas cuja solução é de vital importância para uma Justiça Fiscal realmente presente, e pretendemos, nessas singelas linhas, demonstrá-lo.

Grande parte dos processos em que a Fazenda Nacional atua, excluindo as execuções fiscais, são os Mandados de Segurança que objetivam a expedição de certidão negativa de débitos, ou positiva com efeitos de negativa. A expedição de tal documento compete, dentro dos parâmetros administrativos, a Receita Federal do Brasil e Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Tais processos são corriqueiros e há uma situação que entendemos ser de suma importância no que diz respeito à atuação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, não apenas como representante judicial da União, mas, como todos os demais órgãos públicos, representativa dos interesses da sociedade brasileira no âmbito da sua atuação.

O artigo 273 do Código de Processo Civil prevê a possibilidade da antecipação da tutela quando existir fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou se caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

Pois bem. É muito comum verificar empresas e pessoas físicas que, necessitando de certidão de regularidade fiscal, ingressam com Mandado de Segurança com o fim de obter tal documento. Via de regra, justifica-se a urgência do pedido por conta de licitações, empréstimos bancários ou outra atividade que, sem o referido documento, restará impraticável. Em relação à fumaça do bom direito, é muito comum a alegação da prescrição dos débitos ou pagamentos não alocados nos sistemas da Secretaria da Receita Federal ou da Dívida Ativa.

Assim instruído, o Poder Judiciário antecipa a tutela sem a oitiva da Procuradoria da Fazenda Nacional. Tal situação é muito comum, assim como é comum, após a instrução processual, a segurança ser indeferida, ou porque os débitos não estão prescritos, ou porque não há pagamento algum, ou por qualquer outra informação importante que surgiu após as informações da Procuradoria da Fazenda, como por exemplo, a juntada do processo administrativo correspondente.

Observe o leitor, contudo, que da liminar que determinou a expedição do documento pretendido até a sentença, ou outra decisão que desautorize a liminar, o interessado manteve a certidão de regularidade fiscal, e permaneceu com ela um bom tempo. Aí está o problema, ficou com ela sem a merecer, e a raiz desse problema é a supressão da prévia oitiva da Fazenda Nacional antes do proferimento da decisão liminar.

Vale dizer que há um excesso na sistemática processual diária em elevar as alegações de urgência e fumaça do bom direito (que muitas vezes não tem tanta fumaça assim), a patamares irreais, que importa em verdadeira violação ao princípio do contraditório, ante a importância da tutela a ser deferida. Esse excesso se desenha no momento em que, em muitos casos concretos, a dívida é elevada, a empresa está em acompanhamento especial na Fazenda Nacional ou em situação aonde a própria interessada nunca procurou se regularizar, entrando com o instrumento mandamental apenas quando sentiu a necessidade da certidão, e buscando a mesma apenas em sede de tutela, sabedora da provável demora processual, e sem o ônus da sua real adequação fiscal.

A certidão negativa de débitos é, infelizmente, encarada pela maioria das pessoas, e mesmo no mundo jurídico, como um documento que interessa apenas à relação fisco versus contribuinte, tendo um espectro de uso restrito. Mas essa assertiva não é verdadeira. A certidão é um documento muito amplo, e tem um amplo espectro de uso, e não é usada uma única vez, para um único fim, mas pode sim (e acaba sendo) usada inúmeras vezes.

O problema reside na falsa premissa de que a certidão é um documento simples, que sua falta prejudica o interessado na medida da injusta burocracia estatal.

Na verdade, a certidão de regularidade fiscal tem crucial importância para a sociedade como um todo, pois ela é o retrato da própria idoneidade fiscal e financeira da empresa ou pessoa que a detem. É também um retrato, para o vulgo popular, de certeza de que o portador ou não tem dívida alguma ou, se a tem, pode pagá-la. Com base nisso, um número indeterminado de pessoas pode vir a se prejudicar na confiança que se deposita no sujeito. Por exemplo, se dessa confiança se realiza atos onerosos, para depois de um tempo se descobrir que o portador da certidão está em estado de insolvência ou que suas garantias estão todas comprometidas perante o fisco, que detem inclusive preferência na execução das mesmas.

Nesse sentido, citamos parte do quanto decidido no AgRg no REsp 734777/SC, Agravo Regimental no Recurso Especial 2005/0045575-9, que de forma clara e concisa revela, nos dizeres da própria ementa, que “Busca-se dar segurança ao sistema como um todo, inclusive aos negócios jurídicos que terceiros, particulares, possam vir a celebrar com os devedores de tributo. A indevida ou gratuita expedição da certidão fiscal poderá comprometer gravemente a segurança dessas relações jurídicas, assumidas na crença da seriedade e da fidelidade da certidão. É risco a que estarão sujeitos, não propriamente o Fisco – cujos créditos, apesar de a certidão negativa sugerir o contrário, continuarão existindo, íntegros, inabalados e, mais ainda, garantidos com privilégios e preferências sobre os dos demais credores –, mas os terceiros que, assumindo compromissos na confiança da fé pública que a certidão negativa deve inspirar, poderão vir a ter sua confiança futuramente fraudada, por ter sido atestado, por certidão oficial, como verdadeiro um fato que não era verdadeiro. Nessas circunstâncias, expedir certidão, sem rígidas garantias, atenta contra a segurança das relações jurídicas, especialmente quando o devedor não contesta a legitimidade do crédito tributário pendente.” (grifos nossos).

Assim, o amigo leitor pode perceber que em dadas situações, não abrir a oportunidade para a Fazenda Nacional se manifestar em Mandado de Segurança antes da concessão da ordem liminar, principalmente quando o objetivo é a obtenção de certidão negativa de débitos, se prejudica não apenas o fisco federal, mas toda a sociedade brasileira que, de forma indiscriminada e não quantificável realizará atos jurídicos, tendo em circulação um documento que não espelha a segurança jurídica que deveria espelhar.

Para se contornar a situação, imperiosa a necessidade de bem explicitar a importância do documento pretendido pela parte, e a importância da oitiva prévia da Fazenda Nacional para concessão de liminares, importância essa que transcende a relação fisco e contribuinte, fomentando o entendimento nos Membros do Poder Judiciário de forma a sensibilizá-los para o grande problema social oculto na expedição de uma simples (para alguns) certidão.

 

Alexandre Carnevali da Silva – Procurador da Fazenda Nacional, São Bernardo do Campo – SP

.


Novo olhar sobre a coisa julgada tributária

Autor: Alexandre Carnevali da Silva, Procurador da Fazenda Nacional

Data de publicação: setembro 2011

Veículo: Revista Justiça Fiscal edição nº 09

 

Prezado leitor há um grave problema no dia a dia processual, sempre esquecido pela enorme carga de trabalho que reside no elevado número de processos ajuizados, mas cuja solução é de vital importância para uma Justiça Fiscal realmente presente, e pretendemos, nessas singelas linhas, demonstrá-lo.

Grande parte dos processos em que a Fazenda Nacional atua, excluindo as execuções fiscais, são os Mandados de Segurança que objetivam a expedição de certidão negativa de débitos, ou positiva com efeitos de negativa. A expedição de tal documento compete, dentro dos parâmetros administrativos, a Receita Federal do Brasil e Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Tais processos são corriqueiros e há uma situação que entendemos ser de suma importância no que diz respeito à atuação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, não apenas como representante judicial da União, mas, como todos os demais órgãos públicos, representativa dos interesses da sociedade brasileira no âmbito da sua atuação.

O artigo 273 do Código de Processo Civil prevê a possibilidade da antecipação da tutela quando existir fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou se caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

Pois bem. É muito comum verificar empresas e pessoas físicas que, necessitando de certidão de regularidade fiscal, ingressam com Mandado de Segurança com o fim de obter tal documento. Via de regra, justifica-se a urgência do pedido por conta de licitações, empréstimos bancários ou outra atividade que, sem o referido documento, restará impraticável. Em relação à fumaça do bom direito, é muito comum a alegação da prescrição dos débitos ou pagamentos não alocados nos sistemas da Secretaria da Receita Federal ou da Dívida Ativa.

Assim instruído, o Poder Judiciário antecipa a tutela sem a oitiva da Procuradoria da Fazenda Nacional. Tal situação é muito comum, assim como é comum, após a instrução processual, a segurança ser indeferida, ou porque os débitos não estão prescritos, ou porque não há pagamento algum, ou por qualquer outra informação importante que surgiu após as informações da Procuradoria da Fazenda, como por exemplo, a juntada do processo administrativo correspondente.

Observe o leitor, contudo, que da liminar que determinou a expedição do documento pretendido até a sentença, ou outra decisão que desautorize a liminar, o interessado manteve a certidão de regularidade fiscal, e permaneceu com ela um bom tempo. Aí está o problema, ficou com ela sem a merecer, e a raiz desse problema é a supressão da prévia oitiva da Fazenda Nacional antes do proferimento da decisão liminar.

Vale dizer que há um excesso na sistemática processual diária em elevar as alegações de urgência e fumaça do bom direito (que muitas vezes não tem tanta fumaça assim), a patamares irreais, que importa em verdadeira violação ao princípio do contraditório, ante a importância da tutela a ser deferida. Esse excesso se desenha no momento em que, em muitos casos concretos, a dívida é elevada, a empresa está em acompanhamento especial na Fazenda Nacional ou em situação aonde a própria interessada nunca procurou se regularizar, entrando com o instrumento mandamental apenas quando sentiu a necessidade da certidão, e buscando a mesma apenas em sede de tutela, sabedora da provável demora processual, e sem o ônus da sua real adequação fiscal.

A certidão negativa de débitos é, infelizmente, encarada pela maioria das pessoas, e mesmo no mundo jurídico, como um documento que interessa apenas à relação fisco versus contribuinte, tendo um espectro de uso restrito. Mas essa assertiva não é verdadeira. A certidão é um documento muito amplo, e tem um amplo espectro de uso, e não é usada uma única vez, para um único fim, mas pode sim (e acaba sendo) usada inúmeras vezes.

O problema reside na falsa premissa de que a certidão é um documento simples, que sua falta prejudica o interessado na medida da injusta burocracia estatal.

Na verdade, a certidão de regularidade fiscal tem crucial importância para a sociedade como um todo, pois ela é o retrato da própria idoneidade fiscal e financeira da empresa ou pessoa que a detem. É também um retrato, para o vulgo popular, de certeza de que o portador ou não tem dívida alguma ou, se a tem, pode pagá-la. Com base nisso, um número indeterminado de pessoas pode vir a se prejudicar na confiança que se deposita no sujeito. Por exemplo, se dessa confiança se realiza atos onerosos, para depois de um tempo se descobrir que o portador da certidão está em estado de insolvência ou que suas garantias estão todas comprometidas perante o fisco, que detem inclusive preferência na execução das mesmas.

Nesse sentido, citamos parte do quanto decidido no AgRg no REsp 734777/SC, Agravo Regimental no Recurso Especial 2005/0045575-9, que de forma clara e concisa revela, nos dizeres da própria ementa, que “Busca-se dar segurança ao sistema como um todo, inclusive aos negócios jurídicos que terceiros, particulares, possam vir a celebrar com os devedores de tributo. A indevida ou gratuita expedição da certidão fiscal poderá comprometer gravemente a segurança dessas relações jurídicas, assumidas na crença da seriedade e da fidelidade da certidão. É risco a que estarão sujeitos, não propriamente o Fisco – cujos créditos, apesar de a certidão negativa sugerir o contrário, continuarão existindo, íntegros, inabalados e, mais ainda, garantidos com privilégios e preferências sobre os dos demais credores –, mas os terceiros que, assumindo compromissos na confiança da fé pública que a certidão negativa deve inspirar, poderão vir a ter sua confiança futuramente fraudada, por ter sido atestado, por certidão oficial, como verdadeiro um fato que não era verdadeiro. Nessas circunstâncias, expedir certidão, sem rígidas garantias, atenta contra a segurança das relações jurídicas, especialmente quando o devedor não contesta a legitimidade do crédito tributário pendente.” (grifos nossos).

Assim, o amigo leitor pode perceber que em dadas situações, não abrir a oportunidade para a Fazenda Nacional se manifestar em Mandado de Segurança antes da concessão da ordem liminar, principalmente quando o objetivo é a obtenção de certidão negativa de débitos, se prejudica não apenas o fisco federal, mas toda a sociedade brasileira que, de forma indiscriminada e não quantificável realizará atos jurídicos, tendo em circulação um documento que não espelha a segurança jurídica que deveria espelhar.

Para se contornar a situação, imperiosa a necessidade de bem explicitar a importância do documento pretendido pela parte, e a importância da oitiva prévia da Fazenda Nacional para concessão de liminares, importância essa que transcende a relação fisco e contribuinte, fomentando o entendimento nos Membros do Poder Judiciário de forma a sensibilizá-los para o grande problema social oculto na expedição de uma simples (para alguns) certidão.

 

Alexandre Carnevali da Silva – Procurador da Fazenda Nacional, São Bernardo do Campo – SP

.


Nota de falecimento – Subprocurador-geral da Fazenda Nacional, Leon Frejda

É com pesar que a diretoria do SINPROFAZ comunica o falecimento de ícone da velha guarda da carreira de PFN. Entre outros feitos, Leon é co-autor da Lei de Execução Fiscal.


Informe jurídico – Nova ação judicial do SINPROFAZ

O SINPROFAZ ingressou com ação judicial requerendo a abertura imediata de concurso público. No quadro atual da PGFN, há mais de 10% de cargos vagos. A ação tramita na 16ª Vara Federal do DF.


“Sem investimento, PGFN arrecada menos do que pode”

Este é o título de artigo do presidente do SINPROFAZ, Allan Titonelli, publicado neste domingo, 17 de julho, no site Consultor Jurídico. O artigo traz informações sobre a PGFN e as atividades exercidas pelos PFNs.


Relator da LDO recebe presidente do SINPROFAZ

O Presidente do SINPROFAZ, Dr. Allan Titonelli, reuniu-se com o relator da LDO de 2012, Deputado Federal Márcio Reinaldo Moreira (PP/MG). Na oportunidade, fez relato sobre a estrutura da PGFN, contingenciamento do FUNDAF, entre outros assuntos.


SINPROFAZ – Agenda Parlamentar recente

Confira as ações político-parlamentares encampadas por dirigentes do Sindicato nas últimas semanas. Iniciativas ocorreram em Brasília e outras unidades da Federação especialmente para angariar apoios às PECs 443 e 452


A importância da PGFN para o desenvolvimento do país

A atividade financeira do Estado moderno está ligada à necessidade de captar, gerir e executar os recursos públicos para a concretização dos interesses da sociedade.


Procuradoria-Geral da Fazenda lança revista

Nesta quarta-feira (25/5) será lançada a primeira edição da Revista da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional no Auditório do Serpro, em Brasília, às 11h. A publicação semestral reúne artigos de doutrina, escritos por procuradores da Fazenda Nacional e por autores convidados, além de pareceres e comentários à jurisprudência.


Informe SINPROFAZ – 23/02/2011

FÉRIAS DE 60 DIAS – O SINPROFAZ ingressou na última semana com Ação Ordinária para garantir o direito a férias anuais de 60 dias para os Procuradores que se filiaram a partir de 20/12/2006. Os demais associados já fazem parte das ações anteriormente ajuizadas. O direito a férias de 60 dias foi instituído para compensar…