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Regime jurídico das sociedades empresárias estatais


Mesmo no caso de empresas estatais dedicadas à prestação de serviços públicos, não podem ser-lhes concedidas prerrogativas próprias da Fazenda Pública quando a atividade for desempenhada em regime concorrencial ou com o objetivo de distribuição de lucros aos sócios.


RESUMO

Na condição de entidades integrantes da administração pública indireta, mas dotadas de personalidade jurídica de direito privado, as empresas estatais se sujeitam a um regime jurídico híbrido. Porém, o regime jurídico constitucional das sociedades empresárias controladas pelo Estado pode variar conforme a natureza da atividade a que se destinem. As sociedades estatais que exploram atividades econômicas em sentido estrito devem necessariamente submeter-se ao regime próprio das empresas privadas, ressalvado apenas naquilo em que houver sido derrogado por norma de hierarquia constitucional. No caso das empresas estatais prestadoras de serviços públicos, por não estarem submetidas aos ditames do art. 173 da Constituição, o regime jurídico próprio das empresas privadas também pode ser excepcionado por lei específica. Contudo, de acordo com a jurisprudência que vem sendo firmada pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo no caso de empresas estatais dedicadas à prestação de serviços públicos, não podem ser-lhes concedidas prerrogativas próprias da fazenda pública, a exemplo do regime de precatórios e da imunidade tributária recíproca, quando a atividade for desempenhada em regime concorrencial ou com o objetivo de distribuição de lucros aos sócios.

Palavras-chave: Empresa estatal. Atividade econômica. Serviço público. Regime jurídico.


1. INTRODUÇÃO

As empresas estatais são sociedades empresárias sob controle direto ou indireto da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. Integram a Administração Pública indireta. Contudo, são dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Disso decorre a sua sujeição a um regime jurídico híbrido, pois ao mesmo tempo em que devem se submeter a certos postulados de direito público também precisam observar o regime próprio das empresas privadas.

Essa dualidade de regimes jurídicos tem originado certa insegurança jurídica quanto à aplicação de determinadas normas às sociedades empresárias estatais. Nos termos do art. 173 da Constituição de 1988, essas empresas devem sujeitar-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Mas essa regra vem sendo interpretada pelo Supremo Tribunal Federal com moderação.

Diversos dispositivos constitucionais determinam a incidência de certas regras à administração pública direta e indireta, sem excluir as empresas controladas pelo Estado. Portanto, firmou-se o entendimento de que a necessidade de submissão das empresas estatais ao regime jurídico próprio das empresas privadas não pode resultar na inobservância de normas que a própria Carta Política imputou às entidades integrantes da Administração Pública.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal[1] já se manifestou, em reiteradas oportunidades, no sentido de que apenas as empresas estatais destinadas à exploração de atividade econômica em sentido estrito é que estariam submetidas ao comando contido no art. 173 da Constituição. Isso significa que, de acordo com a natureza das atividades a que se dediquem, as empresas estatais podem estar submetidas a regimes jurídico-constitucionais diferenciados.

Também existem decisões do Excelso Pretório[2] pela aplicação a determinadas empresas estatais, em situações excepcionais, de certas prerrogativas próprias da fazenda pública, como o regime de precatórios e a imunidade tributária recíproca.

Em seguida, abordaremos a questão relativa ao regime jurídico a que as sociedades empresárias estatais devem se submeter.


2. SERVIÇO PÚBLICO E ATIVIDADE ECONÔMICA

O período durante o qual predominou o liberalismo econômico foi caracterizado pela concepção do Estado mínimo e pelo absenteísmo estatal. As Constituições liberais dos Séculos XVIII e XIX enfatizaram a proteção ao direito de propriedade e à liberdade de iniciativa. Segundo essa visão, o Estado deveria limitar-se a exercer atividades que não pudessem ser realizadas por particulares, como a defesa contra inimigos estrangeiros, a segurança interna e a administração da justiça. Paulatinamente, pressões sociais fizeram com que o Estado passasse a prestar outros serviços à população, como educação, saúde, seguridade social, transporte, geração e distribuição de energia, fornecimento de água, saneamento básico, entre outros. Assim, numerosas atividades foram incorporadas aos serviços que deveriam ser providos pelo Estado.

Portanto, as atividades que integram o rol dos serviços públicos variam no tempo e no espaço, refletindo as concepções políticas de cada povo[3]. Na medida em que foram sendo afastados os ideais do liberalismo econômico, o elenco de atividades desempenhadas pelo Estado e qualificadas como serviços públicos passou a abranger, inclusive, atividades comerciais e industriais que antes eram reservadas à iniciativa privada, os quais podem ser denominados serviços comerciais e industriais do Estado[4].

Neste ponto, é pertinente citar a seguinte passagem do voto do Ministro Nelson Jobim por ocasião do julgamento do RE 220.906:

É conceito histórico-político ser, certo tipo de atividade, a prestação, ou não, de um serviço público. As sociedades organizadas, nos seus instrumentos básicos, reservam para a atuação do Estado um maior ou menor número de atividades. É a discussão do tamanho do Estado. Para uns, o Estado deve tudo prestar, sem reservar espaços para a iniciativa privada. A posição radical foi a do estado soviético, com a coletivização dos fatores de produção. Outros, no lado oposto, sustentam o Estado-mínimo, proibindo qualquer atividade fora daquilo que chama de ‘ações típicas de Estado’. E outros, circulam entre esses dois extremos.[5]


Por isso, é impossível indicar uma relação universal das atividades que sejam consideradas serviços públicos. A classificação de determinada atividade como serviço público depende de avaliação quanto aos seus pressupostos e características, considerando a legislação de cada país.

Em geral, a definição de serviço público envolve três elementos: (i) o material (atividades de interesse coletivo); (ii) o subjetivo (presença do Estado); e (iii) o formal (procedimento de direito público)[6]. Sobre o tema, assim explica Marçal Justen Filho:

Sob o ângulo material ou objetivo, o serviço público consiste numa atividade de satisfação de necessidades individuais ou transindividuais, de cunho essencial. Sob o ângulo subjetivo, trata-se de atuação desenvolvida pelo Estado (ou por quem lhe faça as vezes). Sob o ângulo formal, configura-se o serviço público pela aplicação do regime jurídico de direito público.

(…)

O aspecto material ou objetivo é mais relevante do que os outros dois, sob o ponto de vista lógico. Os outros dois aspectos dão identidade ao serviço público, mas são decorrência do aspecto material. Certa atividade é qualificada como serviço público em virtude de dirigir-se à satisfação direta e imediata de direitos fundamentais. Como consequência, essa atividade é submetida ao regime de direito público e, na maior parte dos casos, sua titularidade é atribuída ao Estado.[7]

Diante de tais elementos, em particular o material ou objetivo, as definições de serviço público acentuam a sua finalidade como instrumento de promoção de direitos assegurados pelo ordenamento jurídico. A esse respeito, transcrevo alguns dos conceitos de serviço público encontrados na doutrina:

Considera-se serviço público toda a atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidade essenciais e secundárias da coletividade.[8]

Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas, qualificada legislativamente e executada sob regime de direito público[9].

Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, em que Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.[10]

Serviço público é a atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.[11]

A Constituição estabeleceu alguns serviços públicos, arrolados como competência dos entes federativos[12]. Por conseguinte, são serviços públicos por determinação constitucional. Todavia, conforme o entendimento majoritário, não se trata de enumeração taxativa[13]. A lei pode estabelecer outras atividades como serviços públicos. Mas o legislador não dispõe de ampla discricionariedade para criar serviços públicos. Se por um lado é certo que a Constituição assegurou uma série de direitos à população, boa parte deles dependentes de uma efetiva prestação estatal[14], por outro também garantiu o livre exercício de qualquer atividade econômica (art. 170, parágrafo único, CRFB[15]), ressalvados os casos nela previstos.

Obviamente, a ampliação de serviços públicos reduz o campo reservado à livre iniciativa. Quanto mais dilatado o universo dos serviços públicos, menor é o campo das atividades de direito privado[16]. Por isso, caso fosse admitido que a lei pudesse livremente qualificar qualquer atividade como serviço público, restaria esvaziado o direito de livre iniciativa assegurado pela Carta constitucional[17]. Cabe aqui destacar que, excetuados os casos expressamente previstos na própria Constituição, o Estado só pode desempenhar atividades econômicas quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art. 173, CRFB[18]).

Diante disso, a criação de serviços públicos por lei deve necessariamente obedecer a parâmetros bastante rígidos, sob pena de restar maculado o direito à livre iniciativa[19]. Em linhas gerais, pode-se dizer que os serviços públicos devem decorrer expressa ou implicitamente da Constituição, não sendo lícito ao legislador infraconstitucional, ao seu alvedrio, retirar atividades econômicas do âmbito privado para sujeitá-las ao regime jurídico próprio dos serviços públicos.

Em apoio a essa afirmação, cito Mario Engler Pinto Junior:

O enquadramento de determinada prestação estatal como serviço público, para efeito de subordiná-la, ao regime próprio de direito público, constitui uma opção política de cada nível de governo. No entanto, tal decisão não pode mascarar a criação de novas hipóteses de monopólios legais, de modo a afastar a competição de outros agentes privados. A liberdade do Estado não é ilimitada nessa área, mas está sujeita à lógica da razoabilidade e da proporcionalidade. Sob o ponto de vista econômico, justifica-se excluir do regime de concorrência de mercado as atividades com fortes externalidades sociais, ou seja, quando o interesse público transcende ao interesse meramente individual do empreendedor. Nesse caso, o mercado não pode ser considerado elemento organizador eficaz, pois não é capaz de recompensar os benefícios ou malefícios.[20]


Conforme leciona Marçal Justen Filho, “há um vínculo de natureza direta e imediata entre o serviço público e a satisfação de direitos fundamentais. Se esse vínculo não existir, será impossível reconhecer a existência de um serviço público”[21]. Em seguida, conclui o mesmo autor que “a instituição de um serviço público depende do reconhecimento jurídico de sua pertinência para a satisfação de direitos fundamentais”[22]. Portanto, podem ser criados serviços públicos por lei, desde que se trate de atividade vinculada diretamente à satisfação de direitos assegurados pelo texto constitucional.

Por outro lado, isso não significa que todas as atividades que proporcionem a satisfação de direitos fundamentais sejam necessariamente serviços públicos. Para isso é necessário que a atividade tenha sido retirada da órbita privada mediante ato normativo adequado. Para que seja caracterizado o serviço público, é essencial que a lei atribua essa atividade ao Estado e a submeta ao regime de direito público[23]. Nesses termos, a ampliação do rol de serviços públicos a serem prestados pelo Estado depende da avaliação quanto à conveniência de submetê-las ao regime jurídico de direito público, retirando-as do âmbito privado. Neste ponto, cito mais uma vez Marçal Justen Filho, segundo o qual “a incidência do regime de direito público depende de uma qualificação normativa e diferencial”[24]. Não há serviço público sem que ato formal assim o reconheça.


3. A EXPLORAÇÃO DIRETA DE ATIVIDADE ECONÔMICA PELO ESTADO

O Estado pode intervir sobre o domínio econômico de forma direta ou indireta. O poder público intervém indiretamente sobre a atividade econômica como agente normativo e regulador, exercendo funções de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174, CRFB[25]). A intervenção direta pode ocorrer por meio de diversos mecanismos, entre os quais é possível citar: (i) a exploração direta de atividade econômica por entes estatais; (ii) a participação minoritária em empreendimentos econômicos privados; (iii) a intervenção em empresas privadas; e (iv) a regulação de estoques mediante operações de compra, estocagem e venda de determinadas mercadorias. Por sua vez, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado pode se dar mediante: (i) a constituição de monopólio; ou (ii) através da participação de empresa governamental em setor econômico reservado à livre iniciativa dos particulares[26]. Em relação ao monopólio, pode-se dizer que se trata de uma forma híbrida de ingerência estatal sobre a economia. Como ensina Américo Luís Martins da Silva, o monopólio consiste tanto em intervenção como em participação na ordem econômica, pois de um lado o Estado explora diretamente a atividade monopolizada e, de outro, impede que seja explorada livremente pela iniciativa privada[27].

De acordo com o art. 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a livre iniciativa. Coerente com esse preceito, o inciso XIII do art. 5º da Carta Magna assegura, como direito fundamental, a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. A Constituição dispõe ainda que a livre iniciativa é um dos fundamentos da ordem econômica nacional, estabelece a livre concorrência como um de seus princípios e assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica (art. 170, CRFB[28]).

Em sintonia com esses preceitos, o caput do art. 173 da Constituição dispõe que, ressalvados os casos nela previstos, “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Portanto, o exercício das atividades econômicas em sentido estrito cabe primordialmente à iniciativa privada, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição, que constituem as hipóteses de monopólio estatal descritas no art. 177 da Carta Política[29].

Cabe citar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Com efeito, ressalvados os monopólios estatais já constitucionalmente designados (petróleo, gás, minérios e minerais nucleares, nos termos configurados no art. 177, I-IV), as atividades da alçada dos particulares – vale dizer, atividades econômicas – só podem ser desempenhadas pelo Estado em caráter absolutamente excepcional, isto é, em dois casos: quando isto for necessário por um imperativo da segurança nacional ou quando demandado por relevante interesse público, conforme definidos em lei (art. 173).[30]

Disso se conclui que o Estado só deve atuar exercendo diretamente atividades econômicas em circunstâncias excepcionais, mediante permissão legal específica, ressalvadas as atividades que a Carta de 1988 atribuiu à União em regime de monopólio. A esse respeito, reproduzo trecho da obra de Raquel Melo Urbano de Carvalho:

Assim sendo, tem-se o domínio econômico como espaço reservado ao particular. A intervenção do Estado nesta seara afigura-se medida excepcional, cabível apenas diante da satisfação dos pressupostos de admissibilidade constitucional: segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme estabelecido em diploma legislativo.[31]

Como visto, a exploração, diretamente pelo Estado, de atividade econômica reservada à livre iniciativa, encontra-se limitada pelo art. 173 da Constituição[32], que só autoriza essa espécie de intervenção estatal quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. Ademais, o referido comando constitucional também exige que as entidades estatais que explorem tais atividades se sujeitem ao mesmo regime jurídico aplicável às empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários (art. 173, § 1º, inciso II, CRFB). O fundamento dessa exigência é óbvio: garantir a preservação do princípio da livre concorrência (art. 170, inciso IV, CRFB).


Transcrevo passagem da obra de João Bosco Leopoldino da Fonseca:

O Estado, quando explora diretamente a atividade econômica, o faz através de empresas públicas, de sociedades de economia mista e suas subsidiárias (E.C. n. 19/98). Nestes casos, a Constituição lhes impõe a adoção do mesmo regime jurídico aplicável às empresas privadas, tornando explícita sua sujeição aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, e proíbe a concessão de privilégios fiscais que não sejam extensivos àquelas empresas. Estas determinações, previstas nos §§ 1º e 2º do art. 173, têm por finalidade precípua impedir uma posição dominante no mercado derivada de fatores estranhos à própria livre competição.[33]

Em reforço, reproduzo trecho do Voto do Ministro Nelson Jobim no RE 220.906:

É evidente que a atividade econômica a que se referia o texto de 1967/1969, como também o de 1988, é aquela sujeita às regras, no mercado, da livre concorrência. Digo, com EROS ROBERTO GRAU, que se tratava, como se trata para 1988, ‘ de atuação do Estado … como agente econômico, em área de titularidade do setor privado’. A razão da equiparação da empresa pública que participasse de exploração de atividade econômica, com o setor privado é óbvia. O princípio da livre concorrência, expressamente assumido em 1988 (art. 170, V), não se coaduna com a atribuição de benefícios diferenciados à empresa estatal. A empresa estatal não poderia gozar, em relação ao setor privado, de vantagem comparativa. Tudo porque repercutiria, como repercute, nos custos e, por consequência, na fixação dos preços. A regra da livre concorrência seria lesada, com um desequilíbrio de mercado. Se é para atuar no mercado, que seja de forma igual. Essa é a regra. Lembro que 1988 acabou com a vantagem do regime tributário diverso e a EC 19/98 a explicitou. A equiparação de 1988 foi mais longe. Somente admite a concessão de benefícios fiscais às estatais se forem extensivos ao setor privado (art. 173, § 2º). Tudo isso para a preservação da livre concorrência e das regras de uma economia de mercado. Essa foi a opção de 1967/1969, fortalecida em 1988. No tratamento aos direitos econômicos, o texto de 1988 reforçou a opção por uma ‘constituição do Estado de Direito Liberal’. Essa constatação choca-se com alguns que, condicionados por perspectivas políticas não positivadas, insistem em ver, no texto original de 1988, quanto aos direitos econômicos, uma ‘constituição do Estado de Direito Social’.[34]

É importante destacar que, embora excluídos do universo de atividades reservadas à livre iniciativa, os monopólios estatais não se confundem com serviços públicos. Novamente, lembro Celso Antônio Bandeira de Mello, que assim afirma:

Tais atividades monopolizadas não se confundem com serviços públicos. Constituem-se, também elas, em ‘serviços governamentais’, sujeitos, pois, às regras de Direito Privado. Correspondem, pura e simplesmente, a atividades econômicas subtraídas do âmbito da livre iniciativa. Portanto, as pessoas que o Estado criar para desenvolver estas atividades não serão prestadoras de serviço público.[35]

Os monopólios estatais e os serviços públicos se identificam apenas quanto à sua titularidade. Distinguem-se quanto ao escopo, posto que os serviços públicos são destinados precipuamente à satisfação de direitos fundamentais mediante a prestação direta e imediata de utilidades aos administrados. Em outros termos, o serviço público é um meio de assegurar uma existência digna ao ser humano[36], afirmação essa que não se aplica às atividades econômicas monopolizadas.

Portanto, em face do art. 173 da Carta Política, deve ser tida por inconstitucional a concessão de qualquer privilégio em favor de empresas estatais que explorem atividades econômicas em sentido estrito.

4. DAS ATIVIDADES QUE PODEM SER DESEMPENHADAS POR EMPRESAS ESTATAIS

A possibilidade de criação de sociedades empresárias controladas pelo Estado encontra-se prevista no inciso XIX do art. 37 da Constituição da República, que para isso exige autorização legal específica, in verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(…)

XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;

Evidentemente, essa autorização constitucional destina-se a permitir que o Estado, em determinadas circunstâncias, atue na condição de empresário. De acordo com o art. 966 do Código Civil[37], deve ser considerado empresário “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Então, é consequência lógica a afirmação de que o Estado deve valer-se de sociedades empresárias sob seu controle, denominadas genericamente empresas estatais, para exercer atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Para isso, demanda autorização legislativa específica, conforme determinação do inciso XIX do art. 37 da Constituição. As demais atividades a cargo do Estado devem ser exercidas diretamente pelos entes federativos, através de seus diversos órgãos, ou mediante a instituição de autarquia, associação pública ou fundação estatal, cuja criação também exige lei.


As atividades econômicas em sentido lato incluem determinados serviços públicos de natureza econômica (serviços públicos industriais ou comerciais) e atividades econômicas em sentido estrito, incluídas tanto aquelas reservadas à livre iniciativa como as atividades econômicas que constituem monopólio da União por determinação constitucional. Qualquer dessas atividades pode ser exercida por sociedades empresárias estatais. Porém, conforme já exposto, a distinção entre serviços públicos e atividades econômicas em sentido estrito é de fundamental importância para definir o regime jurídico a que deverá se sujeitar a empresa estatal que os explore.

Neste ponto, é relevante observar que as empresas estatais são proibidas de desempenhar qualquer serviço ou atividade que implique o exercício de poderes típicos de Estado, como o poder de polícia e o de tributar. Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADI 1717), apenas pessoas jurídicas de direito público podem exercer atividades dessa natureza. No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela impossibilidade de atribuição de poder de polícia a sociedade de economia mista (REsp 871.534). Portanto, as atividades que exijam o exercício de poderes exclusivos de Estado, decorrentes do jus imperii, só podem ser exercidas por pessoas de direito público, como os próprios entes federativos, diretamente, ou por intermédio de suas entidades autárquicas.

Sociedades empresárias também são entidades inadequadas para o desempenho de outras atividades que não tenham conotação econômica, mesmo que não impliquem o exercício de funções típicas de Estado, tais como os serviços de educação ou saúde, prestados gratuitamente à população (art. 196 e 206, CRFB). Isso porque, conforme está explícito no art. 981 do Código Civil[38], as sociedades empresárias destinam-se exclusivamente à exploração de atividades econômicas com a finalidade de partilha dos resultados entre os sócios. A norma constitucional que autoriza a criação de sociedades empresárias estatais destina-se a permitir que o poder público, por intermédio dessas entidades, execute atividades típicas das sociedades empresárias em geral. Certamente, não se justifica a criação de uma empresa estatal apenas com o fim de obter lucro. Essas entidades devem ter uma finalidade mais ampla, condizente com o interesse público. Porém, não se mostra adequada a criação de sociedade empresária para desempenhar serviços de cunho assistencial.

Portanto, não cabe a criação de sociedade empresária pelo Estado quando não existe qualquer perspectiva de resultados econômicos[39]. Em tais situações, há outras formas mais adequadas de pessoas administrativas. Atividades desprovidas de conteúdo econômico podem ser realizadas por entidades autárquicas (autarquias em sentido estrito ou “fundações autárquicas”), associações públicas (consórcios públicos) ou ainda por fundações estatais de direito privado[40], sem prejuízo da possibilidade de seu exercício diretamente pelos próprios entes federativos. Porém, muitas empresas estatais se dedicam a funções estranhas ao âmbito de atuação das sociedades empresárias em geral.

Sobre essa questão, destaco o seguinte trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RE 599.628:

Então, parece-me que, embora a questão mereça a atenção, talvez em algum momento um código administrativo, alguma pretensão de consolidação devesse tentar ordenar esse quadro às vezes caótico, tanto é que a doutrina se perde na definição com os contraexemplos. A toda hora, nós dizemos: a empresa pública deve ter tal perfil. E, aí, alguém consegue dar um exemplo de uma empresa pública que exerce uma outra atividade; a sociedade de economia mista deve atuar com tais e quais limites. E nós encontramos sociedades de economia mista que são verdadeiras autarquias ou exercem atividades quase públicas típicas. Às vezes são sociedades anônimas apenas para cumprir – como nós vimos aqui num debate, não faz muito, creio que relativo a hospital do Rio Grande do Sul, hospitais que foram desapropriados e deixaram-se lá duas ou três ações -, apenas para manter a aparência de uma sociedade anônima. Uma falsa sociedade anônima por quê? Porque o que se busca aqui é uma certa flexibilidade no processo organizacional administrativo.[41]

Conclui-se então que as empresas estatais são entidades adequadas para: (i) a exploração de atividades econômicas em sentido estrito, livres à iniciativa privada ou em regime de monopólio; e (ii) a prestação de serviços públicos de natureza econômica. Na prática, contudo, existem empresas estatais dedicadas a outras atividades, inclusive serviços inseridos no âmbito da ordem social.


5. DO REGIME JURÍDICO DAS EMPRESAS ESTATAIS

A Constituição impõe a sujeição das sociedades empresárias estatais que explorem atividade econômica em sentido estrito “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”, sendo vedada a concessão a essas entidades de quaisquer privilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado (art. 173, CRFB[42]). Cabe aqui citar que o Supremo Tribunal Federal considerou que as restrições do art. 173 da Constituição também se aplicam às empresas estatais que exerçam atividades econômicas monopolizadas pela União[43].

Consoante já exposto, é importante destacar que não são todas as empresas estatais que se submetem ao comando contido no art. 173 da Carta Política. Esse dispositivo se aplica exclusivamente às sociedades que explorem atividade econômica em sentido estrito. Por outro lado, a regra do art. 173 da Constituição não significa que as empresas públicas e sociedades de economia mista se sujeitem integralmente ao regime jurídico privado, ainda que atuantes em setor econômico reservado aos particulares. O referido dispositivo constitucional convive com diversas outras normas de igual hierarquia, que disciplinam o regime jurídico das entidades integrantes da Administração Pública. Por conseguinte, o regime de direito privado aplicável às sociedades empresárias estatais mescla-se com normas de direito público impostas pela própria Constituição aos entes administrativos em geral. Portanto, não é exagero afirmar que as empresas estatais submetem-se a um regime jurídico híbrido, independentemente da atividade que venham a explorar.


A distinção essencial que deve ser feita é que, em relação às sociedades empresárias estatais que explorem atividade econômica em sentido estrito, o regime jurídico de direito privado só deve ser excepcionado para o atendimento de regras ou princípios constitucionais. O legislador não dispõe de autonomia para estabelecer o regime jurídico aplicável às empresas públicas ou sociedades de economia mista sujeitas ao comando contido no art. 173 da Carta de 1988. O mesmo não pode ser dito em relação às empresas que prestam serviços públicos.

Sobre o tema, esta é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Note-se e ressalte-se: o estatuto legal de que fala o art. 173 diz respeito unicamente às exploradoras de atividade econômica. Deveras, não apenas o parágrafo está referido à exploração de atividade econômica, mas a própria cabeça do artigo – e que obviamente comanda a inteligência de seus parágrafos – reporta-se à “exploração direta de atividade econômica pelo Estado”. É tão claro ser disto que se trata que ali também se diz que a sobredita exploração “só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme declarados em lei”. Evidentemente, então, está a cogitar de coisa antitética aos serviços públicos e diversa deles, que estes são atividade normal do Estado, ao invés de excepcional, caso do exercício direto de atividade econômica, esfera reservada aos particulares (art. 170, IV, e notadamente parágrafo único do mesmo artigo).[44]

No mesmo sentido, assim afirma Raquel Melo Urbano de Carvalho:

De fato, quando o art. 173, § 1º, da CR refere-se à “prestação de serviços” trata dos serviços que não são serviços públicos, conforme distribuição constitucional de competências materiais, mas que permaneceram sob a responsabilidade da iniciativa privada e que o Estado, atendidas as exigências do caput do artigo 173, resolveu explorar economicamente, suplementarmente ao mercado.[45]

Outra não é a opinião de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

Uma primeira lição que se tira do art. 173, § 1º, é a de que, quando o Estado, por intermédio dessas empresas, exerce atividade econômica, reservada preferencialmente ao particular pelo caput do dispositivo, ele obedece, no silêncio da lei, a normas de direito privado. Estas normas são a regra; o direito público é exceção e, como tal, deve ser interpretado restritivamente.

Outra conclusão é de que a própria Constituição estabelece o regime jurídico privado, as derrogações desse regime somente são admissíveis quando delas decorrem implícita ou explicitamente. A lei ordinária não pode derrogar o direito comum, se não admitida esta possibilidade pela Constituição.

Tais conclusões, repita-se, somente se aplicam quando as empresas governamentais sejam instituídas para atuar na área da iniciativa privada.

Isto porque, como o art. 173 cuida especificamente da atividade de natureza privada, exercida excepcionalmente pelo Estado por razões de segurança nacional ou interesse coletivo relevante, há que se concluir que as normas dos §§ 1º e 2º só incidem nessa hipótese. Se a atividade for econômica (comercial ou industrial) mas assumida pelo Estado como serviço público, tais normas não têm aplicação, incidindo, então, o artigo 175 da Constituição, segundo o qual incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.[46]

São normas de direito público aplicáveis indistintamente a todas as sociedades empresárias estatais, por força de imposição constitucional: (i) sujeição aos princípios da Administração Pública; (ii) celebração de contratos mediante licitação pública[47]; (iii) admissão de pessoal permanente por meio de concurso público[48]; e (iv) fiscalização pelos órgãos de controle externo e interno[49]. Entretanto, exatamente por sofrerem o influxo do regime de direito privado e atuarem em situação de concorrência efetiva ou potencial com empreendedores particulares, deve ser ressalvado que as normas de direito público incidentes sobre as sociedades empresárias estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito precisam ser interpretadas com certa ponderação.

Portanto, o regime jurídico-constitucional a que se submetem as empresas estatais pode, em resumo, ser assim definido: (i) para as sociedades empresárias estatais que explorem atividade econômica em sentido estrito, é compulsória a adoção do regime próprio das empresas privadas, exceto no que for derrogado por norma de hierarquia constitucional; e (ii) para as empresas estatais que desempenhem serviços públicos, aplica-se o regime jurídico próprio das empresas privadas, exceto no que for derrogado por norma constitucional ou mediante lei específica.

Neste ponto, vale citar a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 929758:

  1. As empresas estatais podem atuar basicamente na exploração da atividade econômica ou na prestação de serviços públicos, e coordenação de obras públicas.
  2. Tais empresas que exploram a atividade econômica – ainda que se submetam aos princípios da administração pública e recebam a incidência de algumas normas de direito público, como a obrigatoriedade de realizar concurso público ou de submeter a sua atividade-meio ao procedimento licitatório – não podem ser agraciadas com nenhum beneplácito que não seja, igualmente, estendido às demais empresas privadas, nos termos do art. 173, § 2º da CF, sob pena de inviabilizar a livre concorrência.
  3. Aplicando essa visão ao tema constante no recurso especial, chega-se à conclusão de que a Súmula 39/STJ – que determina a não aplicabilidade do prazo prescricional reduzido às sociedades de economia mista – deve ter interpretação restrita, de modo a incidir apenas em relação às empresas estatais exploradoras da atividade econômica.
  4. Por outro lado, as empresas estatais que desempenham serviço público ou executam obras públicas recebem um influxo maior das normas de direito público. Quanto a elas, não incide a vedação constitucional do art. 173, § 2º, justamente porque não atuam em região onde vige a livre concorrência, mas sim onde a natureza das atividades exige que elas sejam desempenhadas sob o regime de privilégios.
  5. Pode-se dizer, sem receios, que o serviço público está para o estado, assim como a atividade econômica em sentido estrito está para a iniciativa privada. A prestação de serviço público é atividade essencialmente estatal, motivo pelo qual, as empresas que a desempenham sujeitam-se a regramento só aplicáveis à Fazenda Pública. São exemplos deste entendimento as decisões da Suprema Corte que reconheceram o benefício da imunidade tributária recíproca à Empresa de Correios e Telégrafos – ECT, e à Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia – CAERD. (RE 407.099/RS e AC 1.550-2).
  6. Não é por outra razão que, nas demandas propostas contra as empresas estatais prestadoras de serviços públicos, deve-se aplicar a prescrição quinquenal prevista no Decreto 20.910/32. Precedentes: (REsp 1.196.158/SE, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19.8.2010, DJe 30.8.2010), (AgRg no AgRg no REsp 1.075.264/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 2.12.2008, DJe 10.12.2008).

É relevante observar que, diante da não incidência do art. 173 da Constituição às empresas estatais que prestem serviços públicos, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela aplicabilidade do regime de precatório à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Transcrevo abaixo a ementa do RE 220.906:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO.OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido.

A Corte Suprema também determinou a aplicação da regra de imunidade tributária recíproca (art. 150, IV, “a”, CRFB[50]) à Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária – INFRAERO, na qualidade de empresa pública prestadora de serviços públicos (RE 363.412[51]). Além disso, foi ainda reconhecida essa imunidade em favor de três hospitais constituídos sob a forma de sociedade de economia mista (Hospital Nossa Senhora da Conceição S/A; Hospital Fêmina S/A; e Hospital Cristo Redentor S/A), todos eles controlados pela União (RE 580.264).

Quanto à concessão de imunidade recíproca a sociedades estatais que prestavam serviços de saúde, é importante mencionar que a decisão do Supremo Tribunal Federal (RE 580.264) fundamentou-se não apenas na natureza da atividade prestada, mas também na composição societária, na origem das receitas e na ausência de distribuição de dividendos aos sócios[52]. Portanto, para avaliar a viabilidade jurídica da aplicação de prerrogativas próprias da fazenda pública a empresas estatais, torna-se imprescindível a análise acerca da situação específica da respectiva entidade, em especial o quadro societário, a fonte das receitas e a distribuição de resultados.

Cabe reproduzir parte do Voto do Ministro Dias Toffoli no RE 580.264:

Concluindo, o essencial é que os hospitais recorrentes – entidades da administração indireta – prestam um serviço público de saúde como longa manus da União, sem qualquer contraprestação dos usuários desses serviços. Dessa peculiaridade decorre o ingresso das recorrentes no âmbito de incidência do § 2º do art. 150 da Constituição Federal, fazendo jus à imunidade prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição Federal, relativamente aos impostos estaduais. (…) Ressalto, ademais, que o entendimento ora perfilhado tem em vista tão somente as particularidades do caso concreto, não se estendendo a outras sociedades de economia mista. [53]

Reforçando a conclusão de que a aplicação de prerrogativas típicas da fazenda pública a empresas estatais demanda cuidadoso exame do caso concreto, transcrevo os seguintes trechos do Voto da Ministra Ellen Gracie no RE 580.264:

Note-se que o § 3º do art. 150 destaca que a imunidade dos entes políticos não é absoluta, não se aplicando ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. Com isso, o ente político que, a princípio, seria imune pela sua forma, passa a ter parte da sua atuação não abrangida pela imunidade em razão da natureza ou o modo desta, por estar atuando no mercado ou cobrando preços ou tarifas. Na mesma linha, mas em sentido inverso, a jurisprudência desta Corte tem entendido que empresas públicas que prestam serviços públicos em regime de monopólio estão abrangidas pela imunidade, como é o caso da INFRAERO (RE 363.412) e da ECT (ACO 765, RE 407.009-5, ACO 789). Ou seja, empresa pública que, a princípio, não seria imune em razão de sua forma jurídica, acaba sendo alcançada pela imunidade por desempenhar serviço público em regime de exclusividade, como extensão do próprio ente político, não sujeito à concorrência. No caso dos autos, temos uma sociedade de economia mista com características que a distinguem muito do que normalmente caracteriza tais empresas. Enquanto normalmente há uma participação tanto do Poder Público como dos particulares nas sociedades de economia mista e atuam estas em setores da economia marcados pela concorrência, inclusive visando e distribuindo lucros, no caso concreto a situação é distinta. O Grupo Hospitalar Conceição é uma sociedade de economia mista cujas ações pertencem, na sua quase totalidade, à União, que não apenas a controla como detém 99,9% da sua titularidade. A União, com isso, passou a destinar os hospitais que compõem o grupo ao atendimento da população para cumprimento do seu dever de prestar serviço de saúde. (…) Não faria mesmo sentido exigir que parte dos recursos destinados pela União para a prestação de serviços de saúde à população, através de sociedade de economia mista da qual detém 99,9% das ações, tivessem de ser despendidos com o pagamento de impostos estaduais e municipais. (…) Há de se destacar, pois, que, embora normalmente, sujeitas ao pagamento de impostos, as sociedades de economia mista podem vir a gozar de imunidade quando a natureza dos serviços por elas prestados e modo como exercidos evidenciem tratar-se de longa manus dos entes políticos para a prestação de serviços públicos típicos à população, sem contraprestação e sem finalidade lucrativa. (…) Então, também numa interpretação sistemática das imunidades, se até as entidades privadas beneficentes são imunes, que se dirá de uma entidade cujo capital pertence 99,9% à União e que se dedica integralmente à prestação de serviços de saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ante o exposto, voto pelo reconhecimento da imunidade ao Grupo Hospitalar Conceição e pelo conseqüente provimento do recurso extraordinário, ressalvando, apenas, que o pronunciamento da questão posta em sede de repercussão geral só aproveita a hipóteses idênticas, vale dizer, em que o ente público seja controlador majoritário do capital da sociedade de economia mista em que a atividade desta corresponda à própria atuação do Estado na prestação de serviços constitucionalmente asseguradas aos cidadãos. Disso resulta que o precedente será aplicado a número bastante restrito de casos.[54]


Em decisão mais recente, o Supremo Tribunal Federal negou a concessão de privilégios próprios da fazenda pública, particularmente a aplicação do regime de precatório, à sociedade denominada Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (ELETRONORTE), subsidiária da ELETROBRAS (RE 599.628). Nesse caso, afirmou o Excelso Pretório que o regime de precatório não poderia ser estendido a “sociedades de economia mista que executem atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas”. Esta é a ementa do referido julgado (RE 599.628):

Ementa: FINANCEIRO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PAGAMENTO DE VALORES POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. INAPLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIO. ART. 100 DA CONSTITUIÇÃO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL CUJA REPERCUSSÃO GERAL FOI RECONHECIDA. Os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. – Eletronorte não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição). Recurso extraordinário ao qual se nega provimento.

No caso da ELETRONORTE, a conclusão pela inaplicabilidade de regras próprias da fazenda pública também decorreu de minuciosa análise das características específicas da empresa, conforme demonstra o seguinte trecho do Voto do Ministro Joaquim Barbosa:

Ao perseguir o lucro como objetivo principal, o Estado deve despir-se das garantias soberanas necessárias à proteção do regime democrático, do sistema republicano e do pacto federativo, pois tais salvaguardas são incompatíveis com a livre iniciativa e com o equilíbrio concorrencial. O direito de buscar o lucro é essencial ao modelo econômico adotado na Constituição, tendo como perspectiva o particular, e não o Estado. Se a relevância da atividade fosse suficiente para reconhecer tais garantias, atividades como os serviços de saúde, a extração, refino e distribuição de petróleo, a indústria petroquímica, as empresas farmacêuticas e as entidades de educação também seria (sic) beneficiárias de tais prerrogativas, bastando que o Poder Público se aliasse ao corpo societário do empreendimento privado. No caso em exame é incontroverso que a recorrente tem como objetivo principal o lucro. Segundo o balanço de 2009, a Eletronorte encerrou o exercício com ativos da ordem de R$ 17.954.177.000,00 (dezessete bilhões, novecentos e cinqüenta e quatro milhões e cento e setenta e sete mil reais). No mesmo período, seu patrimônio líquido, somado ao valor do Adiantamento para Futuro Aumento de Capital, alcançou o montante de R$ 10.227.063.000,00 (dez bilhões, duzentos e vinte e sete milhões e sessenta e três mil reais). Ademais, sua controladora, a Eletrobrás, possui ações livremente negociadas em bolsas de valores, como a New York Stock Exchange (ADR). A meu sentir, a recorrente, sociedade de economia mista, não explora o potencial energético das fontes nacionais independentemente de qualquer contraprestação, mas o faz, licitamente, para obter lucro. E, portanto, não ocupa o lugar do Estado. Assim, pedindo vênia ao eminente relator, nego provimento ao recurso extraordinário.[55]

Considerando que a ELETRONORTE se dedica ao serviço de geração e transmissão de energia elétrica, a decisão proferida no RE 599.628 resulta na conclusão de que não se deve equiparar todas as empresas estatais que explorem serviços públicos. Seria então necessário avaliar em que condições essas empresas operam, pois em muitos casos existe competição entre os concessionários. Um bom exemplo é o serviço de telecomunicações, em que vigora elevado nível de competição entre os agentes econômicos participantes do mercado. Certamente que, diante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, empresa estatal constituída para a exploração desse serviço não poderia ser beneficiada por privilégios não extensíveis às empresas privadas atuantes no mesmo setor, sob pena de violação ao princípio da livre concorrência.

Portanto, a questão do regime jurídico das empresas estatais ganha ainda mais complexidade, pois segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os privilégios da fazenda pública não podem ser indiscriminadamente estendidos às empresas estatais que prestem serviços públicos. Tal não poderia ocorrer quando a atividade seja explorada em regime de concorrência. Isso significa que a alteração do regime jurídico de determinado serviço público pode conduzir à inconstitucionalidade de certos privilégios concedidos às empresas estatais que os explorem.

Até bem pouco tempo, a INFRAERO reinava sozinha na exploração dos serviços infra-estrutura aeroportuária (art. 21, XII, “c”, da Constituição). Nessa qualidade, faz jus à imunidade recíproca de que trata o art. 150 da Lei Maior. Porém, três aeroportos foram recentemente privatizados, passando então a serem operados por consórcios dos quais a INFRAERO participa na condição de sócia minoritária. Em consequência, o serviço público que até então era outorgado a uma empresa estatal passou a ser objeto de concessão, pelo menos em relação a três grandes aeroportos. Ficaria assim descaracterizada a execução direta do serviço público. Resta saber se daí já se poderia presumir a instalação de “regime de concorrência” no âmbito dos serviços aeroportuários, apto a afastar o privilégio que foi judicialmente assegurado à INFRAERO.

Registre-se que uma das condições estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal para aplicar o regime próprio da fazenda pública às sociedades empresárias estatais que explorem serviço público foi a ausência de objetivo lucrativo, consistente na distribuição de dividendos aos sócios. Essa condição causa certa perplexidade porque, conforme já exposto, uma das características intrínsecas das sociedades empresárias é exatamente a partilha dos resultados entre os sócios. Esse objetivo consta da própria definição do contrato de sociedade, previsto no art. 981 do Código Civil. Além disso, é possível que ocorra distribuição de lucros em determinados exercícios, mas em outros não. Portanto, torna-se necessário analisar os resultados da respectiva empresa para avaliar se é juridicamente viável que lhe sejam estendidas certas prerrogativas típicas da fazenda pública, como o regime de precatórios e a imunidade recíproca.


Assim sendo, a definição do regime jurídico das empresas estatais que explorem serviços públicos restaria dependente de condições que demandam uma avaliação casuística, envolvendo a apreciação dos seguintes fatos: a configuração de um regime concorrencial no âmbito da prestação do serviço público, a ausência de distribuição de dividendos aos sócios, a composição societária e a origem dos recursos.

Cabe citar o seguinte trecho da obra de Mario Engler Pinto Júnior:

A feição autárquica pode até fazer sentido para a empresa pública unipessoal que presta serviço público de competência do ente controlador, pois a situação é em tudo equiparada à prestação direta pelo Estado, tornando justificável o benefício da imunidade. O mesmo tratamento afigura-se descabido se a prestação do serviço público for intermediada por sociedade de economia mista com participação de acionistas privados, ou por empresa estatal atuando como concessionária de outra esfera de governo. Nesse caso, o interesse da companhia adquire autonomia própria, seja porque passa a abrigar anseios estranhos à administração pública, seja porque fica sujeito a influências externas à vontade do Estado.[56]

Do exposto, conclui-se que, segundo a jurisprudência que vem sendo firmada pelo Supremo Tribunal Federal, a atribuição de privilégios próprios da fazenda pública para empresas estatais dependeria da observância dos seguintes pressupostos: (i) o objeto social deve consistir na prestação de um serviço público; (ii) o serviço público deve ser exercido em caráter monopolista; e (iii) a empresa estatal não pode distribuir lucros aos sócios.


CONCLUSÃO

Por todo o exposto, o regime jurídico a que se sujeitam as empresas estatais depende, fundamentalmente, da natureza da atividade a que dediquem. As sociedades que exerçam atividades econômicas em sentido estrito devem necessariamente seguir o regime jurídico próprio das empresas privadas, com exceção apenas das normas de direito público que decorram de determinação constitucional. Por outro lado, as empresas estatais que prestem serviços públicos poderiam ser submetidas a um regime diferenciado. A essas empresas seria possível a concessão de prerrogativas próprias da fazenda pública, ainda que não decorrentes diretamente do texto constitucional. Contudo, segundo sinaliza a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os privilégios característicos da fazenda pública não seriam extensíveis às empresas estatais em cuja composição do capital houvesse relevante participação privada, que distribuam lucros aos seus sócios ou ainda quando o serviço público a que se destinem for prestado em regime concorrencial.


BIBLIOGRAFIA.

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PINTO JUNIOR, Mario Engler. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários. São Paulo: Atlas, 2010.

SILVA, Américo Luís Martins da. Introdução ao direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002.


Notas

[1] ADI 1642/MG; RE 363412 AgR/BA e no RE 172816/RJ

[2] RE 220.906; RE 363.412; e RE 580.264.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 572.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 89/90.

[5] Acórdão proferido no RE 220.906, p. 468.

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 86.

[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 570/571.

[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 20ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 305.

[9] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 566.

[10] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 652.


[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 90.

[12] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 666.

[13] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 667.

[14] Em geral, são os denominados direitos de segunda geração, como educação, saúde, assistência social, previdência social, moradia, entre outros.

[15] Art. 170. (…) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

[16] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 572.

[17] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 667.

[18] Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

[19] Há entendimento de que a lei não pode criar serviços públicos que não estejam previstos na Constituição, reduzindo com isso o universo das atividades econômicas em que vigora a livre iniciativa. Nesse sentido: AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 273.

[20] PINTO JUNIOR, Mario Engler. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários. São Paulo: Atlas, 2010, p. 218.

[21] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 568.

[22] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 572.

[23] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 91/92.

[24] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 568/569.

[25] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

[26] SILVA, Américo Luís Martins da. Introdução ao direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 176/177.

[27] SILVA, Américo Luís Martins da. Introdução ao direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 177.

[28] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor;VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

[29] Art. 177. Constituem monopólio da União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal

[30] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 768.

[31] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo. 2ª ed. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 706.

[32] Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores. § 2º – As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.


[33] FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

[34] Voto proferido em Acórdão no RE 220.906, p. 463/465.

[35] BANDEIR


SINPROFAZ trata da realidade da PGFN com Corregedor-Geral da Advocacia da União

Na oportunidade, o presidente do Sindicato entregou ofício ao Corregedor-Geral apresentando os problemas que geram o sucateamento da PGFN.


PGFN registra apoio à PEC 443

Nesta quarta-feira, 25/04, o SINPROFAZ recebeu resposta oficial da PGFN às cobranças da carreira expostas à Procuradora-Geral em reunião com membros da Diretoria.


A intimação pessoal dos representantes judiciais da Fazenda Pública federal


Analisam-se as normas sobre os atos processuais de comunicação destinados a advogados públicos federais. Defende-se a possibilidade de intimação pessoal do advogado público federal pela via postal, desde que garantida ciência inequívoca do conteúdo da mensagem.


RESUMO: O presente artigo analisa os dispositivos legais que disciplinam os atos processuais de comunicação, quando destinados a advogados públicos federais com atuação em processos que tramitam perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Ele expõe as características e a finalidade do ato de intimação, pontuando divergências quanto à sua realização em procedimentos diversos e, também, quando envolvem destinatários pertencentes a diversas carreiras da advocacia pública federal. O trabalho aponta, ainda, críticas ao posicionamento jurisprudencial que interpreta a prerrogativa de intimação pessoal dos Procuradores da Fazenda Nacional e analisa a constitucionalidade daquele instituto. Defende, igualmente, a possibilidade de intimação pessoal do advogado público federal pela via postal, desde que respeitadas as formalidades que lhe garantam ciência inequívoca do conteúdo da mensagem. Conclui, por fim, pela iminente superação dos problemas decorrentes do cumprimento da prerrogativa de intimação pessoal dos advogados públicos federais pelo Poder Judiciário, ante a implementação crescente do processo eletrônico em todos os órgãos jurisdicionais.

PALAVRAS-CHAVE: Intimação pessoal; advogado público federal; procurador da fazenda nacional; execução fiscal; prerrogativa; carta; postal; aviso de recebimento; carta precatória; isonomia; razoabilidade; proporcionalidade; razoável duração do processo.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Intimação – modalidades. 2.1 O argumento de quebra de isonomia. 3 Prerrogativa de intimação pessoal conferida aos representantes judiciais da Fazenda Pública na esfera federal. 3.1 Intimação pessoal dos representantes judiciais da Fazenda Pública nas execuções fiscais. 3.2 A intimação pessoal dos Procuradores da Fazenda Nacional. 3.3 Intimação por carta precatória e pela via postal. 3.4 Intimação eletrônica. 4. Conclusão. 5. Referências.


1 INTRODUÇÃO

A atuação diuturna dos advogados públicos federais que desenvolvem suas funções em localidades distantes das capitais dos estados da federação é revestida de vicissitudes que põem à prova o adequado desempenho do mister constitucional de representar judicialmente a União e os entes federais perante os inúmeros órgãos jurisdicionais em funcionamento no País. Nesse quadro, não é incomum que o labor do advogado público seja pautado pela sobrecarga de trabalho e pela ausência de carreiras de apoio administrativo, circunstâncias estas que obstaculizam a garantia de uma eficiente defesa do patrimônio público.

A situação apontada adquire maior relevância na atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional – PGFN, considerando o grande volume de processos judiciais sob incumbência daquele órgão, em razão de sua atribuição exclusiva para a cobrança judicial e a defesa de créditos inscritos na Dívida Ativa da União[1].

A atribuição confiada à PGFN pelo Constituinte, conforme art. 121, § 3º da Constituição Federal, aliada às regras de competência previstas no art. 109, §1º também da CF, no art. 15, I, da Lei n. 5.210/66 (Lei Orgânica da Justiça Federal) e no art. 94 do Código de Processo Civil, impõe que a atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional ocorra também perante inúmeros Juízos de Direito, quando esses estejam situados em cidades onde não funcione sede de Juízo Federal. Melhor explicando: mesmo quando referidas comarcas estaduais estejam compreendidas na área de jurisdição de um determinado Juízo Federal, os executivos fiscais de créditos inscritos na Dívida Ativa da União deverão ser aforados e processados perante os Juízos de Direito das comarcas onde os executados tiverem domicílio. A única exceção ocorre quando a sede desses Juízos Estaduais (onde estejam domiciliados os executados) esteja localizada em cidade na qual também funcione sede de Juízo Federal.

A inexistência de força de trabalho adequada, a distribuição rarefeita dos escritórios de representação e as dificuldades na instalação de novas unidades têm contribuído para o surgimento de um fenômeno preocupante na práxis dos cartórios judiciais: a opção de intimação dos advogados públicos federais por meios considerados mais expeditos, como a via postal (carta de intimação com aviso de recebimento) e as cartas precatórias.

Sem embargo da discussão acerca da possibilidade ou não de utilização exclusiva de determinadas espécies de atos para a ciência de advogados públicos (se postal ou por oficial de justiça, compreendida nesta última a carta precatória), constata-se que, não raro, os expedientes utilizados pelos cartórios judiciais são instruídos deficientemente. Ou, ainda, não possuem quaisquer elementos que viabilizem ao destinatário a exata compreensão da situação processual retratada e do contexto no qual foram praticados os atos processuais, o que caracteriza prejuízo à defesa do ente público patrocinado.


2 INTIMAÇÃO – MODALIDADES

O Código de Processo Civil (Livro I, Título V, Capítulo IV, Seção IV) dispõe que a intimação, espécie do gênero das comunicações processuais, poderá ocorrer na pessoa das partes, seus representantes legais ou advogados, sob variadas formas:

  1. via postal;
  2. diretamente, pelo escrivão ou chefe de secretaria, quando o destinatário da comunicação comparece ao cartório judicial;
  3. por publicação no órgão oficial;
  4. por oficial de justiça;
  5. por via eletrônica, conforme regulamentação em lei própria.

Constata-se que o direito posto não trouxe um conceito jurídico explícito para a expressão “intimação pessoal”.


A intimação pessoal não conta com a previsão normativa de um rol taxativo de formas que lhe garantam autonomia frente aos demais atos de comunicação processual. Em suma, não há descrição em regra jurídica constante do Código de Processo Civil de um único modo ou forma substancial para que determinado ato de intimação seja qualificado de “pessoal”.

Não se quer, com tal assertiva, apregoar seja despicienda a forma para o ato de intimação. Pelo contrário: advoga-se que a qualidade “pessoal” do ato de intimação decorrerá mais do alcance de um desiderato específico (ciência direta ao destinatário) do que dos atributos formais do meio utilizado. Esse tem sido, aliás, o entendimento consolidado na jurisprudência[2].

Intimar “pessoalmente” significa que o destinatário da comunicação processual efetivamente foi cientificado do conteúdo do ato praticado pelo Juízo ou da provocação para a prática de determinado ato ou providência. Por tal razão, difere da intimação ficta, na qual a ciência do destinatário é presumida.

Em outras palavras: realiza-se meio de comunicação processual hábil a dar conhecimento inequívoco ao destinatário. Será pessoal a intimação tanto quanto viabilize ao destinatário ter conhecimento direto, imediato, do teor da comunicação. Por tal razão é que historicamente a intimação “pessoal” sempre foi realizada “na pessoa” (i.e. na presença) do destinatário. Nessa modalidade, dirimem-se quaisquer dúvidas quanto ao conhecimento do destinatário acerca do teor da mensagem.

A prerrogativa de intimação pessoal foi originariamente resguardada aos membros do Ministério Público pelo art. 236, §2º do Código de Processo Civil. Entende-se, nesse caso, que o membro do Parquet somente é intimado quando comparece em cartório e lhe é dada vista dos autos ou quando o oficial de justiça comunica-lhe diretamente o teor do ato ou da provocação para a prática de alguma providência no processo[3]. O curso do prazo terá início a contar da intimação realizada em cartório, pouco importando o “ciente” aposto em momento ulterior nos autos[4]. Em linhas semelhantes – versando sobre a intimação dos advogados públicos federais – as regras constantes do art. 18, inciso II, alínea “h”, da Lei Complementar n. 75/93 e art. 6º, §2º, da Lei n. 9.028/95.

Constata-se que tem sido adjetivada de “pessoal” a intimação praticada pela via postal (desde que comprovada a entrega a seu destinatário, mediante aposição de sua rubrica no aviso de recebimento). Semelhante equiparação ocorre quando o ato de comunicação processual é realizado mediante mandado cumprido por oficial de justiça, no qual aquele servidor certifica a ciência do destinatário sobre o conteúdo do ato.

Com base na premissa invocada, qual seja, a possibilidade de que meios diversos de intimação possam, de acordo com o alcance de um objetivo específico, ser qualificados de “pessoais”, passa-se a expor algumas observações críticas no tocante à intimação pessoal dos advogados públicos e, em especial, dos Procuradores da Fazenda Nacional.

2.1. O ARGUMENTO DE QUEBRA DE ISONOMIA

Tem sido frequente a insurgência de parte da doutrina contra as prerrogativas conferidas aos representantes judiciais dos entes públicos. Em parte, as alegações estão fundadas no argumento de quebra da isonomia entre os advogados públicos e advogados privados. Isso, no entendimento de alguns doutrinadores, acarreta prejuízos à defesa dos administrados, porquanto estes se encontrariam em posição de grande desvantagem quando pretendessem demandar contra o Estado. Nessa ótica, um segmento da doutrina brasileira entende que o Estado é detentor de maior poder econômico e, portanto, dotado de forte aparato administrativo e legal para sua defesa em Juízo.

Embora não se tenha qualquer pretensão de fazer apologia às “razões de Estado”, reputa-se necessária a análise do problema sob uma perspectiva dialética, o que implica a verificação e a análise crítica dos argumentos apresentados por ambos os interlocutores. Diante do contexto, e não de uma visão apaixonada ou parcial, é que se pode detectar com maior acerto a existência e o grau de eventual mácula.

A visão sob a perspectiva do problema da quebra de isonomia leva a uma pergunta inicial: qual é o tamanho adequado, na máquina administrativa, dos órgãos incumbidos da função de representação judicial do Estado brasileiro? No ordenamento jurídico brasileiro, sabe-se de antemão, a representação judicial dos entes públicos, mormente nas esferas federal e estadual, é incumbida a órgãos específicos, dotados de carreiras compostas de cargos preenchidos por agentes egressos de concurso público de provas e títulos (art. 131 da CF). Desse contexto, é possível deduzir, sem maior esforço, que a criação de carreiras e o aumento de cargos nos órgãos de representação judicial pressupõem uma dotação orçamentária e, consequentemente, o acréscimo de gastos correntes no orçamento dos entes estatais.

Tomando de empréstimo estudo recente realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, verificou-se que “dos 83,4 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira em 2010, 27 milhões referiam-se a processos de execução fiscal, constituindo aproximadamente 32% do total”[5]. Em outras palavras, praticamente um terço de todos os processos em trâmite perante o Poder Judiciário são execuções fiscais[6]. Ademais, considerando o montante dos processos na fase de execução nos três ramos do Poder Judiciário analisados (Estadual, Federal e Trabalhista), as execuções fiscais correspondem a 76% (setenta e seis por cento), sendo que, somente na Justiça Federal, as execuções fiscais representam 79% (setenta e nove por cento) dos processos em fase de execução no ano de 2009[7].

Fato notório a todos os operadores do Direito, a execução fiscal, ao menos perante a Justiça Estadual e Federal, não se processa de ofício, tampouco os atos constritivos do patrimônio dos devedores são realizados por vontade própria do Poder Judiciário, consequência lógica dos atributos daquela função estatal (imparcialidade e inércia). Cada ato constritivo, cada aforamento de execução fiscal, cada leilão de bem, cada conversão em renda e apropriação de valores aos cofres públicos tem origem em um ato processual, um pedido formulado por um advogado público.


À luz do contexto acima narrado, é razoável afirmar-se que o número de advogados públicos responsáveis pelo acompanhamento das execuções fiscais no Brasil é insuficiente, sobretudo se se considerar que perante a Justiça Estadual, onde está localizado o maior quantitativo de execuções fiscais, ocorrem os maiores desafios de logística decorrentes do déficit de unidades locais incumbidas da representação judicial dos entes públicos[8]. Constata-se, pois, que o Poder Executivo não tem acompanhado o ritmo crescente de “interiorização” do Poder Judiciário.

Duas alternativas apresentam-se viáveis para o atendimento da demanda crescente de processos de execução fiscal, caso mantido o atual modelo de cobrança judicial dos créditos públicos: a) a criação de carreiras, o acréscimo e o provimento de cargos nos órgãos de representação judicial incumbidos da cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa; b) a criação e a manutenção de prerrogativas legais que tenham por escopo viabilizar a defesa do ente público frente a uma força de trabalho incapaz de dar adequado atendimento a todos os processos, cujo acompanhamento esteja incumbido aos seus órgãos de representação judicial.

Não seria absurdo afirmar que o melhor aparelhamento dos órgãos incumbidos da representação judicial do Estado não foi, ao menos na seara federal, opção alçada à categoria de meta prioritária pelos gestores públicos. Considerando o insuficiente atendimento das demandas da população por serviços públicos essenciais de maior alcance social (v.g. saúde, educação, segurança), também carentes de investimentos, tem-se que, à míngua de recursos orçamentários, não estaria o administrador público obrigado a dotar os órgãos da advocacia pública federal de plenas e ideais condições estruturais.

Tem-se, portanto, que a falta de investimento na advocacia pública resulta, em grande parte, de uma opção política, respaldada juridicamente na discricionariedade conferida ao Poder Executivo para a eleição dos serviços públicos aptos a serem contemplados com prioridade de investimentos. Tal situação poderia ser solucionada mediante disposição constitucional que viesse a contemplar os órgãos de representação judicial com autonomia financeira e administrativa, a par do que ocorre com o Poder Judiciário[9], com o Ministério Público[10] e com a Defensoria Pública[11]. Não é essa, todavia, a realidade atual, ao menos para a maioria dos órgãos de representação judicial dos entes que compõem a federação.

Também não há de se admitir a solução simplista para a redução do número de execuções fiscais, fundada no argumento favorável à aplicação da remissão em caráter geral aos créditos inscritos em dívida ativa. Como tal medida implica renúncia de receita, sua adoção mediante proposta do chefe do Poder Executivo[12] deve observar os limites previstos na Lei Complementar n. 101/2000.

Ademais, os órgãos de representação judicial tem se utilizado, com frequência, de outras espécies de medidas como solução paliativa para a redução do número de processos, tais como a não inscrição em dívida ativa de créditos com valores ínfimos, o não aforamento de execuções fiscais cujo valor consolidado seja inferior aos limites previstos em lei[13] e a redução do número de litígios mediante instituição de pautas de acordo judicial e hipóteses de dispensa recursal.

Todo o contexto analisado leva a crer que, nada obstante a prerrogativa de intimação pessoal constitua efetivamente uma aparente quebra ao princípio da isonomia entre as partes no processo, nem de longe corresponde aos cognominados “privilégios odiosos” propalados por algumas vozes doutrinárias. As normas que asseguram a intimação pessoal dos advogados públicos foram elaboradas e aprovadas ante a constatação da existência de um volume grandioso de processos judiciais a cargo de um número reduzido de representantes legais dos entes públicos. Buscam, portanto, equilibrar a necessidade de satisfação do crédito e a defesa do patrimônio público com os recursos limitados destinados aos órgãos incumbidos de sua cobrança.

Aplica-se ao caso o que MELLO[14] define como “vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida”. O referido autor preleciona:

A correlação lógica a que se aludiu, nem sempre é absoluta, ‘pura’, a dizer, isenta da penetração de ingredientes próprios das concepções da época, absorvidos na intelecção das coisas.

Basta considerar que em determinado momento histórico parecerá perfeitamente lógico vedar às mulheres o acesso a certas funções públicas, e, em outras épocas, pelo contrário, entender-se-á inexistir motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação. Em um caso terá prevalecido a tese de que a proibição, isto é, a desigualdade no tratamento jurídico se correlaciona juridicamente com as condições do sexo feminino, tidas como inconvenientes com certa atividade ou profissão pública, ao passo que em outra época, a propósito de igual mister, a resposta será inversa. Por conseqüência, a mesma lei, ora surgirá como ofensiva da isonomia, ora como compatível com o princípio da igualdade.

Desnecessária a repetição do extenso acervo doutrinário e jurisprudencial no condizente à definição, à classificação e à interpretação do alcance do princípio da isonomia no ordenamento jurídico brasileiro após a promulgação da Constituição Federal. Para o presente estudo, importa apenas rememorar que o trato jurídico distinto de sujeitos frente a determinado fato ou situação jamais foi vedado pelo Constituinte, que sempre admitiu o tratamento diferenciado quando presente a razoabilidade no critério de discrição adotado pelo legislador. Essa tem sido a linha de entendimento do Supremo Tribunal Federal em inúmeros casos.

Não bastasse a fustigada alegação de existência de interesse público nas demandas patrocinadas pelos representantes judiciais dos entes políticos – interesse esse que tem lastro no próprio regime democrático e na forma republicana eleita pelo Poder Constituinte, erigidos à categoria de princípios constitucionais sensíveis[15] – incumbe trazer à lição algumas outras razões que bem demonstram a diferença entre as causas patrocinadas pela advocacia pública e a advocacia privada.

Tais razões foram expostas recentemente pela Advocacia-Geral da União, no intuito de colaborar com o trabalho dos Eminentes Juristas designados para a elaboração do texto do anteprojeto do novo Código de Processo Civil[16]. Ei-las:

  1. O advogado público jamais pode recusar uma causa sob o fundamento de excesso de serviço, de modo que não tem nenhum controle sobre o volume de processos sob sua responsabilidade, o qual é amiúde excessivo:

    […]

  2. A flutuação do número de processos não pode ser rapidamente acompanhada pelo aumento (ou mesmo pela diminuição) do quadro de advogados públicos, especialmente tendo em vista que sua contratação somente pode se dar por meio de concurso público (art. 37, incs. I e II, CF).

Portanto, as disposições legais que conferem a prerrogativa de intimação pessoal aos advogados públicos não violam o art. 5º da CF, ao menos enquanto os órgãos de representação judicial dos entes públicos não forem aparelhados adequadamente para fazer frente ao volume de execuções fiscais e demais processos movidos por ou aforados contra os entes públicos.


A alegação de inconstitucionalidade poderá, talvez, vir a vingar no futuro, diante do adequado aparelhamento dos órgãos de representação judicial e da criação de novas ferramentas tecnológicas que propiciem a superação dos óbices originários da distância geográfica entre as sedes das unidades da advocacia pública e dos Juízos abrangidos pela sua área de atuação.

Registre-se que método de intelecção semelhante já foi adotado pelo Supremo Tribunal Federal em situações análogas, verbis:

EMENTA: Ministério Público: legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135328): processo de inconstitucionalização das leis.

  1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição – ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.
  2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal – constituindo modalidade de assistência judiciária – deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que – na União ou em cada Estado considerado –, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135328.[17]

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 370, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (REDAÇÃO DA Lei nº 9.271/96). ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 5º, CAPUT E INCS. LIV E LV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

A peculiar função dos membros do Ministério Público e dos advogados nomeados, no Processo Penal, justifica tratamento diferenciado caracterizado na intimação pessoal, não criando o § 1º do art. 370 do CPP situação de desigualdade ao determinar que a intimação do advogado constituído, do advogado do querelante e do assistente se dê por publicação no órgão incumbido da publicidade dos atos judiciais da comarca. O procedimento previsto no art. 370, § 1º, do CPP não acarreta obstáculo à atuação dos advogados, não havendo violação ao devido processo legal ou à ampla defesa. Medida cautelar indeferida.[18]

Não parecem válidas, portanto, quaisquer alegações tendentes a inquinar de ofensivas ao princípio da isonomia as regras jurídicas atualmente em vigor que confiram aos representantes legais dos entes públicos a prerrogativa de intimação pessoal. Ao contrário do que possa parecer, a advocacia pública – nada obstante sucessivos concursos para o provimento de cargos de suas carreiras – ainda não conta com quadro compatível de advogados públicos e servidores de apoio administrativo suficientes ao cumprimento de sua missão[19].


3. PRERROGATIVA DE INTIMAÇÃO PESSOAL CONFERIDA AOS REPRESENTANTES JUDICIAIS DA FAZENDA PÚBLICA NA ESFERA FEDERAL

Tome-se, de início, a expressão “Fazenda Pública” como conceito abrangente dos entes da administração direta e algumas de suas entidades, tais como as autarquias e fundações. Portanto, para a finalidade do presente estudo não serão incluídas no conceito as empresas estatais. Nesse sentido, a lição de ARAGÃO[20]:

a locução Fazenda Pública designa o Estado, nos planos federal, estadual, abrangidos o Distrito Federal e os Territórios, e municipal, todos, sem exceção, destinatários da franquia quanto ao prazo para contestar e para recorrer. Mas, Fazenda Pública compreende duas divisões distintas da Administração: direta e indireta. Esta, fora de dúvida, está amparada pelo preceito, que, quanto àquela, exige melhor análise. A rigor, as duas divisões da Administração deveriam gozar das mesmas regalias. Mas, o Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967, com as alterações que lhe introduziu o Decreto-lei n. 900, de 29 de setembro de 1969, estabeleceu uma distinção entre os órgãos da Administração indireta, de modo que apenas as autarquias são pessoas de direito público; as empresas públicas e as sociedades de economia mista são pessoas de direito privado que, vinculadas à Fazenda Pública, não gozam dos favores a esta concedidos como pessoa de direito público (art.5º). Em conseqüência dessa disposição, somente as autarquias estão compreendidas na locução Fazenda Pública, para o fim de desfrutarem do privilégio dos prazos dilatados.

A intimação pessoal é conferida aos representantes judiciais dos entes públicos na esfera federal[21], viabilizando que não somente nas execuções fiscais, mas também nas demais espécies de processos os representantes judiciais da União sejam cientificados pessoalmente dos atos processuais produzidos nos autos ou do teor das provocações judiciais para a prática de atos ou providências.

A lei orgânica da Advocacia-Geral da União – AGU (Lei Complementar n. 73, de 10/02/1993) foi lacônica no trato das prerrogativas conferidas aos agentes públicos de suas carreiras. Por tal razão, o primeiro diploma legal que trouxe para o arcabouço normativo a previsão, explícita e discriminada, de algumas prerrogativas, foi a Lei n. 9.028/95. Seu escopo era conferir um mínimo de estrutura, em caráter provisório e emergencial, para o exercício das funções dos membros da AGU.

Embora a Lei n. 9.028/95 trouxesse, em seu art. 6º, preceito legal que determinava a intimação pessoal dos membros da AGU, o parágrafo 2º do mesmo dispositivo impunha que a intimação, quando destinada a advogado público lotado em local diverso da sede do juízo, deveria ocorrer na forma prevista no inciso II do art. 237 do Código de Processo Civil, ou seja, pela via postal.


Mais tarde, com a criação das carreiras de Procurador Federal e Procurador do Banco Central do Brasil, a Lei n. 10.190, de 15/07/2004 passou a determinar a intimação pessoal de seus membros[22].

Para os Procuradores da Fazenda Nacional, a Lei n. 11.033, de 21/12/2004, dispôs em seu art. 20 que suas intimações “dar-se-ão pessoalmente, mediante a entrega dos autos com vista”. Logo, no caso de processos nos quais seja parte a União (Fazenda Nacional), a intimação pessoal, mediante entrega dos autos, foi disciplinada de modo explícito pela lei, à semelhança da intimação pessoal conferida aos membros do Ministério Público. Logo, após o advento daquele diploma legal os Procuradores da Fazenda Nacional somente serão considerados intimados quando receberem os autos dos processos judiciais com vista (remessa dos autos pela secretaria ou cartório judicial).

Adiante se verá que a intimação mediante remessa dos autos ao advogado público não constitui novidade. Todavia, a Lei n. 11.033/2004 inovou ao dispor que essa sistemática consistiria em forma exclusiva de intimação dos Procuradores da Fazenda Nacional, tornando inaplicáveis àqueles agentes públicos as demais formas de intimação pessoal comumente utilizadas na praxe forense.

A intimação pessoal na forma prevista pelo art. 20 da Lei n. 11.033/2004 também é de necessária observância pela Justiça do Trabalho, nas hipóteses de sentenças homologatórias de acordos que contenham parcela indenizatória e de execuções de verbas trabalhistas (art. 832 e 879, §3º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT)[23].

Modificações legislativas recentes têm flexibilizado disposições processuais relacionadas a prazos e formas de intimação dos advogados públicos para os demais processos e procedimentos judiciais. Nesse sentido, a Lei n. 10.259/2001, que suprimiu, nos Juizados Especiais Federais, a prática de qualquer ato processual com prazo diferenciado (art. 7º).

No âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e Municípios, a criação dos juizados especiais da Fazenda Pública veio a lume pela Lei n. 12.153, de 22/12/2009, diploma legal que inovou no ordenamento jurídico, passando a admitir a possibilidade de utilização de todas as formas de comunicação processuais previstas pelo Código de Processo Civil (reais ou fictas) para a citação e intimação dos representantes judiciais dos entes públicos estaduais e municipais, bem como das autarquias e fundações a eles vinculadas (art. 6º).

Constata-se que, a rigor, o direito positivado traz disposições normativas explícitas que conferem aos advogados públicos federais a prerrogativa de intimação pessoal. Todavia, divergem os diplomas legais quanto à sua forma de atendimento, que variam conforme a espécie de processo judicial e o advogado público federal incumbido de seu patrocínio.

3.1 INTIMAÇÃO PESSOAL DOS REPRESENTANTES DA FAZENDA PÚBLICA NAS EXECUÇÕES FISCAIS. ARTIGO 25 DA LEI N. 6.830/80

No que concerne ao rito da execução fiscal, a intimação pessoal dos representantes judiciais da Fazenda Pública alcança, inclusive, os representantes judiciais dos Estados da federação e dos municípios, conquanto referidos agentes não contem com previsão legal, em âmbito nacional, que lhes assegure a prerrogativa de intimação pessoal para as demais espécies de processos judiciais.

A Lei de Execuções Fiscais – LEF (Lei n. 6.830/80), em seu art. 25, dispõe que a intimação dirigida aos representantes da Fazenda Pública nos processos de execução fiscal deverá ocorrer pessoalmente. Além disso, a lei faculta que o Juízo promova a intimação do advogado público mediante vista e concomitante remessa dos autos pelo cartório ou secretaria.

Embora a LEF preceitue a intimação pessoal do advogado público, não determina expressamente o modo pelo qual tal ato de comunicação deverá ocorrer. Diverso foi o trato normativo conferido pela Lei Orgânica do Ministério Público – LOMP (Lei n. 8.625/93), a qual determinou que a intimação pessoal do membro do MP deverá ser realizada “através da entrega dos autos com vista”.

Nada obstante a semelhança entre o conteúdo normativo do art. 40, IV, da LOMP e o art. 25 da LEF, este último dispositivo admite sejam flexibilizados os meios de comunicação processuais destinados aos representantes judiciais da Fazenda Pública. É a ilação obtida com a interpretação sistemática dos art. 25 da LEF, 36 e 37 da Lei Complementar n. 73/93 (Lei Orgânica da Advocacia Pública da União – LOAGU) e 41, IV, da LOMP. Veja-se.

No tocante às razões legais que amparam a escolha das formas dos atos de comunicação processual dirigidos à Fazenda Pública, cumpre rememorar que o próprio parágrafo único do art. 25 da LEF foi explícito em determinar que a intimação pessoal, mediante vista e remessa dos autos, constitui apenas uma das formas válidas de intimação do advogado público e, portanto, não a única.

Conquanto as disposições dos art. 36 a 37 da LOAGU façam referência aos atos de citação e intimação “nas pessoas do Advogado da União ou do Procurador da Fazenda Nacional”, referidos dispositivos também pecaram pela ausência de disposição expressa quanto ao modo de cumprimento do ato de intimação, admitindo que, diante dessa abertura semântica, sejam utilizados os meios de intimação pessoal já admitidos pela jurisprudência.

O entendimento foi, posteriormente, sufragado pelo art. 6º da Lei n. 9.028/95 que, em decorrência de parágrafo acrescido pela Medida Provisória n. 2.180–35/2001, passou a dispor do seguinte modo:

Art. 6º A intimação de membro da Advocacia-Geral da União, em qualquer caso, será feita pessoalmente.

[…]

§ 2o As intimações a serem concretizadas fora da sede do juízo serão feitas, necessariamente, na forma prevista no art. 237, inciso II, do Código de Processo Civil.

Essa a razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça, reiteradamente, tem admitido a utilização de carta com aviso de recebimento ou de carta precatória como meios hábeis à cientificação dos representantes judiciais da Fazenda Pública nos processos de execuções fiscais.


Claro está que a norma do art. 25 da Lei n. 6.830/80 não trouxe para o Poder Judiciário a obrigação de remessa dos autos dos processos judiciais como requisito de validade da intimação dos representantes da Fazenda Pública. Nesses casos as intimações dirigidas a advogados públicos poderão também ser realizadas pela via postal e mediante expedição de cartas precatórias, desde que devidamente instruídas e aptas à ciência inequívoca do conteúdo do ato processual e dos elementos necessários à defesa do ente público.

3.2 A INTIMAÇÃO PESSOAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL

Consoante já explanado nos tópicos precedentes, os Procuradores da Fazenda Nacional foram contemplados com norma específica que lhes atribuiu a prerrogativa de intimação pessoal mediante a entrega dos autos processuais em carga: o art. 20 da Lei n. 11.033/2004.

Dispõe a referida norma:

Art. 20. As intimações e notificações de que tratam os arts. 36 a 38 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, inclusive aquelas pertinentes a processos administrativos, quando dirigidas a Procuradores da Fazenda Nacional, dar-se-ão pessoalmente mediante a entrega dos autos com vista.

O art. 20 da Lei n. 11.033/2004 teve nascedouro no processo legislativo de conversão da Medida Provisória n. 206/2004, mais especificadamente na emenda aditiva n. 35, de autoria do Deputado Paulo Bernardo (PT/PR), apresentada na data de 11/08/2004 à Comissão Mista do Congresso Nacional[24]. Da consulta ao teor da referida emenda, é possível extrair as justificativas para a criação do dispositivo legal:

Essa medida visa conferir maior segurança no controle de prazos em ações envolvendo a Fazenda Nacional, eliminando o problema do prazo comum, que surge quando se está diante de decisões que acolhem parcialmente os pedidos e resolve as atuais dificuldades nos Conselhos de Contribuintes. Ademais, procedimento idêntico já é adotado em relação aos representantes do Ministério Público […].

A Comissão Mista do Congresso Nacional, ao aprovar as emendas apresentadas, expôs a seguinte justificativa para a aprovação da Emenda n. 35[25]: “A Emenda nº 35 visa apenas estender ao processo administrativo fiscal a prerrogativa de citação pessoal do representante da Fazenda, norma já existente no processo judicial”.

Constata-se que o objetivo precípuo da norma era conferir aos Procuradores da Fazenda Nacional a prerrogativa de intimação pessoal no curso de processos administrativos fiscais em trâmite nos extintos Conselhos de Contribuintes (hoje Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF).

Atualmente, por força de superveniente modificação legislativa (Lei n. 11.457/2007) a prerrogativa de intimação pessoal dos Procuradores da Fazenda Nacional em processos administrativos fiscais com trâmite perante o CARF é garantida pelo art. 23, §7º do Decreto n. 70.235/72, dispositivo autônomo aplicável à seara administrativa. Logo, essa inovação legislativa retirou parcela substancial de legitimidade do art. 20 da Lei n. 11.033/2004, pois restringiu sua razão de ser à hipótese de resguardo dos interesses da Fazenda Pública nas situações em que proferidos provimentos jurisdicionais deem causa à abertura de prazo comum às partes.

Excetuada a questionável manutenção da norma exclusivamente em razão da impossibilidade de realização de carga dos autos processuais nas hipóteses de prazo comum (justificativa que, a princípio, não se sustenta diante do princípio da razoabilidade), cabe avaliar sua aplicabilidade perante o contexto normativo infraconstitucional.

A primeira novidade fica por conta da abrangência da norma. Sua aplicação não se restringe aos executivos fiscais, tal como dispunha o art. 25 da Lei n. 6.830/80. Igualmente, a observância da forma de intimação preceituada pelo novel dispositivo normativo (entrega dos autos com vista) deixa de ser uma alternativa à disposição do Poder Judiciário (como o era na redação do art. 25 da LEF) para ganhar feição jurídica de norma pública cogente.

Sem prejuízo da clareza do dispositivo legal, constata-se que seu cumprimento pelo Poder Judiciário tem sofrido mitigação. Não raro os Procuradores da Fazenda Nacional veem-se obrigados a tomar ciência dos atos processuais mediante cartas entregues pela via postal ou mandados expedidos no cumprimento de cartas precatórias.

A adoção dessas espécies de atos de comunicação processual demonstra claramente a opção do Poder Judiciário em conferir interpretação extensiva à regra do art. 6º da Lei n. 9.028/95 de modo a aplicá-lo também aos Procuradores da Fazenda Nacional. E esse posicionamento parece ter sido ratificado pelo Superior Tribunal de Justiça, consoante se infere da recente ementa publicada, abaixo transcrita:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DEVEDOR OPOSTOS PELA FAZENDA NACIONAL À EXECUÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS A QUE FORA CONDENADA EM EXECUÇÃO FISCAL. INEXISTÊNCIA DE REPRESENTANTE JUDICIAL DA FAZENDA NACIONAL LOTADO NA SEDE DO JUÍZO DA EXECUÇÃO. TERMO INICIAL DO PRAZO PARA A OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS. DATA DE JUNTADA AOS AUTOS DA CARTA PRECATÓRIA DE CITAÇÃO DEVIDAMENTE CUMPRIDA.

1. A Primeira Seção, no julgamento dos EREsp 743.867/MG (Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 26.3.2007, p. 187), a partir da interpretação conjunta dos arts. 25 da Lei 6.830/80, 38 da Lei Complementar 73/93 e 20 da Lei 11.033/2004, deixou consignado que tais disposições normativas estabelecem regra geral fundada em pressupostos de fato comumente ocorrentes. Todavia, nas especiais situações, não disciplinadas expressamente nas referidas normas, em que a Fazenda não tem representante judicial lotado na sede do juízo, nada impede que a sua intimação seja promovida na forma do art. 237, II do CPC (por carta registrada), solução que o próprio legislador adotou em situação análoga no art. 6º, § 2º da Lei 9.028/95, com a redação dada pela MP 2.180–35/2001.

2. Esta Turma, ao julgar o AgRg no REsp 1.220.231/RS (Rel. Min.Herman Benjamin, DJe de 25.4.2011), decidiu que a intimação pessoal por carta precatória, do Procurador da Fazenda Nacional lotado em outra comarca, não prejudica o contraditório ou a ampla defesa, não sendo cabível a regra do art. 20 da Lei 11.033/2004 (carga dos autos).

3. Recurso especial não provido.

(REsp 1254045/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 09/08/2011)

Bem se vê que a jurisprudência vem admitindo, por extensão, a utilização de outros meios de intimação pessoal dos Procuradores da Fazenda Nacional, quando esses agentes públicos não estejam lotados em escritórios de representação com funcionamento nas cidades as quais sejam sede dos Juízos.


A solução jurídica adotada pelo Superior Tribunal de Justiça tangencia a questão constitucional subjacente (ofensa ao contraditório e ao devido processo legal) e se utiliza do método de interpretação sistemática (e extensiva) para negar eficácia a um dispositivo normativo com plena vigência.

Diante do contexto narrado, necessário avaliar se existem outros critérios ou argumentos aptos a conferirem legitimidade à atual interpretação jurisprudencial do art. 20 da Lei n. 11.033/2004.

Diz-se que um dos critérios válidos para a distinção entre regras e princípios reside na técnica utilizada para sua interpretação, quando presente uma situação de conflito: enquanto para os princípios a dogmática jurídica aceita sejam os mesmos ponderados na hipótese de conflito, conferindo-lhes dimensão apropriada em consonância com sua natureza frente ao caso concreto, para as regras jurídicas tem sido usual atribuir-lhes sentido absoluto, de modo que, em uma situação de conflito entre duas regras, sempre há de subsistir uma única aplicável, apta a incidir sobre determinado suporte fático. Nesse último caso, a solução do conflito advirá da utilização pelo hermeneuta dos critérios hierárquico, cronológico e o da especialidade.

A instituição de um expediente próprio (remessa dos autos com vista) para o atendimento à prerrogativa de intimação pessoal aos Procuradores da Fazenda Nacional não caracteriza disposição normativa especial a par daquelas anteriormente previstas nos art. 38 da LOAGU e art. 6º, §2º da Lei n. 9.028/95. Pressupondo que o art. 20 da Lei n. 11.033/2004 fosse considerado norma especial, estaria caracterizada a antinomia em relação ao art. 6º, §2º da Lei n. 9.028/95. Nessa hipótese, não seria lícito advogar a invalidade do novo dispositivo legal, porquanto a adoção dos critérios cronológico e o da especialidade admitiriam a subsistência da lei superveniente, seja por tratar de tema já pautado no diploma legal anterior, seja por trazer disposições que são aplicáveis aos membros de apenas uma das carreiras da advocacia pública federal.

No campo das prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública, não existe antinomia entre os preceitos normativos precedentes – que conferem aos advogados públicos a prerrogativa de intimação pessoal – e o novo preceito que prevê seja a intimação dos Procuradores da Fazenda Nacional realizada mediante a entrega dos autos em carga. Este último é, em verdade, regra excepcional que confere a uma parcela dos advogados públicos meio peculiar para ciência inequívoca dos atos processuais.

As razões que amparam o tratamento díspar conferido pelo art. 20 da Lei n. 11.033/2004 não são, em sua essência, jurídicas. Fundam-se especialmente na deficiência do aparelho estatal para o acompanhamento das inúmeras demandas propostas pelo Estado em face dos cidadãos, necessárias à recuperação de créditos fiscais. E essa característica inviabiliza que o dispositivo legal seja aplicado para toda e qualquer situação em que caracterizado o litígio entre o Fisco e o cidadão. Nesse sentido, a percuciente lição de MAXIMILIANO[26]:

As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente […] O art. 6º da antiga Lei de Introdução abrange, em seu conjunto, as disposições derrogatórias do Direito comum; as que confinam a sua operação a determinada pessoa, ou a um grupo de homens à parte; atuam excepcionalmente, em proveito, ou prejuízo, do menor número[…] Consideram-se excepcionais as disposições que asseguram privilégio (1), palavra esta de significados vários no terreno jurídico. Abrange: […] c) preferências e primazias asseguradas, quer a credores, quer a possuidores de boa fé, autores de benfeitorias e outros, pelo Código Civil, Lei das Falências e diversas mais.

O art. 20 da Lei n. 11.033/2004, por caracterizar norma excepcional, será aplicável somente naqueles casos em que a obediência à norma, imposta ao Poder Judiciário, afigure-se razoável, ou seja, em casos tais que não impliquem a criação de novos serviços (e, consequentemente, na majoração dos gastos correntes) para atendimento exclusivo de interesses financeiros da União. Logo, a intimação pessoal mediante remessa dos autos à Procuradoria da Fazenda Nacional afigurar-se-á dever inescusável de cumprimento pelo Poder Judiciário nas situações em que for constatado o funcionamento do órgão de representação judicial do ente público na mesma cidade na qual estabelecida a sede do Juízo. Equalizam-se desse modo as prerrogativas conferidas à Advocacia Pública às prerrogativas conferidas ao Ministério Público.

Afora a problemática referente à validade, à eficácia e à vigência do diploma legal no aspecto temporal, afigura-se de suma relevância inquirir se a norma do art. 20 da Lei n. 11.033/2004 seria razoável e proporcional (caso entendido que sua observância incumbe exclusivamente ao Poder Judiciário, sob pena de nulidade do ato que cientifica o Procurador da Fazenda Nacional por meio diverso).

A razoabilidade exige coerência entre os motivos determinantes para a prática do ato (v.g. ato administrativo ou proposição legal) e a finalidade almejada. Em síntese, deve-se perquirir se os motivos suscitados para a criação do dispositivo legal são legítimos e compatíveis com seu conteúdo (alteração na sistemática de intimação pessoal dos Procuradores da Fazenda Nacional).

À luz do princípio da razoabilidade, constata-se que parcela substancial das razões sustentadas para a criação do dispositivo legal não mais se encontram presentes em virtude de modificação do ordenamento jurídico, ocorrida após o ano de 2004. Nesse aspecto, a justificativa remanescente, de necessária remessa dos autos com vista à Procuradoria da Fazenda Nacional nas hipóteses de prazo comum, não guarda coerência com a prerrogativa de intimação pessoal, dado que, aos demais integrantes das carreiras da advocacia pública federal, em situação idêntica, não é assegurado referido modo de intimação.

No tocante ao princípio da proporcionalidade, sua obediência pelo legislador impõe seja realizado o estudo sob o prisma de seus três elementos, a saber: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A lei ou o ato normativo será adequado quando seja eficaz o bastante para o alcance do escopo almejado pelo legislador. Nessa toada, não se pode negar que a intimação do Procurador da Fazenda Nacional mediante a entrega dos autos em carga possibilita o alcance do objetivo visado pela norma, ou seja, a ciência ampla e inequívoca do advogado público acerca dos atos processuais praticados.


Ultrapassado o primeiro teste de validade da norma, sobreleva indagar a sua necessidade ou, em outras palavras, se a previsão normativa configura o meio menos gravoso para o alcance do fim legal.

Registre-se que, no atual contexto, o art. 20 da Lei n. 11.033/2004 não vem sendo cumprido satisfatoriamente por razões diversas, a saber: a) ausência de recursos humanos e materiais nas unidades da Procuradoria da Fazenda Nacional, impossibilitando o deslocamento, periódico e regular, de servidores e procuradores às sedes dos Juízos Estaduais para a carga dos processos; b) insuficiência dos meios alternativos disponibilizados ao Poder Judiciário para a remessa de todos os processos judiciais que exijam a ciência dos Procuradores da Fazenda Nacional.

Os problemas acima descritos têm sido resolvidos de modo casuístico e pontual: ora com a disponibilização de cartões de postagens aos Juízos Estaduais, admitindo-se a remessa, pela via postal, de determinado número de processos às unidades da Procuradoria da Fazenda Nacional; ora com a adoção de uma sistemática de carga presencial na qual o próprio Procurador da Fazenda Nacional desloca-se às sedes dos Juízos Estaduais, não raro conduzindo viatura oficial e realizando, sem qualquer auxílio de servidores ou empregados terceirizados, o transporte dos processos físicos pendentes de intimação[27].

As duas alternativas adotadas pela Administração, acima narradas, pecam por não atender de forma suficiente à demanda dos Juízos, considerando o volume substancial de processos que aguardam a intimação da Procuradoria da Fazenda Nacional. Ambas não possibilitam a carga presencial regular de todos os processos pendentes de intimação.

Ainda nesse tópico, importa-nos acrescer outro inconveniente: o deslocamento frequente do advogado público para a realização de carga presencial de autos processuais em juízos situados em locais distantes das unidades seccionais da advocacia pública. Tal prática retira temporariamente aquele agente público do exercício das atividades precípuas inerentes à sua função, qual seja, a elaboração de peças e teses jurídicas para a defesa do ente público.

Dentre os outros meios disponíveis para a ciência pessoal e inequívoca do Procurador da Fazenda Nacional, é possível citar prontamente pelo menos duas opções para o alcance do desiderato almejado pelo legislador e para o pleno atendimento à demanda de processos pendentes de intimação dos Procuradores da Fazenda Nacional : 1) a criação de unidades seccionais da Procuradoria da Fazenda Nacional nas cidades onde funcionem as sedes dos Juízos; 2) o comparecimento periódico e espontâneo do advogado público às sedes dos Juízos, com o consequente recebimento dos autos dos processos entregues em carga. Pressupõe-se, nessa última medida, seja disponibilizado pela Administração número suficiente de advogados públicos lotados nas unidades seccionais e meios seguros para seu transporte e dos processos judiciais.

A primeira opção (criação de unidades seccionais no local onde funciona a sede de cada Juízo) é descartada prontamente, dado que implicaria a criação de quantidade substancial de cargos e consequente majoração de despesas, necessárias à manutenção de um grande número de escritórios de representação. Logo, importaria um acréscimo considerável nos gastos correntes previstos no orçamento do Poder Executivo.

A segunda medida proposta seria a de prover adequadamente as unidades seccionais da Procuradoria da Fazenda Nacional com recursos humanos e materiais compatíveis com o número de Juízos atendidos por aquele órgão[28]. Dessa forma, não subsistiria óbice à instalação e concentração das atividades das unidades seccionais em uma única Comarca, posto que existentes recursos humanos (v.g. servidores no apoio administrativo, empregados terceirizados) aptos a auxiliar o Procurador da Fazenda Nacional a comparecer periodicamente às sedes dos Juízos, retirando em carga os autos disponibilizados com vista à Fazenda Pública.

Dentre os meios atualmente existentes e as opções descritas, crê-se que essa última medida seja a que melhor atende ao interesse visado pelo legislador, resguardando a defesa do Erário sem a limitação do número de processos judiciais entregues em carga, e sem a ofensa ao princípio da legalidade.

Remanesce a análise quanto ao terceiro elemento: a proporcionalidade em sentido estrito.

A aplicação do art. 20 da Lei n. 11.033/2004 põe em destaque um aparente conflito entre os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF) e o da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF). Este último aplicável também aos processos patrocinados pela Procuradoria da Fazenda Nacional em razão da observância ao princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, da CF).

Não se olvida que a observância à norma do art. 20 da Lei n. 11.033/2004 impõe considerável atraso na movimentação processual, especialmente no tocante aos Juízos não situados em idêntica cidade onde funcionam as unidades seccionais ou escritórios de representação da Procuradoria da Fazenda Nacional. Por sua vez, o comparecimento irregular dos Procuradores da Fazenda Nacional aos cartórios judiciais, decorrente da insuficiência de adequados recursos humanos e materiais, traz como consequência o aumento do número de processos não movimentados, posto que pendentes de intimação daqueles agentes públicos. Tal situação não traz prejuízo somente ao Erário, em razão de a mora implicar diretamente na redução da probabilidade de recuperação do crédito público, mas também prejudica o jurisdicionado, que se vê obrigado a aguardar considerável lapso temporal para análise e julgamento de questão por ele suscitada em razão da necessária manifestação do representante judicial do ente público[29].

Sob o viés do princípio do contraditório, também é lícito asseverar que a forma de intimação prevista no artigo 20 da Lei nº 11.033/2004 não se afigura medida imprescindível ao resguardo daquela garantia constitucional, tendo em vista que o desiderato pode ser facilmente alcançado por outros meios de comunicação processual.

A situação que se deseja evitar com a imposição da obrigatoriedade da intimação pessoal mediante remessa dos autos com vista ao Procurador da Fazenda Nacional caracteriza prejuízo menor àquele imposto ao jurisdicionado, pois as razões que justificam aquela forma de intimação pessoal têm relação direta com a deficiência estrutural da Procuradoria da Fazenda Nacional, remanescendo pouco a ser creditado a título de resguardo do contraditório e da ampla defesa.

A característica do preceito normativo do art. 20 da Lei n. 11.033/2004 (norma excepcional), aliada ao não atendimento de dois elementos do princípio da proporcionalidade (necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), levam a admitir a possibilidade de mitigação de sua aplicabilidade nas situações em que a garantia da prerrogativa de intimação pessoal mediante vista dos autos em carga possa acarretar prejuízo ao jurisdicionado ou injustificada mora processual.


Conquanto não se partilhe dos métodos hermenêuticos utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça para o julgamento da questão – pois interpretou extensivamente dispositivo legal precedente (art. 6º, §2º, da lei 9.028?95) e deixou de apreciar o tema sob a perspectiva constitucional – entende-se que, nos casos excepcionais aqui descritos, estará aberta a possibilidade de intimação dos Procuradores da Fazenda Nacional pela via postal (carta com aviso de recebimento) ou carta precatória.

3.3 INTIMAÇÃO POR CARTA PRECATÓRIA E PELA VIA POSTAL

A premissa adotada, assim, é no sentido de que se deva fazer necessária ponderação entre os insuficientes recursos materiais e humanos da advocacia pública federal e a impossibilidade de transferir ao Poder Judiciário os ônus decorrentes do envio dos autos dos processos físicos aos advogados públicos (quando estes estejam lotados em cidades diversas daquelas onde localizadas as sedes dos Juízos). Logo, é razoável a utilização da carta precatória como meio apto a intimar os advogados públicos, sendo de rigor na utilização dessa espécie de ato processual o cumprimento, pelo Juízo deprecante, de todos os requisitos insertos no art. 202 do CPC[30]. Eventual descumprimento dos requisitos essenciais da carta poderá ocasionar sua devolução pelo Juízo deprecado (art. 209,I do CPC).

Nesse contexto, embora admitida a carta precatória (autuada e processada) e cumprido o seu objeto (v.g. intimação), sua instrução defeituosa inviabiliza o pleno exercício de defesa do ente público, prejuízo manifesto que abre ensejo à arguição de nulidade, trazendo como consequência o refazimento daquele ato de comunicação.

Além da intimação pela via da carta precatória, a jurisprudência preponderante do Superior Tribunal de Justiça tem admitido, nesse caso, que a intimação dos representantes judiciais dos entes públicos nas execuções fiscais também ocorra pela via postal, ou seja, por carta com aviso de recebimento, na forma preconizada pelo art. 237, II, do Código de Processo Civil[31].

A faculdade de intimação pela via postal traz algumas peculiaridades que podem gerar consequências desfavoráveis ao ente público. Uma delas é a ausência, nessa espécie de comunicação processual, de uma regra processual que preceitue de modo explícito os meios para assegurar ao destinatário do ato comunicação processual a garantia de plena ciência de seu conteúdo. Nesse aspecto, a intimação postal difere da carta precatória, pois, para esta, o legislador previu requisitos de natureza cogente – e, portanto, de necessária observância pelo Juízo – com vistas à garantia de efetivo conhecimento do teor e compreensão do objeto deprecado (art. 202, II e III e §§1º e 2º).

Diante do recebimento de uma intimação pela via postal, o representante judicial da Fazenda Pública poderá deparar-se com duas situações distintas: a) carta de intimação devidamente instruída com todos os elementos necessários à ciência e à compreensão dos atos realizados no processo; b) carta de intimação com singela descrição do ato praticado ou da providência determinada pelo Juízo, sem qualquer elemento que viabilize sua pronta manifestação sem o acesso aos autos. Na última hipótese, a arguição de nulidade pela ocorrência de cerceamento de seu direito de defesa somente será acolhida caso seja constatado pelo Juízo o efetivo prejuízo ao ente público. Entretanto, a prática tem mostrado que o acolhimento do pleito pelos Juízos Singulares afigura-se improvável, considerando que os expedientes defeituosos, via de regra, emanam de seus próprios cartórios ou secretarias, pressupondo sua prévia concordância com o procedimento utilizado.

A eleição dos meios aptos à intimação pessoal do ente público (postal ou mediante carta precatória) não pode significar o abandono de todas as formalidades necessárias ao cumprimento adequado do ato de comunicação processual. Se o ato de intimação deve ocorrer na pessoa do advogado público, viabilizando que tenha plena ciência e compreensão do conteúdo da mensagem, não é dispensada a devida instrução do expediente com os documentos imprescindíveis à defesa.

Embora em situações normais a ciência ao advogado pela via postal ocorra mediante carta com singela transcrição do despacho ou decisão interlocutória prolatada pelo Juízo, a intimação dos representantes do ente público pela via postal deve necessariamente estar acompanhada dos elementos indispensáveis à compreensão do ato processual praticado ou da providência determinada pelo Juízo[32].

Entende-se que uma interpretação que pretenda conferir uma razoável celeridade ao processo deva admitir a intimação pela via postal do ente público, desde que, na prática do ato, também seja resguardado um mínimo de sentido ao vocábulo “pessoalmente”, previsto no art. 25 da Lei n. 6.830/80. Em outras palavras, deve o Poder Judiciário zelar pela efetiva ciência do conteúdo da comunicação processual pelo representante judicial da Fazenda Pública, observando, na intimação postal, as formalidades previstas nos art. 202, II e §1º, combinado com o art. 223, todos do Código de Processo Civil.

Diante da inexistência de disposições legais específicas atinentes à expedição de carta de intimação pela via postal, quando dirigidas a representante judicial de ente público, viável interpretação analógica que possibilite complementar aquele meio de comunicação processual com as formalidades previstas no inciso II e §1º do art. 202 e art. 223 do CPC, resguardando, desse modo, a real possibilidade de defesa do ente público e o cumprimento do disposto nos art. 25, caput da Lei n. 6.830/80, art. 6º, §2º, da Lei n. 9.028/95 e art. 20 da Lei n. 11.033/2004.

3.4 INTIMAÇÃO ELETRÔNICA

Com o advento da Lei n. 11.419/2006 e o acréscimo do parágrafo único ao art. 237 do CPC, foi aberta a possibilidade de realização dos atos de comunicação processuais (intimação e citação) pela via eletrônica (art. 221, IV, do CPC).

No tocante aos representantes judiciais da Fazenda Pública Federal, a utilização da via eletrônica somente será obrigatória na hipótese de o processo judicial possuir suporte integralmente eletrônico, ou seja, naqueles órgãos do Poder Judiciário nos quais já tenham sido desenvolvidos sistemas para o gerenciamento e o trâmite de processos no formato digital. Nada obsta, entretanto, que o destinatário das comunicações processuais manifeste concordância com o recebimento daqueles atos pela via eletrônica, quando tenham origem em processos com trâmite em suporte físico; caso contrário, deverá ser preservada a prerrogativa de intimação pessoal[33].


Calha observar que a Lei n. 11.419/2006 trata de tema específico, o processo eletrônico, de modo que as alterações por ela promovidas nos art. 221 e 237 do CPC são disposições especiais, destinadas a regrar os atos de comunicação processuais nos processos judiciais com trâmite eletrônico, não possuindo eficácia derrogatória dos demais dispositivos legais que determinam a intimação pessoal dos representantes da Fazenda Pública[34]. Por tal razão, eventuais atos de comunicação processual (citações e intimações), não terão eficácia em relação à Fazenda Pública quando publicados em Diário Oficial Eletrônico, pois o próprio diploma legal excepciona que somente serão consideradas intimações e citações pessoais os atos nos quais seja viabilizado o conhecimento da íntegra do processo (art. 4º, §2º e 9, §1º).

Criado o sistema para o trâmite de processos judiciais pelo meio eletrônico, a Lei n. 11.419/2006 trouxe a presunção de que a citação e a intimação, quando destinados a representantes da Fazenda Pública, são equiparadas à forma de comunicação pessoal (art. 4º, §6º). Trata-se de uma presunção legal, considerando que, na prática, para ciência do conteúdo dos autos, é necessário o acesso identificado do advogado público ao sítio na rede mundial de computadores no qual está localizado o sistema de gerenciamento dos processos judiciais eletrônicos.

A tramitação do processo pelo meio eletrônico impõe o cadastramento prévio do advogado público como condição para a prática de atos processuais (art. 2º, §1º, da Lei n. 11.419/2006). Presume-se que determinado usuário – portando uma identificação perante o sistema de processo eletrônico e utilizando um código de acesso – seja efetivamente o destinatário da comunicação processual e dela tenha ciência no momento em que realizar a consulta eletrônica de seu teor (art. 5º, §1º). Cria-se, por outro lado, a obrigação de acesso ao sistema e consulta aos atos de comunicação processual, presumindo o legislador que, após o transcurso de determinado prazo os atos serão reputados como efetivamente realizados, independentemente de acesso pelo representante judicial (art. 5º, §3º).

Constata-se que, com o advento da Lei n. 11.419/2006, foi dado passo importante para o atendimento à garantia da razoável duração do processo. Nesse aspecto, a criação de sistema informatizado para o trâmite de processos judiciais no formato eletrônico trouxe inúmeras vantagens, dentre as quais se destaca a supressão ou automatização de atos cartorários de somenos importância (v.g. numeração de páginas dos autos, aposição de carimbos, juntada de petições, confecções de certidões de decurso de prazo e elaboração de despachos de mero expediente) e o efetivo control


SINPROFAZ participa de nova rodada de negociações no MPOG

A reunião ocorreu nesta quarta, 11/03. Dirigentes do Forvm Nacional, representantes da Unafe, Anauni, e Anadef foram recebidos por Sérgio Mendonça e Marcela Tapajós.


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Os princípios de interpretação constitucional e sua utilização pelo Supremo Tribunal Federal


A partir da Constituição de 1988, promulgada sob o pós-positivismo, as normas constitucionais adquiriram status de normas jurídicas. Todos os ramos do Direito tiveram seus contornos revistos para adequá-los aos princípios e às normas constitucionais.


O momento atual do Direito, denominado de pós-positivismo, é caracterizado pela a valorização dos princípios, com sua incorporação, explícita ou implícita, pelas Constituições, bem como o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na Lei Maior. O Direito se reaproxima da ética e é consagrada a supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, ganha destaque a análise dos novos métodos utilizados para a interpretação das normas constitucionais, que, como veremos a seguir, tiveram como fundamento a idéia da efetividade da Constituição.

No entanto, é importante esclarecer que a nova interpretação constitucional não representa o afastamento dos métodos tradicionais de hermenêutica na busca do sentido e do alcance da norma jurídica visando sua aplicação aos casos concretos. Ela, na verdade, vem para complementá-los. Por isso, dedicamos a primeira parte do nosso trabalho à questão da interpretação dos textos normativos, abordando brevemente os métodos tradicionais de hermenêutica, para em seguida estudar os princípios de interpretação constitucional.

Para que o objeto do nosso trabalho não ficasse restrito à teoria, foram colacionadas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais foram utilizados os princípios de interpretação constitucional, demonstrando a importância do estudo dessa matéria no cenário jurídico atual.


1. A interpretação dos textos normativos

Todos os dispositivos legais são objeto de interpretação pelos operadores do Direito.

A interpretação transforma textos normativos em normas jurídicas1, viabilizando sua aplicação para as situações que se apresentarem em concreto.

Eros Roberto Grau, ao se debruçar sobre o tema da interpretação e aplicação do Direito, faz a seguinte consideração:

“A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em normas.

Daí, como as normas resultam da interpretação, o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, um conjunto de normas.

O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky].

O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem [Ruiz e Cárcova] “2.

Celso Ribeiro Bastos afirma que “a interpretação faz o caminho inverso daquele feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só é factível procurando atribuir o exato significado à norma”3.

Ainda com relação à interpretação e aplicação do Direito, é importante trazer à lume o pensamento de Carlos Maximiliano:

“A Aplicação não prescinde da Hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose. Em erro também incorre quem confunde as duas disciplinas: uma, a Hermenêutica, tem um só objeto – a lei; a outra, dois – o Direito, no sentido objetivo, e o fato. Aquela é um meio para atingir a esta; é um momento da atividade do aplicador do Direito. Pode a última ser o estudo preferido do teórico; a primeira, a Aplicação, revela o adaptador da doutrina à prática, da ciência à realidade: o verdadeiro jurisconsulto”4.

Paulo de Barros Carvalho consigna que “a aplicação do direito pressupõe a interpretação, e esse vocábulo há de ser entendido como a atividade intelectual que se desenvolve à luz de princípios hermenêuticos, com a finalidade de construir o conteúdo, o sentido e o alcance das regras jurídicas”5.

Importante grifar que mesmo o mais claro dos dispositivos legais deve ser objeto de interpretação, como ressalta Carlos Maximiliano:

“(…) Os domínios da Hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”6. (grifado no original)

Nesse sentido é o ensinamento de Celso Ribeiro Bastos, ao se opor ao brocardo jurídico in claris cessat interpretatio:

“(…) Todas as normas necessitam de interpretação, mesmo porque para afirmar que a interpretação cessa diante da clareza do dispositivo, é dizer, para concluir-se que esse dispositivo é claro, necessita-se da interpretação. (…)”7.

A finalidade mais relevante da produção da norma jurídica, resultante da interpretação do texto legal, é a sua aplicação num caso concreto e isso ocorrerá mediante uma decisão judicial ou administrativa, denominada por Eros Roberto Grau de “norma de decisão”8.


Cabe deixar consignado que não é somente na atividade jurisdicional que as normas de decisão anteriormente referidas são produzidas, sendo recorrentes também em âmbito administrativo. Por outro lado, deve-se atentar para o fato de que as normas de decisão produzidas na instância administrativa podem ser questionadas na via judicial, o que ensejará a construção de uma nova norma de decisão, agora pelo Poder Judiciário.

A produção da norma de decisão é o ponto máximo do processo de interpretação, momento em que ocorre a concretização do Direito com a solução do conflito apresentado numa situação concreta. Todos os operadores do Direito estão aptos a transformar um enunciado legal numa norma jurídica, utilizando-se, para tanto, das regras de hermenêutica, mas poucos possuem o poder-dever de produzir a norma de decisão.

“(…) Este, que está autorizado a ir além da interpretação tão-somente como produção das normas jurídicas, para dela extrair normas de decisão, é aquele que Kelsen chama de ‘intérprete autêntico’: o juiz”9.

A respeito dessa questão, observa André Ramos Tavares:

“A aplicação é o ‘momento’ em que se atribui, ao problema concreto, uma decisão oficial dotada de normatividade. Nesse sentido, a aplicação, como aqui trabalhada, há de ser apenas aquela realizada pelos órgãos estatais competentes para construir as normas individuais, normas de decisão. E, ademais, a aplicação depende, como mencionado, de um sujeito juridicamente autorizado/reconhecido (em nome do Legislativo, Executivo ou Judiciário) para adotar uma decisão com caráter preceptivo, que coloque o texto normativo e sua interpretação em contato com o problema que demanda uma solução juridicamente adequada”10. (grifado no original)

Cabe ressaltar que a interpretação realizada por aqueles a quem não foi atribuída a função de produzir uma norma de decisão, e, portanto, não tem como objetivo a solução de um conflito concreto, se funda na introdução hipotética de um conflito, baseado nas experiências do cotidiano forense. Essa forma de interpretação, denominada de discurso jurídico, não vincula terceiros, enquanto a norma de decisão produzida pelo juiz ou pela autoridade administrativa, em razão de sua natureza impositiva, é designada de discurso de Direito11.

A hermenêutica jurídica propõe métodos de interpretação que devem ser aplicados conjuntamente. São eles: o literal ou gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico.

O método literal ou gramatical recomenda que o intérprete analise a construção gramatical contida no preceito a partir da significação de cada palavra do texto, retirando daí o seu significado. De acordo com o método histórico, devem ser investigadas as origens da produção da norma, a realidade subjetiva e objetiva que se fazia presente naquele momento, os debates que a antecederam, alcançando, assim, a vontade do legislador. A orientação do método sistemático é no sentido de buscar a significação da norma dentro do ordenamento jurídico, utilizando-se, nesse momento, das regras de subordinação e de coordenação que regem a coexistência das regras, bem como comparando o dispositivo a ser interpretado com outros do mesmo repositório ou contidos em leis diversas, referentes ao mesmo objeto12. Por fim, o método teleológico privilegia a análise da razão de ser dessa norma, seu espírito e sua finalidade, o valor ou bem jurídico que o preceito busca proteger13.

Ainda no tocante ao método teleológico, cabe lembrar o teor do art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (denominada anteriormente de Lei de Introdução ao Código Civil), in verbis: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Carlos Maximiliano defende que os fatores sociais também devem influir no trabalho do intérprete:

“A interpretação sociológica atende cada vez mais às conseqüências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto; quanto possível busca uma solução benéfica e compatível com o bem geral e as idéias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana (…)”14. (grifado no original)

Como vimos, para a interpretação do Direito considera-se insuficiente a mera leitura do texto legal, que constitui apenas o momento inicial deste processo intelectivo. Deve haver sua contextualização com a totalidade do ordenamento jurídico, além do conhecimento a respeito de sua finalidade. Nesse mister, ganha cada vez mais importância a questão dos princípios, tanto expressos como implícitos, que conferem harmonia ao nosso sistema jurídico.

“Princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, ou, se se preferir, o verdadeiro alicerce deste. Trata-se de disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência. O princípio, ao definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, acaba por lhe conferir a tônica e lhe dar sentido harmônico”15.

De acordo com a definição de José Afonso da Silva, “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”16.

Portanto, a interpretação dos textos legais deve sempre levar em consideração os princípios. Segundo afirma Eros Roberto Grau, “a interpretação do direito é dominada pela força dos princípios”17:

“Os princípios atuam como mecanismo de controle da produção de normas pelo intérprete, ainda que o próprio intérprete produza as normas-princípio. Aqui não há, contudo, contradição, na medida que os princípios atuam como a medida do controle externo da produção de normas. Além disso, a escolha do princípio há de ser feita, pelo intérprete, sempre diante de um caso concreto, a partir da ponderação do conteúdo do próprio princípio; (…)”18. (grifado no original)

Nesse mesmo sentido é o ensinamento de Rizzatto Nunes:

“Nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas”19.


Prossegue o referido autor:

“Percebe-se, assim, que os princípios exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, uma vez que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral. Por terem essa qualidade, os princípios dão coesão ao sistema jurídico, exercendo excepcional valor aglutinante”20.

A partir do exercício de interpretação e aplicação, o Direito é concretizado, sendo inserido na realidade social. Ao interpretar um enunciado, o operador do Direito escolhe, dentre as várias possibilidades de interpretações, aquela que ele reputa mais adequada, mais justa diante do caso concreto. Em face dessa realidade, Eros Roberto Grau consigna que a interpretação/aplicação do Direito não é uma ciência, mas sim o exercício da prudência.

“Cogitam os que não são intérpretes autênticos, quando do direito tratam, da juris prudentia, e não de uma juris scientia; o intérprete autêntico, ao produzir normas jurídicas, pratica a juris prudentia, e não juris scientia.

(…)

Daí por que afirmo que a problematização dos textos normativos não se dá no campo da ciência: ela se opera no âmbito da prudência, expondo o intérprete autêntico ao desafio desta, e não daquela. São distintos, um e outro: na ciência, o desafio de, no seu campo, existirem questões para as quais ela (a ciência) ainda não é capaz de conferir respostas; na prudência, não o desafio da ausência de respostas, mas da existência de múltiplas soluções corretas para uma mesma questão [Adomeit]”21. (grifado no original)

O juiz, ao produzir a norma de decisão, completa a criação do legislador. Portanto, não é correto afirmar que o juiz cria o Direito. Na verdade, o juiz concretiza o Direito ao final de um processo intelectivo consistente em compreender o enunciado legislativo e os fatos trazidos à sua apreciação, produzir as normas possíveis para a solução do caso e escolher aquela que no seu entender é a mais adequada para aquela situação.

“O texto, preceito, enunciado normativo é alográfico. Não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A ‘completude’ do texto somente é realizada quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete”22. (grifado no original)

Traçadas as primeiras linhas a respeito da interpretação dos textos normativos que, repetimos, tem como finalidade precípua a aplicação do direito ao caso concreto, analisaremos no próximo item as técnicas específicas empregadas para a interpretação dos dispositivos constitucionais.


2. Os princípios de interpretação constitucional

A Constituição Federal de 1988 consolidou os ideais do pós-positivismo delineados no início do nosso trabalho. São eles: a) a valorização dos princípios, com sua incorporação, explícita ou implícita, pelo texto constitucional; b) o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na Lei Maior; c) a reaproximação do Direito e da ética e d) a consagração da supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana.

Importante registrar que, a partir de sua entrada em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, concretizou-se o entendimento de que a interpretação de qualquer dispositivo legal deveria partir da Constituição Federal e essa concepção causou impactos em todos os ramos do Direito, que passaram a ter seus contornos revistos para adequá-los aos ditames trazidos pela Lei Maior.

Adentrando ao objeto do nosso estudo, que é a interpretação dos enunciados contidos na Constituição Federal, cabe trazer à lume o ensinamento de José Afonso da Silva:

“A interpretação é um modo de conhecimento de objetos culturais. Quando esse objeto se compõe de palavras, tem-se a interpretação de um texto que é, ao mesmo tempo, um objeto de significações e um objeto de comunicação, cujo sentido se capta mediante análise interna e análise externa. Ou seja, o sentido do texto se reconstrói de duas perspectivas distintas e complementares: de dentro para fora, a partir da análise interna das muitas pistas neles espalhadas; de fora para dentro, por meio das relações contextuais. A Constituição é um texto, um texto normativo, um texto jurídico, por isso a sua interpretação, ou seja, a captação de seu sentido, a descoberta das normas que esse texto veicula, também se submete às relações de contexto. Ela é um texto que está no mundo, independente daqueles que a captam. A percepção que cada um tem dela é considerada separadamente dela própria. De igual modo, as intenções de seu autor – o constituinte – são consideradas separadas dela, porque ela é, em si mesma, um ser, um ser com seus próprios poderes e a sua dinâmica, um ser autônomo. A tarefa do intérprete é como a de alguém que penetra nesse ser autônomo, por meios da análise textual. E já se vê que a interpretação tem um aspecto objetivo, que se refere ao objeto a ser interpretado, e um aspecto subjetivo, que se refere às qualificações e ideologia do intérprete, porque este não é neutro no processo interpretativo, porque nele participa com a carga de experiência, de conhecimentos, cultura e ideologia que informam sua formação jurídica”23. (grifado no original)

Apesar de sua posição superior na estrutura do ordenamento jurídico, constituindo fundamento de validade para as regras hierarquicamente inferiores, a Constituição é uma lei e, portanto, seu texto também deve ser interpretado, utilizando-se para tanto das mesmas técnicas aplicadas às normas jurídicas em geral.

Luís Roberto Barroso destaca que as regras contidas na Constituição Federal não passam apenas pelo processo de interpretação, mas também pelo processo de construção:

“(…) Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou esquema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a alcançar situações que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas”24.


Com relação à linguagem utilizada no texto constitucional, afirma o referido autor:

“Já se deixou consignado, anteriormente, que uma das singularidades das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitucional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de interesse local, dignidade da pessoa humana). É justamente dessa abertura de linguagem que resultam construções como: (a) legitimados os fins, também estarão os meios necessários para atingi-los; (b) se a letra da norma assegura o direito a mais, está implícito o direito a menos; (c) o devido processo legal abriga a idéia de procedimento adequado e de razoabilidade substantiva (…)”25. (grifado no original)

Ademais, em razão das especificidades inerentes às regras constitucionais, dentre as quais citamos a superioridade hierárquica, a linguagem diferenciada e o seu caráter político, foram desenvolvidos princípios próprios de interpretação.

Importante grifar que a expressão “princípios” acima utilizada deve ser compreendida como premissas metodológicas que estão à disposição do intérprete na busca da adequada solução para uma questão jurídica. Além disso, esses princípios devem ser utilizados conjuntamente, da mesma forma como ocorre com os métodos interpretativos tradicionais.

Com relação aos princípios de interpretação constitucional, assinala Inocêncio Mártires Coelho:

“Quanto à sua função dogmática, deve-se dizer que embora se apresentem como enunciados lógicos e, nessa condição, pareçam anteriores aos problemas hermenêuticos que, afinal, ajudam a resolver, em verdade e quase sempre os princípios da interpretação funcionam como fórmulas persuasivas, das quais se valem os aplicadores do direito para justificar pré-decisões que, mesmo necessárias ou convenientes, sem o apoio desses cânones interpretativos se mostrariam arbitrárias ou desprovidas de fundamento.

Não por acaso já se proclamou que essa disponibilidade de métodos e princípios potencializa a liberdade do juiz, a ponto de lhe permitir antecipar as decisões – à luz da sua pré-compreensão sobre o que é justo em cada situação concreta – e só depois buscar os fundamentos de que precisa para dar sustentação discursiva a essas soluções puramente intuitivas, num procedimento em que as conclusões escolhem as premissas e os resultados selecionam os meios”26. (grifado no original)

A seguir, estudaremos os princípios de interpretação constitucional reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência.

2.1. Princípio da supremacia da Constituição

Esse princípio consagra a prevalência da norma constitucional, independentemente de seu conteúdo, sobre todas as outras regras existentes no sistema jurídico.

Por força da posição hierárquica superior ocupada pela Constituição, as leis, os atos normativos e os atos jurídicos em geral somente serão válidos se forem compatíveis com as normas constitucionais[27]. Ademais, é importante lembrar que a Constituição, além de regular a forma de produção das demais regras jurídicas, também delimita o conteúdo dessas regras.

Ainda em razão desse princípio, impõe-se que a interpretação de todo o ordenamento jurídico deve ser feita a partir da Constituição, como afirma Nelson Nery Júnior:

“O intérprete deve buscar a aplicação do direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema”28.

Cabe destacar que é o princípio da supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico que fundamenta o controle de constitucionalidade no plano concreto (controle difuso) e abstrato (controle concentrado).

“(…) É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma constitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta)”29. (grifado no original)

Impende, por fim, transcrever trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário 107869/SP, no qual foi mencionado expressamente o princípio ora estudado:

“O princípio da supremacia da ordem constitucional – consectário da rigidez normativa que ostentam os preceitos de nossa Constituição – impõe ao Poder Judiciário, qualquer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis ou atos estatais reputados em conflito com a Carta Federal.

A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado. Dentro dessa concepção, reveste-se de nulidade o ato emanado do Poder Público que vulnerar os preceitos inscritos na Constituição. Uma lei inconstitucional é uma lei nula, desprovida, consequentemente, no plano jurídico, de qualquer conteúdo eficacial.

(…)

A convicção dos juízes e tribunais, de que uma lei ou ato do Poder Público é inconstitucional, só pode levá-los, no plano decisório, a uma única formulação: o reconhecimento de sua invalidez e a recusa de sua aplicabilidade”30.


2.2. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público

De acordo com esse princípio, as leis e os atos normativos em geral são reputados constitucionais, somente perdendo sua validade e eficácia mediante a declaração judicial em contrário obtida no controle concentrado de constitucionalidade ou por força de Resolução do Senado Federal, na hipótese de a inconstitucionalidade ter sido reconhecida incidentalmente por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Importante salientar que um ato normativo apenas poderá ser declarado inconstitucional se sua desconformidade com a Constituição for patente e se constatar que não há nenhuma forma de interpretá-lo de maneira a torná-lo compatível com a Lei Maior.

No intuito de demonstrar a aplicação deste princípio pelo Supremo Tribunal Federal, colacionamos o acórdão proferido no julgamento do Inquérito 1864/PI:

“INQUÉRITO. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PARLAMENTAR FEDERAL. PAGAMENTO INTEGRAL DO DÉBITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. REMESSA DOS AUTOS AO JUÍZO FEDERAL COMPETENTE, PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO EM RELAÇÃO AOS CO-RÉUS. 1. O art. 9º da Lei n° 10.684/03 goza de presunção de constitucionalidade, não obstante esteja em tramitação nesta Corte ação direta de inconstitucionalidade, sem pedido de liminar. 2.Comprovado nos autos, através de ofício da Procuradoria Federal Especializada, o pagamento integral do débito imputado ao parlamentar federal indiciado, é imperativo o reconhecimento da extinção da pretensão punitiva estatal. 3. Denúncia não recebida em relação ao parlamentar, por estar extinta a punibilidade dos fatos a ele imputados, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei n° 10.684/03. 4. Os autos devem ser remetidos ao juízo federal competente da Seção Judiciária do Piauí, para regular prosseguimento em relação aos co-réus”31.

Segundo Luís Roberto Barroso, “o princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, notadamente das leis, é uma decorrência do princípio geral da separação dos Poderes e funciona como fator de autolimitação da atividade do Judiciário, que, em reverência à atuação dos demais Poderes, somente deve invalidar-lhes os atos diante de casos de inconstitucionalidade flagrante e incontestável”32.

Esse princípio, portanto, cria uma limitação para o Poder Judiciário no controle de constitucionalidade, prestigiando a independência e harmonia dos Poderes, pois confere maior efetividade aos atos normativos produzidos pelos Poderes Executivo e Legislativo.

2.3. Princípio da interpretação conforme a Constituição

De início, cabe frisar a dupla natureza da interpretação conforme a Constituição: a de princípio de interpretação e a de técnica empregada no controle de constitucionalidade[33]. Registre-se que, quando utilizada no controle de constitucionalidade, essa técnica é denominada de “declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”.

Como método de interpretação, esse princípio sugere que, diante de mais de uma interpretação possível da norma infraconstitucional, o intérprete escolha aquela que esteja em conformidade com a Constituição, “ainda que não seja a que mais obviamente decorra do seu texto”34.

Inocêncio Mártires Coelho ressalta que esse princípio concretiza uma regra de prudência política, que também pode ser entendida como política constitucional. No entanto, faz o autor o seguinte alerta:

“Essa prudência, por outro lado, não pode ser excessiva, a ponto de induzir o intérprete a salvar a lei à custa da Constituição, nem tampouco contrariar o sentido inequívoco da lei, para constitucionalizá-la de qualquer maneira. No primeiro caso porque isso implicaria interpretar a Constituição conforme a lei, e, assim, subverter a hierarquia das normas; no segundo, porque toda a conformação exagerada implica, no fundo, usurpar tarefas legislativas e transformar o intérprete em legislador, na exata medida em que a lei resultante dessa interpretação conformadora, em sua letra como no seu espírito, seria substancialmente distinta daquela resultante do trabalho legislativo.

Afinal de contas, em sede de controle de constitucionalidade, como todos sabem, os tribunais devem comportar-se como legisladores negativos, anulando as leis contrárias à Constituição, quando for o caso, e jamais como produtores de normas, ainda que por via interpretativa”35. (grifado no original)

No julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 581/DF, que teve por objeto a parte final do parágrafo 1º do inciso I do art. 3º da Lei nº 8.215/1991, que tratava da promoção por merecimento dos Juízes do Trabalho, o Supremo Tribunal Federal utilizou esse princípio para julgar parcialmente procedente a ação, declarando a constitucionalidade deste dispositivo nos termos da interpretação conferida pela Corte Suprema, afastando, por força da inconstitucionalidade, qualquer outra exegese que a contrariasse.

Neste julgamento, o Ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto, faz a seguinte consideração a respeito deste princípio:

“(…) o princípio da interpretação conforme a Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a partir de sua concreta incidência, a integridade do ato do Poder Público no sistema do direito positivo. Essa função conservadora da norma permite que se realize, sem redução do texto, o controle de sua constitucionalidade (…)”36.

Esse princípio reforça o conteúdo dos outros dois princípios de interpretação anteriormente mencionados, quais sejam, o da supremacia da Constituição e o da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público.

2.4. Princípio da unidade da Constituição

A orientação contida nesse princípio é no sentido da inexistência de hierarquia nem de contradição entre as normas previstas na Constituição. Determina, ainda, que a Constituição precisa ser compreendida em sua unidade, ou seja, o intérprete não pode obter o significado de um enunciado contido na Constituição de forma isolada, mas contextualizada dentro do ordenamento constitucional.


Ao se dedicar ao estudo desse princípio, Luís Roberto Barroso tece o seguinte comentário:

“A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga ‘o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador’.

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas (…)”37. (grifado no original)

Transcreve-se abaixo trecho do acórdão proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2650/DF, no qual há expressa menção ao princípio ora estudado:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 7º da Lei 9.709/98. Alegada violação do art. 18, § 3º, da Constituição. Desmembramento de estado-membro e município. Plebiscito. Âmbito de consulta. Interpretação da expressão “população diretamente interessada”. População da área desmembranda e da área remanescente. Alteração da Emenda Constitucional nº 15/96: esclarecimento do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios. Interpretação sistemática. Aplicação de requisitos análogos para o desmembramento de estados. Ausência de violação dos princípios da soberania popular e da cidadania. Constitucionalidade do dispositivo legal. Improcedência do pedido. 1. Após a alteração promovida pela EC 15/96, a Constituição explicitou o alcance do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios e, portanto, o significado da expressão “populações diretamente interessadas”, contida na redação originária do § 4º do art. 18 da Constituição, no sentido de ser necessária a consulta a toda a população afetada pela modificação territorial, o que, no caso de desmembramento, deve envolver tanto a população do território a ser desmembrado, quanto a do território remanescente. Esse sempre foi o real sentido da exigência constitucional – a nova redação conferida pela emenda, do mesmo modo que o art. 7º da Lei 9.709/98, apenas tornou explícito um conteúdo já presente na norma originária. 2. A utilização de termos distintos para as hipóteses de desmembramento de estados-membros e de municípios não pode resultar na conclusão de que cada um teria um significado diverso, sob pena de se admitir maior facilidade para o desmembramento de um estado do que para o desmembramento de um município. Esse problema hermenêutico deve ser evitado por intermédio de interpretação que dê a mesma solução para ambos os casos, sob pena de, caso contrário, se ferir, inclusive, a isonomia entre os entes da federação. O presente caso exige, para além de uma interpretação gramatical, uma interpretação sistemática da Constituição, tal que se leve em conta a sua integralidade e a sua harmonia, sempre em busca da máxima da unidade constitucional, de modo que a interpretação das normas constitucionais seja realizada de maneira a evitar contradições entre elas. Esse objetivo será alcançado mediante interpretação que extraia do termo “população diretamente interessada” o significado de que, para a hipótese de desmembramento, deve ser consultada, mediante plebiscito, toda a população do estado-membro ou do município, e não apenas a população da área a ser desmembrada (…)”38.

(grifos nossos)

Por força desse princípio interpretativo, afirma-se em casos de colisão de preceitos constitucionais que há conflito “aparente” de normas.

Esse conflito “aparente” de normas constitucionais foi apreciado no julgamento dos agravos regimentais interpostos por associações e sindicatos representativos de servidores municipais em face da suspensão de segurança concedida ao Município de São Paulo, suspendendo a eficácia das liminares proferidas pelo Tribunal de Justiça, que impediam a divulgação da remuneração bruta dos servidores no sítio eletrônico denominado “De Olho nas Contas”. Neste caso, o princípio da publicidade dos atos administrativos prevaleceu sobre o direito á intimidade, vida privada e segurança dos servidores municipais:

“SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos”39. (grifos nossos)

Para que seja mantida a unidade da Constituição, o intérprete poderá utilizar outros princípios instrumentais, como, por exemplo, o da concordância prática ou da harmonização, o da justeza ou correção funcional, e o da eficácia integradora, que abordaremos a seguir.


2.5. Princípio da concordância prática ou da harmonização

Segundo esse princípio, na hipótese de conflito entre bens e valores constitucionalmente protegidos, o intérprete deve preferir a solução que favoreça a realização de todos eles, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros.

A denominação “concordância prática” decorre da compreensão de que apenas é possível realizar essa coordenação dos bens e valores envolvidos num conflito no momento da aplicação do direito ao caso concreto. Neste diapasão, é possível concluir que a prevalência de um bem ou um valor será decidida diante de cada situação submetida ao Poder Judiciário, do que se depreende que cada caso poderá ser resolvido de forma diversa.

De acordo com o ensinamento de Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, essa técnica de ponderação de interesses, bens, valores e normas ocorre em três etapas: a) na primeira, o intérprete encontrará as normas aptas a solucionar o caso, identificando os possíveis conflitos entre elas; b) a segunda etapa é voltada para o exame dos fatos concretos e sua relação com as normas selecionadas na primeira etapa; e c) na terceira e última etapa há a concretização da ponderação, momento no qual serão decididos os pesos que devem ser conferidos aos elementos em conflito e, consequentemente, quais normas devem preponderar neste caso. Por fim, cabe definir a intensidade da prevalência das normas aplicadas sobre as demais, caso seja possível graduar essa intensidade40.

Eros Roberto Grau faz as seguintes considerações com relação aos eventuais conflitos que podem ocorrer entre princípios constitucionais, descrevendo pormenorizadamente os efeitos decorrentes do exercício da ponderação:

“Em conseqüência, quando em confronto dois princípios, um prevalecendo sobre o outro, as regras que dão concreção ao que foi desprezado são afastadas: não se dá a sua aplicação a determinada hipótese, ainda que permaneçam integradas, validamente (isto é, dotadas de validade), no ordenamento jurídico. As regras que dão concreção ao princípio desprezado, embora permaneçam plenas de validade, perdem eficácia – isto é, efetividade – em relação à situação diante da qual o conflito entre princípios manifestou-se.

E o que torna tudo mais complexo, portanto mais belo: inexiste no sistema qualquer regra ou princípio a orientar o intérprete a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles estabelecido, deve ser privilegiado, qual deve ser desprezado.

(…)

O momento da atribuição de peso maior a um determinado princípio é extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de uma das soluções corretas, no elenco das possíveis soluções corretas a que a interpretação jurídica pode conduzir – pondera-se o direito em seu todo, desde o texto da Constituição aos mais singelos atos normativos, como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato – as circunstâncias peculiares do problema considerado – e jurídicas – lingüísticas, sistêmicas e funcionais -, são então descortinadas. E, paradoxalmente, é precisamente o fato de o intérprete estar vinculado, retido, pelos princípios que torna mais criativa a prudência que pratica”41.

O método interpretativo ora estudado tem sido muito utilizado pelo Poder Judiciário. Entre os temas que demandam a ponderação de valores estão, por exemplo, a liberdade de expressão e o direito à informação colidindo com o direito à honra, à imagem e à inviolabilidade da vida privada; a questão da relativização da coisa julgada, que gera o conflito entre o princípio da segurança jurídica e valores relevantes como a justiça, os direitos da personalidade, etc.

Visando elucidar o que foi dito acima, colacionamos o acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 363889/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos”42.

Impende transcrever a crítica formulada por Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos a respeito da utilização deste princípio de interpretação:

“(…) No estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial. Tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer. A existência de ponderação não é um convite para o exercício indiscriminado de ativismo judicial. O controle de legitimidade das decisões obtidas mediante ponderação tem sido feito através do exame da argumentação desenvolvida. Seu objetivo, de forma bastante simples, é verificar a correção dos argumentos apresentados em suporte de uma determinada conclusão ou ao menos a racionalidade do raciocínio desenvolvido em cada caso, especialmente quando se trate do emprego da ponderação”43. (grifado no original)

Dessa forma, quando a situação concreta exigir a utilização da técnica da ponderação, para verificar se a solução escolhida dentre as várias interpretações possíveis é, de fato, a mais adequada, torna-se imprescindível o exame da argumentação adotada.


A argumentação adquire relevância na interpretação constitucional em razão do caráter aberto de muitas normas, o que implica numa margem maior de subjetividade por parte do intérprete.

Cabe destacar, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, em razão de sua magnitude dentro do direito constitucional brasileiro, sempre prevalecerá sobre todo o ordenamento jurídico, não se submetendo à técnica de ponderação.

Trazemos, por fim, o pensamento de Rizzatto Nunes a respeito da aplicação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana:

“Está mais do que na hora de o operador do Direito passar a gerir sua atuação social pautado no princípio fundamental estampado no texto magno. Aliás, é um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o princípio da dignidade da pessoa humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas”44. (grifado no original)

2.6. Princípio da justeza ou da correção funcional

Por força desse princípio, o intérprete dos enunciados constitucionais não pode aceitar significados que subvertam ou perturbem o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo Poder Constituinte originário. Neste contexto, podemos afirmar que uma das premissas do processo de interpretação das normas constitucionais é o princípio da separação de poderes, consagrado no art. 2º da Lei Maior.

No julgamento do RE 358315/MG, cujo acórdão transcrevemos abaixo, é possível verificar a aplicação desse princípio:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. ANÁLISE SOBRE O FURTO E O ROUBO. CONCURSO DE PESSOAS. PROPORCIONALIDADE ENTRE AS RESPECTIVAS PENAS. Sob o pretexto de ofensa ao artigo 5º, caput, da Constituição Federal (princípios da igualdade e da proporcionalidade), não pode o Judiciário exercer juízo de valor sobre o quantum da sanção penal estipulada no preceito secundário, sob pena de usurpação da atividade legiferante e, por via de conseqüência, incorrer em violação ao princípio da separação dos poderes. Ao Poder Legislativo cabe a adoção de política criminal, em que se estabelece a quantidade de pena em abstrato que recairá sobre o transgressor de norma penal. Recurso Extraordinário conhecido e desprovido”45.

A preocupação com a preservação do princípio da separação de poderes também é retratada no trecho do acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 388312/MG:

“(…) Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário autorizar a correção monetária da tabela progressiva do imposto de renda na ausência de previsão legal nesse sentido. Entendimento cujo fundamento é o uso regular do poder estatal de organizar a vida econômica e financeira do país no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo (…)”46.

2.7. Princípio da eficácia integradora

De acordo com a orientação contida nesse princípio, na solução de problemas jurídicos-constitucionais, deve o intérprete preferir os critérios que favoreçam a integração política e social.

Ao analisar a premissa interpretativa ora estudada, Inocêncio Mártires Coelho faz a seguinte ressalva:

“Em que pese a indispensabilidade dessa integração para a normalidade constitucional, nem por isso é dado aos aplicadores da constituição subverter-lhe a letra e o espírito para alcançar esse objetivo a qualquer custo, até porque, à partida, ela se mostra submissa a outros valores, desde logo reputados fundamentais – como a dignidade humana, a democracia e o pluralismo, por exemplo, – que precedem a sua elaboração, nela se incorporam e, afinal, seguem dirigindo a sua interpretação”47.

5.2.8. Princípio da força normativa da Constituição

A recomendação desse cânone interpretativo é que seja escolhida, entre as interpretações possíveis, aquela que confira maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.

As normas constitucionais, da mesma forma que as normas jurídicas em geral, possuem o atributo da imperatividade e, portanto, devem ser observadas, sob pena de ativação de mecanismos próprios para seu cumprimento forçado. Cabe principalmente ao Poder Judiciário assumir essa função de concretizador das normas constitucionais, conferindo a essas normas a máxima efetividade que delas pode ser extraída.


Os trechos dos acórdãos abaixo colacionados são bastante elucidativos deste princípio interpretativo:

“ (…) A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. – O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional – transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. – A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. – A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes (…)”48. (grifos nossos)

“(…) 1. O artigo 196 da CF impõe o dever estatal de implementação das políticas públicas, no sentido de conferir efetividade ao acesso da população à redução dos riscos de doenças e às medidas necessárias para proteção e recuperação dos cidadãos. 2. O Estado deve criar meios para prover serviços médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, além da implementação de políticas públicas preventivas, mercê de os entes federativos garantirem recursos em seus orçamentos para implementação das mesmas. (arts. 23, II, e 198, § 1º, da CF). 3. O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional. (…)”49.

Importante registrar por fim, que o Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que em casos excepcionais o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública implemente políticas públicas e direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes50.

2.9. Princípio da máxima efetividade ou da eficiência

Este princípio está intimamente ligado ao princípio da força normativa da Constituição, acima descrito, e dispõe que deve ser atribuído a um enunciado contido na Constituição o significado que lhe conceda maior efetividade.

“(…) Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador”51. (grifado no original)

Celso Ribeiro Bastos define esse cânone interpretativo da seguinte forma:

“O postulado é válido na medida em que por meio dele se entenda que não se pode empobrecer a Constituição. O que efetivamente significa esse axioma é o banimento da idéia de que um artigo ou parte dele possa ser considerado sem efeito algum, o que equivaleria a desconsiderá-lo mesmo. Na verdade, neste ponto, acaba por ser um reforço do postulado da unidade da Constituição. Não se pode esvaziar por completo o conteúdo de um artigo, qualquer que seja, pois isto representaria uma forma de violação da Constituição”52.


Transcrevemos a seguir algumas decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais restaram reveladas a preocupação em buscar a máxima efetividade de um princípio ou de uma regra constitucional:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA, INSTITUÍDA PELO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. FIGURA DO PEQUENO TRAFICANTE. PROJEÇÃO DA GARANTIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). CONFLITO INTERTEMPORAL DE LEIS PENAIS. APLICAÇÃO AOS CONDENADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI 6.368/1976. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA (INCISO XL DO ART. 5º DA CARTA MAGNA). MÁXIMA EFICÁCIA DA CONSTITUIÇÃO. RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO-POSITIVA. INEDITISMO DA MINORANTE. AUSÊNCIA DE CONTRAPOSIÇÃO À NORMAÇÃO ANTERIOR. COMBINAÇÃO DE LEIS. INOCORRÊNCIA. EMPATE NA VOTAÇÃO. DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RECORRIDO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do art. 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente “generosa”. 2. Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu art. 5º, a Constituição não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal. Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma. (…)”53.

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. IPTU. ENTIDADE ASSISTENCIAL. IMÓVEL VAGO. IRRELEVÂNCIA. JURISPRUDÊNCIA DO STF. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO DESPROVIDO. 1. A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, da CF alcança todos os bens das entidades assistenciais de que cuida o referido dispositivo constitucional. 2. Deveras, o acórdão recorrido decidiu em conformidade com o entendimento firmado por esta Suprema Corte, no sentido de se conferir a máxima efetividade ao art. 150, VI, “b” e “c”, da CF, revogando a concessão da imunidade tributária ali prevista somente quando há provas de que a utilização dos bens imóveis abrangidos pela imunidade tributária são estranhas àquelas consideradas essenciais para as suas finalidades. Precedentes: RE 325.822, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 14.05.2004 e AI 447.855, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, DJ de 6.10.06. (…)”54.

“Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória”55.

2.10. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade

O princípio em questão não está direcionado apenas à interpretação das normas constitucionais, sendo, na verdade, um princípio geral de Direito, precedendo e condicionando a positivação jurídica. Sua essência está relacionada com a ideia de equidade, prudência, proibição de excessos e, principalmente, de justiça, razão pela qual não é fácil conceituá-lo, sendo mais fácil constatar que esse princípio está sendo atendido através dos sentidos e da intuição.

A expressão “razoabilidade” está ligada à razão. É a adequação entre motivos, os fins e os meios dos atos realizados pelo Poder Público que também devem estar de acordo com os valores fundamentais consagrados na Constituição.

Já a proporcionalidade consiste na ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido. Sua concepção abrange também a adoção da medida adequada para o fim pretendido, analisando-se, para tanto, se não há outra medida menos gravosa para o atingimento dessa finalidade.

Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos assim descrevem esse princípio:

“Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o


SINPROFAZ oficia OAB sobre quantidade de processos

No documento protocolado hoje, 5 de março, presidente do Sindicato denuncia excessos no número de processos por advogado público e requer providências do Conselho Federal.


SINPROFAZ cobra melhora no plano de saúde dos advogados públicos

Em ofício enviado ao advogado-geral da União, o presidente do Fórum e do SINPROFAZ, Allan Titonelli, pede que o suporte prestado pela operadora Amil seja compatível com o porte do contrato e da entidade.


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Ofícios encaminhados a órgãos de fiscalização revelam a realidade de sobrecarga de trabalho, infra-estrutura precária e carência de recursos humanos e materiais nas unidades da PGFN.


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Por Jomar Martins Vinte e três após a promulgação da Constituição Federal, que plasmou a garantia dos direitos fundamentais do brasileiro, o desafio de levar justiça aos mais pobres ainda não foi superado. Salvo alguns casos isolados, o atendimento da advocacia gratuita esbarra em problemas como falta de defensores, de servidores de apoio, de material…


Anuidades OAB: tema chega à Consultoria-Geral da União

Em breve, o Consultor-Geral da AGU, Arnaldo Godoy, que é Procurador da Fazenda, dará parecer sobre o assunto.


A instauração de execução coletiva pelos sindicatos no interesse de seus filiados


O STJ admitiu que a sentença de ação coletiva sobre direitos individuais homogêneos pode ser liquidada por cálculos, o que corrobora a necessidade de os associados ao menos autorizarem sua representação pela entidade na fase de execução, uma vez que não há mais que se falar em substituição processual, mas tão somente em representação, entendimento este diverso do proferido pelo STF.


O presente trabalho tem por escopo analisar e comentar as questões polêmicas sobre a representação dos Sindicados no interesse dos seus filiados e associados, em sede de Execução Coletiva, explorando, ainda, se essa representação demandaria necessária autorização prévia, bem como quais os prejuízos trazidos aos filiados.

Em que pese a discussão sobre esta representação tenha se iniciado logo após a edição do Código de Defesa do Consumidor (1990), verifica-se que o posicionamento dos Tribunais Superiores (lato sensu) ainda se encontra controvertido, em razão das disposições contidas nos artigos 21 da Lei 7.347/85, 98 do Código de Defesa do Consumidor e 8º, inciso III, da Constituição Federal.

Entretanto, antes de se adentrar ao mérito deste trabalho, torna-se importante realizar uma breve exposição sobre o instituto das Ações Coletivas de modo a estabelecer parâmetros válidos e fundamentais à discussão central a que se pretende chegar, uma vez que se trata de discussão relativamente recente e pouco aprofundada pela doutrina nacional devido às suas especificidades e omissões legislativas.

O nosso Código de Processo Civil, elaborado por Alfredo Buzaid e aprovado no ano de 1973, não contemplou quaisquer normas procedimentais ou instrumentais para a viabilidade da tutela coletiva em juízo, mas tão somente foi elaborado e promulgado para dar cabal efetividade às lides individuais.

Em que pese antes de sua promulgação já existisse o instituto da Ação Popular (Lei 4.717/65), as peculiaridades desta ação coletiva foram esquecidas quando da promulgação do Código de Processo Civil ainda vigente, não sendo incluídas após a promulgação da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que, embora disponham sobre a tutela coletiva, pouco disciplinam acerca da sua instrumentalidade no processo.

Desta forma, claramente se conclui pelo esquecimento do legislador acerca da necessidade de disciplinar a tutela coletiva em juízo, pois as recentes emendas processuais que trouxeram grandes modificações ao Código de Processo Civil (Leis 11.232/05 e 11.386/06) em nada individualizaram ou disciplinaram a tutela coletiva, razão pela qual utiliza-se, quando possível, o processo civil individual para as ações coletivas, no que couber.

A doutrina nacional, por outro lado, com vistas a suprir as omissões decorrentes da falta de legislação específica sobre o tema, elaborou, sob a coordenação da Professora Dra. Ada Pellegrini Grinover, o Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, tendo sido encaminhado a Casa Civil e após, ao Congresso Nacional, onde foi rejeitado pela Câmara dos Deputados.

Assim, verifica-se a falta de cuidado dos legisladores sobre a efetiva proteção aos direitos de terceira geração, pois tutelados por leis esparsas e repletas de omissões legislativas, especialmente no campo processual.

Desta forma, atualmente se propõe as ações coletivas previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Ação Civil Pública, com a utilização do procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.

Passada essa primeira crítica, torna-se importante analisar e conceituar as ações coletivas e os ditos direitos coletivos (lato sensu), para melhor contextualizar a matéria a ser tratada, senão vejamos:

Para se ter idéia do que seriam as ações coletivas, podemos conceituá-las como sendo o instrumento processual adequado conferido aos entes legitimados pelas Leis 7.347/85 e 8.078/90 para que possam tutelar e responsabilizar eventuais danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico ou a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

A doutrina, atualmente, utiliza-se dos conceitos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 81 abaixo), a fim de conceituar os direitos coletivos (lato sensu) hoje divididos em três tipos, a saber: (i) os direitos difusos, direitos tipicamente transindividuais ou pertencentes a uma certa coletividade, como o direito ao meio ambiente equilibrado; (ii) direitos coletivos (stricto sensu) direitos de natureza indivisível, mas ligados por um vínculo jurídico que lhes dá coesão e identificação perante outras pessoas e, por fim; (iii) direitos individuais homogêneos, direitos coletivos, mas individualizados, sendo caracterizados por uma mesma relação de fato ou de direito:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Com relação aos dois primeiros direitos coletivos, quais sejam, difusos e coletivo stricto sensu, a doutrina é pacífica quanto a possibilidade de Associações Civis, entes públicos, Ministério Público, etc. deterem a legitimidade ativa para o ingresso das Ações Coletivas, pois decorre de expressa previsão tanto no art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, como no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, abaixo:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;

III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V – a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

(…)

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público,

II – a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.

§ 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.

Assim, temos que nas hipóteses acima referidas, a legitimidade de tais entes é ordinária, pois o legitimado não está defendendo direito alheio em nome próprio, mas porque seus titulares não podem fazê-lo individualmente.

Quanto aos direitos individuais homogêneos, por outro lado, temos que a legitimidade dos entes acima elencados não se dá de modo ordinário, mas por meio da substituição processual, isto é, por legitimação extraordinária.

Essa conclusão decorre da previsão contida no artigo 91 do Código de Defesa do Consumidor que busca a eventual responsabilização dos causadores do dano pelas vítimas ou sucessores, em razão dos danos individualmente sofridos, abaixo:


Art. 91. Os legitimados de que trata o art. 82 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos seguintes

Deste modo, as pessoas físicas ou jurídicas, individualmente, poderão se valer do Poder Judiciário, mas um ente público como por exemplo o Ministério Público Estadual ou Federal, igualmente poderá ingressar com Ação Coletiva visando a reparação destes danos, sendo esta legitimidade extraordinária.

Referida discussão se torna necessária para entendermos as razões pelas quais a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ainda possuem posição controvertida sobre o tema.

O Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº. 193.503-1 que tratava da possibilidade de Cumprimento de Sentença pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Metalúrgica, representando o interesse de seus associados, em julgamento apertado (6 votos a favor e 5 contra) realizado no dia 12 de junho de 2006, concluiu ser desnecessária a autorização dos filiados.

Para tanto, interpretou a medida como hipótese de substituição processual, razão pela qual não incidiria a representação, mas tão somente a postulação de um direito em nome do próprio Sindicato, na defesa de seus filiados, sendo desnecessária qualquer autorização dos indivíduos substituídos, conforme ementa abaixo:

“EMENTA: PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam.

Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores.

Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos.

Recurso conhecido e provido”.

(STF. Pleno. RE 193.503-1/SP. Rel. Carlos Veloso. D.J. 12/06/06).

Nas razões de julgamento, o então Ministro Nelson Jobim, em ilustres razões, diferenciou em seu voto os institutos da substituição e da representação, estabelecendo uma construção histórica iniciada por Carnelutti, Chiovenda e Liebman, concluindo, ao final, que na fase de liquidação de direitos individuais homogêneos, utiliza-se da representação, de modo a ensejar a autorização dos representados.

Entretanto, referido entendimento não prevaleceu, mantendo-se na presente, a hipótese de substituição processual que acarreta na faculdade de autorização dos substituídos, conforme ementa acima.

Em que pese o julgado acima tenha sido proferido em 2006, importante observar que referido entendimento foi recentemente corroborado pela Corte Suprema, em julgamento proferido em fevereiro de 2010, conforme ementa abaixo:

EMENTA: 1. LEGITIMAÇÃO PARA A CAUSA. Ativa. Caracterização. Sindicato. Interesse dos membros da categoria. Substituição processual. Art. 8º, III, da Constituição da República. Recurso extraordinário inadmissível. Agravo regimental improvido. O artigo 8º, III, da Constituição da República, confere legitimidade extraordinária aos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. 2. RECURSO. Agravo regimental. Reconhecimento de repercussão geral. Temas distintos. Erro material. Decisão de prejudicialidade do agravo e retorno dos autos à origem, para os fins do art. 543-B do CPC. Correção, de ofício, para torná-la sem efeito. Corrige-se, de ofício, decisão que contém erro material.

(RE 213974 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 02/02/2010, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-06 PP-01454 LEXSTF v. 32, n. 375, 2010, p. 149-152)

Entrementes, embora a Corte Suprema já tenha sedimentado seu entendimento sobre o tema, torna-se importante ressaltar a existência de entendimento diverso, recentemente proferido pelo C. Superior Tribunal de Justiça, defendendo a necessidade de autorização prévia dos filiados, conforme abaixo:

“CIVIL E PROCESSUAL. SINDICATO. AÇÃO COLETIVA QUE RECLAMA DIFERENÇAS DE FGTS. FASE DE EXECUÇÃO. REPRESENTAÇÃO DOS FILIADOS. AUTORIZAÇÃO. NECESSIDADE.

I – Na execução de ação coletiva exige-se, do sindicato, autorização de seus filiados, não podendo fazê-la em nome próprio, já que apenas os representa processualmente nesta fase.

II – Embargos de divergência conhecidos e desprovidos”.

(STJ. Corte Especial. Emb. Div. No Resp. 757.270/RS. D.J. 10/05/10. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior).

Nas razões utilizadas pela Corte Superior, expressamente se menciona o entendimento perpetrado pelo Supremo Tribunal Federal, todavia, por se entender que na liquidação de sentença, em regra, há valores a serem recebidos pelos exequentes e que desta possibilidade, fatalmente poderá ocorrer situações de desvio, como já ocorridas no passado com relação às verbas de reajuste do Fundo de Garantia – FGTS, concluiu-se que o Sindicato poderá propor a Ação Coletiva na defesa dos interesses de seus filiados, mas que, especialmente na execução coletiva, a atuação do Sindicado se submete ao instituto da representação.


Assim, representando seus filiados, referida conduta se limita a postular direito alheio, em nome próprio, o que é diverso da postulação do direito próprio e alheio, em nome próprio, como ocorre na substituição, pois os valores a serem recebidos serão de terceiros individuais, não do sindicato.

Referido entendimento, embora diverso das razões estampadas pelo Supremo Tribunal Federal, encontra razão na cautela do juízo em autorizar a efetividade do processo coletivo, mas limitá-la a autorização prévia dos direitos individuais homogêneos que estão sendo tutelados, principalmente na fase executiva, pois poderá ensejar no ganho de valores pelo Sindicato que podem vir a ser não repassados aos seus filiados.

Desta forma, até mesmo em razão da ausência de litispendência entre a execução coletiva e a execução individual (Resp. 995.932/RS. Rel. Min. Castro Meira), não se pode olvidar que os individuais postulem pela demanda individualmente ou autorizem a execução por terceiros, posição esta que se parece a mais correta.

Isso porque, como é cediço, muitos consumidores representados por associações ou trabalhadores representados por sindicatos podem não deter o conhecimento necessário de uma decisão de procedência em Ação Civil Pública ou Ação Coletiva e podem não ser avisados pelos órgãos coletivos exatamente porque estes podem vir a executar coletivamente a sentença com o posterior recebimento dos valores declarados por esta.

Ademais, o Superior Tribunal de Justiça recentemente reconheceu que o prazo para o consumidor ajuizar ação individual de conhecimento – a partir da qual lhe poderá ser aberta a via da execução – independe do ajuizamento da ação coletiva, e não é por esta prejudicado, regendo-se por regras próprias e vinculadas ao tipo de cada pretensão deduzida, entendimento este que pode vir a ser aplicado nos demais casos de Ação Civil Coletiva (não apenas para as ações que tratem de relação de consumo), consoante acórdão abaixo:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO COLETIVA. APADECO X CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. EXPURGOS. PLANOS ECONÔMICOS. PRAZO DE PRESCRIÇÃO.

1. A sentença não é nascedouro de direito material novo, não opera a chamada “novação necessária”, mas é apenas marco interruptivo de uma prescrição cuja pretensão já foi exercitada pelo titular. Essa a razão da máxima contida na Súmula n. 150/STF: “Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação”. Não porque nasce uma nova e particular pretensão de execução, mas porque a pretensão da “ação” teve o prazo de prescrição interrompido e reiniciado pelo “último ato do processo”.

2. As ações coletivas fazem parte de um arcabouço normativo vocacionado a promover a facilitação da defesa do consumidor em juízo e o acesso pleno aos órgãos judiciários (art. 6º, incisos VII e VIII, CDC), sempre em mente o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, CDC), por isso que o instrumento próprio de facilitação de defesa e de acesso do consumidor não pode voltar-se contra o destinatário da proteção, prejudicando sua situação jurídica.

3. Assim, o prazo para o consumidor ajuizar ação individual de conhecimento – a partir da qual lhe poderá ser aberta a via da execução – independe do ajuizamento da ação coletiva, e não é por esta prejudicado, regendo-se por regras próprias e vinculadas ao tipo de cada pretensão deduzida.

4. Porém, cuidando-se de execução individual de sentença proferida em ação coletiva, o beneficiário se insere em microssistema diverso e com regras pertinentes, sendo imperiosa a observância do prazo próprio das ações coletivas, que é quinquenal, nos termos do precedente firmado no REsp. n. 1.070.896/SC, aplicando-se a Súmula n. 150/STF.

5. Assim, no caso concreto, o beneficiário da ação coletiva teria o prazo de 5 (cinco) anos para o ajuizamento da execução individual, contados a partir do trânsito em julgado da sentença coletiva, e o prazo de 20 (vinte) anos para o ajuizamento da ação de conhecimento individual, contados dos respectivos pagamentos a menor das correções monetárias em razão dos planos econômicos.

6. Recurso especial provido.

(REsp 1275215/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 01/02/2012)

Desta forma, em que pese a sentença em ação coletiva seja sempre genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados (Resp. 701.166/RS. Rel. Min. Laurita Vaz), deve-se ter em mente que o próprio Superior Tribunal de Justiça já admitiu que a sentença proferida em Ação Coletiva sobre direitos individuais homogêneos possa ser liquidada por cálculos (Resp. 880.358/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi), o que corrobora a necessidade de os associados ou filiados ao menos autorizarem sua representação pela entidade na fase de execução, uma vez que não há mais que se falar em substituição processual, mas tão somente em representação, entendimento este diverso do atualmente proferido pelo Supremo Tribunal Federal.


BIBLIOGRAFIA:

ATAIDE JR. Vicente de Paula. A execução individual da sentença coletiva após a Lei 11.232/2005. MENDES. Aluisio Gonçalves de Castro. Sentença, liquidação e execução nos processos coletivos para a tutela dos direitos individuais homogêneos. BERTOGNA JR. Oswaldo. Da liquidação e do cumprimento de sentença na ação civil pública – Aspectos relevantes. In Coord. WAMBIER. Luiz Rodrigues et. al. Execução Civil. Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Junior. RT. São Paulo. 2007.

GRINOVER. Ada Pellegrini. (et. al). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10ª Ed. Rev. Atual. Rio de Janeiro. Forense. 2011. Vol. II.

VENTURI. Elton. A tutela Executiva dos direitos difusos nas ações coletivas. In Processo de Execução e Assuntos afins. Coord. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim. RT. 1998.

SHIMURA. Sergio. Tutela Coletiva e sua efetividade. Ed. Método. São Paulo. 2006.

Autor

Bruno Molina Meles

Advogado em São Paulo (SP). Graduado pela UniFMU. Pós Graduado pela PUC/SP em Direito Processual Civil. Pós Graduando pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus em Direito Constitucional Aplicado.

NBR 6023:2002 ABNT: MELES, Bruno Molina. A instauração de execução coletiva pelos sindicatos no interesse de seus filiados. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3144, 9 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21055>. Acesso em: 10 fev. 2012.


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Dispensa de exame da OAB para aprovados em concursos da AGU

Forum Nacional pede que membros da AGU aprovados em concursos públicos sejam dispensados do exame da Ordem dos Advogados do Brasil.


Desconstruindo o mito da não-incidência do imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória

Autor: Augusto Cesar de Carvalho Leal, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília – UnB. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O objetivo deste trabalho acadêmico é a desconstrução do mito da não-incidência do Imposto de Renda sobre toda e qualquer verba de natureza indenizatória, a partir da demonstração de que tais verbas sujeitam-se a dois regimes jurídicos distintos, o da indenização-reposição e o da indenização-compensação, sendo que, neste último, ocorre claro acréscimo patrimonial, condição necessária e suficiente para a realização do critério material da regra-matriz de incidência daquele tributo. Palavras-chave: Imposto de Renda. Acréscimo Patrimonial. Verbas indenizatórias. Indenização-Reposição. Indenização-Compensação.

INTRODUÇÃO

Evidenciam-se nebulosas a doutrina e a jurisprudência pátrias no que concerne à incidência de imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória.

Nesse diapasão, em geral, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial, apresentam-se pouco consistentes, sob o prisma da coerência científica, os resultados do cotejo entre o critério material da regra-matriz de incidência do imposto de renda e cada uma das infinitas possibilidades de verbas de natureza indenizatória, cada qual com peculiar matiz fático-jurídico.

O que se nota, inicialmente, é a generalizada e irrefletida resistência ao reconhecimento da incidência do imposto de renda sempre que se repute gozar uma específica verba de natureza indenizatória.

Assim, para significativa parte da doutrina e da jurisprudência, basta que uma verba ostente o status de indenizatória para que, na prática, seja, de maneira superficial, colocada sob um manto sagrado completamente intransponível aos efeitos jurídicos da regra-matriz de incidência do imposto de renda, não obstante uma análise jurídica mais profunda demonstre, cabalmente, que pode ou não incidir imposto de renda em parcelas com caráter de indenização.

Elucidando ainda mais o problema estabelecido, é extremamente comum entre os tribunais e os doutrinadores brasileiros a redução da investigação acerca da incidência ou não do imposto de renda à conclusão acerca da natureza indenizatória ou não de uma dada verba.

Ganha corpo, nessa esteira, o lugar-comum de que verbas indenizatórias não sofrem tributação pelo imposto de renda.

Com isso, o critério para a decisão hermenêutica de incidência ou não do imposto de renda passa a ser a natureza indenizatória ou remuneratória da parcela, e não a ocorrência de acréscimo patrimonial, aspecto material da regra-matriz de incidência daquele tributo.

Essa premissa encontra-se tão fortalecida na prática forense contemporânea, e mesmo em parte do meio acadêmico, que, nesses círculos, o processo interpretativo relativo à existência da obrigação tributária concernente ao imposto de renda ignora a verificação da ocorrência do fato gerador do imposto (acréscimo patrimonial) para se limitar à verificação, como condição sine qua non para a tributação, da eventual qualidade nãoindenizatória da parcela.

Eis a emergencial necessidade de sistematização que motiva o presente estudo sobre a incidência do imposto de renda sobre verbas indenizatórias, realizado com o escopo de contribuir para a diminuição da perniciosa confusão na análise da matéria, provocada pela superficialidade com que o tema é frequentemente tratado.

Consigne-se que a falta de profundidade com que, não raramente, o imposto de renda, em seus diversos aspectos, é tratado não passou despercebida pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, que afirmou:

quanto ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, talvez pela complexidade do seu regime de incidência, ou pelo número às vezes até extravagante dos enunciados prescritivos que integram sua estrutura, a verdade é que a exação tem espantado os especialistas, afastando-os de um contato mais direto e radical com tão nobre forma de imposição tributária1.

É esse mito da não-incidência do imposto de renda sobre toda e qualquer verba indenizatória que o presente estudo busca, sob uma perspectiva teórica, desconstruir.

Isso será feito a partir da demonstração de que o regime jurídicotributário das indenizações não é uno, havendo, na verdade, dois regimes legais diversos a que podem se submeter as parcelas indenizatórias conforme a natureza do ato ilícito a elas subjacente.

Mais especificamente, pretende-se esclarecer que, a depender da caracterização do ato ilícito como danos emergentes, lucros cessantes ou danos morais, a correlata parcela indenizatória enquadrar-se-á em um dos dois regimes jurídico-tributários distintos existentes, que serão apresentados ao longo deste trabalho.

Tais regimes são o da indenização-reposição e o da indenizaçãocompensação, cada um acarretando conseqüências diversas na esfera da tributação pelo imposto de renda.

Enquanto as verbas indenizatórias que se enquadram no primeiro regime não sofrem a incidência do imposto de renda, por não acarretarem acréscimo patrimonial, as abrangidas pelo segundo regime são tributadas, na medida em que aumentam o patrimônio material daquele que aufere a indenização.

Espera-se que este estudo colabore com a desmistificação do pensamento de que a caracterização de uma verba como indenizatória, por si só, afasta a incidência do imposto de renda.

Mais do que isso: deseja-se promover, no seu lugar, uma atitude hermenêutica de preocupação com a investigação da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, fato gerador do imposto de renda, como verdadeiro fator decisivo para a tributação, que, portanto, pode vir a ocorrer ainda que sobre verbas indenizatórias, desde que essas se enquadrem no conceito, neste trabalho desenvolvido, de indenização-compensação.

1 DO ACRÉSCIMO PATRIMON IAL COMO CRITÉRIO MATERIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA

É assente na doutrina que o fato jurídico tributário pode ser representado por um verbo e seu complemento, que se encontram dispostos no critério material da regra-matriz de incidência tributária. No caso do imposto de renda, pode-se afirmar que o critério material do tributo, à luz do seu arquétipo constitucional, consiste em “auferir renda”.

Para elucidar o que significa “auferir renda”, para fins da tributação em análise, no direito brasileiro, importantíssima a contribuição do Professor Paulo de Barros Carvalho, para quem:

Acerca do conceito de “renda”, três são as correntes doutrinárias predominantes:

  1. ´teoria da fonte´, para a qual ´renda´ é o produto de uma fonte estável, susceptível de preservar sua reprodução periódica, exigindo que haja riqueza nova (produto) derivada de fonte produtiva durável, devendo esta subsistir ao ato de produção;
  2. ‘teoria legalista’, que considera ‘renda’ um conceito normativo, a ser estipulado pela lei: renda é aquilo que a lei estabelecer que é; e
  3. ‘teoria do acréscimo patrimonial’, onde ‘renda’ é todo ingresso líquido, em bens materiais, imateriais ou serviços avaliáveis em dinheiro, periódico, transitório ou acidental, de caráter oneroso ou gratuito, que importe um incremento líquido do patrimônio de determinado indivíduo, em certo período de tempo. Prevalece, no direito brasileiro, a terceira das teorias referidas, segundo a qual o que interessa é o aumento do patrimônio líquido, sendo considerado como lucro tributável exatamente o acréscimo líquido verificado no patrimônio da empresa, durante período determinado, independentemente da origem das diferentes parcelas. É o que se depreende do art. 43 do Código Tributário Nacional.2

E prossegue o eminente doutrinador:

Nessa linha de raciocínio, a hipótese de incidência da norma de tributação da ‘renda’ consiste na aquisição de aumento patrimonial, verificável pela variação de entradas e saídas num determinado lapso de tempo. É imprescindível, para a verificação de incrementos patrimoniais, a fixação de intervalo temporal para a sua identificação, dado o caráter dinâmico ínsito à idéia de renda. Nesse sentido, Rubens Gomes de Sousa escreveu ser insuficiente o processo de medição de riqueza pela extensão do patrimônio, sendo necessário distinguir o capital do rendimento pela atribuição, ao primeiro, de um caráter estático, e ao segundo, de um caráter dinâmico, ligando-se à noção de renda um elemento temporal. ‘Capital seria, portanto, o montante do patrimônio encarado num momento qualquer de tempo, ao passo que renda seria o acréscimo do capital entre dois momentos determinados3.


Posiciona-se no mesmo sentido José Artur Lima Gonçalves ao sustentar que:

o conteúdo semântico do vocábulo ‘renda’, nos termos prescritos pelo Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, compreende o saldo positivo resultante do confronto entre certas entradas e certas saídas, ocorridas ao longe de um dado período. É, em outras palavras, acréscimo patrimonial4.

De fato, a regra-matriz de incidência do imposto de renda é veiculada pelo art. 43 do Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

  1. de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
  2. de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001) (grifo nosso).

Por sua vez, Mary Elbe Queiroz leciona que:

o imposto de renda incide sobre as rendas e proventos de qualquer natureza que constituam acréscimos patrimoniais, riquezas novas, para o beneficiário (os excedentes às despesas e custos necessários para auferir os rendimentos e à manutenção da fonte produtora e da sua família), sobre os quais ele haja adquirido e detenha a respectiva posse ou propriedade e estejam à sua livre disposição econômica ou juridicamente 5.

Percebe-se, portanto, que o principal traço distintivo para se identificar se há ou não a incidência do imposto sobre a renda é o acréscimo patrimonial, porquanto o Brasil adotou o conceito de renda-acréscimo6.

Assim, configura fato tributável pelo imposto de renda o acréscimo no patrimônio, a riqueza nova.

2 DO ACRÉSCIMO PATRIMONIAL COMO AUMENTO DE RIQUEZA

Claro está que a materialidade do imposto de renda encontra-se vinculada à ocorrência de um acréscimo patrimonial.

Para que se construam, desde já, alicerces firmes para a posterior conclusão no sentido de que pode haver incidência de imposto de renda sobre verbas indenizatórias, cumpre que se esclareça que o acréscimo patrimonial relevante para fins de tributação é, necessariamente, aumento de riqueza, elevação quantitativa do patrimônio estritamente econômico, material, não havendo que se falar, aqui, em expressões como “patrimônio jurídico” ou “patrimônio moral”.

Assim, antecipe-se que não se revela tecnicamente precisa, à luz da sistematização ora feita, não obstante se conheça a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, a tese da não-incidência de imposto de renda sobre a indenização por danos morais, sob o argumento de que a indenização por danos morais apenas recompõe o dano causado ao “patrimônio moral”.

Ora, para fins de tributação pelo imposto de renda, o acréscimo patrimonial relevante é aquele que ocorre no patrimônio material, o aumento de riqueza, justamente por configurar-se fato revelador de capacidade contributiva.

Sob esse prisma, anteriormente à ocorrência do dano moral, a sua vítima detinha um patrimônio X. Após a ocorrência do dano moral, desconsideradas outras atividades econômicas, continuará tendo um patrimônio X. Isto é, não houve decréscimo do patrimônio – no sentido econômico, material -, nenhuma riqueza tendo sido subtraída diretamente em virtude do dano moral.

Com a percepção de uma indenização por dano moral de valor Y, entretanto, o patrimônio, antes de valor X, passará a ser quantificado em X + Y, o que denota o acréscimo patrimonial, critério material da regramatriz de incidência do imposto de renda.

Não sem motivo Silvio Rodrigues esclarece que muito se discutiu, no âmbito do Direito Civil, se o dano puramente moral poderia ser indenizado justamente porque ele não tem repercussão de caráter patrimonial7.

Logo, devem ser repelidos argumentos no sentido de que toda indenização escaparia do campo de incidência do imposto de renda, na medida em que sempre representariam a reposição de uma subtração patrimonial, ao menos do “patrimônio jurídico”, ou do “patrimônio moral”.

É com esse intuito que se desenvolve a inequívoca perspectiva de que a análise da existência ou não de acréscimo patrimonial relevante para fins de imposto de renda sempre decorrerá da análise da comparação econômica quantitativa entre dois momentos distintos do patrimônio estritamente material do contribuinte, do cotejo da sua riqueza em duas diferentes datas.

Corroborando, nesse ponto, o que se afirma, confira-se que Leandro Paulsen conclui, após analisar argumentos de Marçal Justen Filho e de João Dácio Rolim, que “o acréscimo patrimonial significa riqueza nova, de modo que corresponde ao que sobeja de todos os investimentos e despesas efetuados para a obtenção do ingresso, o que tem repercussão na apuração da base de cálculo do imposto”8.

Nem poderia ser diferente, já que a tributação somente incide sobre fatos eminentemente econômicos, reveladores de riqueza, de capacidade contributiva, pelo que inapropriado cogitar que o acréscimo patrimonial, critério material do imposto de renda, estender-se-ia ao monitoramento do que ocorre no patrimônio meramente jurídico ou moral.

Na linha desse pensamento, preciosa a lição de Paulo de Barros Carvalho:

Ao recordar, no plano da realidade social, daqueles fatos que julga de porte adequado para fazer nascer a obrigação tributária, o político sai à procura de acontecimentos que sabe haverão de ser medidos segundo parâmetros econômicos, uma vez que o vínculo jurídico a eles atrelado deve ter como objeto uma prestação pecuniária. Há necessidade premente de ater-se o legislador à procura de fatos que demonstrem signos de riqueza, pois somente assim poderá distribuir a carga tributária de modo uniforme e com satisfatória atinência ao princípio da igualdade. Tenho presente que, de uma ocorrência insusceptível de avaliação patrimonial, jamais se conseguirá extrair cifras monetárias que traduzam, de alguma forma, valor em dinheiro. Colhe a substância apropriada para satisfazer os anseios do Estado, que consiste na captação de parcelas do patrimônio de seus súditos, sempre que estes participarem de fatos daquela natureza. Da providência contida na escolha de eventos presuntivos de fortuna econômica decorre a possibilidade de o legislador, subsequentemente, distribuir a carga tributária de maneira eqüitativa, estabelecendo, proporcionalmente às dimensões do acontecimento, o grau de contribuição do que deles participam.9

A propósito, mesmo no âmbito do Direito Civil o conceito de patrimônio é concebido à luz de uma visão estritamente econômica, material, como bem lembra o festejado civilista Francisco Amaral:

patrimônio, provavelmente de patris munium, é o complexo de relações jurídicas economicamente apreciáveis de uma pessoa. Reúne os seus direitos e obrigações, formando uma unidade jurídica, uma universalidade de direito. Apresenta três elementos característicos: a unidade do conjunto de direito e de obrigações, sua natureza e pecuniária, e sua atribuição a um titular. Compreende os créditos e os débitos de uma pessoa. No primeiro caso, temos o ativo, conjunto de direitos que formam o patrimônio (direitos reais, direitos pessoais e direitos intelectuais); no segundo, temos o passivo, o conjunto de obrigações (dívidas). Para a doutrina moderna, porém, o passivo não integra o patrimônio; é apenas uma carga, um ônus sobre ele. Dele não participam os direitos personalíssimos (vida, liberdade, honra etc.), os direitos de família puros, as ações de estado e os direitos públicos que não têm valor econômico, variando o seu valor conforme a possibilidade de realizar-se a condição10.

Segundo Orlando Gomes, “toda pessoa tem direitos e obrigações pecuniariamente apreciáveis. Ao complexo desses direitos e obrigações denomina-se patrimônio”11.

À luz desta vertente, correspondente à teoria clássica, cada pessoa titulariza apenas um patrimônio e tal instituto está adstrito aos direitos e obrigações economicamente apreciáveis.


Verifica-se, destarte, que o patrimônio, no âmbito do Direito Civil, é o conjunto de direitos e obrigações com valor econômico direto, imediato.

Está excluída, portanto, da idéia de patrimônio stricto sensu a violação a direitos que, por não terem um inerente valor econômico, não representem, por si sós, riqueza.

É por isso que não procede, à guisa de exemplo, a afirmação de que a indenização por danos morais e outras análogas recompõem o patrimônio.

Isso porque, no momento do dano moral, não há qualquer repercussão no patrimônio stricto sensu, na medida em que este é composto apenas por direitos de expressão econômica direta e imediata, dele não fazendo parte, como visto, os direitos personalíssimos, como a imagem e a honra de uma pessoa.

De fato, num segundo momento, qual seja, no momento da indenização, em que se pretende compensar, por meio de uma quantia em dinheiro, o abalo moral sofrido, há repercussão no patrimônio stricto sensu.

Presencia-se, então, o fenômeno da patrimonialidade intermédia de que trata Francisco Amaral, típica daquelas relações jurídicas que resultam da lesão de direito personalíssimo e que exprimem o direito à respectiva indenização.

De qualquer forma, isso apenas comprova o que se afirma: tal indenização representa acréscimo de riqueza, e não mera reposição, porquanto o dano moral nenhuma repercussão, muito menos subtração, causou no patrimônio stricto sensu.

3 DA INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO E DA INDENIZAÇÃO-COMPENSAÇÃO

O ponto fulcral do presente estudo encontra-se na percepção de que a natureza jurídica das indenizações não é una. A compreensão da existência de duas espécies de indenização, a indenização-reposição e a indenização-compensação, com conseqüências jurídicas diversas, é de instrumental importância para que se visualize quão equivocadamente vem sendo proclamada, na doutrina e na jurisprudência, a não-incidência de imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória.

Para tanto, faz-se necessário definir indenização e dano.

Para Silvio Rodrigues12, indenizar significa ressarcir um prejuízo, um dano experimentado pela vítima.

É essa noção de indenização enquanto ressarcimento de um dano que, analisada sem maior reflexão, leva ao equivocado entendimento de que toda indenização apenas restabelece o patrimônio, pelo que não seria tributada pelo imposto de renda.

Ocorre que não se deve perder de vista que o dano ressarcido pela indenização pode ser, efetivamente, um dano material que cause decréscimo do patrimônio (dano emergente), ou pode ser um dano material que não cause subtração patrimonial, mas, apenas, a perda da oportunidade de aumentá-lo (lucros cessantes), ou, mesmo, pode ser um dano a um direito personalíssimo, sem qualquer repercussão no patrimônio (danos morais).

Quanto aos danos morais, já se disse que Silvio Rodrigues, dentre inúmeros outros, é contundente no sentido de que “não têm repercussão de caráter patrimonial”13. Assim, como o mesmo jurista esclarece, o dinheiro que se paga à vítima, a título de danos morais, não repõe o valor subtraído do patrimônio pelo dano, pois o dano moral nenhuma repercussão patrimonial, econômica, tem.

Para o civilista Silvio Rodrigues, no sentido da doutrina de excelência, o dinheiro que se paga à vítima, a título de danos morais, “provocará na vítima uma sensação de prazer, de desafogo, que visa compensar a dor, provocada pelo ato ilícito.”14 Isso decorre da completa impossibilidade de se repor à vítima a sua perda moral. Assim, tenta-se compensar – ante a impossibilidade de se repor – o prejuízo moral sofrido, tenta-se atenuá-lo, por meio de entrega de riqueza à vítima.

No que concerne aos danos materiais, muito contribui Washington de Barros Monteiro ao esclarecer que tais danos

se enquadram em duas classes, positivos e negativos. Consistem os primeiros numa real diminuição no patrimônio do credor e os segundos, na privação de um ganho que o credor tinha o direito de esperar. Os antigos comentadores do direito romano designavam esses danos pelas conhecidas expressões damnum emergens e lucrum cessans. Dano emergente é o déficit no patrimônio do credor, a concreta redução por este sofrida em sua fortuna (quantum mihi abfuit). Lucro cessante é o que ele razoavelmente deixou de auferir, em virtude do inadimplemento do devedor (quantum lucrari potui).15

Aduz-se de forma cristalina, portanto, que, no âmbito dos danos materiais, somente os danos emergentes causam efetiva subtração do patrimônio, pelo que sua indenização, de fato, tem natureza de mero restabelecimento patrimonial, de mera reposição da riqueza retirada ilicitamente da vítima. Os lucros cessantes, de forma diametralmente oposta, não causam efetiva subtração do patrimônio, pelo que sua indenização não tem natureza de mero restabelecimento patrimonial, pois não repõe uma riqueza préexistente retirada ilicitamente da vítima.

Que fique claro: a indenização por lucros cessantes apenas compensa a perda da oportunidade de que a vítima viesse a obter novas riquezas.

É o que Sérgio Cavalieri Filho nos ensina:

[…] pode-se dizer que, se o objeto do dano é um bem ou interesse já existente, estaremos em face do dano emergente; tratando-se de bem ou interesse futuro, ainda não pertencente ao lesado, estaremos diante de lucro cessante.

Consiste, portanto, o lucro cessante na perda do ganho esperável, na frustração da expectativa de lucro, na diminuição potencial do patrimônio da vítima. Pode decorrer não só da paralisação da atividade lucrativa ou produtiva da vítima, como por exemplo, a cessação dos rendimentos que já vinha obtendo da sua profissão, como, também, da frustração daquilo que era razoavelmente esperado16 (grifo nosso).

Constata-se, sob esse enfoque, que o lucro cessante é também a diminuição potencial do patrimônio, isto é, a subtração de uma expectativa de ganho e, por isso mesmo, de algo que ainda não se incorporou ao patrimônio. Se é potencial, por óbvio, é porque de minoração do patrimônio não se trata.

Por isso, a indenização por danos morais e por lucros cessantes enquadram-se como indenização-compensação, em contraposição à indenização por danos emergentes, que se enquadram como indenizaçãoreposição.

Com efeito, a indenização-reposição representa uma entrega de riqueza à vítima de um dano quantitativamente correspondente a uma riqueza pré-existente, que tenha sido imediatamente retirada de seu patrimônio em decorrência do ato danoso.

Representa indenização-reposição, a título ilustrativo, aquele montante pago à vítima de um abalroamento exatamente correspondente à diminuição do valor do seu carro decorrente do dano. Como se faz intuitivo, os danos emergentes sempre são indenizados por meio de indenização-reposição.

Por outro lado, a indenização-compensação representa uma entrega de riqueza à vítima de um dano quantitativamente não correspondente a uma riqueza pré-existente, que tenha sido imediatamente retirada de seu patrimônio em decorrência do ato danoso.

A indenização-compensação apenas compensa um sofrimento causado por um dano moral (do qual, como minuciosamente demonstrado, não decorre nenhuma subtração de riqueza pré-existente) ou compensa os lucros cessantes, isto é, o que se perdeu a oportunidade de ganhar em razão do dano sofrido (o qual não causou qualquer subtração da riqueza préexistente, pois os lucros cessantes correspondem a uma mera expectativa de ganho, e não a valores já incorporados no patrimônio à época do ato danoso).

Como inexorável conseqüência lógica da desenvolvida distinção entre espécies de indenização, temos que a incidência do imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória não pode, sob pena de afronta ao arquétipo constitucional do aludido tributo, ser tratada de maneira generalizada, indiscriminada, afastando-se a tributação sempre que esteja sob os holofotes hermenêuticos uma indenização.

4 DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE A INDENIZAÇÃOCOMPENSAÇÃO E DA NÃO-INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE A INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO

Em razão das premissas até aqui solidamente construídas, não se faz necessário avançar ainda mais longe para se visualizar que somente a indenização-reposição repõe, efetivamente, uma perda patrimonial, escapando do campo de incidência do imposto de renda.


Por conseguinte, a indenização-compensação, que indeniza um dano que não ocasionou à vítima a diminuição da riqueza pré-existente, mas mero abalo moral ou perda da oportunidade de obter novos ganhos (mera expectativa, não representando valores já incorporados, à época, ao patrimônio da vítima), exsurge como indubitável acréscimo patrimonial.

Assim, a indenização-compensação (por danos morais ou por lucros cessantes), à luz da melhor técnica, realiza, sim, o critério material da regramatriz de incidência do imposto de renda.

Para fortalecer essa idéia, imagine-se, à guisa de exemplo, a situação de um trabalhador autônomo que, por conduta ilícita de outrem, fica impedido de exercer o seu ofício por alguns dias. O que ele receberia a título de remuneração, caso tivesse trabalhado normalmente, seria, naturalmente, tributado pelo imposto de renda.

Parece intuitivo, nessa ilustração, que a mera circunstância dele perceber essas quantias de forma diferida, atrasada, como lucros cessantes, não retira a sua condição de acréscimo patrimonial, e, por isso mesmo, não as transmuda em verbas não-tributadas ou isentas.

Importante advertir que poderia fomentar nefastas práticas de fraude contra a ordem tributária cultivar-se o entendimento de que o recebimento, a título de indenização por lucros cessantes, de uma verba, que, não fosse o ato ilícito, seria evidentemente remuneratória, é capaz de excluir essa mesma verba da tributação pelo imposto de renda.

Poder-se-ia vislumbrar, com grande facilidade, a proliferação de simulações de atos ilícitos e de respectivas indenizações por lucros cessantes com o escopo de evitar a tributação pelo imposto de renda de verbas originalmente remuneratórias.

Ressalte-se que, embora significativa parte da doutrina ainda careça de maior aprofundamento técnico-científico na análise do imposto de renda, como bem destacou o Professor Paulo de Barros Carvalho, a tese aqui exposta encontra eco doutrinário. Nessa esteira, Leandro Paulsen informa que:

há doutrina consistente no sentido de que não se deveria confundir o patrimônio moral – irrelevante para fins de tributação – com o patrimônio econômico – revelador de capacidade contributiva – e destacando que nem tudo o que se costuma denominar de indenização, mesmo material, efetivamente corresponde a simples recomposição de perdas.17

Já se colacionou, no presente trabalho, o art. 43 do Código Tributário Nacional, veículo formal da regra-matriz de incidência do Imposto de Renda, do qual se assimila que é tributado o acréscimo patrimonial sobre o qual se possui disponibilidade jurídica. É bom ressaltar que não existem locuções e adjacências no conceito legal: a norma não preceitua que seria tributável apenas o acréscimo patrimonial que não seja indenizatório.

Com esse enfoque, colhe-se, mais uma vez, a doutrina de Mary Elbe Queiroz:

Impende considerar que os valores que constituem mera recomposição patrimonial, como as indenizações ou os valores expressamente previstos na lei como isentos, não são computados na apuração da respectiva base de cálculo. As indenizações deverão ser consideradas quando revelarem acréscimo patrimonial e não se encontrarem expressamente abrangidas por norma isencional18(grifo nosso).

Tanto é verdade que o montante advindo de pagamento de indenização pode estar, se acarretar acréscimo patrimonial, no espectro possível de tributação pelo imposto de renda que foi necessária a edição de lei específica contemplando diversas verbas tidas como indenizatórias que se resolveu, por opção política, tornar isentas. É o que ocorreu com a Lei 7.713/88.

A não-tributação de verbas indenizatórias pelo imposto de renda depende, com isso, de que elas não representem acréscimo patrimonial (hipótese de não-incidência pura e simples) ou de que, caso gerem riqueza nova, estejam abrangidas por isenção legal.

Outrossim, apesar da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ainda estar contaminada com a visão pouco refletida e generalizante irradiada por parcela significativa da doutrina, a fértil semente dos fundamentos expostos no presente estudo já foi lançada jurisprudencialmente pelo Ministro Teori Albino Zavascki em precedente importantíssimo como divisor de águas para uma imersão daquele tribunal superior numa maior profundidade técnico-científica no trato da matéria.

Nesse sentido, alguns elucidativos acórdãos da 1ª Turma e da 1ª Seção do STJ, de sua relatoria, no sentido de que, mesmo que uma verba tenha natureza indenizatória, sofrerá a incidência do imposto de renda se resultar acréscimo patrimonial:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ROMPIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO NO PERÍODO DE ESTABILIDADE PROVISÓRIA. NATUREZA. REGIME TRIBUTÁRIO DAS INDENIZAÇÕES. PRECEDENTES.

  1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte.
  2. O pagamento de indenização pode ou não acarretar acréscimo patrimonial, dependendo da natureza do bem jurídico a que se refere.
    Quando se indeniza dano efetivamente verificado no patrimônio material (= dano emergente), o pagamento em dinheiro simplesmente reconstitui a perda patrimonial ocorrida em virtude da lesão, e, portanto, não acarreta qualquer aumento no patrimônio. Todavia, ocorre acréscimo patrimonial quando a indenização (a) ultrapassar o valor do dano material verificado (= dano emergente), ou (b) se destinar a compensar o ganho que deixou de ser auferido (= lucro cessante), ou (c) se referir a dano causado a bem do patrimônio imaterial (= dano que não importou redução do patrimônio material).
  3. O direito a estabilidade temporária no emprego é bem do patrimônio imaterial do empregado. Assim, a indenização paga em decorrência do rompimento imotivado do contrato de trabalho, em valor correspondente ao dos salários do período de estabilidade, acarreta acréscimo ao patrimônio material, constituindo, por isso mesmo, fato gerador do imposto de renda. Todavia, tal pagamento não se dá por liberalidade do empregador, mas por imposição da ordem jurídica. Trata-se, assim, de indenização abrigada pela norma de isenção do inciso XX do art. 39 do RIR/99 (Decreto 3.000, de 31.03.99), cujo valor, por isso, não está sujeito à tributação do imposto de renda. Precedente da 1ª Turma: EDcl no Ag 861.889/SP.
  4. Recurso especial a que se nega provimento.

(grifo nosso – REsp 886.563/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 02/06/2008)

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ROMPIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO. CUMPRIMENTO DE CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ISENÇÃO.

  1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte.
  2. O pagamento de indenização por rompimento de vínculo funcional ou trabalhista, embora represente acréscimo patrimonial, está contemplado pela isenção do art. 6º, V, da Lei 7.713/88 (“Ficam isentos do imposto de renda (…) a indenização e o aviso prévio pagos por despedida ou rescisão de contrato de trabalho, até o limite garantido por lei […]).
    […]
  3. O direito a estabilidade temporária no emprego é bem do patrimônio imaterial do empregado. Assim, a indenização paga em decorrência do rompimento imotivado do contrato de trabalho, em valor correspondente ao dos salários do período de estabilidade, acarreta acréscimo ao patrimônio material, constituindo, por isso mesmo, fato gerador do imposto de renda. Todavia, tal pagamento não se dá por liberalidade do empregador, mas por imposição da ordem jurídica. Trata-se, assim, de indenização prevista em lei e, como tal, abarcada pela norma de isenção do imposto de renda. Precedente: REsp 870.350/SP, 1ª Turma, DJ de 13.12.2007.
  4. O pagamento feito pelo empregador a seu empregado, a título de adicional de 1/3 sobre férias tem natureza salarial, conforme previsto nos arts. 7º, XVII, da Constituição e 148 da CLT, sujeitando-se, como tal, à incidência de imposto de renda. Todavia, o pagamento a título de férias vencidas e não gozadas, bem como de férias proporcionais, convertidas em pecúnia, inclusive os respectivos acréscimos de 1/3, quando decorrente de rescisão do contrato de trabalho, está beneficiado por isenção (art. 39, XX do RIR, aprovado pelo Decreto 3.000/99 e art. 6º, V, da Lei 7.713/88).
    Precedentes: REsp 782.646/PR, AgRg no Ag 672.779/SP e REsp 671.583/SE.

  1. Agravo regimental a que se nega provimento.

(grifos nossos – AgRg no Ag 1008794/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/06/2008, DJe 01/07/2008)

Em síntese: o imposto de renda não incide na indenização-reposição, uma vez que, nela, não há, de fato, que se falar em acréscimo patrimonial, pois apenas se recompõe a riqueza que foi subtraída do patrimônio material em razão do dano emergente.

Por outro lado, bastante claro que incide imposto de renda sobre a indenização-compensação, pois, nessa, há nítido aumento de riqueza, porquanto o patrimônio material não havia sido diminuído pelos lucros cessantes (apenas se deixou de ganhar, mas não se diminuiu a riqueza que existia) ou pelos danos morais (mero abalo moral, sem reflexo econômico-financeiro).

5 O DEBATE, NO ÂMBITO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ACERCA DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE OS JURO S DE MORA COMO EXEMPLO DA FALTA DE CLAREZA JURISPRUDENCIAL SOBRE A DISTINÇÃO DE REGIMES DA INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO E DA INDENIZAÇÃO- COMPENSAÇÃO

Muito se discute, no seio do Superior Tribunal de Justiça, se incide ou não imposto de renda sobre juros de mora. Interessante destacar que, em exemplo rico da crítica que se faz acerca do freqüente afastamento, generalizado e irrefletido, das verbas indenizatórias da tributação pelo imposto de renda, o ápice da discussão travada naquele tribunal superior está na natureza indenizatória ou não dos juros de mora.

Observa-se, assim, que os precedentes que têm como premissa a natureza jurídica indenizatória dos juros de mora afastam, só por isso, a incidência do imposto de renda, sem maiores perquirições sobre a ocorrência ou não de acréscimo patrimonial.

Por outro lado, os precedentes que sustentam a incidência do imposto de renda sobre os juros de mora apresentam como razão de ser da referida decisão a ausência, no contexto dos autos, de natureza indenizatória dos juros moratórios.

Ora, o que salta aos olhos é que a discussão central para a decisão sobre a incidência ou não do imposto de renda é ser ou não indenizatória a verba em debate, como se a materialidade do tributo dissesse respeito à natureza não-indenizatória da parcela, e não à ocorrência de acréscimo patrimonial.

Relega-se a último plano, destarte, estranhamente ignorada, a investigação da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, verdadeira materialidade que se extrai do arquétipo constitucional do imposto de renda, que independe da natureza indenizatória do pagamento alcançado pelo campo de incidência do tributo.

Assim, prevalece na egrégia 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, por algum tempo, foi, nesse ponto, acompanhada pela 2ª Turma da mesma Corte Superior, o entendimento de que a natureza dos juros moratórios depende da natureza do principal: se o principal tiver natureza remuneratória, os juros de mora terão a mesma natureza e, por isso, sofrerão a incidência do imposto de renda; se, todavia, o principal tiver natureza indenizatória, igualmente indenizatória será a natureza dos juros moratórios, e, por isso, e somente por isso, não sofrerão a tributação pelo imposto de renda.

À guisa de ilustração, colaciona-se o seguinte aresto:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE RENDA. MAGISTRADO. AUXÍLIO-MORADIA. ART. 25 DA MP 1.858-9/1999. NATUREZA INDENIZATÓRIA. NÃO-INCIDÊNCIA. REDUTOR SALARIAL. CARÁTER REMUNERATÓRIO. INCIDÊNCIA. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. ACESSÓRIOS SEGUEM A SORTE DO PRINCIPAL.

    1. Indenização é a prestação em dinheiro, substitutiva da prestação específica, destinada a reparar ou recompensar o dano causado a um bem jurídico, quando não é possível ou não é adequada a restauração in natura do bem jurídico atingido. Não tem natureza indenizatória, portanto, o pagamento – ainda que imposto por condenação trabalhista – correspondente a uma prestação que, originalmente (= independentemente da ocorrência de lesão), era devida em dinheiro. O que há, em tal caso, é simples adimplemento, embora a destempo e por execução forçada, da própria prestação in natura (REsp 674.392/SC, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 6.6.2005).
    2. As verbas trabalhistas recebidas em cumprimento de decisão judicial, a título de redutor salarial, mantiveram sua natureza original de prestação remuneratória, razão pela qual sobre elas deve incidir o
    3. Conforme dispõe o art. 25 da Medida Provisória 1.858-9/1999, os valores pagos a funcionários públicos a título de auxílio-moradia não constituem acréscimo patrimonial, possuindo natureza indenizatória, razão pela qual não podem ser objeto de incidência do Imposto de Renda.
    4. Os juros de mora e a correção monetária são frutos acessórios da utilização da importância principal, assim, seguem a sorte desta. Se a obrigação principal for tributável, também o serão a correção monetária e os juros de mora sobre ela incidente. Do mesmo modo, caso o principal tenha natureza indenizatória, não estará sujeito ao Imposto de Renda, bem como os juros moratórios e a atualização monetária dele decorrentes também não estarão.
    5. Recurso especial parcialmente provido.
      1. Os valores recebidos pelo contribuinte a título de juros de mora, na vigência do Código Civil de 2002, têm natureza jurídica indenizatória. Nessa condição, portanto, sobre eles não incide imposto de renda, consoante a jurisprudência sedimentada no STJ. 2. Recurso especial improvido.
      1. o critério material do imposto de renda é realizado pelo acréscimo patrimonial;
      2. o conceito de acréscimo patrimonial é exclusivamente econômico, estando atrelado a um aumento real de riqueza, tendo-se em mente que a tributação sempre incide sobre fatos reveladores de capacidade contributiva;
      3. o conceito de indenização está ligado à reposição ou compensação por um dano, que pode ser de natureza material ou moral;
      4. apenas os danos materiais provocam efetiva diminuição de riqueza, uma vez que os danos morais, por si sós, representam abalo do chamado “patrimônio moral” do sujeito de direito, mas, não, de seu patrimônio material, econômico, o relevante para fins de tributação;
      5. os danos materiais assumem o caráter de danos emergentes, que consubstanciam efetivo decréscimo do patrimônio material existente anteriormente ao dano, ou o caráter de lucros cessantes, que não acarretam decréscimo do patrimônio existente no momento que precede o dano, mas a perda da oportunidade de vir a obter um aumento de riqueza;
      6. nesse contexto, as indenizações dividem-se em indenizaçãoreposição, que efetivamente restabelece o patrimônio material que havia sido diminuído por um dano emergente, e indenização-compensação, que não restabelece o patrimônio material, uma vez que o dano indenizado não ocasionou a diminuição da riqueza antes existente, tendo como finalidade, em verdade, compensar a riqueza que se deixou de ganhar em decorrência do dano (lucros cessantes) ou o abalo moral sofrido (danos morais);
      7. em razão disso, o imposto de renda apenas não incide na indenização-reposição, porquanto, nela, não há, de fato, que se falar em acréscimo patrimonial, pois apenas se recompõe a riqueza que foi subtraída do patrimônio material em razão do dano emergente;
      8. por outro lado, bastante claro que incide imposto de renda sobre a indenização-compensação, uma vez que, nela, há nítido aumento de riqueza, pois o patrimônio material não havia sido diminuído pelos lucros cessantes (apenas se deixou de ganhar, mas não se diminuiu a riqueza que existia) ou pelos danos morais (mero abalo moral, sem reflexo econômico-financeiro);
      9. os juros moratórios, se entendidos como verba indenizatória, configuram indenização-compensação, pelo que sempre incidirá o imposto de renda;

      1. o debate jurisprudencial travado no Superior Tribunal de Justiça, entretanto, elege a definição da natureza indenizatória ou remuneratória dos juros de mora como a questão decisiva para a controvérsia, sem sequer levar em consideração a possibilidade de ocorrência de acréscimo patrimonial ainda que tal verba seja tida como indenizatória;
      2. por esse motivo, o estudo-de-caso da jurisprudência daquele tribunal superior concernente ao imposto de renda sobre juros de mora serve como emblemático exemplo do mito da não-incidência desse imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória, o que reforça a fragilidade científica dos julgamentos predominantes no Poder Judiciário brasileiro acerca da tributação ou não de verbas que, a despeito de serem qualificadas como indenizatórias, podem acarretar obtenção de riqueza nova;
      3. destarte, com o escopo de promover maior consistência científica – e conseqüente respeito ao ordenamento jurídico tributário – na doutrina e na jurisprudência brasileira sobre o tema, fazse necessária a desconstrução do mito da não-incidência do imposto de renda sobre toda e qualquer verba indenizatória, substituindo-o pela preocupação com a qualificação da verba como indenização-reposição ou indenização-compensação, admitindo-se, no último caso, ao contrário do primeiro, a plena validade da tributação pelo imposto de renda.

(grifo nosso – REsp 615.625/MT, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 07/11/2006 p. 234)

A 2ª Turma, embora já tenha, como dito, seguido tal entendimento, vem adotando tese ainda mais radical, no sentido de que os juros de mora, após o Código Civil de 2002, sempre têm natureza indenizatória, o que, por si só, independentemente da análise concreta acerca da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, justificaria a não-incidência do imposto de renda.

Esclareça-se a tese em comento com a verificação do seguinte precedente:

TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – ART. 43 DO CTN – IMPOSTO DE RENDA – JUROS MORATÓRIOS – CC, ART. 404: NATUREZA JURÍDICA INDENIZATÓRIA – NÃOINCIDÊNCIA.

(grifos nossos – REsp 1037452/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 10/06/2008)

Após o conhecimento dos ilustrativos precedentes, reitere-se: o Superior Tribunal de Justiça, em inúmeras situações, dentre as quais a da incidência de imposto de renda sobre juros moratórios, vem negando a ocorrência da materialidade do tributo em questão a partir da exclusiva premissa de que a verba tem natureza indenizatória. Vem aplicando, portanto, o, com a devida vênia, inadequado entendimento de que toda indenização apenas recompõe o patrimônio.

Como se demonstrou ao longo do presente estudo, tal premissa não é verdadeira, sob o prisma técnico-científico.

Cabe ir além da genérica assertiva de que uma dada verba possui natureza indenizatória para se indagar sobre de que espécie de indenização estamos diante.

Isto é, não basta, para se decidir sobre a incidência ou não de imposto de renda sobre uma verba, concluir sobre o seu status de indenização, devese concluir se a verba em questão representa indenização-reposição ou indenização-compensação. Isso porque, como proclamado à exaustão, somente a indenização-reposição não acarreta acréscimo patrimonial, e, portanto, escapa do âmbito de incidência do imposto de renda.

Assim, ainda que o Superior Tribunal de Justiça, de fato, se pacificasse sobre a natureza indenizatória dos juros de mora, deveria, com o escopo de consolidar uma jurisprudência tecnicamente coerente, enquadrá-los como indenização-reposição ou indenização-compensação. Somente reputandoos indenização-reposição é que se mostra apropriado seja rechaçada a cobrança do imposto de renda sobre os juros de mora.

Ocorre que a indenização-reposição é aquela própria dos danos emergentes, que causam a subtração de riqueza pré-existente, e, por isso, apenas recompõem a riqueza que foi retirada, restabelecendo o patrimônio. Todavia, esse não é o caso dos juros moratórios.

Explica-se: para os autores civilistas que reconhecem a natureza indenizatória dos juros de mora, esse teria, no que tange à obrigação de pagar, a função de indenizar o tempo que o credor passa, em razão do atraso do devedor, sem poder usufruir da quantia devida como principal.

Nessa direção, como consigna o Professor Washington de Barros Monteiro, “dividem-se os juros em compensatórios e moratórios. Correspondem os primeiros aos frutos do capital mutuado ou empregado. Os segundos representam indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação”19. (grifos nossos)

Assim, se imaginarmos os juros moratórios como indenização, devese compreender que apenas o seu principal, se indenizatório for, é que poderá representar reposição patrimonial, repondo uma riqueza subtraída, pelo dano, do patrimônio do agora credor.

Deve-se perceber que os juros moratórios apenas surgem a partir da mora do devedor no pagamento do principal. Ora, os juros de mora consistem em riqueza que nunca antes fez parte do patrimônio do credor.

Importante que se repita: caso o principal seja uma indenizaçãoreposição, este, sim, irá devolver ao patrimônio do credor uma riqueza que lhe foi subtraída pelo dano causado pelo devedor.

Os juros de mora não: seja o seu principal verba de natureza remuneratória ou indenizatória, o fato é que os juros de mora acarretam entrega de riqueza nova ao credor, riqueza que não corresponde a qualquer valor pré-existente do seu patrimônio.

É por isso que, na hipótese dos juros de mora serem compreendidos como indenização, independentemente da natureza do seu principal, não cabe, por uma questão de coerência técnico-científica, enquadrá-los como indenização-reposição, pois não apresentam as características próprias dos danos emergentes.

Para que não restem dúvidas, propõe-se um questionamento retórico: os juros de mora corresponderiam, quantitativamente, a que riqueza pré-existente do patrimônio do credor? Responde-se: a nenhuma.

Assim, uma eventual natureza indenizatória dos juros de mora somente seria plausível concebendo-os como uma indenização-compensação, dada a sua proximidade conceitual com os lucros cessantes, já que os juros de mora teriam por desiderato compensar o credor pelo decurso do tempo em que não pôde usufruir do valor principal, investindo-o, por exemplo, e obtendo renda nova.

Sob essa ótica, em razão da frustração da expectativa do credor de utilizar, num dado período, o dinheiro a ele devido (valor principal) como melhor lhe aprouvesse, e até obter novas riquezas, por meio do seu investimento, é que se vislumbra a natureza indenizatória dos juros de mora.

Portanto, os juros de mora, concebidos como indenização, guardam estrita similitude com a indenização por lucros cessantes, já que aqueles não recompõem uma riqueza pré-existente subtraída em razão da mora, mas, sim, como os últimos, compensam a perda da oportunidade do credor de usar o dinheiro, naquele período, como bem entendesse, investindo-o e, até, vindo a obter novas riquezas.

O magistério de Orlando Gomes consiste em importante contribuição para esse entendimento, porquanto qualifica os juros de mora como uma presunção de indenização mínima, baseada em uma estimativa daquilo que o capital renderia caso estivesse em poder do credor:

Nas dívidas pecuniárias, as perdas e danos abrangem os juros moratórios, custas honorários de advogado, pena convencional e atualização monetária. É intuitiva a razão dessa especificidade. A privação do capital em conseqüência do retardamento na sua entrega ocasiona prejuízo que se apura facilmente pela estimativa de quando renderia, em média, se já estivesse em poder do credor” 20 (grifo nosso).

Com esteio nesse pensamento, infere-se que os juros moratórios têm o caráter de lucros cessantes, representando algo que o credor deixou de ganhar. É o que se presume que seria o rendimento mínimo do credor se dispusesse do capital.


O pensamento de Sérgio Cavalieri Filho robustece ainda mais a conexão entre os juros de mora e a definição de lucro cessante. Lembremos, conforme já tratado neste estudo, que, para ele, o lucro cessante é a perda do ganho esperável, o que corresponde, na exata medida, ao que Orlando Gomes vislumbrou nos juros de mora: a privação de um ganho esperável.

Por todo o exposto é que se conclui, de forma contundente, que se os juros moratórios indenização forem, independentemente da natureza do seu principal, sempre se enquadrarão como indenização-compensação, tais quais os lucros cessantes, pelo que, também sempre, incidirá imposto de renda sobre eles.

Logo, os juros moratórios vistos como indenização, independentemente do principal, somente corroboram a ocorrência de acréscimo patrimonial, materialidade constitucional do imposto de renda, não havendo que se falar em afastamento da tributação de tal imposto em razão de um genérico status de indenização.

Nesse diapasão, o estudo-de-caso da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça concernente ao imposto de renda sobre juros de mora serve como emblemático exemplo do mito da não-incidência desse imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória, o que reforça a fragilidade científica dos julgamentos predominantes no Poder Judiciário brasileiro acerca da tributação ou não de verbas que, a despeito de serem qualificadas como indenizatórias, podem acarretar obtenção de riqueza nova.

6 CONCLUSÃO

Em busca de clareza e objetividade, consigna-se, de maneira sucinta, que as conclusões que se extraem do presente trabalho acadêmico são as de que:

Notas

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 593. 2 CARVALHO, op. cit., p. 599.
3 CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit., p. 600.
4 GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 179.
5 QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. São Paulo: Manole, 2004. p. 89.
6 Entre as teorias que visam a explicar o conceito de renda, pode-se destacar a “[…] teoria da rendaacréscimo patrimonial, que vê a renda como todo ingresso, desde que passível de avaliação em moeda, independentemente de o ingresso ter sido consumido ou reinvestido, considerando na apuração da renda líquida a dedução dos gastos para obtenção dos ingressos e para manutenção da fonte. […] Segundo Hugo de Brito Machado, o CTN adotou o conceito de renda-acréscimo, pois, segundo esse professor, sem acréscimo não há renda nem proventos. Cf. QUEIROZ, Mary Elbe. Op. Cit., p. 69-70.
7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1998. p.189.
8 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 56.
9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva. p. 181-182.
10 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 337.
11 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 184.
12 RODRIGUES, Silvio. op. cit., p.185.
13 RODRIGUES, op. cit., p.189.
14 RODRIGUES. op. cit., p.191.
15 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 341-342.
16 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 72.
17 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 51.
18 QUEIROZ, Mary Elbe. Op. cit., p. 122.
19 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 345.
20 GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 188.

Referências Bibliográficas

AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
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O dever geral de vedação à elisão: Uma análise constitucional baseada nos fundamentos da tributação brasileira e do direito comparado

Autor: Daniel Giotti de Paula, Procurador da Fazenda Nacional em Itaboraí-RJ, pós-graduado em Direito Econômico e Empresarial pela UFJF, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, professor de Direito Constitucional no Rio de Janeiro.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – Atualmente, as bases da tributação são liberdade, igualdade e solidariedade. A livre iniciativa não pode implicar abuso das leis tributárias e condutas elisivas, violando a igualdade tributária, sobretudo em sua face de neutralidade fiscal entre os agentes econômicos, e o dever de solidariedade, requerendo de todos que paguem a quantia certa de tributos. O presente trabalho pretende analisar a norma geral antielisiva brasileira (o artigo 116, do CTN), investigando se ela deriva apenas de um dever geral de vedação a condutas elisivas com base nos princípios constitucionais tributários. Em seguida, busca-se uma nova abordagem da segurança jurídica, que seja adequada com a concepção de Sociedade de Risco de Ulrich Beck, na qual o direito, como técnica normativa, não mais é capaz de prever toda conduta humana e estipular para sua violação uma sanção. Ademais, o artigo testa como tem funcionado a aclimatação das doutrinas do propósito negocial e da substância sobre a forma no Brasil, partindose de uma perspectiva jurídica pós-positivista ou não-positivista. Ao final, mostra-se um modo dinâmico para se reconhecer condutas proibidas, utilizando uma interpretação das relações empresarias a partir dos critérios do tempo e contexto.

Introdução

Tive a grata oportunidade de participar do Seminário sobre Norma Geral Antielisiva , coordenado pela Receita Federal do Brasil, nos dias 04 e 05 de outubro de 2010, em Brasília. Palestrantes de renome nacional e internacional, autoridades públicas e professores universitários, ofertaram entendimentos e críticas sobre o tema.

Não é a primeira vez em que a Receita Federal do Brasil trata do tema, pois entre 06 e 08 de agosto de 2001 houve seminário internacional sobre elisão fiscal em Brasília, disponibilizado na forma de anais no sítio do órgão fazendário . Repise-se, inclusive, que houve tentativa de regular a matéria, por meio da Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 30.08.2002, cujos artigos 13 a 19, que tratavam da norma geral antielisiva, acabaram não sendo convertidos em lei.

No novo seminário realizado, que pretende dar subsídio para a fixação de parâmetros na regulamentação da norma geral antielisiva, alguns consensos foram firmados, segundo impressão pessoal: 1) a liberdade de conformação dos negócios privados pelo particular não está imune ao controle dos órgãos fazendários; uma vez que 2) o Direito Tributário não mais pode conviver com a tipicidade cerrada em um ambiente de solidariedade e neutralidade concorrencial da tributação; de modo que 3) deixar ao juízo exclusivo do Poder Executivo o estabelecimento do que seja ou não prática elisiva pode gerar insegurança e arbítrio.

A partir dessas premissas, das quais não me afasto, proponho estudo sobre a existência de um dever geral de repúdio a normas elisivas, fundamentada em tríplice base jurídico-normativa: solidariedade, isonomia tributária e neutralidade concorrencial da tributação e à segurança jurídica. Amparo-me, sobretudo, na experiência italiana, muito bem explorada por Marco Greggi, professor de Direito Tributário e Direito Tributário Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Ferrara durante o seminário, propondo uma leitura eminentemente constitucional do tema do planejamento tributário.

Sob esse viés, pretendo provar que não existe uma necessidade propriamente de ter sido inserida uma norma geral antielisiva no ordenamento jurídico brasileiro, estando ela dentro de uma visão nãopositivista do direito, que repele qualquer abuso nas formas jurídicas, ao tempo, porém, em que defende ser interessante, do ponto de vista jurídicoeconômico, estabelecer um procedimento claro de repúdio às condutas antielisivas, sobretudo no caso das pessoas jurídicas, cuja economia de tributação pode levar a conquistas de mercado. Segurança jurídica, sim, mas em termos pós-modernos, em uma sociedade de risco.

Por outro lado, repele-se qualquer tentativa antidemocrática e antirepublicana das autoridades fazendárias em fazer uso da norma geral antielisiva como expediente para aumento arrecadatório , ao mesmo tempo em que se critica postura que enxergue em pretensa liberdade negocial o espaço para que o dever de todos contribuírem com as despesas públicas seja desrespeitado.

No estabelecimento de critérios, deixa-se fixado que, no caso de práticas utilizadas por sociedades empresárias, mormente aquelas que atuem em campos altamente competitivos, que culminem na redução de pagamento de tributo, a análise do Fisco não pode desconsiderar os desequilíbrios gerados. No caso de uma prática elisiva cometida por uma pessoa física, embora a isonomia tributária seja afetada, pode-se graduá-la como menos lesiva juridicamente. Essa diferenciação, inclusive, pode levar a tratamentos diversos quanto às multas a serem aplicadas, a partir da lesão a bens jurídicos diversos.

Invade-se o campo aberto dos princípios, por óbvio, pois muitas vezes um princípio pode ser afastado em detrimento do outro. No entanto, optase aqui por se fazer um juízo duplo de proporcionalidade ou razoabilidade de medidas que possam constituir práticas abusivas, é dizer, estabelecem-se critérios apriorísticos na legislação tributária do que não seja vedado, embora no caso concreto se possa caracterizar uma prática como abusiva.

2 A liberdade , a igualdade e a solidariedade como fundamentos da tributação

O Direito atual, afastando-se do liberalismo político clássico, não trabalha mais no campo da liberdade absoluta. Discute-se, nos lindes do Estado Democrático de Direito, o status que a liberdade deve ter. Não que se esqueça da influência da filosofia contratualista na formulação do próprio conceito de Estado, concebido como um ente abstrato para garantir a segurança dos cidadãos, antes ameaçados por um ambiente no qual todos podiam tudo. Uma pretensa liberdade absoluta, sem limitações institucionais, escondia o risco de se instaurar uma guerra de todos contra todos (HOBBES, 2003: 109).

Liberdade e igualdade andam pari passu nesse sentido. Poder-seia argumentar que em uma sociedade sem Estado a igualdade tenderia à plena concretização, pois os bens estariam disponíveis ao alcance de todos. Mas isso nada mais é que a gramática ilusória da igualdade (VEIRA, 2006, p. 283), pois seria a institucionalização do monopólio da força, como o veículo próprio da conquista dos bens da sociedade.

A solução inicial, e aqui se está pisando sobre o terreno do Estado de Direito, foi conceber o Estado como um ente que garantisse a segurança, interferindo o menos possível no campo da autonomia privada dos agentes econômicos.

No que concerne à tributação, tinha-se uma visão individualistaprotetiva, de modo que se criaram normas jurídicas veiculando proibições ou restrições à atividade estatal. Falava-se aqui nos princípios da legalidade, irretroatividade, anterioridade e tipicidade (GRECO, 2009).

Dentre os princípios, o mais importante era o da legalidade tributária. Embora se possa associá-lo a movimentos anteriores às revoluções liberais do Século XVIII, como à Magna Carta de 1215, estreme de dúvidas que ele encontrou eco, sobretudo, nas constituições surgidas após as revoluções americana e francesa. Do princípio derivou a máxima no taxation without representantion, assumindo-se que como a tributação invadia a esfera de liberdade privada só o consentimento poderia levar à legitimidade do tributo (LODI, 2008: 216-217).

Com a criação de Estados Sociais, tentaram-se anular os reducionismos que a proposta liberal fazia da sociedade, que em essência mantinham uma gramática ilusória da igualdade, pois se contentavam apenas em mitigar a força física como critério justo de distribuição de recursos por outros tipos de força, mais veladas, como a força política, a força econômica, a força social etc.

O discurso de que com liberdade se garantia um campo próprio para a realização do homem escondia as relações de hipossuficiência que os momentos constituintes ignoravam.

Criaram-se, então, direitos econômicos, sociais e culturais, tentativas de o Estado equilibrar relações que, analisadas sob o prisma da realidade, já se regiam pela diferença e não pela igualdade. O direito de propriedade, por exemplo, não era mais visto como absoluto, devendo atender a uma função social . Essa tentativa de conciliar liberdade e igualdade gerou releituras em todo o Direito, não ficando o Direito Tributário infenso ao novo papel que se lhe atribuía.

A partir dessa nova perspectiva, os tributos deixam de ser excepcionais, passando a instrumentos de receita pública derivada, dos quais, continuadamente, o Estado se valia para atender aos objetivos assumidos na redução das desigualdades sócio-econômicas.

Nesse sentido, não bastava mais a observância de critérios formais para se chegar à juridicidade de um tributo, sendo importante a observância da capacidade de cada cidadão ou sociedade empresária para arcar com a tributação devida.


A dinâmica das relações sociais, porém, não se contentou com a pretensa conciliação entre liberdade e igualdade. Não bastava a mera preservação de um espaço próprio para a realização do ser humano, nem que as desigualdades fossem atenuadas por atuação do Estado ou de particulares, tornando-se premente um terceiro passo, dando-se concretude ao valor da solidariedade.

Na verdade, sem adotar a postura de que tributo é norma de rejeição social, parece que “é um fato cultural, histórico, desconfiar do Estado e ver a arrecadação dos impostos como ‘subtração’, ao invés de contribuição a um Erário comum” (SACHHETO, 2005: 14).

Além de se buscar igualdade material no ônus de suportar a carga tributária, enfatiza-se um dever geral de que todos arquem com o custeio das despesas públicas. O exemplo mais claro de país em que se adota, expressamente, a solidariedade como fundamento da tributação é a Itália, em cuja Constituição está estabelecido que “todos devem concorrer com as despesas públicas em relação com sua capacidade contributiva” (art. 53, da Constituição italiana).

Segundo o jurista italiano Claudio Saccheto, a mudança não é apenas semântica, significando, sim, que a prestação tributária deixa de ser entendida como “fruto de uma auto-imposição da comunidade organizada à vista da atuação dos valores compartilhados de liberdade e dignidade da pessoa humana, mas, ao contrário, como imposição heterônoma desarticulada das razões do vínculo social mais geral e abrangente, entre aqueles que se entrelaçam na comunidade politicamente organizada” (SACHETTO, 2005: 14).

A seguir, o tributarista pontua que a Constituição italiana fez uma opção pela solidariedade como “critério de avaliação primária do legislador quando tiver de decidir se os interesses que irá regular devem ser entregues à autonomia privada ou a disciplinas de natureza pública” (SACHETTO, 2005: 14).

Essa idéia, expressa na Constituição italiana, porém, não é meramente paroquial. No Brasil, entende-se que a solidariedade na tributação advém do próprio propósito que se tem com o Estado brasileiro de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, CF).

Infelizmente, os estudos sobre a solidariedade como fundamento da tributação, no Brasil, não têm o mesmo grau de sofisticação da doutrina italiana, que chega a diferenciar o tratamento fiscal dado a residentes e estrangeiros: os primeiros onerados em razão da solidariedade política; os outros, em razão da solidariedade econômica e social, muito embora se reconheça, por obvio, que o fundamento é um só – a solidariedade – e que a diferenciação entre uns e outros é de quantidade de obrigações advindas (SACHETTO, 2005: 19-20).

A partir dessa perspectiva, não há como se entender o tributo apenas radicado na liberdade, como se fora prestação correspectiva-comulativa diante da distribuição de vantagens específicas para o obrigado, mas como dever de concorrer para a própria subsistência do Estado (SACHETTO, 2005: 21).

Não se deve olvidar, portanto, que o tributo, embora originariamente vinculado às liberdades civis, atualmente, ganha contornos mais amplos. Prossegue sendo o preço da liberdade, segundo Ricardo Lobo TORRES (2005:567), com apoio na lição de Josef Isensee, mas tem algo mais, pois representa, a um só tempo, um dever fundamental e gera o direito de exigir a prestação de serviços públicos.

Se esse entendimento pode ser mais aceitável para os tributos vinculados, como as taxas e as contribuições, parcela considerável na doutrina, apegada a um textualismo jurídico, que erige legalidade e tipicidade como vigas-mestras do sistema tributário, tem dificuldades em ver essa característica nos impostos. Afinal, os impostos não têm destinação específica, é a lição dada pela doutrina tradicional.

Essa visão jurídica encontra eco na análise econômica da atuação dos agentes privados. Segundo o economista Luiz Arruda VILELLA (2002:33), embora coletivamente se perceba certo equilíbrio entre o que a sociedade paga a título de tributo e aquilo que recebe em contraprestação, o agente privado sabe que não existe essa correspondência unívoca entre o que paga e o que recebe. Essa postura se mostra racional economicamente, pois a ausência de recolhimento de tributo, encoberta por uma prática aparentemente lícita, não gera a suspensão dos benefícios estatais, afinal a máquina judiciária continuará a existir, os serviços públicos continuarão a ser prestados.

No entanto, além da questão de os impostos poderem ter parte de suas receitas constitucionalmente definidas, o que mais interessa marcar é que muitas vezes essa postura textualista, exigindo uma previsão cartesiana de quais condutas são ou não tributáveis, não se compatibiliza com o discurso que cobra do Estado a concretização de uma infinidade de direitos fundamentais que a pródiga Constituição brasileiro nos relegou.

Nega-se, portanto, a face oculta dos direitos fundamentais, que são os custos necessários para sua implementação (HOLMES; SUSTEIN, 1999), obtidos pelo Estado, sobretudo, pelo pagamento de tributos, falando-se, em um dever fundamental de pagar tributos.

Fique esclarecido que não só os direitos de segunda e terceira gerações , mas também as liberdades civis, envolvem custos, como é o caso da propriedade, cuja garantia se liga umbilicalmente à existência de um aparato repressor, como a polícia, e de um órgão capaz de afastar práticas lesivas ao patrimônio privado, como o judiciário.

Afasta-se, porém, o senso comum de que os deveres negativos não implicariam custos (SILVA, 2008: 591), de modo que nenhum direito persevera com o Tesouro vazio (HOLMES; SUSTEIN, 1999: 121).

O conceito contemporâneo de tributo, assim, não pode afastar o fundamento da solidariedade, embora deva ser temperado com os valores da liberdade e da igualdade, que não foram superados, por óbvio. Os direitos ligados à liberdade e à igualdade, classicamente, foram relidos a partir da solidariedade . O planejamento tributário, decorrente da liberdade de iniciativa dos contribuintes, é um exemplo dessa releitura.

3 Planejamento tributário e autonomia da privada a partir de uma leitura constitucionalmente adequada : leituras constitucionais possíveis por distintos órgãos estatais

Não se vive mais sob as hostes de um liberalismo político clássico, em que a liberdade ganha contornos absolutistas. Tampouco se espera, na atual quadra histórica, que se viva sob o manto de um Estado totalmente paternalista, o qual, pressupondo que os cidadãos não tenham a capacidade racional para realizar suas próprias escolhas, tente normatizar todos os âmbitos da vida (GARCÍA, 2005).

O Estado Democrático de Direito admite que haja um espaço próprio para a livre atuação dos indivíduos nas mais variadas esferas, entre as quais a econômica, por óbvio, mas, assumindo que a liberdade sem limites pode levar a uma situação de opressão de uns pelos outros, opta por colocá-la no mesmo plano de outros valores, como a igualdade e a solidariedade.

Essa opção por conjugar valores que podem, concretamente, conflitar entre si, levou a adoção também de normas jurídicas que, sob o prisma dogmático-jurídico, podem colidir, reclamando dos intérpretes juízos de ponderação.

Tratando especificamente da autonomia privada, se essa era louvada como a essência de um Estado liberal, ao qual caberia apenas se autoconter e conter os outros indivíduos para não agir em posição conflituosa contra a liberdade dos sujeitos de direito; nas Constituições dos Estados Sociais, que estabeleceram metas para a atuação do Estado e da sociedade e inseriram um catálogo de direitos econômicos, sociais e culturais, não mais tutelaram uma autonomia da vontade hipertrofiada, cobrando de todos atuação que vise à concretização das muitas promessas constituintes assumidas.

Essa equação ficou mais complexa, quando os Estados Democráticos de Direito incorporam direitos fundamentais novos, ligados à solidariedade, como a busca de um meio-ambiente equilibrado, paz mundial e tolerância entre os povos.

Nesse sentido, um direito classicamente erigido como liberal, que é o da propriedade, foi relido, primeiro para vedar que ela tivesse uma função puramente egoística, servindo a caprichos e, finalmente, para que, além de atender a interesses sociais, não colocasse em risco o meio-ambiente. Daí que hoje se fale em função sócio-ambiental da propriedade.

É que, segundo lição comezinha da dogmática constitucional, os direitos fundamentais não se sucedem em gerações, sendo conquista dos povos que merecem releituras conforme mudanças da própria sociedade.

Tal lição parece não ter sido compreendida em sua inteireza por parte da doutrina tributária que defende a possibilidade de um planejamento tributário absoluto. Marciano Seabra de Godoi coloca que essa postura parte de certos valores arraigados e que não mais se compatibilizam com o atual estado de arte da dogmática constitucional e tributária nacional, quais sejam,


o tributo visto como uma agressão ou um castigo que se aceita mas não se justifica; a segurança jurídica como um valor absoluto; a aplicação mecânica e não valorativa da lei como um mito sagrado; o individualismo e a autonomia da vontade sobrevalorizados e hipertrofiados, como se vivêssemos em pleno século XXI (GODOI, 2010: 4).

Frise-se que essa maneira de enxergar o problema, que parece retomar a liberdade em sua fase primeira, e por isso incompatível com a Constituição Federal de 1988, bem diversa das Constituições liberais do século XIX, não vem sendo aceita pelos órgãos fazendários . Ademais, essa perspectiva tem sido afastada por doutrinadores que se esforçam por encontrar um conceito constitucionalmente adequado para o planejamento tributário.

Proposta interessante é de Marcus Abraham (2007). O professor carioca erige como premissas necessárias para o entendimento adequado do problema: 1) a aproximação entre o Direito Público e o Direito Privado, instaurando-se mútua influência entre as normas de cada um deles; 2) a introdução de uma preocupação com o reflexo externo dos negócios particulares pelo Novo Código Civil, a partir dos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da ética social.

Daí que Abraham conclua que, como o Direito Tributário é um direito de sobreposição, na análise dos negócios particulares realizados pelos contribuintes, deve a autoridade administrativa, ao dar apreciação fiscal a esses fatos, atos e negócios jurídicos, considerar se o propósito econômico dos negócios é apenas o de reduzir a carga tributária, não havendo um motivo intrínseco ao próprio negócio, sob pena de declaração da nulidade.

Perceba, porém, que o valor que norteou um novo direito civil constitucional, no Brasil, foi a solidariedade, compatibilizando-se com estudos da doutrina tributária brasileira que colocam a solidariedade como fundamento da tributação.

Com base nessas poucas premissas, soa desnecessária uma norma geral antielisiva, podendo os próprios Tribunais Superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) como unificador da legislação federal, interpretando a apreciação pelo Fisco dos negócios jurídicos com fulcro nos parâmetros do novo direito civil brasileiro, e o Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião maior da Constituição Federal, fazendo juízos de ponderação entre livre iniciativa, capacidade contributiva e dever fundamental de pagar tributos, construir jurisprudência segura quanto ao planejamento tributário, adotando como parâmetro um dever geral de vedação a condutas elisivas.

Assim, têm atuado os tribunais italianos. Embora seja o exemplo, por excelência, de um direito estatutário, fez-se a opção por uma construção pretoriana ao tratar do tema, o que é muito válido nesses tempos em que a dinâmica das relações econômicas caminha mais rápido do que o processo legiferante, tema melhor explorado abaixo, quando se tratar da segurança na sociedade de risco.

A experiência constitucional italiana dá bons exemplos de como se deve entender a autonomia privada em termos de planejamento tributário. Consolidou-se que qualquer negócio empresarial ou decisão econômica, tomada com o propósito único ou principal de reduzir a carga tributária é uma violação do dever de solidariedade, que se traduz na capacidade e na obrigação de todos pagarem (o montante correto) de tributos.

Essa visada principiológica ao tema permite desmistificar a tese de que a fonte para a desconsideração de operações elisivas é diretamente legal, e não constitucional. Nesse sentido, ainda que não existisse uma norma geral antielisiva e normas de legislação tributária que apontassem pela vedação a práticas que visem exclusivamente a redução de carga tributária, os agentes fazendários e os juízos poderiam afastar condutas elisivas.

Isso leva à pergunta: existiria um dever geral de respeito às normas impositivas? O propósito negocial deve ser levado em conta? A substância sobre a forma pode ser invocada? Esse tema é constitucional ou de legislação infraconstitucional tributária?

4 O resgate dos fatos pelo direito e as teorias da argumentação: a construção de um dever constitucional de se afastar práticas elisivas

O artigo 116, parágrafo único, do CTN, gera celeumas das mais variadas. Já foi dito que ele introduziu uma norma geral antielisiva, antievasão, antielusão, antidissimulação. Apropriando-se de um termo de Nelson Azevedo JOBIM (2002: 93), a doutrina tributária sobre elisão é anárquica e parece um extraordinário caos de idéias claras. O que, afinal de contas, é elisão? Ela é lícita ou ilícita?

Há quem adote uma divisão tripartite quanto às condutas de planejamento jurídico, que poderia caracterizar evasão, elisão e elusão, utilizando na diferenciação critérios cronológico, causal, econômico e sistemático (CALIENDO, 2009: 237-238).

Não existe dúvida de que a evasão se realiza após a ocorrência do fato gerador, por meio de “conduta de má-fé do contribuinte, por ação ou omissão, de descumprimento direto, total ou parcial, das obrigações ou deveres tributários” (CALIENDO, 2009: 238).

Os dois outros conceitos, ao contrário, têm levado a enormes discussões na doutrina, embora haja predominância no entendimento de que elisão configura “uma conduta lícita em planejar os negócios privados de modo a produzir o menor impacto fiscal” (CALIENDO, 2009: 238), enquanto elusão seria “conduta em que o contribuinte modifica e distorce artificiosamente as formas jurídicas de sua atuação, com o objetivo de se colocar fora do alcance de uma norma tributária ou com o objetivo de se colocar dentro de um regime tributário mais benéfico criado pela legislação para criar outras situações” (GODOI, 2010: 2).

A opção do legislador brasileiro, porém, aponta para se entender que ao lado da evasão, sempre ilícita, existiria a elisão, que poderia ou não ser lícita. Assim, o artigo 116, do CTN, parágrafo único, quer evitar justamente a elisão considerada lícita, mas inoponível perante o Fisco (TROIANELLI, 2010: 47). Saber o que é elisão inoponível é um problema de difícil solução. Seria o abuso das formas jurídicas? A realização de negócios privados sem o propósito negocial?

Ainda não se tratará dessa questão, antes sendo necessário enfrentar a crítica de parcela considerável da doutrina, no sentido de que o dispositivo gera insegurança jurídica e depende de lei ordinária para ser aplicado. Mas será que os planejamentos tributários inoponíveis podiam ser feitos antes da Lei Complementar (LC) 104/2001 e agora estão vedados? Será, porém, que essa vedação ainda depende de leis ordinárias federais, estaduais e municipais fixarem procedimentos para que a autoridade fazendária possa “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”?

Por óbvio, qualquer planejamento tributário que envolvesse atos e negócios fraudulentos ou simulatórios pode ser desconsiderado por autoridades fazendárias ou por juízos e, aqui, muitas vezes, poderia resvalar o campo da ilicitude.

Na jurisprudência do STF, encontram-se julgados de fins da década de cinqüenta, em que o Tribunal desconsiderou contrato de seguro, resgatado prematuramente, apenas com o fito de o contribuinte fazer jus à dedução de imposto de renda. A decisão do Tribunal se deu sob a alegação de o ato do contribuinte ter fraudado a lei tributária, frustrando “a aplicação de normas a ele naturalmente aplicáveis”.

A construção da fraude à lei, criticada por muitos juristas, se antes poderia merecer uma reprimenda maior sob regimes constitucionais de feição liberal, não resiste a ordenamentos que apresentam uma feição social e deixam marcado o dever fundamental de pagar tributos, de modo a que todos arquem com os custos dos direitos.

Não pode soar natural, portanto, que uma lei tributária, prevendo determinada carga tributária, direcionada a todos contribuintes cujos atos se inseriram em determinada realidade econômica captada como hipótese de incidência, possa ser afastada por ardil.

Marco Aurélio GRECO (2009: 8), nesse sentido, coloca que a norma geral antielisiva, prevista no art. 116, CTN, apenas explicita algo “que já decorre do ordenamento jurídico, ou seja, não há proteção a condutas que visem neutralizar a eficácia ou a imperatividade de seus preceitos”.

É claro que não se veda a econômica de opção, é dizer, a escolha que se pode fazer entre se realizar ou não o fato gerador de um tributo (LAPATZA, 2006: 132). Como exemplo, entre optar pela aquisição de uma casa e de ações, pode o contribuinte fazer uma escolha por adquirir ações, sabendo que o ganho de capital não será tributado.

Antes de a doutrina tributária se perder na questão de se adotar ou não uma visão causalista no planejamento tributário ou ficar em estéril decisão sobre adotar o Direito Tributário uma tipicidade fechada – como se isso fosse possível em uma sociedade de risco -, vejo que a solidariedade como fundamento da tributação trouxe uma visada principiológica ao planejamento tributário, de modo que se entende que a liberdade de conformação dos negócios privados não pode frustrar a própria razão de ser da norma impositiva tributária, que é carrear recursos ao Estado para o atendimento dos direitos fundamentais.


Um princípio, portanto, pode vir a ser violado, sem que uma regra seja atacada. Duas pessoas que constituem uma sociedade, uma integralizando capital; outra, um imóvel, que, acaba sendo vendida para gerar pretenso fluxo de caixa para a pessoa jurídica. Se em espaço curto de tempo, a sociedade é desfeita, gerando ganho de capital para os dois sócios, evitando-se a tributação que o sócio deveria arcar, caso vendesse o imóvel como pessoa física, embora não se vislumbre a ofensa direta a alguma regra jurídica de direito civil – a venda foi realizada conforme as prescrições do Código Civil brasileiro –, de direito empresarial – a sociedade pode ser desconstituída pela livre vontade dos sócios a qualquer tempo – ou de direito tributário, vê-se que a causa do negócio foi elidir o pagamento de um tributo e não o exercício de uma atividade empresarial, afetando a capacidade contributiva, a igualdade tributária (ou no caso de pessoas jurídicas, a neutralidade concorrencial) e a solidariedade.

Claro que o fator tempo – a perenidade ou não do negócio praticado – não deve ser havido como critério absoluto de análise, pois circunstâncias empresarias podem levar a que uma sociedade seja desconstituída em pouquíssimo tempo. Um cotejo entre o que se obteve com a venda do imóvel e o efetivo investimento realizado no negócio pode deixar claro que havia apenas um propósito negocial, que foi frustrado pelo mercado.

Coibir práticas elisivas, portanto, não pode ser mera retórica, nem desculpa para aumentar arrecadação, inserido em um projeto maior de reaproximação da moral e do direito.

Não se contenta mais com o feitichismo da lei, como se os códigos pudessem tudo prever. Nem se toma a forma sobre a substância. Atualmente, valoriza-se a inquirição sobre os motivos e as intenções dos sujeitos de direito, mas sem cair em um subjetivismo, antes analisando as condutas a partir de um prisma de objetividade.

Nesse sentido, não se entende a insistência em defender que, como o Direito Tributário trabalha com tipos, não se poderia perquirir o propósito negocial dos atos segundo o ordenamento jurídico brasileiro. A doutrina do propósito negocial (business purpose) e da substância sobre a forma (substance over form), segundo Arnaldo Sampaio de GODOY (2010), foi fixada a partir de 07 de janeiro de 1935 pela Suprema Corte dos Estados Unidos (case Gregory v. Helvering).

Trata-se de postura jurisprudencial que pronunciou ser a substância negocial e, não a formatação jurídica do negócio, a demarcadora do alcance fiscal das transações (GODOY, 2010).

Hamilton Souza DIAS e Hugo FUNARO (2007: 63) defendem que o art. 109, CTN, atendendo o art. 146, III, CF, afastaria a possibilidade de a substância econômica prevalecer sobre a forma jurídica.

Trata-se de postura que pretende ler a Constituição pelas lentes do direito infraconstitucional, na medida em que se pretende fixar que apenas se existir lei complementar estabelecendo efeitos tributários para o abuso das formas de direito civil sem propósito negocial, poder-se-ia descaracterizar o negócio jurídico.

Lê-se, em tiras, a Constituição, desconsiderando que as ordens econômica, social e tributária devem ser interpretadas em conjunto e, mais que isso, sendo a solidariedade um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, não se pode admitir que haja uma liberdade absoluta no uso das formas jurídico-civis e empresariais, a ponto de frustrar princípios caros à tributação, como a capacidade contributiva e a isonomia.

Entender, portanto, que esses princípios se dirigiriam apenas ao legislador, e não ao intérprete (DIAS; FUNARO, 2007: 64), é desconsiderar uma nova perspectiva do direito nas sociedades contemporâneas, que não podendo ser extraído de uma única fonte social acaba sendo interpretado por vários atores sociais, a começar pelo próprio contribuinte que, previamente e analisando a jurisprudência administrativa e judicial, realiza a conduta que lhe parece adequada e menos onerosa do ponto de vista fiscal.

O pós-positivismo ou as teorias não-positivistas contemporâneas apostam que haverá muitos casos difíceis, cujas soluções não se encontrarão em regras prévias e claras, de modo que os juízes precisarão inventar novo direito sem seguir as fontes sociais (CALSAMIGLIA, 1998: 214), sobretudo a legislação, incapaz de acompanhar a complexidade das relações humanas.

Afastando-se a hegemonia do legislador, não se pode admitir que o administrador não possa definir condutas como elisivas.

Embora atreladas ao common law, as doutrinas do business purpose e substance over form tem aplicação em países de direito legislado, como é exemplo característico a Itália.

Na Sentenza 1465/2009 , a Corte Italiana definiu que à Administração Tributária incumbe a definição do que seja planejamento tributário lícito, ou na tradução literal do termo, poupança de imposto.

Veja que essa decisão revela um ponto que será explorado no próximo tópico, que é o de que a Administração Tributária teria maior expertise para definir práticas lícitas ou não de planejamento tributário. Isso, porém, não afasta a participação do legislador que pode, a partir da experiência sobre o tema, prever leis e do judiciário, que pode sindicar atos e decisões administrativas.

O Direito Tributário recuperou a análise da substância dos atos, perspectiva que vem sendo chancelada, tanto pela jurisprudência administrativa , quanto pelo Judiciário.

A verdade é que se tem uma nova dimensão de entendimento do direito, que admitindo a limitação cognitiva do homem que, seja como legislador, seja como julgador, seja como administrador, seja como contribuinte, não consegue tudo prever, não mais se fiando que apenas as regras jurídicas possam dar conta de todo o fenômeno tributário, como se fosse possível estabelecer todas as hipóteses de incidência para um tributo e quais as condutas do contribuinte se adéquam ou não ao fato gerador.

Não, por acaso, a legislação que regulamentou o artigo 116, parágrafo único, a MP 66/2002, que acabou não sendo reeditada, veio a colocar a falta de propósito negocial ou o abuso de forma como critérios na desconsideração do ato ou negócio jurídico (art. 14, parágrafo primeiro, MP 66/2002).

Essa maneira de encarar o fenômeno tributário, portanto, guarda pertinência com um novo modo de encarar o direito. O Direito não é mais um punhado de regras que tenta captar os fenômenos possíveis em sua completude, deixando uma discricionariedade forte para o juiz na hora de resolver as lacunas possíveis.

Nesse ponto, veja que o próprio Código Tributário Nacional tentou limitar a atuação dos magistrados e, nesse sentido, foi aquém da própria proposta do positivismo normativista.

Seja como for, não se admite mais que o Direito esteja reduzido a regras, recebendo influxo importante dos princípios que acabam por limitar a possibilidade de lacunas no ordenamento jurídico.

As teorias não-positivistas, dando força normativa aos princípios jurídicos, no entanto, não deixaram o terreno aberto para que se tivesse um decisionismo judicial exarcebado. Na verdade, dois dos maiores entusiastas da força normativa dos princípios, costuraram teorias que mostram estar o magistrado atrelado à discricionariedade fraca, seja porque existe apenas uma única decisão correta, na medida em que o magistrado deve estar circunscrito à jurisprudência firmada em observância aos princípios constitucionais e aos próprios valores morais de uma sociedade (Ronald DWORKIN, 1997 e 2003; FIGUEROA, 1998), seja porque existem concretizações de princípios jurídicos que os próprios legisladores fazem, ao editar as regras jurídicas, e a construção de sólida jurisprudência em tema de princípios constitucionais (Robert ALEXY, 2001 e 2008).

As duas propostas teóricas acabaram por oferecer base para a construção das teorias da argumentação jurídica, colocando ênfase especial na construção de argumentos racionais, construídos em ambientes de discursos livres, para se encontrar os sentidos consensuais dos textos jurídicos (ATIENZA, 2007).

Do ponto de vista puramente jurídico-normativo, sabe-se que na maioria dos Estados Democráticos de Direito, a motivação de atos decisórios é uma necessidade para a própria validade da decisão. Daí que o perigo de lidar com princípios redundar em mero decisionismo seja mitigado, construindo-se um ambiente em que para se afastar uma regra jurídica ou um precedente judicial exige-se um ônus argumentativo (BRANCO, 2009: 243).

É, por isso, que não se admite lógica a tentativa de se introduzir discussões sobre o abuso de formas jurídicas e o desrespeito ao propósito negocial para aferição da licitude de um planejamento tributário desnatura a tipicidade cerrada do Direito Tributário, que deve se utilizar apenas de regras claras e prévias na definição do fato gerador e de todos os outros elementos do tributo.

Além de o propósito negocial ter raiz no direito norte-americano, a fraude à lei e o abuso do direito serem construções que o próprio Estado liberal já repudiava, havendo jurisprudência das décadas de 50 e 60 do STF as vedando, fato é que a interpretação econômica não mais merece a reprimenda que teve pela doutrina tributária , fruto de um uso enviesado e ideológico realizado pela Alemanha nazista, pois hoje se deve evitar a tributação de uma situação econômica sem lei; a legalidade sem capacidade contributiva; a segurança jurídica sem justiça (TORRES, 2002: 194).


Parece-me que os avanços conquistados no âmbito da teoria do Direito, muito embora possa sempre haver algum excesso, devem afastar qualquer preconceitos quanto às análises substanciais das condutas dos contribuintes que visem, apenas e tão-somente, a uma redução ou eliminação de carga fiscal, com abuso de formas jurídicas.

Nesse sentido, abandona-se qualquer tentativa de se criar uma interpretação que seja unicamente jurídica e uma subserviência total do Direito Tributário ao Direito Civil, representada pela Escola Positivista do Direito Tributário brasileira, bem representada pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, como apontou o Ricardo Lobo Torres durante o 1º Seminário sobre Normal Antielisiva promovido pela Receita Federal do Brasil (TORRES, 2002: 193).

Nesse sentido, as normas antielisivas são fruto de um momento de pós-positivismo (ou anti-positivismo), e, embora aumentem a insegurança, refletem essa mudança rumo a um Direito Tributário que não admita elisão abusiva ou planejamento inconsistente (TORRES, 2005/2006: 5).

Entender o problema, porém, passa pela compreensão de um novo modelo de sociabilidade humana que foi instaurado pela sociedade de risco e que trouxe nova roupagem para a segurança jurídica, não tendo o planejamento tributário ficado ileso a essa mudança.

5 Segurança jurídica e planejamento tributário: o fator risco como mitigador da tipicidade cerrada e como critério de mensuração da multa por condutas elisivas

A história do surgimento do Estado pode ser contada como a gradual busca por segurança. Todavia, assim como todos os direitos fundamentais foram relidos durante os anos, a segurança que se objetiva, hoje, não é a mesma que se almejava nos albores do Estado de Direito liberal.

As teorias liberais se fiaram numa natureza humana invariável (ROUANET, 2003: 19), mostrando que, “arrancado de sua ligação umbilical com a natureza, o homem imaginado pela modernidade carrega um corpo que é pensado conforme a metáfora da máquina, e um psiquismo em última instância reduzido à consciência racional” (PLASTINO, 2008: 203).

Se como já dito o homem teme uma vida sem Estado, em que haveria guerra de todos contra todos, pode-se dizer que o medo é um constituinte importante da sociabilidade humana. O homem só avança vencendo seus medos, arriscando-se, como revela a evolução humana.

Riscos sempre houve e eram elementos importantes da constituição do individuo, a ponto de o burguês típico querer segurança nos mais variados aspectos de sua vida: contra concorrentes, que pudessem aniquilar seus negócios jurídicos; contra o Estado e seu ímpeto para a arbitrariedade; entre outros. Mas por que hoje se fala em uma sociedade de risco?

A resposta é que a sociedade atual vive sob o influxo de outros riscos. Segundo Ulrich BECK (1999), a aceleração do processo de globalização provocou, em nível mundial, um aumento das situações de risco, a ponto de se falar que vivemos numa sociedade de risco (Risikogesellschaft). Os riscos vêm de todos os lados. Verifica-se o risco de uma catástrofe ecológica, capaz de subverter os equilíbrios naturais do planeta; persiste o risco de uma destruição atômica que dizimaria a civilização; a instabilidades dos mercados financeiros pode levar a um colapso financeiro com efeito dominó imprevisível – e a crise econômico-financeira de 2008 corroborou o risco -; isso sem falar no risco do terrorismo, nome genérico e ambíguo a indicar um conjunto de complexas e globalizadas formas de violência.

Os riscos, assim como as riquezas, são distribuídos no interior da sociedade, constituindo posições de ameaça ou de classe. Mas ao contrário delas, que seguem uma lógica positiva de apropriação, eles são geridos por uma lógica negativa do afastamento pela distribuição (BECK, 2010: 31-32).

Fala-se, portanto, em sociedades de risco, marcada pela ambivalência, pela insegurança e pelo redesenho do relacionamento entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade (TORRES, 2005/2006: 6).

A ambivalência se dá com a impossibilidade de que se construam políticas públicas consensuais, já que várias medidas a serem tomadas pelo Estado, a par de gerarem benefícios para alguns, ensejam riscos a outros, que devem ser distribuídos.

Isso leva à modificação do próprio conceito de segurança. No Estado Liberal clássico, a segurança jurídica tinha por objetivo a proteção dos direitos individuais do cidadão (TORRES, 2005/2006: 6).

Na verdade, revela-se, acima de tudo, uma crença de que existe algo intrinsicamente bom na técnica normativa em que consiste o Direito, de modo que quando o poder político atua mediante normas prévias e conhecidas pelos destinatários, os sujeitos submetidos a ele tem a capacidade de prever o seu exercício e conformarem suas atitutdes. Essa previsibilidade acaba por dotar de certa legitimidade o poder jurídico e seu direito, independentemente do conteúdo das normas jurídicas (MANRIQUE, 1994: 247).

Assim, tinha-se a segurança jurídica como “a certeza a respeito do conteúdo das normas jurídicas vigentes e a respeito do fato de que as normas jurídicas vigentes são aplicadas de acordo com seu conteúdo” (MANRIQUE, 1994: 483), conceito capaz de atender propostas teóricas do direito tão dispares como as de Gustav Radbruch e de Hans Kelsen.

Esses autores, portanto, cujas teorias foram forjadas ainda sob um viés liberal, acreditavam que a segurança jurídica era apta a fomentar ou permitir a autonomia do individuo, valor tão caro ao homem moderno, pois lhe permitia adequar suas vontades pessoais aos comandos normativos (MANRIQUE, 1994: 486).

As normas jurídicas, em sociedades menos complexas, permitiam projeções seguras para o futuro, não sendo casual a ênfase que se dava na legislação como fonte social. Havia tempo para que o Legislativo analisasse a realidade e, a partir dela, estipulasse comandos genéricos e prospectivos sobre como a sociedade deveria atuar.

A sociedade de risco contemporânea, porém, marcada por acentuada complexidade, oferece outra realidade, de modo que não é possível prever todos os riscos existentes, o que desnatura um pouco a possibilidade de normas jurídicas serem genéricas, prévias e abstratas.

É que os riscos, mesmo aqueles que poderiam ser mensurados pelas ciências ditas naturais, baseiam-se num castelo de conjecturas especulativas, de modo que o risco pode esconder o ainda não-evento que desencadeia a ação (BECK, 2010: 36 e 39).

Há danos previsíveis e a crença num suposto amplificador de riscos. Captando isso para o Direito Tributário, Ricardo Lodi aponta que, na sociedade de risco, a segurança ainda se volta para o passado, mas não pode, em absoluto, ser garantida para o futuro, de modo que a “mutabilidade da lei tributária muitas vezes é exigida pela dimensão plural da Segurança Jurídica e na Igualdade da Repartição de Receitas” (RIBEIRO, 2010: 14).

Ricardo Lobo Torres vai mais longe e trata do chamado risco fiscal, mal que pode surgir tanto da atuação de agentes estatais pelo descontrole orçamentário, da gestão irresponsável de recursos públicos e da corrupção; quanto do contribuinte pela sonegação e pela corrupção no trato com os funcionários da Fazenda e pelo abuso da forma jurídica no planejamento dos seus negócios ou na organização de sua empresa (TORRES, 2005/2006: 8).

O risco fiscal, no que tange ao planejamento tributário, passa a ser problema de capital importância para se atender aos fundamentos contemporâneos da tributação: liberdade, igualdade e solidariedade.

Assim, quem advoga a necessidade de a lei ordinária regular previa e especificamente todos os atos passíveis de serem enquadrados como elisivos ainda está preso a uma visão eminentemente liberal, em um mundo homogêneo e sem grandes abalos. Se um dia essa foi a realidade, não é mais.

O Estado Democrático de Direito, assumindo o papel de gerenciar riscos, aumentou, de modo que “a necessidade de financiamento de tais atividades estatais coloriu com novas cores o fenômeno da tributação, trazendo consigo o risco da quebra do Estado e as nefastas conseqüências que daí adviriam” (GUERRA, 2006: 215).

Daí que se possa concordar com a insuficiência normativa do art. 116, parágrafo único, do CTN, mas o que não afasta essa proibição constitucional de que os planejamentos tributários encubram desrespeitos às normas jurídico-tributárias, que sempre chegam com um déficit natural, dada a impossibilidade de prever totalmente o futuro.

A tipicidade cerrada não pode mais ser abraçada como a essência do direito tributário. Fala-se, hoje, em diálogo institucional entre os órgãos políticos (MUNHÓS SOUZA, 2010: 17), tendo ficado claro que qualquer pessoa é um intérprete autorizado da ordem jurídica, muito embora essa interpretação possa sucumbir diante de uma orientação administrativa, da edição legislativa ou da decisão final de um órgão judicial.


Tomando de empréstimo uma idéia atual de como se enxergar a interpretação constitucional, no sentido de que todos podem participar da formação da verdade, a partir da busca de um consenso, é possível se pensar que, no que toca ao planejamento tributário, contribuintes, membros dos órgãos fazendários, legislativo e judiciário, cada qual a seu tempo e em rodadas procedimentais diferentes, formatarão um inventário de atividades permitidas e atividades elisivas.

Nesse sentido, é pertinente a proposta de Marco Aurélio Greco, no sentido de que o art. 116, parágrafo único, CTN, deva ser regulado por lei ordinária apenas no que tange a aspectos procedimentais (GRECO, 2001: 437), de modo a que haja um procedimento administrativo, com a possibilidade de contraditório, e que o contribuinte possa mostrar sua boafé em atender ao dever fundamental de pagar tributos, mas apresentando uma conduta que possa implicar redução lícita no montante a ser pago.

Assim, não se abandonou a legislação como fonte por excelência do direito tributário – pelo menos é essa a intenção constitucional, um pouco frustrada por cada vez mais o Parlamento se manter inerte sobre a matéria -, mas não se pode desconhecer que, muitas vezes, é a autoridade administrativa quem tem experiência para regular o assunto e pode ter contato mais direto com a matéria – afinal, ela sabe as brechas utilizadas – e, a partir daí, tentar formular padrões de conduta (VILELLA, 2002: 36).

A experiência jurisprudencial brasileira mostra que a legalidade tributária não é absoluta, pois se chancelou a possibilidade de autoridade administrativa fixar o grau de risco da atividade preponderante de uma sociedade empresária para fins de estabelecer a alíquota do Segura sobre Acidente de Trabalho (SAT) . Essa guinada do dogma liberal da tipicidade fechada para a juridicidade e legalidade da sociedade de risco, aplaudida por parte da doutrina (LODI, 2010: 46), revela que nem sempre manter exclusivamente na arena legislativa o monopólio da produção do direito tributário implica atender os fins constitucionalmente colimados à tributação, muito embora não seja impossível que o Parlamento, a partir de dados estatísticos coligidos, venha a criar outros graus de risco no caso do SAT.

Assim, contribuintes, agentes do fisco, legisladores e juízes podem ter atuação relevante na definição de ser ou não uma conduta específica elisiva. Trata-se de incorporar a um processo administrativo-tributário, consultando o arcabouço jurisprudencial administrativo e judicial, elementos que permitam aferir condutas do contribuinte. Não havendo mais a crença em uma segurança jurídica absoluta, buscam-se indícios de quais práticas sejam lesivas e a partir daí fixam padrões de conduta, embora provisórios, pois uma nova rodada procedimental (MENDES, 2008: 166) de discussão pode ser aberta no judiciário, o que inclusive pode motivar alguma correção legislativa da jurisprudência.

Esse trabalho de construção compartilhada da verdade, não mais aceita como uma correspondência entre fato e realidade, na esteira do essencialismo lingüístico, também afasta uma pretensa vulnerabilidade cognoscitiva do contribuinte (MARINS, 2009: 40), pois se é verdade que é difícil acompanhar a legislação tributária, não é menos verdade que a criatividade humana na tentativa de realização de economia de tributos é inabarcável e, muitas vezes, a complexidade se deve à tentativa de se criar justiça fiscal, coibindo práticas elisivas e pugnando por isonomia nas relações jurídico-tributárias.

Por outro lado, não se deve desconsiderar que as autoridades fazendárias, quando quiserem afastar um planejamento tributário, possuem duplo ônus de prova, não lhe bastando provar a finalidade de elidir, mas também de qual fato gerador efetivamente ocorreu (DI PIETRO, 2002: 117).

Ademais, adotando-se a complexidade como um fato marcante da legislação tributária , não se pode tolerar a tentativa de impor multa de ofício, qualificada, para qualquer tentativa de economia de tributo.

Um primeiro ponto que chama a atenção é que a conduta do contribuinte deve ser analisada à luz da jurisprudência firmada ao tempo do ato ou negócio celebrado. Se havia reiterados julgamentos administrativos ou judiciais apontando para a oponibilidade de sua conduta ao Fisco como um planejamento tributário lícito e eficaz, não há razão para que se tente censurar a conduta, ainda que seja possível modular efeitos da decisão, no sentido de que a partir de determinado momento não mais se admitirá a “economia de tributo”.

Isso gera problemas em saber o que seria a jurisprudência reiterada. Se pode haver alguma zona cinzenta, no caso de, por exemplo, entre dez decisões, verificar-se que seis são a favor da inoponibilidade e quatro a favor da oponibilidade, a medida em que aumenta a diferença, dentro de um certo quadro temporário, fica fácil aquilitar qual a jurisprudência. Ademais, os próprios Tribunais administrativos e judiciais, não raro, apontam em uma decisão paradigma que estão empreendendo mudança de orientação, o que serve para aquilitar o marco inicial da nova jurisprudência.

O segundo ponto foi bem captado por Gabriel Lacerda Troianelli. Na verdade, analisando o art. 44, parágrafo único, da LF 9.430/1996 e a referência que esse parágrafo fez a dispositivos da lei 4.502/64, concluiu pela impossibilidade de aplicar-se a multa agravada aos contribuintes que, “às claras e sem tentar ocultar a ocorrência do fato gerador ou de algum de seus elementos, praticar ou negócios que, embora líticos, tenham seus feitos tributários desconsiderados pelo Fisco” (TROIANELLI, 2010: 55).

Deve, no entanto, ficar provado cabalmente a ausência de propósito fraudulento e ainda verificar se não há norma que rotule a conduta, imputando-a alguma multa em percentual próprio, em exercício legítimo do legislativo para coibir condutas que afetam os pilares constitucionais da tributação, desde que observe, por óbvio, os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Embora aponte que os artigos 17 e 18 da MP 66/2002 , deixavam claro que não deveria haver multa agravada no caso dos planejamentos tributários inoponíveis com base na boa-fé dos contribuintes (TROIANELLI, 2010: 55), seria bom, de lege ferenda, determinar a aplicação de multas agravadas para manifesta má-fé, que pode ser dar, por exemplo, para o caso de contribuintes que defendem, no âmbito do CARF, que existiam, de fato, estruturas empresariais diversificadas, enquanto no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), por hipótese, defendem que determinado arranjo empresarial apenas serviu para propósitos fiscais.

Após as investigações realizadas, chega-se ao derradeiro passo: como se verificar real propósito negocial e não mera tentativa de economia de tributo?

6 Análise dinâmica e complexa dos negócios privad os: os fatores tempo e contexto como vetores impres cindíveis na análise de planejamentos tributários à luz da livre concorrência e outros princípios constitucionais

A tributação se presta, dizem os economistas, a uma transferência de recursos do setor privado para o setor público, que pode gerar distorções na economia, orientando conduta dos consumidores conforme o preço de produtos e serviços, afetados pelos preços, proporcionais aos custos que os tributos geram.

Isso seria um efeito não-intencional da tributação que merece ser evitado pelo direito.

Todo agente econômico, portanto, tentará evitar o tributo, o que é normal em um processo de aquisição de riqueza. Sem importar com os rótulos jurídicos para essa prática, se elisão ou evasão, Luiz Alberto Vilella assevera que as economias de escala obtidas por um agente econômico que recolher menos tributo ou deixa de recolhê-lo, gera distorções no mercado.

Na verdade, essas distorções dependem de duas variáveis importantes: o número de competidores envolvidos e o peso da carga tributária nos custos envolvidos (VILELLA, 2002: 32). Quanto menor o número de competidores e maior a carga tributária, mais a tributação pode influir na concorrência, de modo que se torna difícil para que um dos players, o qual esteja de acordo com a tributação na forma abstrata e genericamente prevista na legislação tributária, concorrer com aqueles que evitam ou evadem tributos, mesmo que seja mais eficiente.

É bem verdade que há estudos que indicam que o repasse ao contribuinte de fato, o consumidor, é uma realidade brasileira, ainda carente de uma reforma tributária e de mais cidadania fiscal, concretizando o comando constitucional que visa a informar o contribuinte sobre o quanto se paga de tributo em cada produto ou serviço, enfim, que trague transparência fiscal (art. 150, § 5º, CF).

De qualquer sorte, o problema dos efeitos tributários para a concorrência não passou desapercebido ao legislador constituinte reformado que, nesse sentido, institui o artigo 146-A, CF, constitucionalizando expressamente algo que adviria implicitamente de outros princípios constitucionais (PAULA, 2008).

A neutralidade fiscal, termo preferido pela doutrina tributária européia, vem sendo aplicado no âmbito do direito comunitário europeu, servindo como orientação na feitura e interpretação da legislação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), de modo a que ele seja um tributo neutro, e, no campo das estruturas negociais, tem-se a neutralidade como fundamento para diretiva que conduza a edição de legislação européia favorável a rearranjos societários, transformando empresas nacionais em “comunitárias”, sem que a taxação diferente entre os países possa obstaculizar a restruturação (NOVOA, 2010: 5).


Se, no Brasil, ainda não se tem uma construção teórica e aplicação prática da neutralidade fiscal nos moldes europeus, tampouco se pode falar na inexistência de literatura jurídica sobre as conseqüências não-intencionais na criação ou majoração de um tributo (CALIENDO, 2009: 100), já tendo o próprio STF utilizado a neutralidade concorrencial da tributação como vetor de interpretação em caso, no qual se discutia, justamente, o perigo alertado pelo economista Luiz Alberto Villela de o não pagamento de tributos leva à grave distorção concorrencial em mercado oligopólico.

A neutralidade concorrencial da tributação, decorrente da igualdade diante e perante a lei tributária, surge como um fundamento último para a existência de um dever geral de vedação a condutas com exclusivo propósito negocial, de modo que não se bloqueie “a atuação individualizada da fiscalização, mediante a alegação de que a norma geral [de tributação] não abrange o seu caso, devendo ela, no seu entendimento, ser aplicada indistintamente, apesar das diferenças do seu caso” (ÁVILA, 2008: 19).

Assim, sem tentar se substituir a órgãos que visam justamente à proteção da concorrência, mas atuando em sintonia com o CADE, o Ministério da Justiça e o Ministério Público Federal (MPF), o Fisco deve analisar se rearranjos societários e de estrutura têm propósito negocial ou servem para mera economia de tributo.

A doutrina, analisando a jurisprudência administrativa brasileira, tem chegado a critérios que indicam a ausência de propósito negocial, marcando possível ofensa à concorrência por meio de planejamentos tributários. Nesse sentido, Luís Eduardo SCHOUERI (2010: 19) verifica três elementos interessantes para se constatar ausência de propósito negocial:

  1. o elemento temporal, já que muitas vezes se verifica que o planejamento, em geral atividade pensada e preparada, é realizada às pressas, com a assinatura de vários documentos em um único momento, alguns desfazendo transações que se celebram no mesmo instante;
  2. a independência ou não das partes, eis que muitas fusões, cisões e incorporações se dão apenas como forma de alocar perdas e ganhos entre empresas de mesmo grupo, sempre visando à redução da tributação;
  3. ausência de coerência, quando se realizam transações que não se inserem na rotina da empresa ou na lógica empresarial.

Marco Aurélio GRECO (2009: 8), a seu juízo, pondera que seriam indícios de mera tentativa de economia de tributo:

a) operações estruturas em seqüência, em que uma etapa não tem sentido a não ser quando vista a partir do conjunto de etapas […]; b) operações invertidas, no sentido de serem realizadas ao contrário do que indica o juízo comum, por exemplo, a incorporação da controladora pela controlada; c) operações entre partes relacionadas, pois nestas é mais rigoroso o juízo sobre os critérios de eqüitatividade em que devem ser feitas certas operações quando comparadas com operações com terceiros; d) o uso de pessoas jurídicas para realizar determinadas operações, pois além de poderem configurar uma interposta pessoa, estas sociedades podem se apresentar como meros instrumentos de passagens de recursos destinados a terceiros (conduint companies) ou assumirem a condição de sociedade aparentes, fictícias ou efêmeras; e) operações que impliquem deslocamento da base tributável para o exterior, pois isto afeta a soberania e a imperatividade da norma tributária; f) as substituições ou montagens jurídicas em que as formas contratuais são construídas meramente para vestir determinado conteúdo sem que haja razões reais e efetivas que as justifiquem.

Perceba que os dois juristas reconhecem que dois vetores são imprescindíveis na análise de quais condutas serão ou não oponíveis ao Fisco: o tempo e o contexto dos atos e negócios privados.

O antigo Conselho Superior de Conselhos Fiscais já analisou a ausência de propósito negocial a partir do vetor tempo:

ocorreu a proximidade temporal dos atos (uma hora entre a integralização de capital com ágio de cerca de 98% e a incorporação do ágio ao capital, e cisão no dia subseqüente); não havia causa econômica (além da economia fiscal) para o aumento de capital, que foi usado apenas como degrau para a objetivada alienação de participação societária; e seus efeitos foram desfeitos com a cisão. A simulação é incontestável.

No entanto, é necessária alguma cautela quando se toma o vetor tempo. LAPATZA (2006: 318) traz exemplo didático nesse sentido. Fala de uma pessoa, A, que deseja adquirir de outra, B, uma casa. Para evitar o pagamento de tributo, porém, constituem os dois uma sociedade, um aportando dinheiro; e o outro, a casa. Ao minuto seguinte, porém, dissolvem a sociedade, de modo a que A fique com a casa e B com o dinheiro integralizado, mostrando típico caso de “conflito de normas”, instituo espanhol que aqui poderia ser identificado com os negócios privados inoponiveis ao Fisco.

Se, porém, a sociedade se dissolve, mas porque B descobre, no minuto seguinte à constituição da sociedade, que ela pegou fogo, necessitando de liquidez, a operação não deve ser desconsiderada.

A cautela também deve se verificar quando se pensa no contexto de realização do negócio.

Não basta olhar a legalidade apenas, de modo que se criou orientação jurisprudencial no sentido de que “o fato de cada uma das transações, isoladamente e do ponto de vista formal, ostentar legalidade, não garante a legitimidade do conjunto de operações, quando fica comprovado que os atos praticados tinham objetivo diverso daquele que lhes é próprio”

Destarte, tanto o vetor tempo, quanto o vetor contexto, devem ser analisados de forma dinâmica, de modo que se capte a realidade que se quer fotografar, na feliz expressão de Marco Aurélio Greco, em todos os seus quadros.

7 Conclusão

A liberdade, a igualdade e a solidariedade, como fundamentos contemporâneos da tributação em uma sociedade de risco e diante de uma visão não-positivista do direito, revelam que existe um dever geral de vedação a condutas com propósito exclusivamente de redução de pagamento de tributo e abuso de formas jurídicas. Esse dever geral se revela pelos fundamentos constitucionais da tributação: solidariedade, eficiência e isonomia.

Daí que o Fisco brasileiro venha, a par da ausência de regulamentação do art. 116, parágrafo único, do CTN, afastando atos e negócios privados.

Não obstante a desnecessidade de regras sobre o tema, sendo comum em vários ordenamentos jurídicos que a “norma geral antielisiva” seja construção pretoriana, extraída dos princípios constitucionais que regem a tributação, como o caso italiano, a regulamentação da maté


O propósito negocial e o planejamento tributário no ordenamento jurídico brasileiro

Autor: Miquerlam Chaves Cavalcante, Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual do Ceará.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – Pautado numa pesquisa bibliográfica da doutrina e das regras e princípios do ordenamento positivo nacional, o estudo identifica o propósito negocial como requisito para a validade jurídica de operações societárias em um ambiente de benefícios tributários delas decorrente. Fezse uma análise da legislação em vigor, seja sob a ótica de normas expressas, seja sob o prisma de princípios implícitos em nosso arcabouço jurídico. A pertinência da introdução de uma lei específica sobre o propósito negocial em nosso sistema jurídico não foi olvidada. Ponderamos as relações interdisciplinares de institutos, regras e princípios de direito constitucional, de direito civil e de direito tributário, que demonstraram a desnecessidade de alterações legislativas para uma correta solução de litígios em que se discute a ausência de propósito negocial. A importância da obra reside na identificação de critérios fático-jurídicos relevantes no julgamento de operações societárias que impliquem economia tributária, reduzindo-se, na medida do possível, o subjetivismo e a insegurança jurídica que permeiam o tema. Enunciamos finalmente alguns julgados no âmbito do contencioso administrativo fiscal que corroboram as conclusões de que a ausência de propósito negocial põe mácula em operações societárias levadas a termo para reduzir ou afastar a incidência tributária.

1 INTRODUÇÃO

A consolidação do Estado Democrático de Direito em nosso país, fruto do amadurecimento das instituições democráticas estabelecidas pela Constituição da República de 1988 – CF/88, tem promovido importantes e profundas mudanças nos diversos ramos do Direito.

Observa-se a cada dia a crescente influência dos princípios constitucionais de nosso direito positivo sob ramos até então impregnados por uma ótica privatista e patrimonialista. Os ventos constitucionais sopraram sobre o Direito do Trabalho, sobre o Direito do Consumidor e, notadamente, sobre o Direito Civil como um todo.

Especialmente no que se refere à interpretação de institutos clássicos do Direito Civil, a hermenêutica constitucional atribuiu nova roupagem, mais humana, mais democrática, enfim, mais social. Esse fenômeno recebeu conceituação própria. Trata-se da chamada “despatrimonialização” ou, como preferir, “constitucionalização” do Direito Civil (LENZA, 2008, p.3).

A nomenclatura sugere que o ponto central, ou seja, o destinatáriomor das normas civilistas passou a ser o ser humano, ao invés do patrimônio. Fala-se em constitucionalização pelo fato de a Constituição de 1988 calcar seus alicerces na dignidade da pessoa humana, e não no patrimônio.

Para Júlio César Finger (2000 apud LENZA, 2008, p.3):

Os princípios constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), que é sempre citado como um princípiomatriz de todos os direitos fundamentais, colocam a pessoa em um patamar diferenciado do que se encontrava no Estado Liberal. O direito civil, de modo especial, ao expressar tal ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida privada unicamente do ponto de vista do patrimônio do indivíduo. Os princípios constitucionais, em vez de apregoar tal conformação, têm por meta orientar a ordem jurídica para a realização de valores da pessoa humana como titular de interesses existenciais, para além dos meramente patrimoniais. O direito civil, de um direito-proprietário, passa a ser visto como a regulação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar o seu desenvolvimento com dignidade. Fala-se, portanto, em uma despatrimonialização do direito civil, como conseqüência de sua constitucionalização.

Muitas vezes, a alteração na interpretação de institutos se deu sem que tivesse havido uma correspondente alteração legislativa. Com efeito, a jurisprudência progrediu, porosa aos auspícios e princípios constitucionais, sem que o legislador promovesse a atualização legislativa desejada, ou, quando o fez, ela foi posterior à consolidação jurisprudencial dos institutos.

Cite-se como exemplo, na seara contratual, a evolução jurisprudencial dos institutos da boa-fé e da função social do contrato, que encontraram sede jurisprudencial antes mesmo de sua previsão expressa com o advento do Código Civil de 2002.

Não nos esqueçamos da união estável, cuja previsão no Texto Maior precedeu a normatização ordinária.

No mesmo caminho de uma interpretação impregnada de dignidade humana, assiste-se atualmente ao reconhecimento de direitos às pessoas em união homoafetiva. Mesmo a ausência de uma legislação específica sobre o tema não tem impedido o judiciário1 de assegurar direitos àquelas pessoas, sobretudo na esfera previdenciária2.

Cremos, entretanto, que o Direito Tributário tem-se mostrado refratário aos princípios constitucionais que tanto impregnam outros ramos. Seus operadores enrijeceram-se em conceitos clássicos e em preconceitos acerca da hipossuficiência dos contribuintes, mas que muitas vezes destoam de uma realidade fática.

O que se pretende nas próximas linhas não é uma defesa inconseqüente da tributação estatal muito menos um completo abandono de princípios basilares do direito tributário, como o da legalidade.

Buscar-se-á demonstrar situações em que o Fisco não se encontra em posição de supremacia ante o contribuinte. Ao contrário, há situações em que, por incrível que pareça, o lado mais frágil da relação parece ser o Estado, engessado em sua própria burocracia.

Nestes cenários, a interpretação dos atos jurídicos e das operações não se pode valer da máxima de hipossuficiência dos contribuintes frente ao todo-poderoso Estado, sob pena de se obstar a aplicação de outros princípios constitucionais. Como se sabe, com fundamento na melhor doutrina constitucional, a ponderação de princípios não pode conduzir à completa anulação de um princípio em favor de outro.

Alguns ensinamentos doutrinários sobre o choque entre princípios se destacam:

Intimamente ligado ao princípio da unidade da Constituição, que nele se concretiza, o princípio da harmonização ou da concordância prática consiste, essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 107).

O conflito entre princípios constitucionais é resolvido com a ponderação entre eles, sendo que um deles irá prevalecer no caso concreto sob análise. Isso não significa, diferentemente do conflito entre regras, que o princípio que não prevaleceu deva ser definitivamente repudiado.

Parece-nos que a análise de situações litigiosas envolvendo tributação, tanto no contencioso administrativo-tributário quanto no judicial, somente recentemente3 tem considerado a existência de princípios que podem, conforme o caso concreto, fazer frente àqueles que limitam o poder de tributar do Estado.

A exigência por uma conformidade entre as medidas jurídicas adotadas nos planejamentos tributários e a realidade fática que as fundamentam soa-nos como expressão da tendência constitucionalizante no âmbito do direito tributário.

O presente estudo procura, portanto, demonstrar que diversas normas e princípios de nosso ordenamento jurídico elevam o propósito negocial à condição de elemento condicionante da licitude e validade dos planejamentos tributários.

A partir de uma pesquisa bibliográfica, abordou-se inicialmente, no Item 2, a temática do Planejamento Tributário, estudando seus aspectos gerais, sob uma atual ótica constitucional. Abordou-se aqui a submissão dos contribuintes aos direitos fundamentais, bem como com as normas sobre a desconsideração de atos e negócios jurídicos adotados em planejamentos tributários.

No Item 3, tratou-se das origens do propósito negocial e dos elementos que permitem a identificação de sua presença em operações societárias. Abordou-se também a previsão do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

O cerne do trabalho foi atingido ainda neste Item 3, quando se analisaram normas constitucionais e infra-constitucionais que denunciam a exigência do propósito negocial como requisito de validade de negócios jurídicos no direito brasileiro. A essa análise somou-se a identificação de atual e representativa jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF – sobre o tema.

Por fim, no Item 4, chegou-se a uma conclusão acerca da tendência jurisprudencial na percepção do propósito negocial como elemento necessário ao reconhecimento da licitude de planejamentos tributários.


2 DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

O estudo do planejamento tributário aqui realizado busca um enfoque constitucional. A adoção de medidas jurídicas e comerciais com o intuito de recolher menos tributos, ou adiar a ocorrência do fato gerador, decerto encontra amparo em diversas regras e princípios constitucionais.

Por outro lado, há diversos outros princípios que podem ser tolhidos caso planejamentos sejam indiscriminadamente considerados válidos e legítimos tão-somente porque adotaram forma jurídica prevista em texto de lei.

O que se busca nas próximas linhas é a demonstração de que o atual estágio do nosso direito, sobretudo, do direito constitucional, não mais permite interpretações que ignorem a realidade fática, subjacente às formas jurídicas.

Defendemos aqui a existência de limites ao direito de se buscar alternativas para reduzir ou adiar a tributação. A existência de um propósito negocial que justifique as medidas jurídicas é elemento a ser perquirido na análise da validade dos planejamentos tributários.

Não olvidamos, entretanto, das diversas críticas doutrinárias quanto à aferição do propósito negocial em matéria de planejamentos.

Com efeito, questiona-se a introdução de um critério alienígena em um ordenamento jurídico, mormente quando o fenômeno (business purpose) formou-se a partir de uma evolução jurisprudencial e sem que tenha havido inovação legislativa que o embase. (SCHOUERI; FREITAS, 2010, p. 18).

Verificaremos, entretanto, que a crítica não resiste à uma análise sistemática, teleológica e, sobretudo, constitucional de nosso ordenamento em vigor.

Por essa razão, comecemos a discorrer sobre o planejamento tributário sob um enfoque constitucional, contribuindo para uma releitura desse fenômeno jurídico.

2.1 Aspectos Gerais sob uma Ótica Constitucional

O exercício da atividade empresarial e sua busca pelo saldo positivo entre os custos operacionais e as receitas exigem um foco especial na própria estrutura da empresa.

Em um cenário de ampla concorrência, como o que se verifica hoje na maioria dos setores da economia, o auferimento ou não de lucros é determinado, muitas vezes, na adoção de medidas interna corporis.

Uma correta estruturação societária e um bem planejado controle de custos são elementos indispensáveis para o sucesso empresarial. Se considerarmos que os tributos representam custos de significativo impacto no orçamento empresarial, veremos que as medidas para minimizar a carga tributária são de larga utilização pelas empresas e pelos contribuintes em geral.

O conceito de planejamento tributário aflora deste cenário, em que os contribuintes adotam determinadas medidas jurídicas no intuito de reduzir os custos tributários que incidem sobre sua atividade.

Para Andrade Filho (2007, p.728), “planejamento tributário ou `elisão fiscal´ envolve a escolha, entre alternativas válidas, de situações fáticas ou jurídicas que visem reduzir ou eliminar ônus tributários, sempre que isso for possível nos limites da ordem jurídica”.

É de extrema relevância para a discussão aqui travada a lição no sentido de que o planejamento tributário exige o manejo de duas linguagens: a do direito positivo e a dos negócios, não se restringindo, portanto, à descoberta de lacunas ou brechas legislativas. (Id., 2007, p.728).

De fato, conforme sustentaremos à frente, não merecem guarida jurídica os planejamentos tributários que não estão calcados em um propósito negocial, ou seja, sem as subjacentes razões fático-negociais que o permitam ou que o justifiquem.

Cremos que o constitucionalismo em vigor4 não mais permite a aceitação de planejamentos formalmente lícitos, vez que cumpridos fielmente preceitos legais, mas que não possuam qualquer suporte fático atinente à prática empresarial.

Há diversos princípios constitucionais que podem ser invocados para amparar o direito dos contribuintes de adotarem medidas para redução da carga tributária in concreto.

Notadamente, citem-se o Princípio da Livre Iniciativa (Art. 1º, IV) e o Princípio da Propriedade Privada (Art. 170, II), que garantem aos contribuintes o direito de organizar seus negócios da maneira que lhes convier. Se dessa estruturação decorre economia tributária, tanto melhor para a atividade desenvolvida.

Cite-se ainda o Princípio da Livre Concorrência (Art. 170, IV todos da CF/88), na medida em que admitir uma economia tributária àquele que melhor gere seus custos tributários é contribuir para o fomento da competição empresarial, salutar para o consumidor de seus produtos.

Não podemos deixar de mencionar todos os princípios ou limitações ao poder de tributar, veiculados nos artigos 150, 151 e 152 da CF/88, que pedimos licença para incluí-los sob a rubrica “Princípio da Ordem Tributária Justa”.

Existem, por outro lado, uma série de outros princípios, igualmente direitos fundamentais. Estes princípios devem servir de contraponto àqueles já mencionados em situações de planejamento tributário cujos contornos não estejam claros.

Antes de enunciar os princípios constitucionais que fundamentariam a exigência do propósito negocial como fundamento de validade dos planejamentos tributários, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a tributação como fonte de receita estatal.

Uma simples leitura do artigo 2º da Lei nº 12.214, de 26 de janeiro de 2010, Lei Orçamentária Anual de 2010, nos revela a importância das receitas tributárias como fonte de recursos para o custeio das políticas públicas estatais.

Decerto que as políticas públicas tem uma finalidade precípua, qual seja: assegurar a dignidade da pessoa humana.

Com efeito, o princípio previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 exprime a primazia da pessoa humana sobre o Estado e a sua consagração importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e promoção de seus direitos fundamentais. (SARMENTO, 2008, p. 87).

Sabendo-se que o foco do nosso ordenamento jurídico repousa na dignidade da pessoa humana, não é difícil concluir que as receitas tributárias constituem instrumento ímpar na consecução dos objetivos fundamentais previstos no Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Da mesma forma, não é difícil concluir que, para construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, enfim, para assegurar uma vida digna a todos os brasileiros, as receitas tributárias se apresentam como seu principal instrumento.

Neste cenário, determinado planejamento tributário que não guarde qualquer substrato de veracidade fática, ou seja, cujas medidas adotadas no campo jurídico-formal não tenham a menor repercussão na realização do objeto social proposto pela empresa, tal planejamento não encontra amparo na ordem constitucional atual.

Planejamentos cujo único e exclusivo objetivo seja a redução tributária ofendem princípios como, repita-se, a Dignidade da Pessoa Humana, na medida em que priva o estado de recursos destinados a assegurar a existência digna de seus cidadãos.

Ofendem, igualmente, a Função Social da Propriedade. A propriedade de uma sociedade empresária, ou de frações do seu capital, decerto deve observar sua função social. Respeito às obrigações trabalhistas de seus empregados, ao direito de seus consumidores e o pagamento dos tributos que lhes são cabíveis são formas de cumprir tal função.

E nem se alegue que a propriedade de sociedades empresárias não se submeteriam ao princípio da função social. Não procede o argumento de que a Constituição de 1988 teria apenas estipulado a função social da propriedade urbana (art 182, §2º) e da rural (art. 186). Ocorre que o inciso XXIII do artigo 5º fala em função social de toda e qualquer propriedade.

O Princípio da Isonomia é, da mesma forma, atingido. Se verificarmos que redução das desigualdades regionais e sociais é princípio da nossa ordem econômica (Art. 170, VII da CF/88) e que o rateios das receitas tributária obedecem a critérios que visam à redução dessas desigualdades5, a economia tributária indevida agrava a situação de antinomia e antagonismos entres as regiões do país.


Ao lado desses princípios, há uma série de bens jurídicos e de outros direitos assegurados constitucionalmente que são tolhidos em razão de planejamentos tributários cujo a única e exclusiva determinante é a economia tributária. Citem-se os direitos sociais (arts. 6º e seguintes), a seguridade social (art. 194 e seguintes, todos da Constituição Federal de 1988), dentre outros.

Passemos, portanto, às razões que justificam a aplicação desses princípios na interpretação e julgamento de operações societária e negócios jurídicos realizados em um contexto de planejamento tributário.

2.2 A Submissão dos Particulares (Contribuintes) aos Direitos Fundamentais . Limitações ao Direito de Pagar Menos Tributos

É preciso deixar claro, desde o início, que não pretendemos, com essa abordagem, minimizar a importância dos princípios e garantias constitucionais que protegem os contribuintes da ânsia arrecadatória do Estado.

Esses dispositivos, previstos no texto constitucional nos artigos 150, 151 e 152, são conquistas de nosso constitucionalismo que devem ser fortemente defendidas. Fala-se em eficácia vertical de direitos fundamentais quando, como neste caso, o constituinte prescreve direitos ou garantias aos cidadãos frente ao Estado.

A verticalidade reside no fato de o Estado encontrar-se em posição favorecida, ou seja, em superioridade com relação ao cidadão individualmente considerado.

Ocorre, entretanto, que vem sendo firmada cada vez mais na doutrina alienígena e nacional a concepção de que os direitos fundamentais não constituem comandos destinados apenas aos atores estatais.

Com efeito, o arcabouço constitucional irradia seus efeitos para além das esferas estatais, alcançando também as relações privadas. Sobre o tema, as lições de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.395) são esclarecedoras:

Para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na esfera jurídicoprivada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares. Essa temática, por sua vez, tem sido versada principalmente sob os títulos de eficácia privada, eficácia externa (ou eficácia em relação a terceiros) ou horizontal dos direitos fundamentais […]

Na mesma linha leciona Daniel Sarmento (2008, p. xxvii):

Fala-se em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, para sublinhar o fato de que tais direitos não regulam apenas as relações verticais de poder que se estabelecem entre Estado e cidadão, mas incidem também sobre relações mantidas entre pessoas e entidades não estatais, que se encontram em posição de igualdade formal.

Poder-se-á indagar: qual a relevância da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito do direito tributário, que veiculada normas cogentes entre Estado e cidadãos?

Ocorre que, inexoravelmente, o contexto dos planejamentos tributários gira em torno de relações jurídicas entre particulares que visam a influenciar na relação de um deles ou de ambos para com o Fisco.

Em outras palavras, os planejamentos tributários se constituem em negócios jurídicos, estruturações societárias ou em operações comerciais que se operam entre atores privados.

É propriamente nesta seara que as considerações aqui feitas quanto a aplicação de princípios fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal) irá atuar. Queremos, com isso, demonstrar que, ao lado dos direitos, há igualmente deveres fundamentais a serem observados pelos particulares.

Sob esse enfoque, é possível notar que o princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, pode fundamentar não apenas as vedações ao poder de tributar, evitando abusos estatais na tributação, mas também pode e deve ser utilizado para evitar que o ordenamento seja usado como escudo para uma economia tributária que não interessa à coletividade.

É oportuno lembrar que “a preponderância do interesse coletivo no direito dos tributos é evidente, daí derivando o caráter cogente de suas normas, inderrogáveis pela vontade dos sujeitos da relação jurídicotributária.” (AMARO, 2010, p. 27).

Ora, não ignoramos o fato de que a redução dos custos tributários decorrentes dos planejamentos tributários há de ser reconhecida. Podese inclusive falar em uma espécie de “direito de pagar menos tributos”, com fundamentos em princípios constitucionais já abordados acima (livre iniciativa, propriedade privada, etc.).

Ocorre que o exercício deste direito decerto encontra limites. O respeito a outros princípios da ordem constitucional é o primeiro limitador, sendo certo que a ponderação entre os valores em conflito será feita conforme o caso concreto.

E não se diga que a proposta aqui veiculada gerará alto grau de subjetivismo e de insegurança jurídica. A consideração acerca de peculiaridades de cada caso é inexorável em qualquer julgamento. Ademais, é plenamente possível identificar a formação de alguns standarts na jurisprudência sobre o planejamento tributário e o propósito negocial.

Entendemos, porém, que o principal limitador ao direito de pagar menos tributos é propriamente a co-existência de fatores extra-tributários que justifique a adoção de medidas elisivas.

Em nosso sentir, o planejamento tributário há de encontrar justificativa e suporte em fatores da atividade econômica das empresas. Há que buscar, ao lado da economia tributária, uma otimização ou uma melhoria da prática empresarial. Enfim, exige-se, para além de uma economia de tributos, um propósito negocial.

Veremos em momento oportuno (Item 3.4) algumas normas do ordenamento jurídico pátrio que permitem a conclusão de que a existência e um propósito negocial é determinante da validade de operações societária e negócios jurídicos levados a termo em planejamentos tributários. Antes disso, convém passarmos para algumas considerações acerca das normas aplicáveis na desconsideração de atos e negócios jurídicos realizados em planejamentos tributários.

2.3 A Desconsideração de Atos e Negócios Jurídicos no Contexto do Planejamento Tributários – Normas Aplicáveis

Alguns ramos do direito, como o direito do trabalho ou do consumidor, parecem mais porosos à utilização de princípios na interpretação de institutos ou na atualização de conceitos clássicos.

Cremos não ser o caso do direito tributário.

Não obstante, conforme vimos acima, há uma série de princípios constitucionais que possibilitam a desconsideração de atos, operações, negócios, estruturações societárias levadas a termos com exclusivo propósito de economia tributária.

Dentre tais princípios destaca-se a função social da propriedade. Com efeito, a propriedade de cotas ou ações de uma sociedade empresária insere o seu titular em um contexto que transcende os limites da empresa. Nascem obrigações para com a sociedade, na medida em que esta também contribui para a manutenção e perpetuação da entidade empresarial.6

No ordenamento infraconstitucional, destaca-se a previsão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional – CTN, segundo o qual a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

A celeuma em torno deste dispositivo refere-se à sua parte final, que remete a procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Cremos, entretanto, que uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico permite conferir alguma eficácia ao texto legal.

Neste sentido, ganha relevância o disposto no artigo 113 do Código Civil, que insere a boa-fé como vetor interpretativo dos negócios jurídicos. Ainda na seara civilista, merecem menção os artigos 421 e 422 do Código, que, respectivamente, condiciona a liberdade contratual à função social do contrato e elege a probidade e a boa-fé como princípios a serem seguidos pelos contratantes em geral7.

Convém ainda mencionar o repúdio do ordenamento jurídico ao enriquecimento sem causa, veiculado no artigo 884 do Código Civil. Com efeito, sob o ponto de vista contábil, ao se evitar um custo (pagamento de tributos), estar-se-á auferindo um ganho.

Ora, se a economia tributária não decorre de fatores extra-tributários que a justifiquem, sendo apenas um fim em si mesma, temos que ela constitui enriquecimento sem causa, em desfavor de toda a coletividade.


Merece destaque ainda o artigo 50 do Código Civil, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Assim, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Podemos concluir que o ordenamento jurídico, analisado de forma sistemática e finalista, repudia os atos e negócios jurídicos adotados em planejamentos tributários que não encerram em si qualquer propósito negocial.

É oportuno adentrarmos, portanto, no estudo do propósito negocial.

3 DO PROPÓSITO NEGOCIAL

A abordagem constitucional feita acima, no que se refere ao planejamento tributário, nos permite afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro não mais tolera uma discrepância entre a realidade e a formalidade dos atos jurídicos.

A formalidade jurídica há de ser expressão fidedigna da realidade. Dessa forma, partindo-se da premissa de que as sociedades empresárias buscam o auferimento de lucros, não se concebe a adoção de medidas em que a busca, ainda que mediata, por lucros não seja considerada.

Podemos garantir que “economia de tributos” não é objeto social de nenhuma empresa. Assim, na condução dos negócios, não há dúvidas de que tal economia possa licitamente ocorrer, mas há que decorrer do cumprimento do objeto social da sociedade.

O propósito negocial diz respeito, portanto, à condução dos negócios da sociedade empresária segundo posturas previsíveis ou admissíveis se considerado seu objeto social e sua atividade econômica tendente ao auferimento de lucros.

3.1 Origens do Instituto

A doutrina do propósito negocial (business-purpose doctrine) tem origem nos Estados Unidos e nasceu em um contexto de reestruturações societárias. Dentre seus fundamentos primordiais, pode-se destacar que a simples concordância com a letra da lei tributária é insuficiente para embasar uma economia tributária válida. (HOGROIAN, 2002, p. 1, tradução nossa).

Embora a doutrina tenha se desenvolvido inicialmente na tributação do imposto de renda (income taxation), não tardou sua extensão para outros tributos.

Vale salientar que, no direito americano, a doutrina do propósito negocial é normalmente conjugada com outras doutrinas (economicsubstance doctrine; step-transaction doctrine; sham-transaction doctrine e phantomcorporation doctrine). (Id., 2002, p. 2).

Parece-nos que a conjugação de tais teorias não possui outro propósito senão o de afastar, ou seja, desconsiderar, os atos ou negócios adotados com exclusivo propósito tributário e promover a tributação devida.Cremos que o fato de o instituto ter suas fontes em país de tradição na common law não o tornar incompatível, só por este motivo, com o direito brasileiro. Como vimos acima, há uma série de princípios constitucionais que se compatibilizam com os enunciados da teoria do propósito negocial, configurando verdadeiras cláusulas de abertura do nosso ordenamento ao instituto.

Os críticos do reconhecimento do propósito negocial em nosso ordenamento falam ainda em uma necessária e desejável inovação legislativa que discipline o instituto. Ocorre, porém, como mencionamos anteriormente, há uma série de exemplos em nosso direito de institutos cujo reconhecimento jurisprudencial precedeu a previsão legal.

Ademais, em nome de uma suposta segurança jurídica, corre-se o risco de enrijecer o novel instituto. Ao contrário, uma interpretação principiológica, sistemática e teleológica garante seu constante amadurecimento e conformação com o ordenamento em vigor.

3.2 A Identificação do Propósito Negocial em Transações. Elementos Indiciários de sua Ausência

Para nós, a ausência de propósito negocial em transações comerciais no âmbito de planejamentos tributários configura ofensa à ordem jurídica posta.

Tal premissa nos leva a defender que a verificação da presença do propósito negocial se dá de forma negativa, ou seja, há que ser provada a sua ausência e não a sua presença. Isso porque o ordinário se presume, enquanto o extraordinário se prova.

Em outras palavras, há presunção de que as transações e operações societárias ocorridas na atuação empresarial da sociedade guardem correspondência com o seu objeto social e que, portanto, encerrem um propósito negocial. Assim, a fiscalização tributária, havendo indícios do contrário, deve produzir provas que afastem essa presunção.

Todavia, é preciso atentar para a existência de indícios que denotam a ausência daquele propósito.

Interessante estudo divulgado recentemente demonstrou que a jurisprudência administrativa do então Conselho de Contribuintes atribui maior relevância a alguns elementos no julgamento da existência ou não de propósito negocial (SCHOUERI; FREITAS, 2010, p. 19).

O primeiro desses elementos diz respeito ao lapso temporal entre as operações do planejamento. Não tem boa acolhida entre os julgadores o planejamento feito às pressas, com a assinatura de uma gama de documentos em um mesmo momento.

O indício da ausência de propósito negocial repousa na inexistência de tempo hábil para que decisões tomadas em um primeiro momento, em uma primeira rodada de operações, surtam efeito. Assim, passa-se uma segunda rodada de transações sem qualquer decurso de prazo, denunciando a mera formalidade das decisões.

Outro elemento que se sobressaiu na consideração dos julgadores administrativos refere-se à interdependência entre as partes envolvidas, ou seja, as operações ocorrem entre sociedades coligadas.

Nestes casos, o indício baseia-se na ausência de efeitos econômicos perante terceiros, ficando as operações limitadas a um mesmo grupo econômico. Vale ressaltar que o simples fato de a operação se realizar entre parte vinculadas não quer dizer que há afronta à lei tributária.

Há ainda outro elemento que gera desconfiança dentre os julgadores. Trata-se de operações anormais, ou seja, que destoam da rotina empresarial da sociedade. Aqui, há uma maior probabilidade de que os motivos da transação sejam exclusivamente tributários.

Embora não apontado no estudo citado, cremos que operações em que uma das partes se localize em país com tributação favorecida (paraísos fiscais8) não são vistas com bons olhos pelos julgadores.

Nunca é demais lembrar que uma correta e justa resolução de situações conflituosas, nessa temática, passa obrigatoriamente por uma análise aprofundada das peculiaridades do caso concreto, bem como pelo sopesamento dos princípios e bens jurídicos em oposição.

3.3 O Propósito Negocial e o Ordenamento Jurídico Brasileiro – A Medida Provisória 66, de 2002

Conforme adiantamos acima, não há previsão expressa em nosso ordenamento jurídico do instituto propósito negocial.

Isso não impede, consoante já defendemos nos itens anteriores, o seu reconhecimento e aplicação em nosso direito, tendo em vista uma série de regras e princípios que o confirma entre nós.

Não podemos nos furtar, entretanto, da menção à Medida Provisória n° 66, de 29 de agosto de 2002. Esse instrumento normativo previa expressamente o instituto do propósito negocial como elemento cuja falta justifica a desconsideração do ato ou negócio jurídico.

A exposição de motivos9 que acompanhou a proposição da MP nº 66, de 2002, assim justificava:

11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já oferece tratamento específico.


12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios jurídicos que são passives de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito negocial.

13. Os conceitos adotados no projeto guardam consistência com os estabelecidos na legislação tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal.

14. Os arts. 15 a 19 dispõem sobre os procedimentos a serem adotados pela administração tributária no tocante à matéria, suprindo exigência contida no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.

O item 14 da exposição de motivos evidencia, ao lado da leitura da parte final do parágrafo único do art. 116 do CTN (“observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”), que a exigência de lei ordinária recai apenas quanto ao procedimento para desconsideração de atos ou negócios.

Em nenhum momento o Código Tributário exige lei ordinária que defina “propósito negocial”. Isso apenas corroborando nosso entendimento de que o instituto já se faz presente em nosso ordenamento, seja por inferência lógica ou por interpretações sistemáticas e teleológicas.

No texto da Medida Provisória, o tema foi tratado da seguinte maneira:

PROCEDIMENTOS RELATIVOS À NORMA GERAL ANTI-ELISÃO

Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subseqüentes.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

§ 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:

  1. falta de propósito negocial; ou
  2. II – abuso de forma.

§ 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.

§ 3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.

Art. 15. A desconsideração será efetuada após a instauração de procedimento de fiscalização, mediante ato da autoridade administrativa que tenha determinado a instauração desse procedimento.

Art. 16. O ato de desconsideração será precedido de representação do servidor competente para efetuar o lançamento do tributo à autoridade de que trata o art. 15.

§ 1º Antes de formalizar a representação, o servidor expedirá notificação fiscal ao sujeito passivo, na qual relatará os fatos que justificam a desconsideração.

§ 2º O sujeito passivo poderá apresentar, no prazo de trinta dias, os esclarecimentos e provas que julgar necessários.

§ 3º A representação de que trata este artigo:

  1. deverá conter relatório circunstanciado do ato ou negócio praticado e a descrição dos atos ou negócios equivalentes ao praticado;
  2. será instruída com os elementos de prova colhidos pelo servidor, no curso do procedimento de fiscalização, até a data da formalização da representação e os esclarecimentos e provas apresentados pelo sujeito passivo.

Art. 17. A autoridade referida no art. 15 decidirá, em despacho fundamentado, sobre a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados.

§ 1º Caso conclua pela desconsideração, o despacho a que se refere o caput deverá conter, além da fundamentação:

  1. descrição dos atos ou negócios praticados;
  2. discriminação dos elementos ou fatos caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos foram praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária;
  3. descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas de incidência dos tributos;
  4. resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou negócios equivalentes referidos no inciso III, com especificação, por tributo, da base de cálculo, da alíquota incidente e dos encargos moratórios.

§ 2º O sujeito passivo terá o prazo de trinta dias, contado da data que for cientificado do despacho, para efetuar o pagamento dos tributos acrescidos de juros e multa de mora.

Art. 18. A falta de pagamento dos tributos e encargos moratórios no prazo a que se refere o § 2º do art. 17 ensejará o lançamento do respectivo crédito tributário, mediante lavratura de auto de infração, com aplicação de multa de ofício.

§ 1º O sujeito passivo será cientificado do lançamento para, no prazo de trinta dias, efetuar o pagamento ou apresentar impugnação contra a exigência do crédito tributário.

§ 2º A contestação do despacho de desconsideração dos atos ou negócios jurídicos e a impugnação do lançamento serão reunidas em um único processo, para serem decididas simultaneamente.

Art. 19. Ao lançamento efetuado nos termos do art. 18 aplicam-se as normas reguladoras do processo de determinação e exigência de crédito tributário.

Ocorre, entretanto, que a disciplina acima não foi mantida quando a Medida Provisória foi convertida na Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002.

Para muitos, isso significou uma completa impossibilidade de desconsideração de atos e negócios jurídicos, bem como uma vedação à utilização do propósito negocial como elemento determinante da validade jurídica de transações comerciais.

Não pensamos assim. A exigência do propósito negocial, repita-se, é decorrência de nosso ordenamento, não necessitando de definição legal expressa para que exista.

Ademais, a valoração de atos e negócios jurídicos pode conduzir perfeitamente ao seu afastamento ou desconsideração em sede de julgamento no contencioso administrativo tributário e, com maior razão, pelo judiciário, tendo em vista o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV).

A conclusão não pode ser outra senão a de que uma previsão expressa no ordenamento jurídico acerca do propósito negocial é despicienda, embora seja aconselhável, segundo alguns, de forma a balizar a atuação do Fisco.

3.4 Normas Autorizadoras do Reconhecimento do Propósito Negocial como Requisito de Validade Fático-Jurídica de Operações Societárias no Contexto do Planejamento Tributário

O reconhecimento do propósito negocial como requisito da validade jurídica do planejamento tributária diz respeito sobretudo à conformação entre a realidade fática das relações comerciais e a formalidade jurídica.

No atual estágio do nosso constitucionalismo, conforme abordamos acima, sobressai o entendimento de que os direitos fundamentais irradiam seus efeitos para as relações privadas (SARMENTO, 2008), falando-se em uma eficácia horizontal daqueles direitos (SARLET, 2007).


Os planejamentos se realizam com a adoção de atos e negócios jurídicos realizados entre particulares, cujos efeitos são apresentados à administração tributária no intuito de obstar ou adiar a ocorrência do fato gerador. Sob esse enfoque, é propriamente essas relações entre particulares que devem observância aos direitos fundamentais.

No âmbito constitucional, podemos vislumbrar a exigência do propósito negocial como condicionante das transações comerciais em princípios como a função social da propriedade, a isonomia e, principalmente, na interpretação constitucional dada a institutos de direito privado.

Tais princípios já encontram reverberação em dispositivos infraconstitucionais recentes. Exemplo disso são os artigos 421 e 422 do Código Civil de 2002.

O artigo 421 condiciona a liberdade contratual à função social do contrato, enquanto o artigo 422 elege a probidade e a boa-fé como princípios a serem seguidos pelos contratantes em geral. Cremos não haver dúvidas de que essas regras se aplicam, por exemplo, aos contratos ou estatutos sociais de sociedade empresárias.

Assim, contratos ou estatutos sociais de “empresas veículo”, criadas como o exclusivo propósito de propiciar economia tributária mediante sucessivas operações societária, podem ser impugnados e a operações correlatas desconsideradas em razão do descumprimento da função social, da probidade e da boa-fé.

É de se notar, neste caso, que a probidade e a boa-fé hão de ser consideradas não entre as partes da operação, via de regra coligadas e em conluio, mas sim perante a coletividade, tolhida de recursos tributários ordinariamente devidos.

A previsão do artigo 884 do Código Civil igualmente autoriza o reconhecimento da exigência do propósito negocial em nosso direito.

Com efeito, o artigo em destaque repúdia o enriquecimento sem causa. Ora, se o contrato social ou o estatuto social elenca o objeto social, ou seja, as atividades empresariais a que se propõe a sociedade, é naqueles instrumentos que se encontra a forma (ou causa) para a geração de riquezas.

Como afirmamos acima, desconhecemos qualquer empresa que nomeie dentre seu objeto social “economizar tributos”. Assim, operações pautadas nesse único propósito fogem da normalidade empresarial listada em seu objeto social e, portanto, carecem de causa jurídica.

Considerando que, sob o ponto de vista contábil, a redução de um custo (pagamento de tributos) representa um ganho, a conclusão não pode ser outra senão que a economia tributária auferida em operações que não apresentem fatores extra-tributários, constitui enriquecimento sem causa.

Com isso, defendemos que a vedação ao enriquecimento sem causa contribui para o reconhecimento do propósito negocial em nosso ordenamento.

Por fim, em um exercício de interpretação sistemática do nosso ordenamento jurídico, vislumbra-se ainda autorização para o reconhecimento do propósito negocial como requisito de validade de operações societárias (fusões, cisões, incorporações) adotadas em planejamentos em normas que versam sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Citem-se aqui os artigo 50 do Código Civil e o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, a desconsideração da personalidade jurídica é possível ante a ocorrência de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, bem como quando houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Podemos concluir, portanto, pela existência de um robusto arcabouço jurídico que permite a aplicação do instituto do propósito negocial em nosso direito. O fato de sua constatação decorrer de fundamentação principiológica e sistemática não lhe retira a eficácia jurídica.

3.5 Da Jurisprudência Administrativa sobre o Tema

A jurisprudência administrativa sobre o tema parece estar sensível à interpretação constitucional na valoração e julgamento de planejamentos tributários.

Com efeito, os julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF10 tem demonstrado uma tendência pelo afastamento de planejamentos tributários que encerrem propósitos exclusivamente fiscais.

O julgado abaixo bem demonstra essa inclinação:

INCORPORAÇÃO DE EMPRESA. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO. NECESSIDADE DE PROPÓSITO NEGOCIAL. UTILIZAÇÃO DE “EMPRESA VEÍCULO”. Não produz o efeito tributário almejado pelo sujeito passivo a incorporação de pessoa jurídica, em cujo patrimônio constava registro de ágio com fundamento em expectativa de rentabilidade futura, sem qualquer finalidade negocial ou societária, especialmente quando a incorporada teve o seu capital integralizado com o investimento originário de aquisição de participação societária da incorporadora (ágio) e, ato contínuo, o evento da incorporação ocorreu no dia seguinte. Nestes casos, resta caracterizada a utilização da incorporada como mera “empresa veículo” para transferência do ágio à incorporadora.

(Data da Sessão: 05/12/2007; Relator: Aloysio José Percínio da Silva; Decisão: Acórdão 103-23290)

A falta de propósito negocial é ressaltada também no seguinte julgado:

IRPF – GANHO DE CAPITAL – ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS – SIMULAÇÃO – Constatada a desconformidade, consciente e pactuada entre as partes que realizaram determinado negócio jurídico, entre o negócio efetivamente praticado e os atos formais de declaração de vontade, resta caracterizada a simulação relativa, devendo-se considerar, para fins de verificação da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, o negócio jurídico dissimulado. A transferência de participação societária por intermédio de uma seqüência de atos societários caracteriza a simulação, quando esses atos não têm outro propósito senão o de efetivar essa transferência. Em tal hipótese, é devido o imposto sobre ganho de capital obtido com a alienação das ações.

(Data da Sessão: 25/05/2006; Relator(a): Pedro Paulo Pereira Barbosa; Nº Acórdão: 104-21610)

O repúdio ao descompasso entre a realidade fática e o mero formalismo jurídico pode ser apreendido no seguinte acórdão:

INCORPORAÇÃO DE SOCIEDADE. AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO NA AQUISIÇÃO DE AÇÕES. SIMULAÇÃO. A reorganização societária, para ser legítima, deve decorrer de atos efetivamente existentes, e não apenas artificial e formalmente revelados em documentação ou na escrituração mercantil ou fiscal. A caracterização dos atos como simulados, e não reais, autoriza a glosa da amortização do ágio contabilizado.

(Data da Sessão: 28/05/2008; Relatora: Sandra Maria Faroni; Decisão: Acórdão 101-96724)

Nesta mesma linha, destacam-se os acórdãos:

DESPESAS COM REMUNERAÇÃO DE DEBÊNTURES. Restando caracterizado o caráter de liberalidade dos pagamentos aos sócios, decorrentes de operações formalizadas apenas “no papel” e que transformaram lucros distribuídos em remuneração de debêntures, consideram-se indedutíveis as despesas contabilizadas. DECORRÊNCIA. A decisão relativa ao lançamento principal (IRPJ) aplica-se, por decorrência, à exigência de CSLL.

(Data da Sessão: 19/05/2005; Relator(a): Sandra Maria Faroni; Nº Acórdão: 101-94986)

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO – Não se qualifica como planejamento tributário lícito a economia obtida por meio de atos e operações que não foram efetivas, não apenas artificial e formalmente revelados em documentação e/ou na escrituração. DECADÊNCIA – Decorridos mais de cinco anos do fato gerador, operou-se a decadência. Recurso voluntário provido e recurso de ofício negado em razão da decadência.

(Data da Sessão: 23/03/2006; Relator(a): Sandra Maria Faroni; Nº Acórdão: 101-95442)

Não se deve pensar que o CARF tem infirmado e afastado indiscriminadamente toda e qualquer operação que tenha propósitos elisivos. Há uma série de julgados reconhecendo a licitude, ou seja, a conformidade fático-jurídica de transações que representaram economia tributária.


Cite-se, a propósito, o seguinte julgado:

LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. SIMULAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. INOCORRÊNCIA. – Presente a relação negocial entre as partes contratantes, do que resulta celebração de negócio jurídico efetivo, afastada está a figura to jurídico simulado. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. RECURSO EX OFFICIO – Tendo o Julgador a quo ao decidir o presente litígio, se atido às provas dos Autos e dado correta interpretação aos dispositivos aplicáveis às questões submetidas à sua apreciação, nega-se provimento ao Recurso de Ofício.

(Data da Sessão: 16/10/2002; Relator(a): Sebastião Rodrigues Cabral; Nº Acórdão: 101-93983)

Com efeito, o que tem sido rechaçado pelos Conselheiros do CARF são planejamentos tributários com fortes indícios de descompasso entre a formalidade jurídica apresentada e o cursor corrente dos negócios das empresas.

Destaca-se, conforme afirmamos acima, a análise de indícios que demonstram tal descompasso. A proximidade temporal das operações, conforme abordado no Acórdão 103-23290, transcrito acima, a ligação societária entre as empresas envolvidas e a normalidade das atividades levadas a termo são exemplos dos indícios ponderados pelos julgadores.

A decisão a seguir destaca a anormalidade das operações adotadas pela empresa, destoando de sua prática comercial corriqueira:

IRPJ. CUSTOS E DESPESAS OPERACIONAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE CONTRATOS FUTUROS DE TAXAS DE CÂMBIO DE CRUZEIROS REAIS POR DÓLAR COMERCIAL. RESSARCIMENTO POR DESISTÊNCIA DE CONTRATO. Quanto uma empresa assina 150 contratos de promessa de compra e venda de dólar comercial, com empresas que não tem qualquer posição naquela moeda e nem tem capacidade econômica e nem financeira (microempresas, empresas de pequeno médio porte) e empresas não identificadas e, ainda, desiste da compra ou venda do dólar comercial e paga o ressarcimento (multa contratual) por desistência de contrato, estas operações não preenchem os requisitos de necessidade, normalidade e usualidade para serem apropriados como custos ou despesas operacionais, independentemente da imputação da simulação de contratos.

(Data da Sessão: 21/05/2002; Relator(a): Kazuki Shiobara; Nº Acórdão: 101-93826)

A análise da jurisprudência do CARF nos leva a concluir que seus julgadores parecem atentos à conformação entre a realidade comercial das empresas e a formalidade jurídica adotada em planejamentos tributários, exigindo a presença do propósito negocial para que estes sejam considerados hígidos.

Vemos com bons olhos essa inclinação jurisprudencial, na medida em que reflete a principiologia constitucional em vigor, que, decerto, irradia seus preceitos a todos os ramos jurídicos e a todos os atores estatais, públicos ou privados.

4 CONCLUSÃO

O atual estágio de nosso constitucionalismo, que tem como vértice o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, não mais permite o esvaziamento das promessas e tutelas feitas pelo texto constitucional.

Apontamos neste estudo a importância das receitas tributárias na realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

Considerando que as políticas públicas visam à realização daqueles objetivos precípuos, que, afinal, buscam assegurar dignidade a todos, percebe-se a relevância das receitas oriundas da tributação como financiadora da promoção dos valores e bens constitucionais.

Identificamos, da mesma forma, vários princípios (livre iniciativa, propriedade privada, livre concorrência) que dão suporte ao direito de os contribuintes, mormente as sociedades empresárias, conduzir seus negócios de uma forma que minimize o impacto tributário em seus custos.

Ocorre que o direito acima delineado sofre limitações na própria ordem constitucional e infraconstitucional. Com efeito, demonstramos que a economia tributária decorrente de planejamentos tributários encontra seu limite jurídico em princípios como o da função social da propriedade, o da isonomia, da dignidade da pessoa humana, etc.

Demonstramos, baseado em atual e relevante doutrina, que não só o Estado, mas também os particulares, devem observância àqueles princípios fundamentais em suas relações privadas. Trata-se da chamada eficácia horizontal das normas constitucionais.

Sob esse enfoque, os particulares devem guardar certos limites na condução de suas atividades. Assim, as relações, negócios e operações societárias adotadas no contexto de planejamentos tributários, para serem consideradas válidas, devem ter correspondência na realidade fática. Somente desta forma, essas transações não ofendem normas constitucionais e infraconstitucionais.

A principiologia constitucional, aliada a uma interpretação sistemática e teleológica de nosso ordenamento jurídico, demonstra que aquelas operações que conduzem a uma economia de tributos devem ter como fator determinante um propósito negocial.

Destacamos neste estudo que a ausência do propósito negocial em operações elisivas ofendem ainda diversos dispositivos do Código Civil, mormente os que versam sobre a função social dos contratos, a boa-fé, a probidade e sobre a vedação ao enriquecimento sem causa.

Nesta contextualização normativa, concluímos como sendo desnecessária uma previsão legal expressa acerca do propósito negocial. De fato, a ordem constitucional e o arcabouço infraconstitucional, analisado sistematicamente, garantem a perfeita aplicação do instituto em nosso direito, embora sua origem remonte ao direito norte-americano.

A ausência de propósito negocial em operações que conduzem a uma economia tributária é aferida por indícios.

Assim, operações societárias realizadas sucessivamente em lapso temporal exíguo (horas, minutos), transações entre pessoas jurídicas coligadas ou, ainda, operações que escapam da normalidade da prática comercial de determinadas empresas, enfim, todos esses são indícios que podem e devem ser considerados na análise da validade de um planejamento tributário.

Por fim, demonstrou-se que a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, tem-se inclinado, conforme aqui defendido, pela consideração do propósito negocial como elemento necessário à manutenção de planejamentos tributários.

Notas

1 A Administração Pública também tem-se mostrado sensível à esses princípios, como se verifica no Parecer 1.503/2010 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que autoriza casais homoafetivos a declararem o companheiro (a) como dependente na declaração de imposto de renda.
2 Por todos, cite-se Recurso Especial nº 395.904 – RS (2001/0189742-2), publicado no DJ 06/02/2006, p. 365.
3 Em item próprio (3.6), abordaremos a atual jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, que mostram uma salutar tendência em considerar aspectos outros, que não apenas os meramente formais, na interpretações de normas e institutos jurídicos no contexto do planejamento tributário.
4 Por “constitucionalismo em vigor” entenda-se não só o texto da Constituição Federal de 1988 mas também a evolução na interpretação constitucional realizada sobretudo pelo STF.
5 Exemplo disso é o rateios do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e do Fundo de Participação dos Municípios, cujos critérios de repartição dos recursos visa à superação de desigualdades sociais (Lei Complementar nº 62, de 28 de dezembro de 1989).
6 Em cenários de turbulência econômica se evidencia que o socorro estatal a empresas privadas é custeado por toda a sociedade. Fala-se em “privatização dos lucros” e em “socialização dos prejuízos”.
7 Aprofundaremos a análise destes artigos quando da abordagem das normas autorizadoras do reconhecimento do propósito negocial como requisito de validade de operações societárias (Item 3.4).
8 A lista dos países considerados como tal é dada pela IN RFB nº 1.037, de 04 de junho de 2010.
9 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2002/211-MF-02.htm. Acesso em: 19 ago. 2010
10 Antigo Conselho de Contribuintes, com novos contornos atribuídos pela Portaria MF n° 256, de 22 de junho 2009.


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Uma análise crítica acerca da idéia de serviço consagrada na súmula vinculante 21 do STF

Autor: Aldemario Araujo Castro, Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela UFAL. Mestre em Direito pela UCB.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A Súmula Vinculante 31 do Supremo Tribunal Federal afirma que “é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. Adotou-se uma noção historicamente superada de serviço, identificado como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”, e transportou-se para o direito tributário um dos mais restritivos sentidos da noção de serviço, considerando, de forma indevida, uma suposta obrigatoriedade da tributação acolher as construções do direito privado sem modificações. O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, com notas caracterizadoras inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, uma categoria aberta para apreender em sua descrição as transformações da realidade econômico-social. A locação de bens móveis enquadra-se no tipo demarcado pelo vocábulo serviço e pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

I INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal adotou a Súmula Vinculante n. 31 com a seguinte redação: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.

O verbete em questão consagra o entendimento inaugurado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121 e reiterado em vários outros precedentes (RE 455613 AgR; RE 553223 AgR; RE 465456; RE 450120 AgR; RE 446003 AgR; AI 543317 AgR; AI 551336 AgR e AI 546588 AgR).

Em princípio, a edição da aludida súmula seria o desdobramento normal ou natural de uma série de julgados no mesmo sentido. Ocorre que a edição de uma súmula vinculante, a mais radical manifestação do Judiciário, justamente porque obriga os demais órgãos do Poder e a Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, deve ser cercada de importantes e inafastáveis cautelas.

No caso em análise, é possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal não atuou com a sua costumeira prudência. Com efeito, os inúmeros precedentes citados simplesmente repetem a definição adotada na decisão “original” no RE n. 116.121. Essa decisão, por sua vez: a) “inverteu” uma longa tradição jurisprudencial de mais de 30 (trinta) anos; b) transportou para o direito tributário uma noção tradicional acerca da idéia de serviço construída (ao longo do tempo) nos domínios do direito privado e c) não levou, na devida conta, toda uma aguda e estratégica reflexão acerca da evolução e da crescente importância dos serviços como atividade econômica1.

Esse escrito pretende explorar os dois últimos aspectos destacados e aparentemente desconsiderados ou subdimensionados pelo Excelso Pretório ao adotar o enunciado vinculante com o número trinta e um.

II OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA SÚMULA VINCULANTE STF N. 31

Como foi destacado, a origem da Súmula Vinculante STF n. 31 remonta ao julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.1212. Essa decisão marca uma importante mudança de rumos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, observada, quanto ao assunto, por cerca de 30 (trinta) anos.

Vingou, no julgamento do RE n. 116.121, uma espécie de interpretação “fechada” ou “estática”. Prevaleceu o argumento de observância inafastável, no direito tributário, das definições do direito civil, como pode ser observado na ementa3 e nos votos e manifestações dos Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Moreira Alves, todos invocando os termos do art. 110 do Código Tributário Nacional4. Como conseqüência, sagrou-se vitorioso o raciocínio extremamente restritivo (e equivocado) de que a prestação de serviço envolve tão-somente esforço humano (conforme o Ministro Marco Aurélio5) ou obrigações de fazer (consoante o Ministro Celso de Mello6 e o Ministro Sepúlveda Pertence7).

Dois questionamentos fundamentais emergem da leitura cuidadosa do acórdão lavrado em decorrência do ajustado pela Corte Maior no RE n. 116.121:

  1. existe uma necessária relação de dependência do direito tributário para com os domínios do direito privado (institutos, conceitos e formas)?
  2. as transformações econômicas, sociais e tecnológicas afetam (ou atualizam) as categorias8 manuseadas para delimitar a tributação? Importa destacar, e é fácil de perceber ou aquilatar, a importância dos questionamentos e de suas respostas para além da temática específica da tributação da locação de bens móveis.

III AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO TRIBUTÁRIO E OS DEMAIS RAMOS DO DIREITO

Costuma-se afirmar com freqüência e considerável aceitação que o direito tributário é um direito de sobreposição. Nesse sentido, certas categorias científicas (institutos, conceitos e formas, notadamente) presentes nos vários ramos do direito, em especial no campo do direito privado, deveriam ser respeitados e aproveitados na seara tributária tal como conformados na sua “origem”9.

Impõe-se, no entanto, afirmar e reafirmar que não se coaduna com a ordem jurídica brasileira, assim como atualmente assentada, a aludida premissa do direito de sobreposição. Nessa linha, podem ser identificados três equívocos fundamentais na formulação. São eles: a) desconsideração de importantíssimas normas jurídicas integrantes do sistema constitucionaltributário; b) interpretação incorreta de normas definidoras de diretrizes interpretativas inscritas no Código Tributário Nacional e c) desprezo pelo difícil, e ao mesmo tempo rico, processo de construção e assimilação de categorias a serem utilizados pelas diversas normas jurídicas para representar parcelas da realidade de interesse da tributação.

O primeiro equívoco destacado decorre do “esquecimento” do disposto no art. 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição10. Na norma em questão, o constituinte autorizou expressamente o legislador tributário a definir os fatos geradores e bases de cálculo dos impostos. Por conseguinte, o legislador tributário não está obrigado a buscar nos domínios do direito privado ou de qualquer outro ramo do direito os conteúdos das categorias necessárias para operacionalizar a tributação pelos impostos e, por extensão, pelos demais tributos previstos na Constituição. Um importantíssimo e emblemático exemplo do exercício dessa possibilidade pode ser observado nas definições de renda e proventos de qualquer natureza presentes no art. 43 do Código Tributário Nacional11.

O segundo equívoco envolve certas interpretações dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional. O aludido art. 10912 fixa uma diretriz hermenêutica relacionada com a pesquisa dos conteúdos dos conceitos, ou seja, com a busca da abrangência desses últimos. A norma estabelece um balizamento para o desenvolvimento, e não para a conclusão, do processo de interpretação. Assim, em função desse comando legal, o legislador tributário não se encontra impedido de construir categorias (conceitos, definições, institutos ou formas) paralelas e especiais em relação aos já existentes no seio do direito privado. Ademais, a leitura inversa do art. 110 do Código Tributário Nacional confirma essa última afirmação. Ali está dito que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados constitucionalmente para a conformação de competências impositivas. Portanto, se os institutos, conceitos e formas não são de direito privado13 ou, sendo de direito privado, não são delimitadores constitucionais de competência tributária, podem ser alterados pelo legislador tributário.

Registre-se que o art. 110 do Código Tributário Nacional viabiliza interpretações particularmente extremadas, denunciando uma visão muito particular das relações entre o direito privado e o direito tributário. Já se afirmou que os conteúdos dos conceitos manuseados no campo tributário “são aqueles que estavam contidos na lei privada em vigor na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988”14. Tal premissa não pode vingar. Não é esse o sentido ou o propósito do comando veiculado pelo art. 110 do Código Tributário Nacional. Pretende-se, com aquele dispositivo, limitar a ação do legislador tributário, afastando a manipulação artificial ou arbitrária de categorias jurídico-científicas com a finalidade de alargar indevidamente o espaço da tributação. O preceito em destaque não está vocacionado para barrar as repercussões legislativas, inclusive tributárias, das mutações sociais, econômicas, tecnológicas e congêneres, que independem da “vontade” do legislador e são dados ou elementos inexoravelmente postos pela realidade subjacente ao fenômeno tributário.

O terceiro dos vícios cogitados consiste numa peculiar forma de se encarar e trabalhar com as categorias jurídico-científicas representativas da realidade de interesse da tributação. O legislador tributário pode se utilizar de conceitos, institutos ou formas (categorias) denotativos de faixas da realidade com conteúdo econômico desenvolvidos no âmbito do direito privado. Nessas hipóteses, tais categorias não precisam ser reconstruídas no espaço tributário, porque já consolidados no direito privado mais antigo, de maturação mais longa. Assim, tais categorias serão tomadas com os contornos presentes no campo do direito privado. Ocorre que o legislador tributário pode reformular conceitos de direito privado15, não havendo óbice jurídico para tal labor. Ao contrário, esse rumo está expressamente autorizado pela Constituição, particularmente na dicção do art. 146, inciso III, alínea “a”. Tais categorias serão aplicadas, a partir do conhecido e festejado critério da especialidade, paralelamente às de direito privado, observando os limites já mencionados16.


Diante do que foi apresentado, é perfeitamente viável afirmar que as categorias jurídico-científicas, representativas de parcelas da realidade e utilizadas na operacionalização da tributação, não estão necessariamente adstritas aos processos de formação oriundos de outros quadrantes do direito, particularmente do direito privado17.

Portanto, sustenta-se18 ter o Supremo Tribunal Federal militado em profundo equívoco técnico-científico quando fincou seu entendimento acerca da abrangência da noção de serviço, para efeitos da tributação pelo imposto sobre serviços (ISS) da locação de bens móveis, em um suposto e necessário transplante das concepções civilistas para o campo tributário.

IV A NOÇÃO CONSTITUCIONAL DE SERVIÇO COMO TIPO

IV.1 Do conceito ao tipo

O principal condicionamento da tributação no Brasil, na perspectiva de quais fatos com densidade econômica serão alcançados pelas exigências fiscais, consiste na delimitação constitucional dos âmbitos materiais de incidência, a serem observados por ocasião da instituição dos principais tributos.

Com efeito, a Constituição, com sua natural força de conformação de toda a ordem jurídica a ela subordinada, expressamente aponta faixas da realidade, com significado econômico, sobre as quais pode ser manejada a criação ou instituição das exigências pecuniárias de natureza tributária. O Texto Maior aponta ou identifica as tais faixas ou parcelas da realidade econômica por intermédio de termos ou vocábulos especiais. Eis alguns dos mais relevantes: importação, exportação, renda, proventos, produtos, mercadorias, serviços, faturamento, receita, propriedade, crédito, câmbio, seguro, títulos ou valores mobiliários, doação, folha de salários, rendimentos e lucro.

Esses termos ou vocábulos especiais funcionam, como antes destacado, como categorias jurídico-científicas representativas da realidade e essenciais para a operacionalização da tributação. Normalmente, até mesmo por influência do art. 109 do Código Tributário Nacional, são caracterizados como conceitos (institutos ou formas).

Ocorre que o conceito é uma categoria científica com sentido bem definido e viabilizador de uma concepção singular do fenômeno da tributação 19 20 21. O conceito, também denominado, e com propriedade, de conceito classificatório ou de classe, pretende capturar os componentes da realidade mediante a identificação de suas características ou traços essenciais. Assim, presentes as características ou traços definidos no conceito, têm-se o objeto ou dado da realidade conceituado. Os conceitos, como é fácil de perceber, viabilizam, por excelência, o raciocínio pela via da subsunção (do “tudo ou nada”). De duas uma: ou se está diante do objeto conceituado (por conta da presença das características fixamente enumeradas) ou não se trata daquela “coisa” conceituada22.

A utilização dos conceitos, notadamente de forma exagerada e acrítica, enseja conseqüências profundamente negativas. Afinal, o conceito cristaliza ou “eterniza” determinados traços ou características frente a uma realidade econômica, social e tecnológica em contínua mutação. No campo jurídico, particularmente no tributário, um conceito, construído num determinado contexto histórico, permite sua projeção (eventualmente indevida) para aplicação em outras circunstâncias históricas completamente distintas, quando suprimidas ou acrescentadas características ao dado ou objeto da realidade a ser representado.

Por conseguinte, o conceito (o conceito classificatório ou de classe) não se mostra como a categoria jurídico-científica adequada para representar as parcelas da realidade de interesse da tributação inscritas no Texto Maior. São duas as razões básicas para tal afirmação. A primeira, consiste no fato de que o texto constitucional está voltado naturalmente para capturar as realidades econômicas mutáveis. A Constituição não se pretende uma “trava” à consecução de seus próprios objetivos, somente realizáveis com o adequado financiamento, via tributação, das despesas necessárias. A segunda razão, aponta para a conformação da tributação necessariamente sob os imperativos da capacidade contributiva dos cidadãos. Nesse sentido, as manifestações de capacidade contributiva sob novas formas de desenvolvimento de atividades econômicas tradicionais não podem, nem devem, escapar da tributação23.

Portanto, a tributação atual ou moderna, mergulhada numa realidade econômica e social complexa e em frenética mutação, precisa recorrer às várias categorias jurídico-científicas possíveis (e disponíveis): conceitos (determinados e indeterminados), cláusulas gerais e tipos. Somente a riqueza de todas as categorias mencionadas pode dar conta da apreensão adequada da realidade para fins de tributação. Limitar o fenômeno tributário aos conceitos significa condenar a atividade tributária a uma miopia inaceitável, considerando a necessidade de financiamento das despesas públicas por intermédio de novas manifestações econômicas que demonstram, de forma inequívoca, capacidade contributiva.

Por outro lado, o tipo mostra-se como “um sistema elástico de características”, marcado pela abertura, pela gradação, pela flexibilidade e facilitador ou viabilizador da apreensão dos fenômenos econômicos mais importantes para a tributação, justamente aqueles descritos pelo constituinte. Nesse rumo, o tipo funciona como uma categoria alternativa ao conceito e visceralmente mais adequada para lidar com as flutuações intensas da realidade econômica 24 25 26. Portanto, os vocábulos constitucionais delimitadores da realidade econômica tributável são, em verdade, tipos.

Erroneamente, o tipo foi introduzido no direito tributário brasileiro com o sentido de algo “fechado” ou “hermético”. Daí surgiram as expressões “tipo tributário” e “princípio da tipicidade fechada ou cerrada”. Em verdade, o “tipo fechado” mostra-se como uma contradição em termos 27 28. Se é tipo é aberto. Se é fechado é conceito. Não existe o “tipo fechado”, assim como não existem o “frio quente” ou o “branco preto”.

Sintomaticamente, constatam-se inúmeras e crescentes reflexões jurídico-tributárias voltadas para colher da realidade econômico-social de fundo, embora sem o recurso expresso à idéia de tipo, a extensão, em cada momento histórico, dos termos manuseados pelo constituinte29. Mantémse, assim, o diálogo dialético da Constituição com a realidade social. Esse diálogo, aliás, é uma das essências e sentidos da Constituição. O Texto Maior decididamente não pode operacionalizar o direito divorciado da realidade econômico-social e de sua evolução.

IV.2 O serviç o como tipo constitucional-tributário

Entre os vários tipos constitucionais-tributários, o serviço aparece como um dos mais ricos e complexos. Justamente porque as mudanças no campo econômico produziram um considerável alargamento do que se entende por serviço, adotada como ponto de partida a idéia de serviço como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”30.

O sentido do vocábulo absorveu de tal forma a complexidade da realidade econômica e a representação de uma gama tão ampla de atividades que a famosa revista The Economist chegou a consignar serviço como “qualquer coisa vendida que não cai em seus pés”31.

Observa-se, ademais, que no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços (AGCS ou GATS, na sigla em inglês) houve uma deliberada esquiva de se definir, na atualidade, o que significa, com razoável nível de precisão, a idéia de serviço. O caminho trilhado buscou uma delimitação dos modos de prestação de serviços (em quatro grandes blocos).

A ampliação da idéia de serviço para além de uma “obrigação de fazer” ou da “energia humana voltada para determinado fim” não é arbitrária. Corresponde o aludido alargamento a um fenômeno presente na realidade sócio-econômica em contínua evolução, perfeitamente capturado pela idéia de tipo. Por outro lado, tal amplitude está consagrada na ordem jurídica brasileira pelo menos no Código de Defesa do Consumidor32 e na Lei de Licitações e Contratos Administrativos33. Nesses diplomas legais, o sentido de serviço gravita em torno das idéias de atividade e de utilidade dessa última resultante. Na própria Constituição observa-se a definição de que a soma das atividades de venda de mercadorias e de serviços abarca todos os bens ou “coisas” oferecidas no mercado34, surgindo daí uma noção extremamente ampla, mas não arbitrária, de serviço.

A noção em questão, vista como tipo, pode ser atualmente enunciada, somente para efeitos práticos, como “a realização de atividade econômica voltada para produzir alguma utilidade para terceiro”. Assim, não escapa da caracterização como serviço a locação de bens móveis.

Registre-se, ademais, que o termo serviço foi incorporado na ordem jurídica brasileira para retratar, de forma ampla, os negócios com bens imateriais. Como que numa antevisão da crescente complexidade do setor de serviços, a história da introdução do imposto sobre serviços (ISS) no Brasil demonstra claramente a pretensão de gravar globalmente os negócios jurídicos voltados para a circulação de bens imateriais.

Com efeito, na maioria dos países existe um só tributo (normalmente imposto) que incide sobre a venda de bens (materiais – mercadorias ou imateriais – serviços). No Brasil, como exceção, a circulação de bens foi apartada em dois tributos: o antigo imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM) e o imposto sobre serviços (ISS). O primeiro foi atribuído aos Estados e o segundo aos Municípios. A separação realizada no Brasil buscou tão-somente contemplar os vários entes da Federação com tributos próprios, concorrendo para a autonomia financeira dos mesmos. Não existia a menor pretensão de deixar lacunas entre o antigo ICM e o ISS com a circulação, comércio ou venda de atividades econômicas não abrangidas por nenhum dos dois tributos35.


A cláusula constitucional “de qualquer natureza”, presente no art. 156, inciso III36, aponta no sentido antes destacado. Busca, inequivocamente, flagrar as mutações substanciais no sentido do que entende ou designa por serviço. O constituinte ao utilizar a expressão destacada já sinalizava para uma compreensão acerca da fluidez e mutabilidade da noção de serviço. Ademais, a expressão não está relacionada com a lista de serviços, eis que esse papel, de especificar os serviços tributáveis, foi expressamente conferido à lei complementar de caráter nacional.

V CONCLUSÕES

Ao editar a Súmula Vinculante n. 31 o Supremo Tribunal Federal insistiu em profundo e lamentável equívoco, já manifestado por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121. Com efeito, adotou uma noção historicamente superada e estática de serviço, identificado tãosomente como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”. Ademais, buscou, também de forma reprovável, transportar para a Constituição e para o direito tributário um dos sentidos (mais restritivo) da noção de serviço, considerando de forma indevida uma suposta obrigatoriedade do universo tributário acolher as construções do direito privado sem modificações.

O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, notadamente no tempo, de notas e características inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, justamente uma categoria aberta para apreender em sua descrição os movimentos e transformações da realidade econômico-social.

Em suma, o termo serviço, assim como tantos outros lançados no Texto Maior com o objetivo de recortar partes da realidade econômica a serem operacionalizados pela tributação, aparece como um tipo moldado pelos imperativos das mutações observadas do contexto histórico subjacente.

Por conseguinte, a locação de bens móveis enquadra-se no tipo constitucional-tributário demarcado pelo termo ou vocábulo serviço e, na medida da previsão em lei complementar específica, pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

Essa conclusão aponta para a necessidade, mais cedo ou mais tarde, de revisão ou cancelamento da Súmula Vinculante n. 31, nos termos do art. 103-A da Constituição37.

Notas

1 Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, “ao longo das últimas décadas, o setor de serviços vem apresentando maior dinamismo e as maiores taxas de crescimento na economia global. Em termos gerais, representa mais de 60% da riqueza mundial, empregando ao menos um terço da mão-de-obra do planeta e respondendo por mais de 20% do comércio internacional”. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272. Acesso em: 30 out. 2010.
2 Os demais precedentes são meras reproduções, na voz de cada relator, do julgado original.
3 “TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional”.
4 “O precedente do Supremo Tribunal Federal que melhor elucida essa orientação é relativo justamente à incidência do ISS sobre a locação de guindastes, que veio a representar uma mudança na sua jurisprudência em relação à posição acolhida quando do julgamento do RE n. 112.947-6. Após trinta anos de cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, foi reconhecida a inconstitucionalidade de tal prática ao ser julgado o RE n. 116.121-3, acolhendo-se a tese do ‘império do Direito Privado’”. VELLOSO (2005:81).Art. 110 do Código Tributário Nacional: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
5 “Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento”.
6 “… eis que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer … Cabe advertir, neste ponto, que a locação de bens móveis não se identifica, e nem se qualifica, para efeitos constitucionais, como serviço, pois esse negócio jurídico – considerados os elementos essenciais que lhe compõem a estrutura material – não envolve a prática de atos que consubstanciam um praestare ou um facere”.
7 “Não me convenci, data venia, de que o contrato em discussão, o contrato de locação de máquinas, de guindastes, contenha obrigação de fazer”.
8 O termo “categoria” será utilizado para designar as várias fórmulas lingüísticas, com conformações científico-metodológicas diversas, representativas da realidade e fundamentais para a operacionalização da tributação (conceitos, tipos, institutos, formas, noções, idéias, etc).
9 “Necessariamente, pelo princípio da capacidade contributiva, o direito tributário deve incidir sobre fatos com relevância econômica e, considerando que esses fatos já são juridicizados por outros ramos do direito (renda, mercadoria, faturamento, importação, transmissão, doação, etc), o direito tributário sempre incide sobre outras linguagens normativas. É o chamado direito de sobreposição, segunda a concepção clássica de Gian Antonio Michelli./Com exceção dos tributos vinculados, as hipóteses de normas tributárias têm por conteúdo situações previamente reguladas pelo direito privado, que abordam atividades economicamente apreciáveis realizadas por sujeitos de direito privado, que, sob a óptica da tributação, passam a ser contribuintes./O ISS, por sua vez, tem por base as obrigações de fazer, oriundas do direito privado, conforme veremos a seguir./[…] É tradicional a classificação civilista das obrigações, separando-as em obrigações de dar, de fazer e de não-fazer. Orlando Gomes afirma, inclusive, que são apenas esses três modos da conduta humana que podem se constituir objeto da obrigação./[…] A distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer é relevante para o ISS, pois este sendo um imposto que incide sobre ‘prestação de serviço’, pela própria definição só pode ter como base as obrigações de fazer”. CARVALHO (2008:639-640).
10 “Cabe à lei complementar: […] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
11 “O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”.
12 “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.
13 Esse dispositivo (o art. 110 do CTN) está impregnado da falsa concepção de que o direito privado é o berço de todo o direito e consegue construir, de forma global ou total, categorias representativas de toda a realidade a ser operacionalizada pelo direito.
14 “Isto é assim porque, se assim não fosse, uma simples alteração de lei ordinária federal sobre o direito privado poderia afetar competências tributárias que somente podem ser modificadas ou excluídas através de emenda constitucional. Por exemplo, qualquer nova definição de imóvel ou mercadoria, por lei ordinária federal voltada para as relações de direito privado, embora essa lei seja válida porque promulgada no exercício da competência da União para reger esse ramo do direito, poderia atingir indevidamente as competências tributárias dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, caso em que não teria extensão ao direito tributário por falecer tal competência àquele tipo de lei”. OLIVEIRA (2004:185).
15 Não custa registrar a possibilidade do legislador tributário construir o conteúdo de “noções” ou “idéias” inexistentes ou em processo de formação no direito privado ou em outros quadrantes do direito.
16 As considerações desse tópico aproveitam reflexões do autor presentes no artigo intitulado Aplicação no Direito Tributário da Desconsideração da Personalidade Jurídica prevista no Novo Código Civil.
17 “Não há um primado do direito privado, pois, sem dúvida, é viável que o Direito Tributário – e primordialmente o Direito Constitucional Tributário – adote conceitos próprios. A possibilidade de o Direito Tributário elaborar conceitos específicos decorre, em última análise, do fato de ser direito positivo. Seus preceitos, por inserirem normas jurídicas no ordenamento, são hábeis, como quaisquer enunciados jurídicos-positivos, a inovar no sistema jurídico, seja pela ab-rogação, derrogação e criação ab initio de normas. Os conceitos conotados por seus enunciados podem identificar-se com aqueles consagrados em dispositivos já vigentes. Mas essa realidade não é necessária. Nem mesmo a necessidade de se proceder à exegese rigorosamente jurídica do texto constitucional implica a inexorável incorporação, pela Constituição, de conceitos jurídicos infraconstitucionais, …” VELLOSO (2005:87).


18 Com todas as vênias de estilo devidas à Corte Suprema, que não é infalível. Lembra-se, aliás, a afirmação atribuída a Nelson Hungria no sentido de que o STF “apenas tem o privilégio de errar por último”.
19 “Esta obra apesar de afirmar que o pensamento tipológico não é adequado à Ciência do Direito Tributário e do Direito Penal, campos onde o espaço reservado aos tipos é muito pequeno, é revolucionária apenas no sentido técnico-formal./Do ponto de vista material, a tese não destrói, mas afirma clássicos princípios jurídicos, os quais, não obstante, são melhor atendidos por meio dos conceitos determinados do que por meio das estruturas flexíveis e fluídas do pensamento de ordem, que são os tipos. Ela não rompe com a Ciência do Direito, pois, retificadas as questões terminológicas entre tipo e conceito, reconhece a importância do pensamento lógico-sistemático”. DERZI (2007:32). 20 “No entanto, tal posicionamento [tipicidade fechada fundada em conceitos] acaba construindo uma idéia de legalidade que se sobrepõe à sua própria finalidade, que é garantir o sentido material do Estado de Direito”. RIBEIRO (2009:82).
21 “No entanto, se Misabel de Abreu Machado Derzi reconhece a inexistência de uma estrutura tipológica fechada, parte de outro pressuposto teórico para entronizar o valor segurança jurídica no Direito Tributário. Segundo a referida autora, neste ramo da ciência jurídica, assim como no Direito Penal, em razão da necessidade exacerbada de segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos classificatórios sobre a estrutura tipológica. Como se vê, o reconhecimento da inexistência do tipo fechado, o que, aliás, é feito com extrema competência, leva aos mesmos resultados encontrados pela teoria que o entronizou: o fechamento dos conceitos de direito utilizados pelo legislador tributário”. RIBEIRO (2009:83-84).
“A concepção de Misabel Derzi, do ponto de vista substancial, se aproxima da de Alberto Xavier, embora tenham esses autores desenvolvido argumentos diferentes. Misabel proclama que o tipo é aberto mas o expulsa, juntamente com o conceito indeterminado, do campo tributário, onde prevalece apenas o conceito determinado fechado, ou os converte em conceitos determinados. Xavier diz que o tipo é fechado e o assimila ao conceito determinado. O resultado é o mesmo: ambos engessam no conceito fechado a possibilidade de aplicação do direito tributário”. TORRES (2006:9).
22 “Só um conceito geral abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas ‘a, b, c’, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características ‘a, b e c’. Diz-se, então, que há subsunção. Para o conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: ‘cada X é A ou não-A’. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão ‘ou um, ou outro’, Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não”. DERZI (2007:52-53).
23 “A ideia de cidadania está vinculada a um conjunto de direitos e deveres de que gozam ou a que estão submetidos os indivíduos pertencentes a uma comunidade. Pressupõe a igualdade de todos os cidadãos perante tal estatuto, impondo o dever de contribuir para o suporte financeiro do Estado e o direito de participação política./Ao lado do reconhecimento da supremacia da liberdade e dos direitos fundamentais frente aos demais valores constitucionais, é de se reconhecer que todos os direitos têm custos públicos./O custo de um Estado que tem como premissa a liberdade e como valor fundamental a dignidade da pessoa humana deve ser suportado por todos os seus membros. Essa é a ideia de cidadania fiscal, que se materializa no dever fundamental de pagar impostos./O imposto é assim entendido como a contribuição indispensável dos membros da comunidade para o Estado, a fim de que este possa atingir os seus objetivos, constitucionalmente delineados”. CAMPOS (2009:28). O Procurador da Fazenda Nacional Gustavo Caldas escreve sob a influência direta e declarada do jurista português Casalta Nabais, notadamente na destacada obra O dever fundamental de pagar impostos.
24 “Em geral, aborda-se a oposição entre o conceito classificatório de classe e o moderno, de tipo. Enquanto o conceito classificatório é seletivo e rígido, excluindo ou incluindo o objetivo que, de acordo com suas propriedades, pertença ou não ao conjunto, o tipo é um conjunto não delimitado, fluido que não trabalha com a relação de exclusão ‘ou … ou’ mais sim com um ‘até um certo grau’ ou ‘mais ou menos’ “. DERZI (2007:44-45).
25 “Tipo é a ordenação dos dados concretos existentes na realidade segundo critérios de semelhança. Nele há abstração e concretude, pois é o encontrado assim na vida social como na norma jurídica. Eis alguns exemplos de tipo: empresa, empresário, trabalhador, indústria, poluidor. O que caracteriza o tipo ‘empresa’ é que nele se contêm todas as possibilidades de descrição de suas características, independentemente de tempo, lugar ou espécie de empresa. O tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta, com as suas conexões de sentido. Segue-se, daí, que a noção de tipo admite as dessemelhanças e as especificidades, desde que não se transformem em desigualdade ou anormalidade. Mas o tipo, embora obtido por indução a partir da realidade social, exibe também aspectos valorativos. O tipo, pela sua própria complexidade, é aberto, não sendo suscetível de definição, mas apenas de descrição. A utilização do tipo contribui para a simplificação do direito tributário. A noção de tipo é largamente empregada também nas ciências sociais: Max Weber utilizou o conceito de tipos ideais. Jung fez circular a idéia dos tipos psicológicos”. TORRES (2006:2-3).
26 “Por essas razões, a indeterminação da linguagem humana da qual se serve o Direito, sempre dotada de caráter plurissignificativo, bem como a necessidade de adequação da lei à realidade fática, cada vez mais surpreendente, imprevisível e inexplicável com base nas lições extraídas do passado, fazem com que o legislador, inclusive o tributário, privilegie a utilização de tipo em detrimento dos conceitos abstratos, cada vez menos capazes de estabelecer conexões de sentido com o mundo dos fatos”. RIBEIRO (2009:96).
27 “Por outro lado, a idéia de uma tipicidade fechada também encarna uma impropriedade metodológica, revelando uma contradição em termos. Senão vejamos. […] De fato, segundo o posicionamento adotado pelo citado autor alemão [Karl Larenz] nas últimas edições de sua obra clássica [Metodologia da Ciência do Direito], a estrutura tipológica é sempre aberta, ao contrário do conceito abstrato, que em situações ideais apresenta-se fechado”. RIBEIRO (2009:83).
28 “Há quem fale em tipos abertos ou fechados. O tipo fechado não se distingue do conceito classificatório, pois seus limites são definidos e suas notas rigidamente assentadas./No entanto, como nova metodologia jurídica, em sentido próprio, os tipos são abertos, necessariamente abertos, com a características que apontamos. Quando o direito ‘fecha’ o tipo, o que se dá é a sua cristalização em um conceito de classe./Neste contexto, a expressão ‘tipo fechado’ será uma contradição e uma impropriedade”. DERZI (2007:58).
29 O Ministro GILMAR MENDES, ao votar no RE n. 357.950, demonstra a plena licitude da determinação ou densificação das noções constitucionais mais gerais utilizadas no campo da tributação: “Porém, como o Texto constitucional, inevitavelmente, adota esses conceitos de uso comum, precisamos, de fato, ter uma abertura para uma compreensão mais ampla desses institutos, sob pena de, em algum momento, incidirmos naquilo que muito se censura, de fazer-se a interpretação da Constituição de forma clara, segundo uma determinada lei ou determinada concepção dominante num dado momento histórico. […] Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição. Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade, […] As disposições legais a ela relativas têm, portanto, inconfundível caráter concretizador e interpretativo. E isto obviamente não significa a admissão de um poder legislativo ilimitado. Nesse processo de concretização ou realização, por certo serão admitidas tão-somente normas que não desbordem os múltiplos significados admitidos pelas normas constitucionais concretizadas”. No julgamento do HC n. 96.772, pelo Supremo Tribunal Federal, observa-se a manifestação, com feliz precisão, do Ministro CELSO DE MELLO no sentido da “legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea”.
30 O tributarista MARCO AURÉLIO GRECO aponta com propriedade o rumo dos debates e das considerações mais modernas acerca da idéia de “serviço”. Procura, o ilustre jurista, justamente afastar uma noção limitada e atrasada historicamente que restringe a noção de serviço a uma “obrigação de fazer” ou a uma “atividade humana em benefício alheio”. Eis as importantes palavras de MARCO AURÉLIO GRECO: “No passado recente, informado pela idéia de ‘causalidade’, um elemento fundamental para definir relevâncias era dado pela noção de atividade realizada. Daí apontarem-se tipos de atividades, suas características, qualidade etc., a partir das quis definiam-se os respectivos regimes e valores. À atividade ‘tal’ correspondia uma remuneração ‘qual’, certa atividade tinha valor maior ou menor do que outra atividade; maior a atividade, maior a remuneração; e assim por diante./ Esta visão levou à formulação da noção de serviço como um tipo de atividade que representaria determinado esforço humano exercido por alguém. A idéia de atividade é tão nítida a ponto de vivermos, no âmbito tributário, sob um regime de lista de atividades (‘serviços’). A lista é muito útil para identificar a matéria tributável e resolver eventuais conflitos de competência tributária, mas reafirma o critério básico, qual seja, apoiar-se na natureza de certas atividades. Neste contexto, a respectiva remuneração é tributariamente vista como a contraprestação da atividade exercida. Em suma, paga-se porque alguém ‘faz’ algo./O mundo moderno tem mostrado que a atividade não é mais o único elemento relevante para fins de definição dos valores das negociações realizadas. Se olhar do ângulo do produtor levou à identificação da atividade exercida como elemento relevante (inclusiva para fins de tributação), olhar do ângulo do cliente leva ao surgimento de uma outra figura que é a utilidade./Muito freqüentemente, as pessoas dispõem-se a pagar determinada remuneração não pela natureza ou dimensão da atividade exercida pela outra pessoa, mas, principalmente, pela utilidade que vão obter. O valor não está mais apenas na atividade do prestador, mas também na utilidade obtida pelo cliente./Diante desta realidade, utilizar o conceito de serviço (como expressivo de uma atividade) para fins de qualificação da matéria tributável é também deixar à margem da tributação significativa parcela da atividade econômica exercida no mercado e que é formada pelo fornecimento de utilidades, no mais das vezes imateriais e que resultam de atividades novas, não alcançadas pelo conceito tradicionalmente utilizado./ Isto mostra a insuficiência do conceito tradicional de serviço para alcançar tributariamente estas novas realidades em que, muitas vezes, o beneficiário não está buscando a atividade do outro, mas sim a utilidade que irá obter.” GRECO (2000:96-97).


31 Referência localizada em página do site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272 . Acesso em: 30 out. 2010.
32 “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3o., parágrafo segundo, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990).
33 “Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;” (art. 6o., inciso II, da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993).
34 Eis um exemplo emblemático: “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:” (art. 173, parágrafo primeiro).
35 Nesse sentido, as palavras de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES são elucidativas: “O ISSQN onera a circulação de bens que não são mercadorias, isso é, que não sejam bens materiais ou incorpóreos. O imposto municipal onera a circulação de bens materiais, de bens incorpóreos, considerandos serviços. Recai, assim o ISSQN, sobre a prestação, a título oneroso, realizada por uma pessoa em favor imposto oneradas pelo imposto são representadas como de venda de bens imateriais (fornecimento de trabalho a terceiros, locação de bens móveis e cessão de direitos)”. MORAES (1993:285-286). Não é outra a lição de CELSO RIBEIRO BASTOS: “Esses serviços devem ser entendidos no sentido econômico, ou seja, bens imateriais que se encontram na circulação econômica, em oposição aos bens materiais ou corpóreos. Abrangem, assim, além do fornecimento de trabalho, a locação de bens móveis, hospedagem e guarda de bens”. BASTOS (1991:271).
36 “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.
37 “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

Referências Bibliográficas

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1991.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 96.772. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 25 out. 2010.
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O prazo para redirecionamento da ação de execução fiscal em face de terceiros responsáveis

Autor(a): Juliana Furtado Costa Araujo, Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Procuradora da Fazenda Nacional. Chefe da Divisão de Defesa em 2ª Instância da PRFN/3ª Região

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O presente artigo trata de um dos aspectos que envolvem o tema da responsabilidade tributária, que diz respeito à possibilidade de redirecionamento da ação de execução fiscal para fins de cobrança do crédito tributário por parte de um terceiro, enfocando o prazo em que tal ato processual poderá ser realizado. Inicialmente, identificaremos os dispositivos legais que autorizam a figura do redirecionamento, que serviram de baliza para o posicionamento jurisprudencial unânime sobre a questão, e as situações que levam a sua existência. Em seguida, analisaremos qual o prazo prescricional adequado para a realização desse ato de natureza processual, partindo das normas legais que tratam do tema, mais especificamente o artigo 174 do Código Tributário Nacional. Ao final, demonstraremos o posicionamento de nossos Tribunais Superiores sobre o tema, que diverge daquele que é por nós defendido, e a tendência atual de mudança deste entendimento.

1 Introdução

As discussões doutrinárias e jurisprudenciais que envolvem o tema da responsabilidade tributária são bem variadas e atuais e dentre estas podemos destacar a questão do redirecionamento dos feitos executivos a terceiros responsáveis e o prazo para que tal ato processual possa vir a ser efetivado.

Há cerca de cinco anos, tive a oportunidade de escrever artigo sobre o mesmo tema1 e agora o faço novamente diante da grande inquietação que esta problemática me traz, o que me permite lançar novas ideias sobre o tema, além de demonstrar relevante evolução jurisprudencial ocorrida recentemente.

É certo que se tornou muito comum a possibilidade de cobrança do crédito tributário de um terceiro que não realizou o fato jurídico tributário apenas quando já existe execução fiscal em curso, surgindo assim a figura do redirecionamento do feito executivo.

O que pretendemos demonstrar no presente artigo é o prazo que tem o credor para requerer este redirecionamento, enfocando a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores.

2 A possibilidade de redirecionamento do feito executivo em face de terceiros responsáveis

Atualmente, a maioria dos créditos tributários é objeto de lançamento por homologação, em que cabe ao contribuinte realizar todos os procedimentos para fins de sua constituição, informando ao final aquilo à fazenda pública interessada, nos termos do artigo 150 do CTN.

Assim, diante dessas informações e na ausência de pagamento, é extraído o título executivo extrajudicial, representado pela Certidão de Dívida Ativa, com posterior ajuizamento da ação de Execução Fiscal pelo órgão fazendário interessado contra a pessoa do contribuinte.

Existe, porém, a possibilidade de cobrança posterior de um terceiro, em face da comprovação, pelo fisco, de qualquer uma das hipóteses de responsabilidade presentes no CTN, sendo necessário que o representante da fazenda pública requeira junto ao juízo competente o redirecionamento do feito para a figura deste responsável.

Neste momento, surge a seguinte questão: existe fundamento jurídico para se redirecionar o feito executivo?

O cerne da questão que ora se coloca se restringe apenas àquelas hipóteses em que a hipótese de responsabilidade tributária é comprovada em momento posterior à constituição do crédito tributário, quando já se deu o próprio ajuizamento do feito executivo. Em outras palavras, a configuração da responsabilidade ocorre tardiamente, sendo necessária uma solução jurídica que permita que haja efetividade na cobrança do crédito tributário daqueles que passam a ocupar a posição de terceiros responsáveis.

A nosso ver, a solução reside na possibilidade de redirecionamento da ação de execução fiscal ao terceiro, caso a apuração de sua responsabilidade tributária não se dê no exato instante em que ocorre o fato jurídico tributário e que é introduzida no ordenamento a norma individual e concreta do lançamento ou autolançamento.

Nestes casos, com a cobrança do crédito tributário em fase de execução fiscal, cabe à fazenda pública o ônus de provar que é caso de responsabilidade tributária e que a configuração desta situação somente se deu neste momento processual, requerendo, como consequência, a alteração do polo passivo do feito executivo.

O fundamento legal para tal providência é processual, diante da distinção que o Código de Processo Civil faz entre a figura do devedor e do responsável tributário, em seu artigo 568, I e V, que assim dispõe:

Art. 568. São sujeitos passivos na execução:

I – o devedor, reconhecido como tal no título executivo;

[…]

V – o responsável tributário, assim definido na legislação própria.

Por este dispositivo, verifica-se que é permitido ao sujeito ativo incluir como sujeito passivo da execução qualquer responsável tributário, que não o devedor reconhecido sob essa condição no título executivo.

A razão de ser desta norma, que autoriza a execução manejada contra pessoa que sequer consta do título executivo, reside no fato de que há situações, como o caso da responsabilidade subsidiária ou por sucessão, em que ocorre verdadeira alteração do polo passivo, quando já em curso o feito executivo, seja pelo desaparecimento do contribuinte, seja por força de fato novo que implica a modificação da sujeição passiva.

Nos casos em que a hipótese de responsabilidade tributária se perfaz quando já existe execução fiscal em curso, a lei processual autoriza que haja a exigência do crédito desta terceira pessoa, ainda que não tenha participado do processo administrativo de constituição do crédito tributário. Ressalve-se aqui que caberá ao exequente fundamentar seu pedido de redirecionamento com as provas que demonstrem a hipótese de responsabilidade de um terceiro.

Assim, se a responsabilidade destes terceiros não está configurada quando do ajuizamento do feito executivo, sendo que no decorrer do processo de execução ela vem à tona, tal dispositivo confere legitimidade para que haja o redirecionamento da cobrança do crédito tributário, desde que comprovada a situação fática que enseja a aplicação da norma de responsabilidade.

O Superior Tribunal de Justiça segue este entendimento, diferenciando a relação de direito processual, que permite o redirecionamento da ação executiva, da relação de direito material, que enseja a responsabilidade tributária. Neste sentido, segue parte de ementa proferida no RESP n° 1096444, processo n° 200802176717, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, em 30/03/2009, que, embora diga respeito à hipótese de responsabilidade de sócio, nos termos do artigo 135 do CTN, apresenta fundamento de decidir que pode ser aplicável a qualquer outra hipótese de responsabilidade tributária.

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. DISSOLUÇÃO IRREGULAR. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO-GERENTE. ÔNUS DA PROVA. DISTINÇÕES.

1. Na imputação de responsabilidade do sócio pelas dívidas tributárias da sociedade, cumpre distinguir a relação de direito material da relação processual. As hipóteses de responsabilidade do sócio são disciplinadas pelo direito material, sendo firme a jurisprudência do STJ no sentido de que, sob esse aspecto, a dissolução irregular da sociedade acarreta essa responsabilidade, nos termos do art. 134, VII e 135 do CTN (v.g.: EResp 174.532, 1ª Seção, Min. José Delgado, DJ de 18.06.01; EResp 852.437, 1ª Seção, Min. Castro Meira, DJ de 03.11.08; EResp 716.412, 1ª Seção, Min. Herman Benjamin, DJ de 22.09.08).

2. Sob o aspecto processual, mesmo não constando o nome do responsável tributário na certidão de dívida ativa, é possível, mesmo assim, sua indicação como legitimado passivo na execução (CPC, art. 568, V), cabendo à Fazenda exeqüente, ao promover a ação ou ao requerer o seu redirecionamento, indicar a causa do pedido, que há de ser uma das hipóteses da responsabilidade subsidiária previstas no direito material. A prova definitiva dos fatos que configuram essa responsabilidade será promovida no âmbito dos embargos à execução (REsp 900.371, 1ª Turma, DJ 02.06.08; REsp 977.082, 2ª Turma, DJ de 30.05.08), observados os critérios próprios de distribuição do ônus probatório (EREsp 702.232, Min. Castro Meira, DJ de 26.09.05).

[…]


5. Recurso especial improvido.

Vista a possibilidade de redirecionamento da cobrança executiva nas hipóteses acima especificadas, surgem, neste momento, outras questões que serão respondidas no tópico seguinte: tal redirecionamento pode ser feito a qualquer tempo ou faz-se necessário respeitar algum lapso temporal? Nesta última hipótese, qual seria este lapso prescricional e a partir de que momento ele seria iniciado?

3 O prazo para redirecionamento do feito executivo

Como forma de dar efetividade ao princípio da segurança jurídica, o sujeito ativo da relação jurídica tributária possui prazo prescricional definido pelo artigo 174 para cobrança do crédito tributário, seja do contribuinte, seja do responsável.

Não há dúvidas de que o redirecionamento do feito executivo é possível, desde que realizado dentro do prazo de que dispõe a fazenda pública para cobrar seus créditos tributários.

Nos termos do artigo 174 do CTN, tal prazo é quinquenal e seu cômputo é iniciado a partir da constituição definitiva do crédito tributário2, sendo possível sua interrupção nas hipóteses descritas no seu parágrafo único. Referido dispositivo assim prescreve:

Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.

Parágrafo único. A prescrição se interrompe:

  1. pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal;
  2. pelo protesto judicial;
  3. por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
  4. por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.

Em um primeiro momento, poderíamos afirmar que, como o lapso temporal para cobrança do crédito tributário é de cinco anos, tal prazo se aplicaria tanto em relação ao contribuinte como ao terceiro responsável. Ocorre que não podemos esquecer que estamos tratando de hipótese em que não houve constituição do crédito tributário em nome do responsável por meio do lançamento ou autolançamento. O que ocorreu foi aplicação da regra processual, com o redirecionamento do feito executivo.

O prazo aqui a ser estabelecido é relativo ao redirecionamento, o que exige interpretação sistemática do caput e parágrafo único do artigo 174.

De sua análise, verifica-se que a prescrição da ação de cobrança do crédito tributário é, em regra, consumada, se entre a data da sua constituição definitiva e o despacho do juiz autorizando a citação transcorrer mais de cinco anos, inexistindo no seu curso causa de interrupção desse prazo como a realização de um parcelamento, por exemplo. Caso este lapso temporal não tenha se consumado, pode-se afirmar que a ação executiva foi proposta quanto ao sujeito passivo indicado no título executivo dentro do prazo legal, sendo este interrompido, dentre outras hipóteses, pelo despacho do juiz determinando a citação do executado.

Visto isto, poderíamos afirmar que, em sendo ajuizada a ação de execução fiscal dentro deste lapso temporal, não seria possível mais falar em extinção do crédito tributário por prescrição, considerando que o direito de ação já teria sido realizado, podendo, inclusive, o prosseguimento da execução durar indefinidamente.

Não é este, porém, o entendimento que deve prevalecer. Isto porque o prazo quinquenal a que se refere o artigo 174 do CTN diz respeito ao tempo que é colocado à disposição do sujeito ativo para viabilizar a cobrança de seu crédito, o que inclui todos os atos processuais necessários ao seu adimplemento, anteriores e posteriores ao ajuizamento, por exemplo, a inscrição em dívida ativa, a citação do executado, a penhora e leilão de bens etc.

Importante deixar claro, porém, que, se considerarmos que cabe ao Poder Judiciário o comando das pretensões aduzidas perante sua jurisdição, muitos desses atos independem da atuação do sujeito ativo. Daí porque a própria lei teve que criar mecanismos para impedir que este prazo corresse sem que houvesse inércia do credor, que é um dos requisitos para que se configure a prescrição.

A solução encontrada está disposta no parágrafo único do artigo 174 do CTN, ao prescrever as causas de interrupção desse prazo. Desta feita, a paralisação da contagem do prazo quinquenal nas hipóteses contempladas pela lei surge como forma de evitar que se decrete a prescrição, mesmo que não haja inércia por parte do credor. Afinal, a partir do momento em que a ação executiva é ajuizada, seu iter processual já não depende apenas do exequente.

Este prazo, todavia, pode recomeçar a correr desde seu início, caso seja configurada inércia do credor no manejo dos atos processuais que a ele são dirigidos.

A própria legislação tributária se incumbiu de indicar as hipóteses em que este lapso temporal volta a ser contado. A mais comum de todas está prescrita no artigo 40 da Lei nº 6.830/80. Por este dispositivo, é cabível a arguição da chamada prescrição intercorrente, de ofício pelo juiz da execução, caso a fazenda pública se mantenha inerte nas condições preceituadas. Referida norma assim preceitua:

Art. 40 – O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

§ 1º – Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.

§ 2º – Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.

§ 3º – Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.

§ 4o – Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.

§ 5º A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no § 4o deste artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda.

Caso no curso da cobrança do crédito tributário não seja encontrado o devedor ou bens capazes de garantir o pagamento do valor cobrado, caberá ao juiz determinar a suspensão do feito por um ano e, após este prazo, o arquivamento do processo.

Neste momento, o credor deve buscar meios para viabilizar a cobrança do crédito, sob pena de ser retomada a contagem do prazo quinquenal previsto no artigo 174 do CTN. Isto ocorre, pois os atos de cobrança a serem demandados somente dependem do credor, de forma que, em sendo configurada a inércia do exequente por cinco anos, a execução fiscal será extinta por prescrição intercorrente.

Interessante notar que o artigo 40 acima referido não especifica qual o prazo prescricional que enseja a declaração da prescrição intercorrente, exatamente porque este é o previsto no artigo 174, que se encontra, porém, interrompido por força que determina o seu parágrafo único, mas cuja retomada é autorizada, quando caracterizada a necessidade de o credor demandar o andamento da ação executiva.

O mesmo prazo se aplica ao redirecionamento do feito executivo nas hipóteses de responsabilidade de um terceiro. Aqui, a ação executiva foi ajuizada apenas em face do contribuinte. Em sendo demonstrada, todavia, a ocorrência da hipótese legal de responsabilidade tributária, cabe ao fisco viabilizar a cobrança do crédito do novo sujeito passivo. Assim, a partir desse momento, inicia-se novamente a contagem do prazo prescricional que estava interrompido, pois, a partir dessa constatação, a não inclusão do terceiro no polo passivo ensejará inércia e, portanto, possibilidade de extinção do crédito por prescrição.

Um exemplo pode melhor explicitar nosso entendimento, enfocando uma hipótese de responsabilidade tributária por sucessão empresarial, nos termos do artigo 133 do CTN. Suponha-se que houve o ajuizamento do feito executivo contra a sociedade A e houve o despacho do juiz autorizando sua citação. Neste momento, o prazo prescricional se interrompeu. Ato contínuo, houve a tentativa de citação via correios, sendo a resposta do aviso de recebimento negativa. Em seguida, há a citação por Oficial de Justiça, e este relata que a sociedade A passou por um processo de reorganização societária, sendo incorporada pela sociedade B. Até que esta notícia fosse carreada aos autos, não há que se falar em fluência de prazo prescricional, porque a fazenda pública estava tentando cobrar seus créditos, seguindo o iter procedimental permitido por lei. Entretanto, no momento em que se verifica que é outra pessoa quem deve ocupar o polo passivo, passa a correr novamente o prazo quinquenal para que o fisco requeira o redirecionamento do feito para o sucessor, sob pena de ficar inerte e ser decretada a prescrição.


Dito isto, resta claro que nos posicionamos no sentido de que o prazo para cobrança do crédito tributário do sucessor, mesmo nas hipóteses em que há pedido de redirecionamento do feito executivo, é de cinco anos, nos termos do artigo 174 do CTN. Este prazo, todavia, retoma seu curso, no caso do exemplo dado acima, com a caracterização da operação de reorganização societária ocorrida ou mesmo demonstração da aquisição de um estabelecimento empresarial. Desta forma, demonstramos a possibilidade de se aplicarem as normas jurídicas a cada situação fática, de acordo com as peculiaridades apresentadas.

Apenas reafirmando o que já foi dito, este prazo prescricional somente pode retomar seu curso do início, a partir do momento em que ficar caracterizada a ocorrência da hipótese de responsabilidade tributária. Isto porque a aplicação da norma de responsabilidade somente é possível quando todos os requisitos que ensejam seu uso estiverem devidamente configurados.

Neste caso, o cômputo inicial deste prazo terá que coincidir com o exato momento em que houve a configuração seja de uma operação de reorganização societária, seja da prática de um ato ilícito pelo representante da pessoa jurídica, dentre outras hipóteses, traduzida pela linguagem competente das provas, tendo em vista que, somente a partir deste instante, surge o direito de o fisco exigir do responsável o crédito tributário.

No exemplo acima dado, em que houve a incorporação de uma sociedade por outra, o prazo prescricional para inclusão do sucessor no feito executivo somente se inicia quando da certificação pelo Oficial de Justiça de que ocorreu a sucessão, caso tal evento não tenha sido anteriormente comunicado ao fisco por outro meio.

A partir deste momento, a Fazenda Pública terá o prazo de cinco anos para requerer a inclusão do sucessor empresarial no polo passivo do feito executivo.Este é o único entendimento que efetivamente não compromete o direito do fisco em ver seu crédito tributário satisfeito e resguarda a segurança jurídica aos administrados. O certo é que o sujeito ativo, por expressa disposição legal, somente pode se insurgir contra o sucessor empresarial na hipótese da efetivação de alguma operação de reorganização societária, de forma que, se o prazo prescricional não for contado a partir desta data, certamente estariam sendo colocados obstáculos intransponíveis à arrecadação do crédito tributário.

Pensemos na hipótese de uma sociedade empresarial adquirir vários ativos isolados de outra sociedade, com objetivo de mascarar uma aquisição de estabelecimento empresarial. Para isto, são avençados contratos de arrendamento, de compra de marca etc. É certo que a real operação realizada é de aquisição de estabelecimento, mas apenas com a produção de provas é que a aplicação do artigo 133 do CTN poderá ocorrer. Enquanto isto, a sociedade sucedida continua aparentando ser uma empresa ativa, entregando declarações que demonstram sua existência. É claro que as execuções fiscais serão ajuizadas contra esta sociedade, enquanto não forem produzidas provas que demonstrem a sucessão. Somente no momento em que tais provas forem carreadas aos autos é que surge a possibilidade do redirecionamento. Imaginar, então, que o prazo prescricional já poderia ter se iniciado é, sem dúvida, um pensamento que contempla a má-fé, o que é inadmissível.

Portanto, nosso entendimento reside na ideia de que somente é possível se iniciar o cômputo de um prazo prescricional, quando estiverem presentes as circunstâncias materiais necessárias que permitam a inclusão de um terceiro no polo passivo do feito executivo. Antes disso, se não é possível falar na própria responsabilidade, quiçá em contagem de prazo prescricional relativo à responsabilidade.

A partir da demonstração da hipótese de responsabilidade de um terceiro é que a desídia da exequente poderá implicar a perda de direito de redirecionar o feito executivo. Antes disso, impossível tal punição, até porque, quando se fala em fluência de prazo prescricional, presume-se o descaso com o exercício do direito, o que não se configura na hipótese, porquanto tal direito sequer existe.

Questão que aqui pode ser levantada diz respeito ao fato de que o início da contagem desse prazo prescricional estaria a critério do fisco, quando este decidisse carrear aos autos provas da responsabilização de um terceiro.

Em primeiro lugar, faz-se necessário distinguirmos duas situações e enfocaremos novamente aqui a hipótese de responsabilidade por sucessão empresarial: aquela em que a sucessão ocorre de forma regular, com comunicação formal à fazenda pública interessada do ato sucessório; outra hipótese, quando esta operação é mascarada, sendo necessário que o credor produza por ele próprio provas capazes de demonstrar que o realizador do fato jurídico tributário não mais pode responder pelo crédito tributário.

Na primeira hipótese, o lapso inicial para contagem do prazo prescricional é objetivo, iniciando-se no momento em que ocorre a comunicação da operação de reorganização societária ou da aquisição de estabelecimento ao fisco. Obviamente que a notificação da ocorrência de tais operações para fins de redirecionamento da ação executiva deve ocorrer somente na hipótese de existir crédito tributário passível de cobrança, que não tenha, por exemplo, sido atingido pela prescrição intercorrente.

Na segunda hipótese, é dever do fisco carrear provas que demonstrem a sucessão, o que realmente pode ensejar a dúvida acima levantada de que poderia o fisco estabelecer o termo inicial da contagem do prazo prescricional. É certo que cabe ao fisco produzir a prova da sucessão, mas este seu direito não é ilimitado no tempo. Isto porque se deve levar em consideração que o possível redirecionamento somente será autorizado, se não for caso de se aplicar ao feito executivo o artigo 40 da Lei nº 6.830/80.

Assim, o início da contagem do prazo prescricional para fins de redirecionamento não é determinado de acordo com a vontade do sujeito ativo, considerando que seu direito esbarra na necessidade de que o crédito tributário ainda seja exigível.

4 A posição do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão e os indícios de alteração de sua jurisprudência

O posicionamento tradicional do Superior Tribunal de Justiça é distinto do que é por nós defendido, embora já haja indícios de sua alteração, como veremos mais adiante. Para este Tribunal, o prazo prescricional para fins de redirecionamento do feito executivo é de cinco anos a contar da citação da pessoa jurídica, contra quem foi ajuizado o feito executivo. A ementa abaixo demonstra este posicionamento:

TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – REDIRECIONAMENTO CONTRA O SÓCIO – CINCO ANOS DA CITAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO.

O redirecionamento da execução aos sócios gerentes deve dar-se no prazo de cinco anos da citação da pessoa jurídica, de modo a afastar a imprescritibilidade da pretensão de cobrança do débito fiscal. Agravo regimental improvido.

(AGA 200802441915, HUMBERTO MARTINS, STJ – SEGUNDA TURMA, 31/08/2009).

Como já visto, somos contrários a este entendimento e nossa justificativa é muito simples: como poderemos iniciar a contagem de um prazo prescricional, se a situação jurídica que enseja o redirecionamento do feito executivo ainda não ocorreu? Além disso, inexiste uma explicação jurídica para que o marco para a contagem do prazo prescricional seja a citação da pessoa jurídica.

Com a citação da pessoa jurídica, somente é possível exigir dela o crédito tributário. Quanto ao terceiro, se ainda não foi comprovada a sua responsabilidade, não existe possibilidade de se exigir dele referido crédito. Somente podemos falar em prescrição, se houver inércia da pessoa contra quem tal prazo correr. No caso, não há inércia simplesmente porque as circunstâncias materiais para cobrança do crédito tributário do responsável inexistem.

Uma linha de entendimento mais recente segue o nosso posicionamento, no sentido de que o redirecionamento somente pode ocorrer, caso estejam configuradas todos os requisitos para fins de aplicação da norma de responsabilidade, sob pena de se iniciar a contagem do prazo prescricional sem que o próprio direito a redirecionar o feito executivo exista, o que implicaria ofensa ao princípio da actio nata. Neste sentido, o seguinte julgado:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO. CITAÇÃO DA EMPRESA E DO SÓCIO-GERENTE. PRAZO SUPERIOR A CINCO ANOS. PRESCRIÇÃO. PRINCÍPIO DA ACTIO NATA.

  1. O Tribunal de origem reconheceu, in casu, que a Fazenda Pública sempre promoveu regularmente o andamento do feito e que somente após seis anos da citação da empresa se consolidou a pretensão do redirecionamento, daí reiniciando o prazo prescricional.
  2. A prescrição é medida que pune a negligência ou inércia do titular de pretensão não exercida, quando o poderia ser.

  1. A citação do sócio-gerente foi realizada após o transcurso de prazo superior a cinco anos, contados da citação da empresa. Não houve prescrição, contudo, porque se trata de responsabilidade subsidiária, de modo que o redirecionamento só se tornou possível a partir do momento em que o juízo de origem se convenceu da inexistência de patrimônio da pessoa jurídica. Aplicação do princípio da actio nata.
  2. Agravo Regimental provido.

(AGRESP 200801178464, HERMAN BENJAMIN, STJ – SEGUNDA TURMA, 24/03/2009).

Mais recentemente, outro julgado do Superior Tribunal de Justiça também seguiu a linha por nós defendida. Sua ementa assim aduz:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/ STF. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO CONTRA O SÓCIO-GERENTE EM PERÍODO SUPERIOR A CINCO ANOS, CONTADOS DA CITAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. PRESCRIÇÃO. REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

  1. Não se conhece de Recurso Especial em relação a ofensa ao art. 535 do CPC quando a parte não aponta, de forma clara, o vício em que teria incorrido o acórdão impugnado. Aplicação, por analogia, da Súmula 284/STF.
  2. Controverte-se nos autos a respeito de prazo para que se redirecione a Execução Fiscal contra sócio-gerente.
  3. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o redirecionamento não pode ser feito após ultrapassado período superior a cinco anos, contados da citação da pessoa jurídica.
  4. A inclusão do sócio-gerente no pólo passivo da Execução Fiscal deve ser indeferida se houver prescrição do crédito tributário.
  5. Note-se, porém, que o simples transcurso do prazo qüinqüenal, contado na forma acima (citação da pessoa jurídica), não constitui, por si só, hipótese idônea a inviabilizar o redirecionamento da demanda executiva.
  6. De fato, inúmeros foram os casos em que as Execuções Fiscais eram arquivadas nos termos do art. 40 da Lei 6.830/1980, em sua redação original, e assim permaneciam indefinidamente. A Fazenda Pública, com base na referida norma, afirmava que não corria o prazo prescricional durante a fase de arquivamento. A tese foi rejeitada, diante da necessidade de interpretação do art. 40 da LEF à luz do art. 174 do CTN.
  7. A despeito da origem acima explicitada, os precedentes passaram a ser aplicados de modo generalizado, sem atentar para a natureza jurídica do instituto da prescrição, qual seja medida punitiva para o titular de pretensão que se mantém inerte por determinado período de tempo.
  8. Carece de consistência o raciocínio de que a citação da pessoa jurídica constitui o termo a quo para o redirecionamento, tendo em vista que elege situação desvinculada da inércia que implacavelmente deva ser atribuída à parte credora. Dito de outro modo, a citação da pessoa jurídica não constitui “fato gerador” do direito de requerer o redirecionamento.
  9. Após a citação da pessoa jurídica, abre-se prazo para oposição de Embargos do Devedor, cuja concessão de efeito suspensivo era automática (art. 16 da Lei 6.830/1980) e, atualmente, sujeita-se ao preenchimento dos requisitos do art. 739-A, § 1º, do CPC.
  10. Existe, sem prejuízo, a possibilidade de concessão de parcelamento, o que ao mesmo tempo implica interrupção (quando acompanhada de confissão do débito, nos termos do art. 174, parágrafo único, IV, do CTN) e suspensão (art. 151, VI, do CTN) do prazo prescricional.
  11. Nas situações acima relatadas (Embargos do Devedor recebidos com efeito suspensivo e concessão de parcelamento), será inviável o redirecionamento, haja vista, respectivamente, a suspensão do processo ou da exigibilidade do crédito tributário.
  12. O mesmo raciocínio deve ser aplicado, analogicamente, quando a demora na tramitação do feito decorrer de falha nos mecanismos inerentes à Justiça (Súmula 106/STJ).
  13. Trata-se, em última análise, de prestigiar o princípio da boa-fé processual, por meio do qual não se pode punir a parte credora em razão de esta pretender esgotar as diligências ao seu alcance, ou de qualquer outro modo somente voltar-se contra o responsável subsidiário após superar os entraves jurídicos ao redirecionamento.
  14. É importante consignar que a prescrição não corre em prazos separados, conforme se trate de cobrança do devedor principal ou dos demais responsáveis. Assim, se estiver configurada a prescrição (na modalidade original ou intercorrente), o crédito tributário é inexigível tanto da pessoa jurídica como do sócio-gerente. Em contrapartida, se não ocorrida a prescrição, será ilegítimo entender prescrito o prazo para redirecionamento, sob pena de criar a aberrante construção jurídica segundo a qual o crédito tributário estará, simultaneamente, prescrito (para redirecionamento contra o sócio-gerente) e não prescrito (para cobrança do devedor principal, em virtude da pendência de quitação no parcelamento ou de julgamento dos Embargos do Devedor).
  15. Procede, dessa forma, o raciocínio de que, se ausente a prescrição quanto ao principal devedor, não há inércia da Fazenda Pública.
  16. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.

(REsp 1095687/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 08/10/2010)

Este julgado bem demonstra que o entendimento de que a contagem do prazo prescricional para o redirecionamento a partir da citação da pessoa jurídica foi formado em um tempo remoto em que sequer se cogitava da prescrição intercorrente, que hoje é expressamente prevista pelo artigo 40 e parágrafos da Lei n° 6.830/80. Por meio desta linha de raciocínio se evitava que o fisco tornasse os créditos imprescritíveis, no momento em que não caberia a ele, depois de anos a fio do processo arquivado e caracterizada sua inércia, requerer o redirecionamento.

Com a possibilidade de extinção do feito por meio da decretação da prescrição intercorrente tal receio não existe mais, sendo necessário que se leve tal fato em consideração para que não se aplique indevidamente um entendimento já ultrapassado à hipótese do redirecionamento, cujo prazo para tanto somente pode ter seu início implementado no caso de inércia da fazenda pública credora.

Em resumo, este mais novo entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça bem demonstra nosso entendimento acerca da possibilidade de que, mediante a comprovação da hipótese de responsabilidade tributária, haja o redirecionamento do feito executivo para a figura do terceiro. Tal redirecionamento, porém, deverá obedecer a um lapso prescricional quinquenal, nos termos do artigo 174 do CTN, que, por sua vez, somente pode ter seu cômputo iniciado, quando estiverem presentes e devidamente traduzidas pela linguagem das provas as circunstâncias materiais necessárias que permitem a inclusão de um terceiro no polo passivo do feito executivo. A partir deste momento, é que a desídia do exequente poderá implicar a perda de direito de cobrar o crédito tributário.

Notas

1 ARAUJO, Juliana Furtado Costa. O prazo prescricional para o redirecionamento da ação de execução fiscal ao representante da pessoa jurídica.In: FERRAGUT, Maria Rita; NEDER, Marcos Vinícius (coords.). Responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2007.
2 No caso de tributos constituídos por meio do lançamento de ofício, a constituição definitiva do crédito tributário ocorre no primeiro dia seguinte ao encerramento do prazo de pagamento após a notificação ao sujeito passivo da norma individual e concreta produzida pela autoridade competente. No caso dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, a constituição do crédito tributário é feita pelo próprio sujeito passivo, no momento em que comunica ao fisco, por exemplo, com a entrega da declaração, qual é efetivamente o crédito tributário entendido como devido. Tal questão, porém, é complexa, podendo apresentar outras nuances, dependendo da situação fática apresentada.

Referências Bibliográfias

ARAUJO, Juliana Furtado Costa. O prazo prescricional para o redirecionamento da ação de execução fiscal ao representante da pessoa jurídica. In: FERRAGUT, Maria Rita; NEDER, Marcos Vinícius (coords.). Responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2007.
FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o código civil de 2002. São Paulo: Noeses, 2005.
PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado: Esmafe, 2005.
PEIXOTO, Daniel Monteiro. Responsabilidade tributária: aspectos gerais e particularidades nos atos de formação, administração, reorganização e dissolução de sociedades. 2009. Tese (Doutorado em Direito)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.


Coisa julgada em matéria tributária: Relativização ou limitação? Estudo de caso da COFINS das sociedades civis

Autor: Marcus Abraham,Procurador da Fazenda Nacional. Doutor em Direito Público – UERJ. Mestre em Direito Tributário – UCAM. Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A partir do julgamento proferido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 377.457 em 2008, instaura-se uma nova forma de pensar no cenário jurídico brasileiro que havia se consolidado de que a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis seria legítima. Passando a ser considerado constitucional o fim do benefício fiscal, e não havendo qualquer tipo de modulação dos efeitos, a decisão do STF ganha força ex tunc, gerando um conflito entre a dicção dos acórdãos transitados em julgado que entendiam inconstitucional a revogação da isenção e o teor daquele novo pronunciamento paradigmático pela Corte Suprema, provocando a busca por meios e formas legítimos para se reverter as situações consolidadas em sentido contrário. E é exatamente sobre uma forma de limitar os efeitos dos acórdãos transitados em julgado que este estudo vem apresentar.

I – Introdução

A partir do julgamento realizado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 2008, que declarou constitucional e legítima a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis introduzida pela Lei nº 9.430/961, inclusive com o reconhecimento da repercussão geral da matéria (art. 543-B, CPC) e a rejeição da modulação dos efeitos desta decisão (tendo, portanto, aquele pronunciamento eficácia ex tunc), surge uma nova controvérsia nesta questão: a da convivência de acórdãos transitados em julgado em sentido diametralmente oposto ao entendimento adotado pelo STF, por terem, à época dos seus julgamentos, declarado a inconstitucionalidade da supressão da isenção, desonerando as Sociedades Civis de profissão regulamentada da incidência do tributo.

A questão vem sendo colocada por alguns sob a ótica da relativização da coisa julgada, enquanto que para outros haveria mera limitação dos seus efeitos. Em qualquer dos casos, se pretende buscar a revisão daqueles julgamentos, a partir de persos argumentos. Primeiramente, apresentase a inteligência do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil, que considera inexigível o título judicial fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. Sugere-se, ademais, que uma relevante alteração jurisprudencial, como a que ocorreu, ensejaria a modificação no suporte fático ou jurídico e a conseqüente limitação dos efeitos daqueles julgados. Suscita-se, ainda, a influência do fenômeno da “verticalização da jurisprudência dos tribunais superiores”, em que institutos processuais como os da súmula vinculante, do incidente de repercussão geral ou do recurso repetitivo passam a vincular o julgamento pelos tribunais. Aventa-se, além do mais, a constatação da “coisa julgada inconstitucional”, em que aqueles julgamentos contrários à posição do STF seriam inválidos por proferirem entendimento que se choca com a ordem constitucional.

Ao lado desses argumentos, ressurgem, com vigor, antigos questionamentos postos recorrentemente pela Fazenda Nacional. O primeiro, de que somente caberia ao Supremo Tribunal Federal apreciar a matéria de foro constitucional e declarar a sua validade ou não. O segundo, de que a Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça, que influenciou sobremaneira a consolidação da tese favorável à inconstitucionalidade do artigo 56 da Lei nº 9.430/96, teria se originado de uma lide de objeto perso da controvérsia da hierarquia de normas e que, portanto, seria inaplicável ao caso. O terceiro, de que aqueles acórdãos não observaram as conclusões proferidas pelo STF quando do julgamento da ADC-1/DF, que havia reconhecido na LC nº 70/91 a sua natureza de lei ordinária. E, finalmente, que as relações tributárias são de cunho continuativo, o que relativizaria a cláusula da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado.

É inegável a força axiológica do valor da segurança jurídica e da boa-fé dos contribuintes que obtiveram regularmente um pronunciamento judicial que lhes foi favorável e que ganharam a proteção da coisa julgada. Por outro lado, há que se reconhecer inadequada a manutenção de um pronunciamento judicial contrário ao ordenamento constitucional, sob pena de conferir à sentença ou ao acórdão autoridade superior à própria Constituição, além de tratar de maneira anti-isonômica os contribuintes que se encontram em situação equivalente.

Independentemente de analisarmos neste momento a razoabilidade, a validade e o cabimento destes argumentos que, de uma maneira direta ou mesmo apenas reflexa, podem atingir a coisa julgada regularmente constituída nos respectivos processos judiciais (e, desde já, registro que não advogamos pela santificação do dogma da imutabilidade da coisa julgada), propomos neste estudo a abordagem da questão sob outra ótica, que não é nova, e muito menos arrojada, pois já vem sendo, de longa data, acolhida pela doutrina e jurisprudência.

Pretende-se e buscar – respeitando a intangibilidade da coisa julgada existente – a identificação dos limites e dos contornos em que se constituíram os acórdãos que julgaram inconstitucional a revogação da isenção da COFINS, especialmente quanto ao que foi pedido no processo pelo contribuinte e o que foi decidido pelo tribunal, visando estabelecer uma limitação dos efeitos do acórdão transitado em julgado a partir da mudança legislativa superveniente, com a aplicação da cláusula rebus sic stantibus, na forma do que dispõe o artigo 471 do Código de Processo Civil.

II – Histórico da Controvérsia

Tudo começou quando o artigo 56 da Lei nº 9.430/962 revogou expressamente a isenção que a Lei Complementar nº 70/91 concedia às sociedades civis. Argumentava-se que a lei instituidora da COFINS seria uma Lei Complementar e que a norma que revogava a isenção por ela concedida viria em uma Lei Ordinária, razão da sua inconstitucionalidade, em face de uma suposta violação ao Princípio da Hierarquia das Normas.

De fato, a Lei Complementar nº 70/91, no seu artigo 6° isentava da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS3 as sociedades civis expressamente previstas no artigo 1° do Decreto-lei n° 2.397/87, norma que, por sua vez, discriminava as sociedades civis que gozavam do benefício da isenção: as sociedades civis de prestação de serviços profissionais, relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada.

Mas a discussão se tornou particularmente complexa e perdeu o seu foco, pois mesmo antes da edição da Lei nº 9.430/96 e do debate a respeito da legitimidade da revogação da norma isentiva, questionava-se o entendimento firmado pela Receita Federal à época de que a isenção concedida pela LC 70/91 só se aplicaria às sociedades que apurassem o Imposto de Renda com base nos ditames no aludido Decreto-lei nº 2.397/87, ou seja, as sociedades civis teriam que atender à condição do art. 2º, § 1º, do Decreto-lei nº 2.397/87 para poder fazer jus à isenção.

Argumentava-se, contrariamente ao entendimento fazendário, que a isenção independeria do regime tributário para fins do Imposto de Renda, pois a referência feita pelo artigo 6º da LC 70/91 era de cunho subjetivo, voltada apenas para identificar o beneficiário da isenção – as Sociedades Civis definidas no Decreto-lei nº 2.397/87 – e, em momento algum, condicionava o benefício isentivo somente às Sociedades Civis que apurassem o imposto de renda segundo o regime ali estabelecido.

E foi na esteira desta discussão – se o regime tributário adotado pela sociedade civil seria uma condição para o gozo da isenção – que se formou a Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça, ao prever no seu texto: “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário adotado”. Os julgamentos que deram origem à Súmula 276 do STJ, apesar de abordarem também a questão da revogação da isenção da COFINS feita pelo artigo 56 da Lei nº 9.430/96, não tinham este como objeto principal da lide, já que discutiam a inexistência ou não de condição legal para o gozo do benefício.

Esse verbete da Súmula 276 do STJ esclarecia, apenas, que a concessão do benefício tributário previsto no artigo 6º, II, da Lei Complementar 70/91 não levaria em conta o regime de tributação do imposto de renda escolhido pela sociedade civil, desde que esta preenchesse os requisitos previstos no artigo 1º do Decreto-Lei nº 2.397/87. Referia-se, pois, a momento anterior à edição da Lei Federal nº 9.430/96 que, por sua vez, revogou, para todas as Sociedades Civis de profissão regulamentada, a isenção da COFINS anteriormente instituída.

Portanto, a aplicação da Súmula 276 do STJ se adequava, apenas e tão somente, aos casos em que se tivessem questionando aquela suposta condição para o gozo da isenção. Porém, lamentavelmente, ela acabou sendo aplicada fora do seu contexto e além do seu objeto, exportada para o debate da revogação da isenção introduzida pela Lei nº 9.430/96, o que influenciou os rumos daquela discussão em todos os tribunais do país.

Enquanto vigeu a citada súmula do STJ4, inúmeras ações judiciais se aproveitaram da aplicação indiscriminada daquele verbete para influenciar os julgamentos e reafirmar a tese de que, com fulcro no Princípio da Hierarquia das Leis, uma Lei Ordinária não poderia revogar norma originária de Lei Complementar, sendo, portanto, ilegítima a revogação instituída pela Lei nº 9.430/96 da isenção conferida pela Lei Complementar nº 70/91 às sociedades civis de profissão regulamentada.

Neste contexto, quase que em “progressão geométrica” a tese proliferou e se solidificou, ensejando o surgimento em todos os Tribunais regionais do País, inúmeros acórdãos transitados em julgado, afirmando ser ilegítima a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis.


E como a discussão ainda não havia alcançado o Supremo Tribunal Federal, não sendo tratada a questão como matéria de foro constitucional, em um primeiro momento, a interposição de ação rescisória pela Fazenda Nacional encontrava resistência por força da orientação contida na Súmula 343 do STF5, que obstava o conhecimento da medida. E, quando superado este argumento, por se reconhecer o duplo viés na controvérsia (constitucional e infraconstitucional), os Tribunais Regionais Federais buscavam prestigiar o teor da Súmula 276 para não rescindir os julgados, acompanhando os Ministros do STJ que decidiam monocraticamente os recursos fazendários, inclusive, com aplicação de multa por litigância de má-fé (AgRg no Resp nº 529.654, DJ 2/2/2004, Relator Ministro José Delgado).

Pois bem, neste cenário pouco se podia fazer para combater os acórdãos que transitavam em julgado afastando a revogação da isenção da COFINS para as sociedades civis, até que, em 2008 o panorama muda com o pronunciamento do Plenário do STF.

III – O Julgamento pelo STF e o seu Efeito no Cenário Jurídico Estabelecido

Em 17 de setembro de 2008 o Pleno do Supremo Tribunal Federal julgou os Recursos Extraordinários nº 377.457 e 381.964 entendendo constitucional, por 08 votos a 02 (vencidos os Ministros Eros Grau e Marco Aurélio), o artigo 56 da Lei Ordinária 9.430/96, que revogou a isenção concedida às sociedades civis pela LC nº 70/91. Nesta mesma Sessão o Pleno do STF afastou o pedido de modulação dos efeitos da decisão e aplicou a metodologia do artigo 543-C do CPC, dando repercussão geral ao tema.

No julgamento, considerou-se a orientação fixada pelo STF na ADC nº01/DF (DJU de 16.06.1995), no sentido de que não haveria hierarquia constitucional entre lei complementar e lei ordinária – mas apenas âmbitos materiais de atuação distintos – e que seria inexigível o instrumento de lei complementar para disciplinar os elementos próprios à hipótese de incidência das Contribuições Sociais desde logo previstas no texto constitucional, como no caso da COFINS. Assim, para o STF, o art. 56 da Lei nº 9.430/96 seria dispositivo legitimamente veiculado por legislação ordinária para revogar dispositivo inserto em norma materialmente ordinária, no caso, a LC nº 70/91.

Em seguida ao julgamento do mérito, o Tribunal, por maioria, rejeitou pedido de modulação de efeitos. Muito foi dito a respeito da necessidade de se aplicar, por analogia, o disposto no artigo 27 da Lei nº 9.868/996 ao presente caso, visando garantir a segurança jurídica das situações já consolidadas e para respeitar a boa-fé dos contribuintes que, na dúvida, foram buscar o judiciário para obter um provimento que lhes assegurassem segurança e certeza quanto à tese por eles proposta – e muitos efetivamente obtiveram.

A controvérsia da matéria se revelou no julgamento desta questão de ordem, tendo havido manifestações em ambos os sentidos – contra e a favor da modulação dos efeitos. Importante, neste momento, destacar alguns votos que demonstram a dificuldade no consenso.

Para o Ministro Marco Aurélio, no seu voto a favor da aplicação da modulação dos efeitos, os cidadãos em geral “acreditaram que tudo quanto contido na Lei Complementar nº 70/91 estaria abrangido pela nomenclatura referida” (fls. 1.883) e “acreditando na postura do Estado, na segurança jurídica que os atos editados visam a implementar, deixaram de recolher a contribuição. Outros, em estagio suplantado posteriormente, atuaram procedendo a depósito e, considerada pacificada a matéria, vieram a levantar os valores” (fls. 1.885). Na mesma esteira, justificou a sua posição o Ministro Menezes Direito ao registrar que as pessoas atingidas pelo julgamento não seriam grandes, mas, sim, pequenos contribuintes (fls. 1.894). E, mais adiante, o Ministro Celso de Mello, com veemência, asseverou: “que há de prevalecer nas relações entre o Estado e o contribuinte, em ordem a que as justas expectativas deste não sejam frustradas por atuação inesperada do Poder Público… os cidadãos não podem ser vítimas da instabilidade das decisões proferidas pelas instâncias judiciárias ou das deliberações emanadas dos corpos legislativos” (fls. 1.906 e 1.907).

Mas em sentido contrário, votou o Ministro Carlos Brito, afirmando que “a confiança do contribuinte não chegou a ser abalada” porque o que o STF apenas confirmou uma teoria – da distinção entre lei complementar material e formal – que já vinha sendo aprofundada por doutrinadores como Souto Maior Borges, Geraldo Ataliba e Celso Ribeiro Bastos (fls. 1.900). O Ministro Gilmar Mendes corroborou este entendimento, manifestando-se contrariamente à modulação, pois, para ele, a matéria já era jurisprudência no Supremo Tribunal Federal na ADC 1/93, demonstrando, ademais, a sua preocupação no fato de sempre que houver uma reversão de um entendimento pela Corte, estar o STF obrigado a realizar uma modulação de efeitos. Finalmente, o Ministro Cezar Peluso, ao manifestar o seu juízo contrário à modulação, de maneira categórica justificou:

Primeiro, porque, realmente, como sustentei em meu voto, com o devido respeito, não vi densidade jurídica que justificasse uma confiança dos contribuintes a respeito dessa tese.

Segundo, penso que não podemos, vamos dizer, baratear o uso analógico da modulação para julgamentos no controle dos processos subjetivos, porque, se não, vamos transformá-la em regra: toda vez que alterarmos a jurisprudência dos outros tribunais, teremos, automaticamente, por via de conseqüência, de empresar a mesma limitação.

Em terceiro lugar, no caso concreto, parece-me que, como se afirma a constitucionalidade, no fundo o Tribunal estaria concedendo uma moratória fiscal, se limitasse os efeitos.7

O que se extrai do julgamento desta questão de ordem – com a rejeição à modulação dos efeitos da decisão – é a controvérsia e a dificuldade que os próprios Ministros do STF tiveram para se identificar e reconhecer se houve realmente uma efetiva mudança de posicionamento jurisprudencial capaz de violar a segurança jurídica do contribuinte e a ensejar a proteção da sua boa-fé a fim de impedir a cobrança retroativa do tributo.

De toda a forma, a partir do julgamento proferido pelo STF neste RE 377.457, instaura-se uma nova forma de pensar naquele cenário jurídico brasileiro que havia se consolidado no sentido de que a revogação da isenção da COFINS das sociedades civis seria ilegítima. Passando a ser considerado constitucional o fim do benefício fiscal, e não havendo qualquer tipo de modulação dos efeitos, a decisão do STF ganha força ex tunc, gerando um conflito entre a dicção dos acórdãos transitados em julgado que entendiam inconstitucional a revogação da isenção e o teor daquele novo pronunciamento paradigmático pela Corte Suprema, provocando a busca por meios e formas legítimos para se reverter as situações consolidadas em sentido contrário.

IV – A Coisa Julgada , sua Formação, seus Limites e Efeitos

Tendo feito este prévio reconhecimento de cenário, identificando as condições em que a controvérsia surgiu e como ela se consolidou, passamos a analisar o aspecto principal deste estudo, qual seja, a delimitação do instituto da coisa julgada, seus limites e conseqüências jurídicas, para que se possa estabelecer corretamente a amplitude e alcance dos efeitos que estão aptos a produzir os acórdãos transitados em julgado que declararam inconstitucional a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis de profissão regulamentada.

A coisa julgada é o instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, ao garantir ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda seja definitiva e que não possa mais ser rediscutida, alterada ou desrespeitada. Trata-se de uma garantia de segurança que impõe definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida.8

Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier9, “a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas uma qualidade que se agrega aos efeitos da sentença”. Expressões como imutabilidade, definitividade e intangibilidade são inerentes seu conceito e exprimem um atributo do objeto a que se referem.10

Portanto, com o resultado final de um processo judicial em que se confere um bem jurídico a alguém, estará definitivamente solucionada a controvérsia a partir das situações fáticas e jurídicas apresentadas nos autos, objeto da lide. A este resultado final – esgotados os meios recursais cabíveis – será agregado o efeito de imutabilidade ou intangibilidade que a coisa julgada representa.

Embora tenha status constitucional, as condições para a sua formação e produção de efeitos são definidas pelo legislador infraconstitucional. E são estas condições previstas no Código de Processo Civil que conferem os contornos à coisa julgada que precisamos conhecer e analisar.A coisa julgada contém dois aspectos que representam a sua estrutura fisiológica e identificam o seu perfil dogmático: a) os seus limites subjetivos, onde são identificadas aquelas pessoas ou partes que se submeterão aos seus efeitos; e b) os seus limites objetivos, pelos quais se estabelecem o objeto ou o conteúdo da decisão judicial que ganhará sua proteção e ficará acobertado por seus efeitos, indicando os pressupostos necessários para a sua formação.11

Em relação aos seus limites subjetivos, o direito processual brasileiro adotou a regra geral de que a coisa julgada produz efeitos apenas entre as partes (artigo 47212 do CPC). Há, entretanto, exceções que impõem efeitos ultra partes ou erga omnes, para atingir terceiros, tal como ocorre nos casos de substituição processual ou de legitimação concorrente, nos processos de usucapião, nas ações coletivas ou nas ações de controle concentrado, dentre outros. Todavia, este aspecto não é tão importante na nossa análise.


Já os limites objetivos, que estabelecem o objeto e os contornos de proteção da coisa julgada, se formam a partir da norma jurídica concreta e inpidualizada, criada pelo Poder Judiciário, a partir do pedido feito pela parte e o que lhe foi entregue no dispositivo da sentença ou acórdão que julgou a lide (artigo 46813 do CPC), ficando de fora do âmbito dos seus efeitos os motivos, as verdades dos fatos e as questões prejudiciais incidentais (artigo 46914 do CPC).

Barbosa Moreira identifica estes limites de maneira muito clara ao exemplificar a situação em que uma pessoa “X” ajuíza uma ação de despejo contra outra “Y”, tendo como motivo da rescisão contratual uma infração grave por ter o locatário danificado o imóvel alugado. Ainda que o pedido seja procedente, o motivo e os fatos (danos no imóvel) que deram ensejo a sentença não ficam cobertos pela autoridade da coisa julgada, pois em um novo processo, em que “X” venha a pleitear uma indenização contra “Y” pelos prejuízos sofridos decorrentes daqueles danos, estes fatos e motivos não são vinculantes ao juízo desta nova causa, pois o pedido poderá vir a ser rejeitado, entendendo o outro magistrado que não ficou provado o fato da danificação.15

Para a nossa análise do caso em concreto, é relevantíssimo identificar corretamente o que exatamente foi pedido pelo contribuinte (afastamento do ordenamento jurídico da norma que revogou a isenção), com a compreensão de que os motivos (violação ao Princípio da Hierarquia entre Leis) constantes da sua fundamentação que ensejaram os julgamentos não estão abrangidos pelos efeitos da coisa julgada, não produzindo reflexos prospectivos em face de mudança de legislação posterior.

Sobre esta afirmação, nos apoiamos na importante lição de Fredie Didier Jr:

É na fundamentação que o magistrado resolve as questões incidentais, assim entendidas aquelas que devem ser solucionadas para que a questão principal (o objeto litigioso do processo) possa ser decidida. Daí se vê que é exatamente aqui, na motivação, que o magistrado deve apreciar e resolver as questões de fato e de direito que são postas à sua análise. […]

Vale lembrar, ainda, que é também na fundamentação que o órgão jurisdicional deverá deliberar sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de ato normativo, acaso a questão seja suscitada pelas partes ou mesmo analisada de ofício – o que é possível, por se tratar, igualmente, de questão de direito. […]

As questões resolvidas na fundamentação da decisão judicial não ficam acobertadas pela coisa julgada material (art. 469, CPC). Por esta razão, tudo que aí é analisado pelo magistrado pode ser revisto em outros processos, que envolvam as mesmas ou outras partes, não se submetendo os julgadores desses outros processos às soluções alvitradas na motivação das decisões anteriores. A coisa julgada material, conforme se verá no capítulo próprio, torna intangível apenas o conteúdo da norma jurídica concreta estabelecida no dispositivo da decisão judicial.16

No caso específico da revogação da COFINS das Sociedades Civis, o contribuinte pleiteava ao Poder Judiciário – e obtinha – o afastamento da norma que revogou a isenção (art. 56, L.9.430/96) sob o motivo de que teria havido uma violação ao Princípio da Hierarquia de Leis. Assim, ainda que não se possa atingir o comando proferido pelo magistrado que afastou a norma revogadora da isenção do ordenamento jurídico, devido à proteção dada pela coisa julgada, os motivos que ensejaram aquela decisão não podem vincular e atingir fatos futuros, não impondo as razões que motivaram aquela decisão concreta às mudanças jurídicas supervenientes de maneira abstrata e geral. Portanto, a exigência da necessidade de Lei Complementar para revogar a isenção dada pela LC 70/91 (motivos) não atinge ou obsta os efeitos de legislação posterior que venha a alterar as circunstâncias jurídicas da tributação, ainda que esta tenha a forma de lei ordinária17. E, caso se queira impor a mesma ratio decidendi, deverá tal pretensão ser objeto de nova demanda judicial e aguardar que haja a mesma compreensão dada ao processo anterior.

V – A Cláusula Rebus Sic Sta nti bus no Processo Civil e as Relações Continuativas

As conclusões até aqui chegadas são especialmente relevantes nas ditas relações jurídicas de natureza continuativa, típicas nas matérias tributárias, cujas exigências ocorrem periodicamente, embora versadas a partir de um único texto legal, tal como é o caso da tributação da COFINS. Isto porque nestas relações, as obrigações objetos de questionamento judicial são homogêneas e de trato sucessivo, onde situações futuras estão vinculadas a situações presentes e as decisões judiciais – sentenças e acórdãos transitados em julgado – versam sobre uma relação jurídica que se projeta no tempo, atingindo, no caso da tributação, os vencimentos futuros de determinada espécie tributária, seja para confirmá-los ou para afastá-los.

A coisa julgada aqui formada se torna imutável e indiscutível, protegendo todas essas relações decorrentes do trato sucessivo, desde que não haja qualquer mudança nas circunstâncias de fato ou de direito. Isto porque a coisa julgada se forma – em qualquer demanda, inclusive nas relações continuativas – levando-se em consideração: a) um determinado pedido; b) uma determinada circunstância fática ou jurídica; e c) uma conclusão chegada – dispositivo da sentença – à luz dos fatos e do direito que foram objeto de apreciação judicial.

Enquanto as circunstâncias fáticas e jurídicas não se alterarem nesta relação continuativa, a coisa julgada estará produzindo efeitos sobre cada desdobramento. Todavia, a cláusula rebus sic stantibus se revela no momento em que houver qualquer modificação nos fatos ou no direito, já que a partir de então a coisa julgada não mais terá eficácia, ou melhor, sua eficácia estará limitada à situação original, pois o pedido feito originalmente referia-se a uma situação fática ou jurídica anterior, ainda não modificada. Para esta nova circunstância, há que se realizar nova demanda judicial, apresentando os novos fatos ou novo direito e, ao final, se obterá uma nova coisa julgada.

No julgamento do Recurso Especial nº 720.736-PE, em 13/11/2007, a Ministra Denise Arruda cita as lições do Ministro Teori Zavascki sobre a cláusula rebus sic stantibus e seus efeitos na coisa julgada, in verbis:

A sentença (proferida em relação jurídica de caráter sucessivo) tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. Se ela afirmou que uma relação jurídica existe ou que tem certo conteúdo, é porque supôs a existência de determinado comando normativo (norma jurídica) e de desta Contribuição Social. determinada situação de fato (suporte fático de incidência); se afirmou que determinada relação jurídica não existe, supôs a inexistência, ou do comando normativo, ou da situação de fato afirmada pelo litigante interessado. A mudança de qualquer desses elementos compromete o silogismo original da sentença, porque estará alterado o silogismo do fenômeno de incidência por ela apreciado: a relação jurídica que antes existia deixou de existir, e vice-versa. Daí afirmar-se que a força da coisa julgada tem uma condição implícita, a da cláusula rebus sic stantibus, a significar que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. (ZAVASCKI, Teori Albino. “Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional” – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001).

Esta lógica vem amparada no teor do artigo 471 do CPC que estabelece que: “Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”. Comentando o dispositivo supra, Luiz Guilherme Marinoni explica que:

A coisa julgada vincula em dado espaço de tempo. Enquanto persistir o contexto fático-jurídico que deu lugar à sua formação, persiste sua autoridade. Modificando-se, contudo, os fatos jurídicos sobre os quais se pronunciou o órgão jurisdicional, a coisa julgada não mais se verifica. É neste sentido que se afirma que a coisa julgada nasce gravada com a cláusula rebus sic stantibus.18

A conclusão a qual se chega é que não há qualquer violação da coisa julgada e nem o dispositivo acima analisado autoriza a sua mitigação, pois ela produzirá seus efeitos de maneira inatingível e imutável apenas enquanto as circunstâncias sobre as quais ela se formou permanecerem as mesmas. Daí a aplicabilidade da cláusula rebus sic stantibus. Assim é o que esclarece o Ministro Luiz Fux:

Essa imutabilidade que se projeta para fora do processo quando o decidido atinge a questão de fundo não sofre qualquer exceção, nem mesmo pelo que dispõem os incisos I e II do artigo 471 do Código de Processo Civil. É que, nessas hipóteses, o juiz profere “decisão para o futuro” e, por isso, com a cláusula de que o seu conteúdo é imodificável se inalterável o ambiente jurídico em que a decisão foi prolatada. […] Desta sorte, como a decisão de mérito provê para o futuro, permitese a revisão do julgado por fato superveniente que, por si só, afasta a impressão de ofensa à coisa julgada posto que respeitante a fatos outros que não aqueles que sustentaram a decisão trânsita.19

Registre-se que o comando contido no artigo 471-I do CPC não vem sendo interpretado – nem pela doutrina e nem pela jurisprudência – de maneira literal e estrita, a exigir sempre que, diante de mudanças nas circunstâncias fáticas ou jurídicas, a parte tenha que demandar judicialmente uma reforma do que foi decidido. Na realidade, a necessidade de uma ação revisional só se demonstra quando as mudanças fáticas ou jurídicas supervenientes não são suficientes para definir completamente as novas relações por elas instauradas, embora sejam suficientes para afetar o quadro anterior. É o que ocorre, por exemplo, no caso das ações de revisão de aluguel ou de alimentos, pois nestas relações, as partes dependerão do pronunciamento do juiz para determinar o novo valor da obrigação.


Já no caso da tributação, esta ação revisional não se faz necessária, pois ocorrendo mudança da legislação, ao estabelecer algum novo elemento do fato gerador da obrigação tributária, surgirá para o contribuinte uma nova obrigação tributária de trato sucessivo persa da anterior e que não foi objeto da lide onde a coisa julgada se formou anteriormente.

A legislação tributária superveniente poderá, eventualmente, fixar nova alíquota, nova base de cálculo ou mesmo um novo contribuinte, modificando algum elemento fundamental da obrigação tributária anterior, suficiente e necessário para criar uma nova relação tributária continuativa.

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou a este respeito, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 703.526- MG20, ao validar a incidência da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido prevista na Lei 7.689/88, considerada inconstitucional, em face de mudança superveniente do quadro normativo daquela contribuição, que foi posteriormente alterado pelas Leis 7.856/89, 8.034/90 e 8.212/91.

E é seguindo esta linha de raciocínio que propomos a reflexão, pois posteriormente a edição da Lei nº 9.430/1996, que revogou a isenção da COFINS das Sociedades Civis, o ordenamento jurídico-tributário brasileiro passou por persas modificações legislativas, alterando substancialmente o suporte jurídico da incidência daquela Contribuição Social, inclusive no que se refere ao aspecto subjetivo (contribuinte), como passamos a analisar.

VI – A Muda nça Superveniente da Legislação da COFINS

Como sabemos, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido foi instituída pela Lei Complementar nº 70/1991, que, nos seus artigos 1º e 2º, fixou expressamente os elementos subjetivos (contribuintes) e quantitativos (alíquota e base de cálculo) do seu fato gerador, e, mais adiante, no seu artigo 6º, concedeu a isenção do tributo para as Sociedades Civis, in verbis:

Art. 1º. Sem prejuízo da cobrança das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), fica instituída contribuição social para o financiamento da Seguridade Social, nos termos do inciso I do art. 195 da Constituição Federal, devida pelas pessoas jurídicas inclusive as a elas equiparadas pela legislação do imposto de renda, destinadas exclusivamente às despesas com atividades-fins das áreas de saúde, previdência e assistência social.

Art. 2º. A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza.

Art. 6º. São isentas da contribuição: […]

II – as sociedades civis de que trata o art. 1º do Decreto-Lei nº 2.397, de 21 de dezembro de 1987.

Em 1996 operou-se uma mudança na tributação da COFINS, especificamente em relação ao seu aspecto subjetivo (contribuintes). Assim, mantendo incólumes todos os demais elementos da obrigação tributária desta contribuição social, a Lei nº 9430 revogou aquela isenção da COFINS das Sociedades Civis que havia sido concedida pela LC 70/91, conforme dispôs categoricamente o seu artigo 56:

Art. 56 As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991.

Parágrafo único. Para efeito da incidência da contribuição de que trata este artigo, serão consideradas as receitas auferidas a partir do mês de abril de 1997.

Pois bem, em 1998 é realizada uma relevante alteração legislativa na alíquota e na base de cálculo da COFINS, conforme dispôs a Lei nº 9.718. Entretanto, a norma em comento não prescreveu apenas a majoração dos elementos quantitativos do tributo. Mencionou, também, expressamente no seu texto (artigo 2º), que a Contribuição Social é devida pelas “pessoas jurídicas de direito privado”, oferecendo, assim, um novo suporte jurídico para o elemento subjetivo do fato gerador, in verbis:

Art. 2º As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com base no seu faturamento, observadas a legislação vigente e as alterações introduzidas por esta Lei.

Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica.

Art. 8º Fica elevada para três por cento a alíquota da COFINS.

Outra alteração no suporte jurídico da COFINS se deu pela Lei nº 10.833/2003, que introduziu a metodologia da não-cumulatividade para este tributo e, mais uma vez, mencionou expressamente no seu artigo 5º o aspecto subjetivo do fato gerador, in verbis:

Art. 1º A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, com a incidência não-cumulativa, tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.

Art. 2º Para determinação do valor da COFINS aplicar-se-á, sobre a base de cálculo apurada conforme o disposto no art. 1º, a alíquota de 7,6% (sete inteiros e seis décimos por cento).

Art. 5º O contribuinte da COFINS é a pessoa jurídica que auferir as receitas a que se refere o art. 1º.

O que se percebe é que todas estas alterações legislativas, além de modificarem algum elemento específico da obrigação tributária em relação a COFINS, traziam no corpo do seu texto a menção expressa ao aspecto subjetivo da obrigação tributária, repetindo sempre que o seu contribuinte é a “pessoa jurídica de direito privado”, sem apresentar qualquer ressalva quanto às Sociedades Civis de profissão regulamentada, levando em consideração que se já encontrava revogada a isenção para as Sociedades Civis, razão pela qual não seria necessária nova revogação expressa.

De qualquer forma, esta generalização do aspecto subjetivo na incidência da COFINS já era suficiente para fazer incidir a contribuição social sobre todas as pessoas jurídicas de direito privado que obtiverem um faturamento mensal, na forma da legislação própria.

Aqui está, portanto, a mudança na circunstância jurídica, objeto da cláusula rebus sic stantibus, que limita os efeitos da coisa julgada que declarou ilegítima a revogação da isenção da COFINS. Estes acórdãos apenas afastavam do ordenamento jurídico o artigo 56 da Lei nº 9.430/96 e, a partir deles, a conseqüência lógica seria a isenção. Vindo, entretanto, nova legislação superveniente a afirmar categoricamente que a COFINS será devida por todas as pessoas jurídicas de direito privado, aquela isenção anteriormente mantida por força de um pronunciamento judicial cai por terra diante do novo suporte jurídico.

VII – O Acolhimento da Tese na Jurisprudência: TRF2 e STJ

Reconhecendo as mudanças legislativas supervenientes em relação a COFINS e dando efetividade à cláusula rebus sic stantibus, os Tribunais Regionais Federais do país e, até mesmo o Superior Tribunal de Justiça vêm se pronunciando pela incidência da contribuição social para as Sociedades Civis, limitando os efeitos dos seus acórdãos que declararam ilegítima a revogação do benefício fiscal pela Lei nº 9.430/96, a partir da entrada em vigor das normas anteriormente analisadas.

Neste sentido, afirmou o STJ:

STJ – RESP 200500540062 (REsp é 739.784) – Relator(a) MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA – DJE DATA: 27/11/2009

Ementa : PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. COFINS. SOCIEDADES CIVIS PRESTADORAS DE SERVIÇO. ISENÇÃO. LC N. 70/91. REVOGAÇÃO. LEI N. 9.430/96. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 10.833/03. RETENÇÃO NA FONTE PELOS TOMADORES DE SERVIÇO. ALTERAÇÃO DA SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. ART. 463 DO CPC. APLICAÇÃO. RELAÇÃO FÁTICO-JURÍDICA NOVA. OFENSA À COISA JULGADA. NÃO-OCORRÊNCIA, IN CASU. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA NOS MOLDES LEGAIS. […]

2. O mandado de segurança em testilha assegurou às sociedades civis de se eximirem do recolhimento da COFINS, com base na isenção concedida pela LC n. 70/91, em face da revogação promovida pelo art. 56 da Lei n. 9.430/96. Ou seja, a tutela judicial foi prestada com espeque nas razões desenvolvidas no writ, que foram articuladas sob determinado contexto fático para que fosse reconhecida a isenção da contribuição, em virtude de não ser possível a revogação de lei complementar por uma lei ordinária – entendimento decorrente do princípio da hierarquia das leis, não mais aplicável ao caso, segundo orientação consagrada pelo STF.


3. A despeito de cuidar da própria espécie tributária (COFINS), a superveniência da Lei n. 10.833/03 não pode ser alcançada pelos efeitos da coisa julgada que concedeu a segurança postulada, de modo a ampliar o objeto da lide, pois a controvérsia em tela foi decidida com base em moldes fáticos e jurídicos próprios do caso concreto, descabendo, neste momento, a pretensão formulada pela recorrente no sentido de garantir aos tomadores de serviços a isenção da retenção na fonte do recolhimento da contribuição, prevista no art. 30 da precitada lei. […]

5. Recurso especial não provido.

Mais recentemente, em 19 de outubro de 2010, a 3ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região julgou, por unanimidade, procedente o Agravo de Instrumento nº 2010.02.01.005953- 3, interposto pela Fazenda Nacional, que visava cassar a decisão do magistrado de 1ª instância que impedia a fiscalização, o lançamento e a cobrança da COFINS, com suporte em um acórdão transitado em julgado onde era concedido ao impetrante – Sociedade Civil – o direito a manutenção da isenção revogada pela Lei nº 9.430/96. No acórdão, foi expressamente destacada a cláusula rebus sic stantibus, onde se reconheceu a mudança do suporte jurídico da tributação da COFINS. Trasncrevemos os seguintes trechos do voto do Desembargador Federal José Ferreira Neves Neto (Fls. 450-453):

[…] É cediço que a coisa julgada material traz em seu bojo a idéia de segurança jurídica, ei que, após decidida uma determinada causa, a matéria que lhe é subjacente passa a ser indiscutível entre as partes. Dessa forma, a autoridade da coisa julgada se sustenta, sempre, no estado de fato e de direito que envolve a prolação da sentença. A rigor, a imutabilidade de qualquer decisão de mérito fica condicionada à observância da cláusula rebus sic stantibus. Nas relações continuativas, porém, esse limite da coisa julgada material avultam, pois é justamente essa espécie de vínculo jurídico que se sujeita, por se protrair no tempo, a alterações na realidade fática ou em seu regime jurídico. […]

Com efeito, a defesa da agravada se funda em decisão transitada em julgado que lhe concedera o direito de não ser compelida ao recolhimento da COFINS incidente “sobre os atos praticados pelas sociedades uniprofissionais, em razão da ilegitimidade da revogação do art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91, pela ei nº 9.430/96”, conforme dispositivo do voto que fundamentou o acórdão.

O ato apontado como coator pela agravada consiste na alegada violação à coisa julgada pela autoridade da Receita Federal do Brasil, tendentes a promover qualquer cobrança a título de COFINS, vez que ela ostenta a condição de isenta da referida contribuição, por força de decisão judicial.

A autuação da Autoridade Fiscal, consistente na apuração da COFINS, teve como suporte a alteração substancial do quadro normativo promovido pelas Leis nºs 9.718/98 e 10.833/03. Os referidos diplomas, que alteram a legislação tributária federal, criam e regulam novo suporte jurídico para a incidência da contribuição, fixando uma relação jurídica tributária distinta da anterior. […]

Assim, por ter sobrevindo modificação no estado de direito que acarretou o surgimento de uma nova relação jurídico tributária, não mais subsistia a coisa julgada material como cristalização do que fora decidido no processo originário.

Ademais, o princípio constitucional da igualdade impõe que casos idênticos sejam regidos pela mesma regra jurídica, ressalvadas, por lógico, diferenciações objetivas fundadas em situações inpiduais específicas; Pelo exposto, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento, para suspender a decisão agravada, a fim de que a Receita Federal do Brasil possa realizar as atividades de fiscalização, lançamento e cobrança da COFINS em relação à agravada, observada a legislação tributária em vigor.

É como voto.

VIII – Conclusão

É inegável reconhecer que a partir do julgamento realizado pelo Plenário do STF do RE 377.457 em 2008, declarando constitucional a revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis feita pela Lei nº 9.430/96, a manutenção dos inúmeros acórdãos já transitados em julgado em sentido contrário se tornou insustentável, não apenas por representarem um pronunciamento de um Poder Público contrário à ordem constitucional, criando a denominada “coisa julgada inconstitucional”, mas, também, por criar uma situação anti-isonômica entre contribuintes em iguais condições – as Sociedades Civis – ao conferir um tratamento fiscal mais benéfico apenas aos contribuintes que obtiveram judicialmente um pronunciamento neste sentido.

Entretanto, sem querer, neste momento, adentrar em uma seara mais arenosa desta discussão, que envolve a análise dos efeitos da teoria da “verticalização da jurisprudência dos tribunais superiores”, pretendemos oferecer uma alternativa pautada na aplicação da cláusula rebus sic stantibus, inserta no artigo 471-I do Código de Processo Civil, para limitar temporalmente os efeitos destes acórdãos – sem se pretender desconstituílos ou relativizá-los – até o momento da entrada em vigor da legislação que tratou da COFINS e conferiu um novo suporte jurídico à sua incidência, que não foi objeto de apreciação daqueles julgados.

Finalmente, importante registrar que embora tenhamos escolhido para esta análise o caso concreto da revogação da isenção da COFINS das Sociedades Civis de profissão regulamentada, acreditamos que a metodologia que aqui se analisou possa ser igualmente aplicável a outros casos de similar enquadramento no Direito Tributário, cuja legislação é uma das mais dinâmicas do Direito brasileiro.

Notas

1 Recursos Extraordinários 377.457 e 381.964.
2 Lei nº 9.430/96 – Art. 56. As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991.
3 Lei Complementar nº 70/1991 – Art. 6° São isentas da contribuição: […] II – as sociedades civis de que trata o art. 1° do Decreto-Lei n° 2.397, de 21 de dezembro de 1987.
4 Julgando a AR 3.761-PR, na sessão de 12/11/2008, a Primeira Seção deliberou pelo CANCELAMENTO da súmula n. 276.
5 STF, Súmula 343: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
6 Lei nº 9.868/99 – Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
7 STF: Recurso Extraordinário 377.457-3 – Paraná – Data: 17/09/2008, folha 1.903.
8 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010. p. 408.
9 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p 19.
10 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 5.
11 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010. p. 417.
12 CPC – Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.
13 CPC – Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
14 CPC – Art. 469. Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; Il – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
15 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os Limites Objetivos da Coisa Julgada no Sistema do Novo Código de Processo Civil. In Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 93.
16 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, vol. 2. 5.ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010. p. 291-296.
17 Veremos, adiante, que normas como a Lei nº 9.718/1998 e a Lei nº 10.833/2003 alteraram substancialmente o regime jurídico da COFINS, oferecendo um novo suporte legal para a incidência desta Contribuição Social.
18 MARINONI, Luiz Guilherme. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.468.
19 FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 825.
20 TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. EFICÁCIA TEMPORAL DA COISA JULGADA.


SENTENÇA QUE DECLARA A INEXIGIBILIDADE DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO, COM BASE NO RECONHECIMENTO, INCIDENTER TANTUM, DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 7.689/88. EDIÇÃO DA LEI 7.856/89. ALTERAÇÃO NO ESTADO DE DIREITO. CESSAÇÃO DA FORÇA VINCULATIVA DA COISA JULGADA. 1. A sentença, ao examinar os fenômenos de incidência e pronunciar juízos de certeza sobre as conseqüências jurídicas daí decorrentes, certificando, oficialmente, a existência, ou a inexistência, ou o modo de ser da relação jurídica, o faz levando em consideração as circunstâncias de fato e de direito (norma abstrata e suporte fático) que então foram apresentadas pelas partes. Por qualificar norma concreta, fazendo juízo sobre fatos já ocorridos, a sentença, em regra, opera sobre o passado, e não sobre o futuro. 2. Portanto, também quanto às relações jurídicas sucessivas, a regra é a de que as sentenças só têm força vinculante sobre as relações já efetivamente concretizadas, não atingindo as que poderão decorrer de fatos futuros, ainda que semelhantes. Elucidativa dessa linha de pensar é a Súmula 239/STF. 3. Todavia, há certas relações jurídicas sucessivas que nascem de um suporte fático complexo, formado por um fato gerador instantâneo, inserido numa relação jurídica permanente. Ora, nesses casos, pode ocorrer que a controvérsia decidida pela sentença tenha por origem não o fato gerador instantâneo, mas a situação jurídica de caráter permanente na qual ele se encontra inserido, e que também compõe o suporte desencadeador do fenômeno de incidência. Tal situação, por seu caráter duradouro, está apta a perdurar no tempo, podendo persistir quando, no futuro, houver a repetição de outros fatos geradores instantâneos, semelhantes ao examinado na sentença. Nestes casos, admite-se a eficácia vinculante da sentença também em relação aos eventos recorrentes. Isso porque o juízo de certeza desenvolvido pela sentença sobre determinada relação jurídica concreta decorreu, na verdade, de juízo de certeza sobre a situação jurídica mais ampla, de caráter duradouro, componente, ainda que mediata, do fenômeno de incidência. Essas sentenças conservarão sua eficácia vinculante enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. 4. No caso presente: houve sentença que, bem ou mal, fez juízo a respeito, não de uma relação tributária isolada, nascida de um específico fato gerador, mas de uma situação jurídica mais ampla, de trato sucessivo, desobrigando as impetrantes de se sujeitar ao recolhimento da contribuição prevista na Lei 7.689/88, considerada inconstitucional. Todavia, o quadro normativo foi alterado pelas Leis 7.856/89, 8.034/90 e 8.212/91, cujas disposições não foram, nem poderiam ser, apreciadas pelo provimento anterior transitado em julgado, caracterizando alteração no quadro normativo capaz de fazer cessar sua eficácia vinculante.5. Recurso especial provido. (Julgamento em 02/08/2005, DJ 19/09/2005, p. 209)

Referências Bibliográficas

CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. I. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: JusPodium, 2010.
FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
MARINONI, Luiz Guilherme. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os Limites Objetivos da Coisa Julgada no Sistema do Novo Código de Processo Civil. In Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1977.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003.
THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.


SINPROFAZ e PGFN debatem interesses da carreira de PFN

O presidente do SINPROFAZ, Allan Titonelli, e o Diretor de Assuntos Profissionais e Estudos Técnicos, Heráclio Camargo, reuniram-se semana passada com a Procuradora-Geral da Fazenda Nacional, Adriana Queiroz. Em pauta, diversos assuntos de interesse da carreira.


SINPROFAZ atua para agilizar as promoções na carreira de PFN

Em ofícios encaminhados às autoridades competentes, Sindicato solicita urgência na edição dos atos materiais imprescindíveis ao processamento do resultado final das promoções.


Frente Parlamentar Mista de Combate à Pirataria e à Sonegação Fiscal

O grupo suprapartidário foi relançado em junho deste ano. SINPROFAZ encaminhou ofício ao presidente da Frente informando o interesse dos PFNs em unir esforços na luta em prol da preservação do patrimônio público.


Campanha Salarial – Esclarecimentos

SINPROFAZ restabelece verdade a respeito da negociação salarial das carreiras jurídicas com o Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão. Deixa claro, também, que a pauta remuneratória da Advocacia Pública Federal é tratada, exclusivamente, com o Forum Nacional da Advocacia Pública Federal.


Vitórias do fisco geram R$ 567 bilhões ao erário

O estoque total da dívida ativa é de R$ 881 bilhões. Segundo o fisco, para cada R$ 1 gasto na PGFN, o governo recebeu em troca R$ 34,47.
Por Alessandro Cristo
No Conjur


Não é função da Justiça arrecadar para a União

Uma mentira contada mil vezes pode mesmo transformar-se em verdade? O bom senso e o compromisso com a veracidade dos fatos forçam-nos inexoravelmente a responder negativamente…


2005.34.00.002295-4

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Índice:

Identificação Fl. Vol.
Petição inicial 04 01
Lista de Associados 44 01
Decisão liminar 217 01
Embargos de Declaração Sinprofaz 230 01
Decisão Embargos 240 01
Sentença 336 01
Apelação Sinprofaz 359 01
Contrarrazões União 34 02

Última folha: 303

OBJETO:

a.1) determinar á Autoridade Impetrada que: 1) abstenha-se de efetuar a suspensão do pagamento da vantagem pessoal nominalmente identificada, alcançada aos Procuradores da Fazenda Nacional enquadrados na segunda categoria da tabela de vencimentos instituída pela Lei nO 10.909/2004, 2) estenda a vantagem em questão para todos os Substituídos que ainda não a percebam, 3) deixe de tomar qualquer providência no sentido de obter o ressarcimento dos valores já alcançados aos substituídos a esse título; a.2) determinar, imediatamente, por meio de ofício, à autoridade competente no âmbito do Minístério do Planejamento, Orçamento e Gestão, o cumprimento integral da liminar concedida;

Em sentença definitiva, a ratificação da liminar deferida e a concessão da segurança definitiva para fins de:
d.1) determinar à Autoridade Impetrada que: 1) abstenha-se de efetuar a suspensão do pagamento da vantagem pessoal nominalmente identíficada, alcançada aos Procuradores da Fazenda Nacional enquadrados na segunda categoria da tabela de vencimentos instituída pela Lei nO 10.909/2004, 2) estenda a vantagem em questão para todos os Substituídos que ainda não a percebam, 3) deixe de tomar qualquer providência no sentido de obter o ressarcimento dos valores já alcançados aos substituidos a esse título; d.2) condenar a Autoridade Impetrada a ressarcir os Substituídos os valores eventualmente descontados;


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Índice:

Identificação Fl. Vol.
Petição inicial 04 01
Contestação 29 02
Decisão liminar 06 02
Decisão que aprecia a impugnação ao valor da causa 56 02

Última folha: 793

OBJETO:

A antecipação da tutela referente aos valores atrasados efetivamente reconhecidos pela União, conforme planilhas elaboradas pela Coordenação-Geral de Recursos Humanos do Ministério da Fazenda (COGRH-MF), encaminhadas pelo oficio 771, de 29 de junho de 2007, com fundamento no art. 273 do código de Processo Civil, em razão da natureza incontroversa do pedido (promoção retroativa, publicada no DOU) e valores reconhecidos nas planilhas elaboradas pela COGRH), conforme explicitado acima em item específico.

Com ou sem contestação, requer seja condenada a ré, União, a pagar aos filiados do Sindicato autor, os valores referentes à promoção de cada um dos Procuradores da Fazenda Nacional promovidos pela Portaria Conjunta do Advogado-Geral da União e do Ministro da Fazenda, publicada no DOU, Seção 2, dia 29.06.2006 e requer ainda:

Que a condenação contemple os efeitos financeiros retroativos a partir da data da promoção de cada um dos substituídos, de acordo com os valores indicados nas planilhas individuais elaboradas pelo próprio Ministério da Fazenda, acrescidas, em qualquer hipótese, da correção monetária.

Que a condenação em sentença contemple a incidência dos juros moratórios a partir da implantação da promoção.

A não incidência do Imposto de Renda e da Contribuição para o PSS sobre os valores individuais a serem pagos a cada um dos Procuradores, em razão da natureza indenizatória, conforme Pareceres PGFN nOs 529/2003 e 92312003 que isentou os Membros Poder Judiciário e do Ministério Publico da incidência do imposto de renda e da contribuição para o regime de previdência sobre verbas recebidas em atraso, bem como da Resolução 245/2002 do Supremo Tribunal Federal.

Na sentença a União deve ser condenada ao pagamento das diferenças referentes ao 13 salário e férias bem à correção monetária de todo o periodo e à incidência de juros de mora; ambos, correção monetária e juros de mora devem incidir sobre o montante total a que faz jus cada um dos Procuradores da Fazenda Nacional beneficiados com a promoção atrasada.


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