Em nota pública, Fórum reitera que carreiras estão mobilizadas por melhores condições para o exercício de função essencial à Justiça. Veja a íntegra do documento:
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Em nota pública, Fórum reitera que carreiras estão mobilizadas por melhores condições para o exercício de função essencial à Justiça. Veja a íntegra do documento:
Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio, e são assegurados pela Lei n.º 8.906/94 aos membros da Advocacia-Geral da União.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo fornecer argumentos jurídicos aptos a justificar a titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência, bem como criticar o entendimento firmado no Parecer GQ – 24.
Palavras-chave: Honorários advocatícios de sucumbência. Membros da Advocacia-Geral da União. Titularidade.
Abstract: Union, by law and in compliance with the principle of decentralization in the Constitution, is not qualified to perform actions directly under block funding of the Brazilian Public Health System (SUS) called attention to secondary and tertiary care outpatient and inpatient. Nevertheless, it is increasing the number of court decisions that impose to Union an obligation to perform these actions. It was demonstrated, through analysis of current case law, as judicial decisions disrupt the way the SUS is structured, with respect to the actions planned for the mentioned block funding. On the other hand, it was explained as the Judiciary, to consider the principle of decentralization, in its decisions, can become an ally in implementing the system in order to ensure achievement, more effective health actions in the block care of ambulatory and tertiary care hospitals.
Keywords: Brazilian Public Health System (SUS). Principle of Decentralization. Block Funding Attention of Middle and High Complexity Hospital Outpatient. Public Policy. Lawsuits
O objeto da presente estudo reside no exame da titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.
De início, cumpre analisar eventual suspeição ou impedimento dos Advogados da União no exame de questões que se encontram umbilicalmente relacionados com o interesse da Instituição.
A Advocacia-Geral da União encontra assento no art. 131 da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
A referida norma está inserida na segunda sessão do Capítulo IV do Titulo IV da Constituição Federal, com a seguinte denominação: “Das Funções Essenciais à Justiça” . Infere-se, assim, que a Advocacia-Geral da União é uma Instituição que exerce, segundo o texto constitucional, “funções essenciais à justiça”. A propósito, convém transcrever as fecundas lições do eminente Uadi Lammêgo Bulos1 sobre a matéria:
Por isso, o Judiciário só funciona por provocação, ou seja, se o agente exigir que ele atue, donde resulte a importância dos protagonistas da dinâmica processual, titulares das funções essenciais à Justiça.
A Carta Magna os enumerou, taxativamente:
Todos esses organismos desencadeadores da atividade jurisdicional atuam por meio de seus agentes públicos ou privados, isto é, promotores, procuradores, advogados e defensores públicos.
Dessa maneira, a inércia da jurisdição é compensada pelo dinamismo dos protagonista das funções essenciais à Justiça.
Em verdade, o papel constitucional dos promotores, procuradores, advogados e defensores públicos é relevantíssimo, porque, de modo genérico, compete-lhes agir em defesa dos interesses do Estado-comunidade, e não do Estado-pessoa.
O arquétipo prefigurado na Constituição da República distancia-os da caricatura usual de que ocupam posição de superioridade se comparados aos cidadãos comuns. Ao invés, encontram limites ao exercício de suas atribuições, pois quem tem o poder e a força do Estado não pode exercer em benefício próprio a autoridade que lhe foi conferida.
A Advocacia-Geral da União, como função essencial à Justiça, tem a atribuição privativa de representar judicial e extrajudicialmente a União, bem como exercer as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo. Ao examinar a questão, o Pleno do Supremo Tribunal Federal não hesitou em reconhecer a referida exclusividade, ao atestar a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 3º Região, no julgamento da RCL 8025, veja-se:
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, em julgar preliminarmente, o Tribunal afirmou a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional federal da 3ª Região. Em seguida, o Tribunal rejeitou a questão de ordem no sentido de intimar a Advocacia Geral da União para que, querendo, se manifeste nos autos. E no mérito, o Tribunal, por maioria julgou procedente a reclamação, para anular a eleição de Presidente e determinar que outra se realize, nos termos do voto do relator.
Nesse contexto, a Lei Complementar n.º 73/1993 – Lei Orgânica da Advocacia -Geral da União, em seus arts. 2º, II, b e art. 11, inciso III, dispõe, respectivamente:
Art. 2º A Advocacia-Geral da União compreende:
II – órgãos de execução
b) a Consultoria da União, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, da Secretaria-Geral e das demais Secretarias da presidência da república e do Estado-Maior das Forças Armadas;
Art. 11. Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:
III – fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União;
Da leitura das normas acima reproduzidas, torna-se possível concluir que a Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, como órgão setorial da Advocacia-Geral da União, tem a atribuição de, exclusivamente, exercer assessoramento jurídico da sua Pasta.
Feitos esses esclarecimento, convém agora analisar os deveres dos Advogados da União, com previsão na já mencionada Lei Complementar e na Lei n.º 8.112/90, que assim prescreve:
. Lei Complementar n.º 93/1993:
Art. 29. É defeso aos membros efetivos da Advocacia-Geral da União exercer suas funções em processo judicial ou administrativo:
I – em que sejam parte;
II – em que hajam atuado como advogado de qualquer das partes;
III – em que seja interessado parente consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o0 segundo grau, bem como cônjuge ou companheiro;
IV – nas hipóteses da legislação processual.
Art. 30. Os membros efetivos da Advocacia-Geral da União devem dar-se por impedidos:
I – quando hajam proferido parecer favorável à pretensão deduzida em juízo pela parte adversa;
II – nas hipóteses da legislação processual.
. Lei n.º 8.112/90:
Art. 116. São deveres do servidor:
I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;
II – ser leal às instituições a que servir;
Art. 117. Ao servidor é proibido:
IX – valer-se co cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;
. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil:
Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:
I – de que for parte;
II – quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.
Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:
V – interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.
À primeira vista, poder-se-ia alegar a suspeição ou impedimento de todos Advogados da União no exame da presente matéria. Este, contudo, não é o melhor entendimento. As normas infraconstitucionais, como trivialmente sabido, devem ser interpretadas à luz do texto constitucional que, como visto, reserva à Advocacia-Geral da União a função de exercer, exclusivamente, o assessoramento jurídico do Poder Executivo. Aplicam-se aqui os princípios que norteiam a interpretação constitucional, dentre os quais se destacam: o da máxima efetividade e o da razoabilidade.
O primeiro impõe que à norma constitucional, sujeita à atividade hermenêutica, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade. Já o segundo indica que a validade dos atos emanados do poder público é aferida com fundamento em três máximas: adequação, necessidade e proporcionalidade. A adequação designa a correlação lógica entre motivos, meios e fins, de maneira que, tendo em vista determinados motivos, devem ser providos meios, para a consecução de certos fins. A necessidade ou exigibilidade denota a intervenção mínima, isto é, inexistência de meios menos gravoso para a obtenção do fim pretendido. Já a proporcionalidade denomina a ponderação entre o encargo imposto e o benefício trazido2.
Nesse contexto, o constituinte originário, ao conferir à Advocacia-Geral da União a exclusividade do assessoramento jurídico, bem como incluí-la no rol das “funções essenciais à justiça”, não previu qualquer exceção capaz de afastar a sua atuação, de sorte que não seria razoável que a Instituição deixasse de examinar a constitucionalidade e regularidade dos projetos de atos normativos e consultas de seu interesse.
Em reforço à tese até aqui desenvolvida, não se pode olvidar que, quando o constituinte originário exigiu a citação prévia do Advogado-Geral da União nas causas em que o Supremo Tribunal Federal vier apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, para defender o texto ou ato impugnado, não fez qualquer restrição em relação à sua atuação. Assim, ainda que a eventual impugnação seja de norma referente à Instituição, a sua participação se faz necessária3.
Mas não é só. Em última análise, se fosse admitida o afastamento dos Advogados da União para exame de matéria dessa natureza, para que estranhos à carreira a realizassem, além de ferir de morte o art. 133 da Constituição Federal, estar-se-ia dando ensejo ao desvio de função, prática que destoa dos princípios da legalidade e moralidade, que norteiam a atuação da Administração, de tal modo que os atos por eles praticados estariam eivados do vício de nulidade.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não destoa desse entendimento, consoante se pode verificar da leitura da ementa abaixo transcrita:
E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI COMPLEMENTAR 11/91, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (ART. 12, CAPUT, E §§ 1º E 2º; ART. 13 E INCISOS I A V) – ASSESSOR JURÍDICO – CARGO DE PROVIMENTO EM COMISSÃO – FUNÇÕES INERENTES AO CARGO DE PROCURADOR DO ESTADO – USURPAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. – O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. (ADI 881 MC/ES, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 25.04.97.)
Como se pode observar, a exclusividade das atribuições reservadas pelo texto constitucional à Advocacia-Geral da União, para assessoramento jurídico do Poder Executivo, impõe que todas as consultas jurídicas sejam por ela examinadas, inclusive as referentes à própria Instituição.
Antes de se adentrar no exame do direito dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários de sucumbência, afigura-se indispensável a análise de uma questão preliminar, qual seja, a sua compatibilidade com o regime de subsídio.
O vocábulo subsídio foi inserido na Constituição Federal pela Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/98), que introduziu o § 4º no art. 39, in verbis:
§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.
A referida Emenda também alterou o art. 135 da Constituição Federal, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 135. Os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e III deste Capítulo serão remunerados na forma do art. 39, § 4º.
Como se vê, com o advento da Emenda Constitucional nº 19/98, a carreira da Advocacia-Geral da União passou a ter uma nova disciplina remuneratória, que veio a se materializar com o advento da Medida Provisória nº 305, de 29.06.2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006 .
O subsídio, pois, caracteriza-se como nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Esse rigor, entretanto, é relativizado por outras normas constitucionais, que não foram atingidas pela Emenda, como é o caso, por exemplo, do art. 39, § 3º.
Outro não é o entendimento da eminente Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 que, ao examinar a questão, assinala:
No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no art. 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX. Com isto, o servidor que ocupe cargo público (o que exclui os que exercem mandato eletivo e os que ocupam emprego público, já abrangidos pelo art. 7º) fará jus a: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo a 50% à do normal, adicional de férias.
Como se pode observar, a regra do art. 39, § 4º, da Constituição Federal não é absoluta. Por outro lado, sobreleva anotar que o seu alcance se limita aos valores pagos pela administração pública. Os honorários advocatícios de sucumbência, diferentemente das vantagens ali mencionadas, são verbas de natureza particular, eis que são pagos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora, ou seja, não saem dos cofres públicos. Nessa linha, são os ensinamentos de Ivan Barbosa Rigolin5:
V – Ao que parece viceja, cá e lá, o entendimento de que os honorários de sucumbência constituem algo como “benefício aos servidores públicos”, pagos pelo poder Público, e talvez aí resida toda a origem do impasse que pode estar acontecendo.
Honorários advocatícios de sucumbência jamais foram benefício a servidor público, porque não são pagos com dinheiro público, não saem dos cofres públicos, mas do bolso dos derrotados em ações judiciais contra o poder Público. Não têm origem em recursos públicos, mas particulares – e muitos particulares. Quem os pagou já o sentiu.
Como se isso não bastasse, deve-se destacar que, se a intenção do constituinte fosse a de proibir o advogado público, o que se admite apenas por hipótese, teria a consagrado expressamente, com o fez em outra passagem do texto constitucional, como é o caso do art. 128, II, a da Constituição Federal, in verbis:
Art. 128. O Ministério Público abrange:
II – as seguintes vedações:
a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;
Ora, não foi esse o tratamento dispensado à Advocacia-Geral da União, não havendo qualquer restrição a respeito. A Lei Complementar n.º 73/1993, a seu turno, não traz qualquer proibição dessa natureza.
Registre-se, por relevante, que o texto original da Lei Complementar n.º 73/93 aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado à sanção presidencial, previa em seu art. 65 a vedação ao recebimento dos honorários6. Contudo, a aludida norma foi vetada pelo Presidente da República por interesse público, a fim de garantir a premiação do êxito, nos seguintes termos:
Quanto ao pro labore, percebido pelos Procuradores da Fazenda Nacional, por força da lei 7711 de 22 de dezembro de 1988, limita-se à sucumbência dos devedores vencidos nas execuções fiscais (honorários advocatícios). Desses honorários, 50 % destinam-se à implementação e modernização das procuradorias da Fazenda Nacional (informatização, custeio de taxas e custos de execuções fiscais, despesas de diligências, pro labore de peritos técnicos, avaliador e contadores judiciais, além de despesas de penhora, remoção e depósito de bens). Esse sistema de incentivo tem funcionado com múltiplo êxito para os cofres da União, sendo o principal fator de crescimento da arrecadação, apesar do decrescente números de Procuradores da Fazenda nacional em todo País7.
Resta, portanto, muito claro que o regime de subsídio não constitui óbice ao pagamento dos honorários de sucumbência aos membros da Advocacia-Geral da União, cuja titularidade restará demonstrada a seguir.
A título de contextualização, cumpre realizar um breve histórico sobre a evolução legislativa dos honorários de sucumbência. De início, a Lei n.º 4.215/63, em seu art. 998, os previu. Em seguida, o Código de Processo Civil – Lei n.º 6.355/1973, no art. 209, também os consagrou. Nesse período, entretanto, tais honorários, a princípio, eram da titularidade da parte e não do advogado, bem como tinham natureza eminentemente indenizatória.
Em 1994, sobreveio a Lei n.º 8.906 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – EOAB, que trouxe profunda alterações à matéria, modificando sobremaneira o regime até então vigente. Os honorários deixaram de ser meramente indenizatórios, para assumir status de remuneração. Nesse contexto, esclarecedores os comentários de Yussef Said Cahali10:
A Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil), embora contendo dispositivos notoriamente polêmicos, teve o mérito contudo de enunciar claramente a quem pertencem os honorários advocatícios da sucumbência. Assim, ao estabelecer, em seu art. 23, que os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, o novel legislador buscou superar a aparente antinomia existente entre o artigo 20 do Código de Processo Civil e o artigo 99 do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963), geradora de um inconciliável dissídio doutrinário e jurisprudencial.
Uma das grandes inovações trazidas pelo referido diploma legal, indubitavelmente, foi a de reservar ao advogado, em seu Capítulo VI, a titularidade dos honorários de sucumbência. A propósito, não é desnecessário afirmar que os honorários têm natureza alimentar, consoante a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Vale, por todos, transcrever ementa do Supremo Tribunal Federal nesse sentido:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO DE FUNDAMENTO EM AGRAVO REGIMENTAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR. AGRAVO IMPROVIDO. I – É incabível a inovação de fundamento em agravo regimental, porquanto a matéria arguida não foi objeto de recurso extraordinário. II – O acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência da Corte no sentido de que os honorários advocatícios têm natureza alimentar. III – Agravo regimental improvido. (AI 732358, Rel. Min. Ricardo Lewandoswski, Primeira Turma, DJ 21.08.2009. Destacou-se)
Posteriormente, foi publicada a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, asseverou que as normas previstas no Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam à Administração Pública direta da União, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, consoante se pode verificar da leitura do seu art. 4º, in verbis:
Art. 4º As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista.
Em razão da sucessão de leis no tempo tratando da mesma matéria, deve-se destacar que não merecer prosperar o argumento segundo o qual, em razão do disposto no art. 20 do Código de Processo Civil, os honorários de sucumbência pertenceriam à parte e não ao advogado, eis que a Lei n.º 8.906/94, por ser posterior, a revogou tacitamente. Essa é a inteligência do art. 2º, I, do Decreto-Lei n.º 4.65711, de 4 de setembro de 1942 – Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro.
Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. HONORÁRIOS. INTERPRETAÇÃO ANTERIOR À LEI N. 8.906/94.TITULARIDADE DA PARTE VENCEDORA.
1. Verifica-se que o acórdão recorrido analisou todas as questões atinentes à lide, só que de forma contrária aos interesses da parte. Logo, não padece de vícios de omissão, contradição ou obscuridade, a justificar sua anulação por esta Corte. Tese de violação do art. 535 do CPC afastada.
2. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que antes do advento da Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dosAdvogados do Brasil), a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência era da parte vencedora e, não, do seu respectivo advogado.
3. Recurso especial provido. (REsp 859944/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE 19.08.2009)
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. DÉBITO DE NATUREZA ALIMENTÍCIA. ACÓRDÃO DECIDIDO POR FUNDAMENTOS DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE NA VIA RECURSAL ELEITA. TITULARIDADE, EM PRINCÍPIO, DO ADVOGADO DA PARTE VENCEDORA, PERMITIDA CONVENÇÃO EM SENTIDO CONTRÁRIO. POSSIBILIDADE DA EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO DISTINTO PARA A VERBA DE SUCUMBÊNCIA. DIREITO AUTÔNOMO DO ADVOGADO.
1. A questão em torno da natureza da verba recebida a título de honorários de sucumbência — se possui ou não caráter alimentício — foi decidida pela Corte de origem por fundamentos de índole eminentemente constitucional, insuscetíveis de apreciação em sede de recurso especial.
2. A análise de matéria constitucional, em sede de recurso especial, é alheia à competência atribuída a esta Superior Corte de Justiça, a teor do disposto no art. 105, III, da Constituição Federal.
3. A Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), ao contrário da legislação anterior que disciplinava a matéria, modificou a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência, passando-as da parte vencedora para o seu respectivo advogado.
4. Até prova em contrário, os honorários sucumbenciais são devidos ao advogado da parte vencedora, “tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, independentemente da juntada de cópia do contrato de prestação de serviços advocatícios.
5. Recurso especial parcialmente provido. (Resp 659293/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 24.04.2006)
A questão foi também examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.194-4, que teve como objeto, dentre outras normas, o parágrafo único do art. 21 e o parágrafo 3º do art. 24, ambas da Lei n.º 8.906/94. Na oportunidade, por maioria, assinalou-se que o recebimento dos honorários de sucumbência é disponível, de sorte a permitir o ajuste contratual entre o advogado e o cliente sobre as referidas verbas. Calha, por relevante, transcrever passagens do voto do Ministro Maurício Corrêa nesse sentido:
22. Toda argumentação da requerente cai por terra ante o disposto nos artigos 22 e 23 do Estatuto da Advocacia, que, encerrando a discussão acerca da titularidade da verba em face da redação do artigo 20 do CPC, assegurou expressamente que o advogado tem direito aos honorários de sucumbência. Em que pese a constitucionalidade de tais preceitos ter sido objeto também desta ação direta, a questão não pôde ser apreciada em virtude da ilegitimidade ativa da requerente por impertinência temática. Pertencendo a verba honorária ao advogado, não se há de falar em recomposição do conteúdo econômico-patrimonial da parte, criação de obstáculo para o acesso à justiça e, muito menos, em ofensa a direito adquirido da litigante.
23. Ainda que se entenda que os honorários se destinavam a ressarcir a parte vencedora pela despesas havidas com a contratação de profissional de advocacia e nessa perspectiva pertencesse ao litigante, segundo uma das exegeses admitidas do artigo 20 do CPC, restaria clara sua revogação pelos artigos 22 e 23 do superveniente estatuto da OAB (LICC, artigo 2º, § 1º)
Uma vez assentado o direito dos advogados aos honorários de sucumbência, convém agora examinar se eles também se estendem aos membros da Advocacia-Geral da União. Frise-se, por oportuno, que as alterações promovidas pela Lei n.º 9.527/97, mencionadas alhures, referem-se tão somente ao Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94, vale dizer, aplicam-se apenas aos advogados empregados. Nessa linha, convém reproduzir as informações prestadas pelo Senado Federal ao Supremo Tribunal Federal, na ADI n.º 3.396 que analisa a constitucionalidade do art. 4º da Lei n.º 9.527/97:
Apesar de submetidos a um mesmo estatuto, no caso, o Estatuto da Advocacia, criado pela Lei n.º 8.906, de 1994, os advogados que ocupam cargo público em órgãos da Administração Direta, Autarquias e Fundações instituídas pelo Poder Público, sujeitam-se a um regime especial de trabalho. Trata-se do Regime Jurídico Único previsto na Lei n.º 8.112, de 1990, e nesta condição estão submetidos a um regime de direitos e deveres específicos, o qual não se confunde com o regime das empresas privadas, este aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista, que normalmente se submetem aos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
Paralelamente a isso, não se pode esquecer que a exegese das leis é orientada pelo processo sistemático, porquanto as leis não são conglomerados de normas desconexas entre si. Ao revés, apresentam-se de modo coordenado, em feixes orgânicos, procurando formar unidade de sentido. Os seus elementos mantêm vínculo de inter-relação e interdependência12. Dessarte, os arts. 22 a 26 da Lei n.º 8.906/94, presentes no Capítulo VI, que versam sobre os honorários advocatícios, devem ser interpretados à luz do disposto no art. 3º, § 1º, do mesmo Diploma Legal, in verbis:
Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional. (Destacou-se)
Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.
§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.
§ 2º Na falta de estipulação ou de acordo, os honorários são fixados por arbitramento judicial, em remuneração compatível com o trabalho e o valor econômico da questão, não podendo ser inferiores aos estabelecidos na tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB.
§ 3º Salvo estipulação em contrário, um terço dos honorários é devido no início do serviço, outro terço até a decisão de primeira instância e o restante no final.
§ 4º Se o advogado fizer juntar aos autos o seu contrato de honorários antes de expedir-se o mandado de levantamento ou precatório, o juiz deve determinar que lhe sejam pagos diretamente, por dedução da quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este provar que já os pagou.
§ 5º O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de mandato outorgado por advogado para defesa em processo oriundo de ato ou omissão praticada no exercício da profissão.
Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.
Sublinhe-se que as normas inseridas no Capítulo VI do Estatuto da Advocacia, em nenhum momento, restringem sua aplicação aos membros da Advocacia-Geral da União. Na atividade hermenêutica, como é cediço, não cabe ao intérprete definir o que o legislador não definiu, nem mesmo acrescer ao texto legal condição nela não existente. Assim, não há razão para se restringir o alcance das normas acima mencionadas.
Como se vê, em homenagem ao método sistemático de interpretação, ressoa inequívoco o direito dos Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional e Procuradores Federais aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.
Sem embargo das considerações até aqui lançadas, cumpre assinalar que a questão já foi examinada pela Advocacia-Geral da União, por meio do PARECER nº GQ – 24, vinculante, que adotou para os fins do art. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73/93, o Anexo PARECER Nº AGU/WM-08-94. Na oportunidade, restou assentado que os arts. 22 a 25 da lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam aos membros da Instituição, veja-se:
EMENTA: A disciplina do horário de trabalho e da remuneração ínsita à Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, é específica do advogado, na condição de profissional liberal e empregado, sem incidência na situação funcional dos servidores públicos federais, exercentes de cargos a que sejam pertinentes atribuições jurídicas.
(…)
4. É induvidoso que os servidores dos órgãos da Administração Federal direta, das autarquias e das fundações públicas federais,a cujos cargos correspondam as atividades de advocacia, se submetem ao regime instituído pela Lei 8.906 (cfr. O § 1º do art. 3º), mas são regidos pelas normas estipendiárias e pertinentes às cargas horárias e específicas dos servidores públicos federais.
9. Há que se realçar a prevalência de comando ínsito à Lei Complementar n. 73, de 1993, estratificado no sentido de que a remuneração dos membros da Advocacia-Geral da União se fixa em “lei própria”, condição que se não considera atendida com as normas concernentes ao Estatuto da Advocacia, em comento.
13. A mantença das regras a que são submetidos especificamente os advogados, servidores federais estatutários, decorrente se sua compatibilização coma lei nova, se justifica pelo fato de esse pessoal encontrar-se inserido no contexto do funcionalismo federal, regido por normas editadas unilateralmente pelo Estado, a fim de estabelecer o regramento da relação jurídica que se constitui entre ele e o servidor, de modo a que o Poder Público disponha de um sistema administrativo capaz de atender à sua finalidade, consistente em proporcionar à coletividade maior utilidade pública, essência das realizações da Administração. Face a esse desiderato, é atribuída ao Estado a faculdade de estabelecer e alterar, de forma unilateral, as regalias originárias do funcionalismo, adequando-as às suas peculiaridades e necessidades, inclusive as orçamentárias, mas sem inobservar os comandos constitucionais. Tanto assim é essa especificidade que o art. 61 da Carta insere na competência privativa do Presidemte da República a iniciativa de leis que cuidem sobre aspectos de regime jurídico do servidor público deferal, incluída a remuneração.
14. Essa linha de raciocínio aproveita à inaplicabilidade do regramento dos adicionais de sucumbência aos mesmo servidores: as características dessas normas (arts. 22 a 25 da Lei n. 8.906) indicam o alcance, tão-só, das atividades de advocacia desenvolvidas pelos profissionais liberais e advogados empregados, no que couber. Induzem a essa lição inclusive o aspecto de que os honorários, incluído os de sucumbência, pertencem ao advogado, que pode, de forma autônoma, executar a sentença, nesse particular (art. 23), direito que se não compatibiliza com a isonomia de vencimentos preconizada nos arts. 39, § 1º, e 135 da Constituição. Em relação a esse honorários a que façam jus os advogados empregados, há também disciplina específica no art. 21 do mesmo Diploma Legal, inexistindo a dos servidores estatutários do Estado, cujas peculiaridades também reclamariam normas especiais.
15. O Estatuto da Advocacia se estende aos servidores da área jurídica federal. Porém, por imperativo seu, impõe-se a observância do “regime próprio a que se subordinam” (art. 3º, § 1º), que, via de regra, não prevê esse adicional retributivo. Para contemplar esse pessoal, haveria de ser regulado em lei, em vista do princípio da legalidade esculpido no art. 37 da Constituição.
III
16. O exposto admite se acolha o resultado interpretativo de que os advogados submetidos ao regime jurídico instituído pela Lei n. 8.112, de 1990, continuam sujeitos ao disciplinamento vigente à época da edição do novo Estatuto da Advocacia, no que respeita à carga horária e à remuneração, porquanto não foram alcançados, no particular, pela lei nova.
A referida manifestação fundamenta-se, basicamente, no disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93, que exige lei própria para fixação do vencimento e remuneração dos membros das carreiras da Advocacia-Geral da União.
O grande problema é que esse argumento poderá trazer graves consequências, especialmente se o utilizarmos para o exame de importantes leis afetas à Advocacia-Geral da União, publicadas nos últimos anos, senão vejamos:
a) O subsídio dos cargos das carreiras da Advocacia-Geral da União foi instituído pela Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006. Sucede, todavia, que os referidos atos normativos não se enquadram no conceito de “lei própria”, eis que disciplinam, a um só tempo, as carreiras de Procurador da Fazenda Nacional, Advogado da União, Procurador Federal, Defensor Público, de Procurador do Banco Central do Brasil, Policial Federal e da reestruturação dos cargos da Carreira de Policial Rodoviário Federal. Em razão disso, indaga-se: estaria a Lei n.º 11.358 violando o disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?
b) De igual modo, o último aumento remuneratório das carreiras da Advocacia-Geral da União deu-se, por meio da Medida Provisória n.º 440, de 2008, convertida na Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008. Todavia, assim como o exemplo anterior, as referidas normas não se enquadram no conceito de “lei própria”, uma vez que abrangem inúmeras carreias do Poder Executivo Federal, tratando não só de remuneração, bem como de reestruturação. Pergunta-se: estaria a Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008 contrariando o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?
c) Se o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 exige que o vencimento e a remuneração das carreiras sejam tratados em “lei própria”, estariam os Advogados Públicos Federais isentos do pagamento da contribuição anual à OAB, prevista no art. 46 da Lei n.º 8.906/1994, porquanto se trata de matéria que, em última análise, encontra-se umbilicalmente relacionada à remuneração e vencimentos dos membros da carreira?
Por outro lado, deve-se destacar que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.652-6, que examinou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 1413 do Código de Processo Civil, o Ministro Relator Maurício Corrêa assinalou, em seu voto, que os advogado públicos sujeitam-se às prerrogativas, direitos e deveres do advogado, estando submetidos à disciplina própria da profissão, nos seguintes termos:
2. Com efeito, seria mesmo um absurdo concluir que o legislador tenha pretendido excluir de ressalva os advogados sujeitos a outros regimes jurídicos, além daquele instituído pelo Estatuto da OAB, como ocorre, por exemplo, com os profissionais da advocacia que a exercem na condição de servidores públicos. Embora submetidos à legislação específica que regula tal exercício, também devem observância ao regime próprio do ente público contratante. Nem por isso, entretanto, deixam de gozar das prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão, artigos 3º, § 1º; e 18.
Ora, se os honorários de sucumbência não pertencem aos membros da Advocacia-Geral da União, em razão dos argumentos aduzidos no Parecer GQ – 24, a quem são devidos? À União? Com base em que fundamento legal? A propósito, desconhece-se, s.m.j., qualquer lei que autorize a União a receber tais verbas. Não é preciso gastar rios de tinta para perceber que essa realidade viola, no mínimo, o princípio da legalidade administrativa, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal.
Outro ponto que deve ser levantado é o de que o referido Parecer vinculante foi elaborado sob uma realidade jurídica distinta dos dias atuais, de sorte a não mais tratar a contento as questões afetas à matéria, notadamente se levarmos em consideração que, posteriormente, à sua publicação, consoante já mencionado, sobreveio a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, afastou a incidência das normas presentes no Capítulo V do título I à Adminsitração Pública direta da União, às autarquias, às fundações públicas instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, esvaziando, assim, parte do seu conteúdo.
Além disso, foi publicada a Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006, que criou o subsídio dos cargos da carreira da Advocacia-Geral da União, conforme relatado no item 42, a, desta manifestação.
Por derradeiro, mas não menos importante, assinale-se, a título de informação, que os membros de boa parte das Procuradorias dos estados14 e dos municípios recebem honorários de sucumbência.
Por todo o exposto, sugere-se, com fundamento no art. 4º, X, da Lei Complementar n.º 73/93, que o Parecer GQ – 24 seja revisado pela Advocacia-Geral da União.
Ao término dessa exposição, torna-se possível sintetizar algumas das suas proposições mais importantes:
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
CAHALI, Yussef Said. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94.
MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003.
RIGOLIN, Ivan Barbosa. Honorários Advocatícios e Pode Público. Boletim de Direito Administrativo: BDA. São Paulo: NDJ, Ano XXII, n.º 3, março de 2006.
Guedes, Jefferson Guarús; Hauschild, Mauro Luciano (Coordenação).Nos limites da história: a construção da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos. Brasília: UNIP, UNAF, 2009.
Sítios Eletrônicos pesquisados:
http://www.casacivil.planalto.gov.br.
Notas
Paulo Fernando Feijó Torres Junior
Advogado da União em Brasília (DF).
NBR 6023:2002 ABNT: JUNIOR, Paulo Fernando Feijó Torres. Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3106, 2 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20765>. Acesso em: 16 jan. 2012.
A AGU foi a vencedora na categoria especial da VIII edição do Prêmio pelo trabalho do Grupo Permanente de Atuação Proativa na recuperação judicial de valores desviados dos cofres públicos em esquemas de corrupção.
Porém, mesmo diante de contínuas vitórias expressivas, a estratégica e superavitária PGFN continua sofrendo com graves deficiências estruturais.
Momentos de descontração também marcaram o 11º Encontro Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional. Ao final de cada ciclo de palestras houve sorteios de brindes para os PFNs.
Secretário de Reforma do Judiciário apresentou informações sobre o perfil das carreiras que integram a AGU. Projetos de interesse dos PFNs também foram abordados no encerramento.
Autor: Luiz Octavio Rabelo Neto, Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, em convênio com o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP e a REDE LFG. Procurador da Fazenda Nacional em Belém-PA.
Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011
RESUMO – Este artigo pretende analisar a utilização do Direito Tributário como instrumento de inclusão social, mediante a adoção de políticas de ação afirmativa, notadamente através da previsão legislativa de concessão de benefícios fiscais aptos a servirem como estímulo à iniciativa privada para adoção de tais políticas, utilizando-se da função extrafiscal dos tributos, com o escopo de materialização dos direitos humanos. Tendo em vista o rol de valores e objetivos estatuídos em nível constitucional, não se admite uma postura inerte do Estado, exigindo-se, ao contrário, que este adote políticas públicas para consecução daqueles objetivos e valores, proporcionando desenvolvimento humano. Conclui-se que o poder-dever tributário está estritamente vinculado aos direitos humanos e, dessa forma, os benefícios fiscais são utilizados como instrumento das medidas de ação afirmativa, embora essa utilização ainda seja modesta.
Neste artigo, pretende-se analisar, em linhas gerais, a utilização do direito tributário como instrumento de inclusão social, especialmente mediante a instituição de políticas de ação afirmativa, que consiste em uma ação pública ou privada que tem por escopos combater a discriminação e promover a igualdade substancial, conferindo tratamento diferenciado a indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis socialmente, incluindo-os na sociedade.
Os grupos vulneráveis são aqueles grupos de pessoas que mais facilmente têm seus direitos humanos violados, a exemplo das pessoas com deficiência, mulheres, idosos, crianças, minorias étnicas, etc. Em outros termos, a vulnerabilidade corresponde à situação da pessoa ou grupo que, por motivos pessoais ou em razão de fatores externos, estejam submetidos a tratamentos discriminatórios ou desigualitários. Contudo, a preocupação do estudo não se concentra em um grupo vulnerável determinado, uma vez que no conceito de grupos vulneráveis se incluem vários e diferentes grupos, os quais possuem tratamento diversificado pelo ordenamento jurídico pátrio. Ao reverso, procurar-se-á destacar a possibilidade de ampliar a utilização e discutir uma medida de ação afirmativa que não é habitualmente tratada pela doutrina.
Para promover a inclusão social desses indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis, propõe-se analisar o direito tributário como mecanismo de promoção de mudanças sociais. Como afirmou o assistente social Romeu Kazumi Sassaki, “Para incluir todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros”. 1
Dessa forma, a inclusão social é um processo que visa à alteração do meio ambiente social, a fim de proporcionar a participação de qualquer pessoa. O objetivo de inclusão social não se satisfaz apenas evitando a discriminação e a exacerbação das desigualdades sociais, mas também promovendo políticas que proporcionem a indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis uma participação ativa na sociedade, o que é consentâneo com as políticas de ação afirmativa, pois estas permitem uma postura ativa por parte do Estado e da iniciativa privada no combate à discriminação e às desigualdades existentes, colaborando para inclusão social de todos.
Pretende-se avaliar de que maneira o tributo pode servir como instrumento de inclusão social, pois, através de seu caráter de solidariedade, todos os membros da sociedade podem contribuir para o bem comum, para o custeio dos gastos públicos e para concretização dos direitos fundamentais.
Tal temática se insere em um contexto doutrinário interessado em compatibilizar o poder tributário do Estado com os direitos fundamentais do contribuinte, de forma que, ao mesmo tempo em que seja possível garantir os recursos necessários para o custeio da máquina estatal e para a implementação dos direitos humanos, possa o ente público promover mudanças sociais e desenvolvimento humano, utilizando o Direito Tributário como instrumento.
Isso porque a temática da implementação dos direitos humanos está estritamente ligada às questões orçamentária e fiscal, havendo quem alegue a necessidade de aplicação da cláusula da reserva do possível como limite à possibilidade de concretização dos direitos fundamentais sociais. Segundo referida cláusula, os recursos orçamentários são escassos e insuficientes para atender a todas as demandas sociais, razão pela qual seria possível ao Estado tutelar apenas o mínimo existencial de cada pessoa.
Abstraída, neste trabalho, a discussão acerca da correção dessa tese, o certo é que as prestações positivas do Estado encontram limites na riqueza nacional e na situação econômica de um país, uma vez que não se pode acreditar na utópica inesgotabilidade dos recursos públicos. 2
Por outro lado, reconhece-se que não existem direitos sem custos de efetivação. Todos os direitos são positivos, no sentido de que exigem gastos públicos para sua proteção, o que sugere uma reflexão sobre a legitimidade democrática da destinação dos recursos escassos, a transparência e a prioridade dessa destinação, além da questão moral e política da justiça distributiva como forma de concretização da igualdade.
Nesse sentido, Stephen Holmes e Cass Sustein demonstram que mesmo os direitos civis e políticos possuem altos custos que devem ser sustentados por toda a sociedade através da tributação. Logo, não são apenas os direitos sociais que necessitam de verbas públicas para sua implementação, mas também os direitos civis e políticos, assim como outras espécies de direitos fundamentais. Como afirmam Holmes e Sustein, “todos os direitos são custosos porque todos os direitos pressupõem o financiamento pelo contribuinte de mecanismos eficazes de supervisão para monitoramento e execução”.3
Isso torna claro o quanto estão relacionadas a questão da efetividade dos direitos fundamentais e as finanças públicas, realçando a importância da destinação inteligente dos limitados recursos públicos, evitando-se desperdícios.
Dessa forma, diante da normatividade dos princípios constitucionais, a postura do Estado não deve ser somente negativa, no sentido de não intervir em demasia na esfera de liberdade dos cidadãos. Ao reverso, a Carta Magna Brasileira de 1988 previu, já no preâmbulo, a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar, entre outras coisas, o exercício dos direitos fundamentais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, albergando, em seu bojo, uma série de valores fundamentais, inclusive com o reconhecimento de direitos de caráter econômico e social, que devem nortear a ação estatal em todas as suas esferas, inclusive na política tributária, como objetivos a serem perseguidos.
Como defende o economista indiano Amartya Sen, o desenvolvimento de um país não pode ser medido apenas com enfoque no nível de renda de sua população, devendo ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, eliminando-se as privações que limitam as suas escolhas e oportunidades sociais.4
Por outro lado, a diversidade humana não pode ser ignorada no tratamento das políticas destinadas à expansão das liberdades e à promoção da igualdade, uma vez que o efeito de ignorar as variações interpessoais pode contrariar a própria igualdade, na medida em que oculta o fato de que para conferir igual consideração a todos pode ser necessário dar um tratamento desigual àqueles que estão em desvantagem.
É exatamente esse tratamento diferenciado com o objetivo de expandir liberdades e promover a igualdade que está no centro da fundamentação das políticas de ação afirmativa. Tal expressão, derivada da língua inglesa (affirmative action), foi empregada pela primeira vez em um texto oficial pelo Presidente norte-americano John Kennedy, ao editar a Executive Order n. 10.925, de 06.03.1963, segundo a qual os contratantes com o governo federal deveriam, além de não discriminar funcionários ou candidatos a funcionários por motivos de raça, credo, cor ou nacionalidade, adotar ação afirmativa para assegurar que essas pessoas fossem empregadas.5
Também designadas como “discriminação positiva”, referidas políticas são tentativas de concretização da igualdade substancial ou material, na medida em que proporcionam um tratamento prioritário ou preferencial com vistas à inclusão social de determinados grupos socialmente fragilizados ou vulneráveis. Em outras palavras, considerando que os tratamentos desiguais que impliquem a negação de direitos são inválidos por violarem o princípio da igualdade, as ações afirmativas visam exatamente facilitar o acesso a tais direitos, daí resultando a sua legitimidade.
Em monografia sobre o tema, Joaquim B. Barbosa Gomes assim define as ações afirmativas:
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.6
Ao lado das normas que constituem o modelo repressor de combate à discriminação, que são pautadas na concepção de que o direito tem a função meramente negativa, utilizando-se de técnicas de desencorajamento, ganham destaque as normas que, utilizando-se da função promocional do direito, ao invés de se limitarem à proibição do tratamento discriminatório, têm o objetivo de combatê-lo e de eliminar ou atenuar os seus nefastos efeitos através de medidas de promoção social dos indivíduos discriminados. Trata-se do modelo de ação afirmativa, essencial para promoção da inclusão social desses indivíduos, proporcionando um alcance efetivo da igualdade material entre as pessoas. Nas palavras esclarecedoras de Flávia Piovesan:
Vale dizer, para garantir e assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. (…) O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a discriminação, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um persistente padrão de violência e discriminação. Nesse sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se as ações afirmativas. 7
Estimuladas pelo imperativo de atuação estatal positiva na tutela promocional dos direitos humanos e fundamentais e decorrentes do abandono da idéia de neutralidade estatal em questões sociais, que era típica do Estado liberal clássico, tais medidas afirmativas têm por meta atingir vários objetivos, dentre os quais se destacam os escopos de promover a igualdade material e o de combater a discriminação.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos argumenta que a regulação social da modernidade é constituída pelos sistemas da desigualdade e da exclusão/segregação, sendo o primeiro um fenômeno sócio-econômico produzido pela relação capital/trabalho e o segundo um fenômeno cultural e social, um fenômeno de civilização, tratando-se de um processo histórico através do qual uma cultura cria o interdito e o rejeita.8 Essa distinção pode ser utilizada para se defender que são objetivos da ação afirmativa, simultaneamente, combater a desigualdade sócio-econômica por políticas redistributivas de recursos, e combater a discriminação que proporciona a exclusão social de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis.
Segundo aduz Boaventura de Sousa Santos, deve-se buscar uma articulação entre as políticas de igualdade e políticas de identidade, devendo-se reconhecer que nem toda a diferença é inferiorizadora e que uma política de igualdade que desconhece e descaracteriza tais diferenças não inferiorizadoras, contraditoriamente, converte-se numa política de desigualdade. Em outras palavras, como salientou referido autor, “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.9
Com base nas lições do jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin a respeito das ações afirmativas10, podem ser destacados três critérios para utilização de tais medidas: justiça, adequação e eficiência.11 Tais critérios podem ser perfeitamente atendidos utilizando-se a função extrafiscal dos tributos como instrumento de ação afirmativa, especialmente no que atina à concessão de benefícios fiscais, como forma de implementar e estimular a adoção das políticas de ações afirmativas pela iniciativa privada.
Assim, a utilização de medidas de ação afirmativa só é justificável, ou seja, justa, quando houver uma situação de exclusão a ser corrigida; quando a medida for apta, isto é, adequada, em tese, a corrigir a situação de exclusão; e quando efetivamente provocar o fim ou a atenuação dessa exclusão.
Há perfeita compatibilidade das políticas de ação afirmativa com a Constituição Federal de 1988 e até mesmo a obrigatoriedade de o Estado promover essas medidas, haja vista os objetivos fundamentais da República definidos constitucionalmente. A Constituição de 1988, aliás, dispõe sobre algumas formas de ação afirmativa, assim como a prevista no art. 7º, XX, garantindo a proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, e no art. 37, VIII, que prevê a reserva de vagas para portadores de deficiência em concursos públicos.
O direito fundamental à igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional, pois é o centro medular de um Estado preocupado com o desenvolvimento social e com a garantia dos direitos fundamentais.
A par de outros dispositivos, o princípio da igualdade está disposto no art. 5º, caput, da Constituição de 1988.12 À primeira vista, parece que o princípio da igualdade foi previsto diversas vezes no mesmo dispositivo. Contudo, esclarece-se que o dispositivo protege duas dimensões da igualdade: a igualdade perante a lei, denominada de igualdade formal; e a igualdade na lei, chamada de igualdade material. 13
A igualdade formal ou perante a lei garante a aplicação uniforme da lei. Essa dimensão da igualdade corresponde à postura individualista que emergiu com o advento do Estado Liberal clássico do século XVIII, em que os direitos fundamentais eram vistos essencialmente como direitos negativos, isto é, como direitos de defesa do cidadão em face do Estado. Como acentua Daniel Sarmento, “na leitura estritamente individualista, a igualdade jurídica é a mera igualdade formal, com a recusa a qualquer pretensão de utilização do Direito para fins redistributivos”.14
A igualdade formal é insuficiente na medida em que a lei, mesmo sendo aplicada uniformemente a todos, pode trazer alguma discriminação arbitrária em seu conteúdo, além de ser insuficiente para os propósitos do regime constitucional de conferir uma vida digna a todos.
Essa constatação explica a expressão “sem distinção de qualquer natureza” constante no texto constitucional” acima transcrito, fazendo referência, nesse ponto, à igualdade na lei ou igualdade material. Ademais, a dimensão da igualdade material decorre de uma interpretação sistemática da Constituição como um todo, a qual institui um Estado Social promotor dos direitos fundamentais, de forma a buscar a efetiva igualdade substancial entre os cidadãos, no sentido de auxiliar a todos na criação de condições necessárias para viver a vida que desejarem, respeitando-se as escolhas pessoais de cada um.
Nesse contexto é que surgem as ações afirmativas, medidas que, promovendo a igualdade substancial ou material, são perfeitamente compatíveis com os objetivos da República brasileira traçados no art. 3º da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Além da compatibilidade com a Constituição, as ações afirmativas são previstas expressamente em tratados internacionais de direitos humanos, normas materialmente constitucionais, por força do texto constitucional brasileiro (§ 2° do art. 5º). A adoção de ações afirmativas está prevista, entre outros documentos internacionais, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, ambas ratificadas pelo Brasil.
Segundo o magistério de Aliomar Baleeiro, “O tributo é a vetusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ele se projeta sobre o solo de sua dominação”.15 Isso significa que os tributos são fundamentais para a própria existência do Estado, que deles não pode prescindir para consecução dos seus objetivos constitucionais. No exercício de sua soberania, o Estado exige dos indivíduos os recursos que necessita e o faz usando o seu poder de império.
Deve-se observar, contudo, que a relação de tributação não é simples relação de poder de cunho autoritário, mas uma relação jurídica em que os indivíduos consentem, por seus representantes, na instituição do tributo, na limitação de sua liberdade em prol do interesse coletivo. 16
A tributação consentida foi um dos primeiros direitos humanos conquistados historicamente pelos cidadãos. Exemplo disso é que, segundo a narrativa de Alberto Nogueira, um dos pontos básicos da Revolução Francesa consistiu na eliminação dos privilégios fiscais da nobreza e do clero através da universalização do tributo, de tal modo que todos contribuiriam segundo suas possibilidades para a manutenção das despesas públicas. 17
Conforme lição de Ricardo Lobo Torres, “o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por eles é totalmente limitado”, significando que o Estado exerce o seu poder tributário sob permanente limitação dos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, o poder tributário exercido pelo Estado deve especial respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes e esse respeito não se refere apenas à observância das clássicas limitações constitucionais ao poder de tributar, mas também à utilização do direito tributário como instrumento de mudança social, de desenvolvimento humano, no sentido propugnado por Amartya Sen, através de um adequado manejo da tributação extrafiscal.
Essa constatação se deve ao fato de que o tributo não pode ser considerado tão somente uma relação de poder, na qual o Estado se sobrepõe aos seus súditos, ou mesmo como um sacrifício para os cidadãos. Pelo contrário, o tributo deve ser considerado como um dever fundamental, “como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado”. 18
Por sua vez e na mesma diretriz, Klaus Tipke e Douglas Yamashita lecionam que o dever de pagar impostos é um dever fundamental, porquanto se constitui em uma contribuição necessária para que o Estado possa cumprir suas tarefas no interesse da sociedade. Em razão disso, o Direito Tributário de um Estado de Direito não é Direito técnico de conteúdo qualquer, mas ramo jurídico orientado por valores, passando a exercer uma importância fundamental na realização dos fins estatais.19
O tributo não exerce, atualmente, unicamente a função de prover o Estado dos recursos necessários para a manutenção do aparato estatal ou para o financiamento dos direitos fundamentais e das necessidades públicas, função classicamente conhecida como função fiscal dos tributos. Mais do que isso, o tributo deve ser utilizado como forma de contribuir para consecução dos objetivos fundamentais da República brasileira, com a efetivação de uma justa distribuição de riquezas, para que o desenvolvimento sócio-econômico não seja uma prerrogativa de poucos e para que o bem-estar social seja uma garantia de todos, sem quaisquer discriminações odiosas.
A tributação extrafiscal decorre do intervencionismo do Estado, do abandono da tese de que os tributos devem ser neutros, tal como preconizava o liberalismo econômico, sob o entendimento de que a fazenda pública e a tributação deveriam se pautar por objetivos puramente fiscais, devendo se limitar ao mínimo possível, a fim de não provocar intervenções consideradas maléficas à economia. A tributação extrafiscal é fenômeno que caminha de mãos dadas com o intervencionismo do Estado, na medida em que é ação estatal sobre a sociedade, o mercado e a, antes sagrada, livre iniciativa.20
Ocorre que, na atualidade, já não se pode defender, seriamente, a limitação da tributação a objetivos meramente fiscais, em face das atribuições constitucionais que tem o Estado Democrático de Direito. António Carlos dos Santos destaca que a neutralidade é apontada por muitos como a principal norma de tributação. No entanto, tal doutrina não se sustenta, uma vez que, por definição, a fiscalidade é uma forma de intervenção do Estado. Como menciona o autor português, mais do que intervenção, em economias de mercado, a fiscalidade é uma condição de existência do próprio Estado, é algo imanente ao seu funcionamento.21
Conforme observação do citado jurista, até mesmo a experiência de tributação do liberalismo deslegitima uma visão radical da neutralidade, pois várias foram as formas de intervencionismo fiscal assumidas no período liberal, de fim econômico, social e moralizador, como as proteções aduaneiras; a tributação na hipótese de sucessão causa mortis como forma de redistribuição da riqueza, bem como a instituição de impostos sobre produtos nocivos à saúde.
Com efeito, inexiste neutralidade da tributação em termos absolutos, porque as normas tributárias indutoras, ao incentivarem certos comportamentos desejáveis, assumem a função de promover uma alteração no status quo, uma mudança em direção ao desenvolvimento econômicosocial. Essa perspectiva é condizente com a utilização dos tributos com finalidades extrafiscais, o que é uma evidência decorrente das finalidades atribuídas pelo moderno constitucionalismo aos tributos.
Na mesma diretriz, Raimundo Bezerra Falcão observa que mesmo sendo razoável falar em de uma tributação fiscal, “não se poderia, com êxito, cogitar da existência de uma fazenda neutral. Isso, ela nunca o foi. É ideal que, não obstante haja prosperado como tese, a prática se encarregou de fazer mirrar”. Citado autor anota um dado inegável: “a fazenda ‘neutral’ protege os favorecidos, deixando ao relento os desfavorecidos. É uma maneira de praticar um intervencionismo às avessas, pelo menos à luz da Justiça”.22
Com o advento do Estado social e dos direitos fundamentais prestacionais, conhecidos como direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão, a atividade fiscal do Estado foi intensificada, a fim de provê-lo dos recursos necessários para o financiamento de tais direitos. Dessa forma, o Estado experimentou uma série de transformações que afetaram as suas funções clássicas e, em conseqüência, seus instrumentos de atuação, a exemplo dos tributos, os quais ganharam nova configuração, sendo aptos a promoverem uma mudança social para melhor, proporcionando um combate à discriminação e à desigualdade de recursos, por intermédio de ações afirmativas.
Os tributos têm elevada potencialidade de proporcionar uma mudança social, o que ocorre, por exemplo, quando são utilizados como instrumentos de ação afirmativa, através da função extrafiscal destinada à promoção da igualdade. Segundo leciona Raimundo Bezerra Falcão,
Os diversos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro, já albergam propensões de utilização das potencialidades mudancistas da tributação, certamente em decorrência do convencimento de que é um – se bem que não o único – caminho importante na escalada do homem em busca de transformações o mais possível incruentas e que respeitem a dignidade e a vida do ser humano.
O jurista espanhol Juan Manuel Barquero Estavan explica a mudança na função dos sistemas tributários no âmbito do Estado Social:
el cambio más relevante tiene que ver justamente con las funciones que se asignan a esa Hacienda pública, que transcienden las puramente financieras, para incluir otras en consonancia con las asumidas por el Estado, de transformación o remodelación social y de dirección de la economía; a Hacienda pública aparece, en ese nuevo contexto, como uno de los más importantes instrumentos en manos del Estado para alcanzar esos objetivos.23
O tributo constitui um pressuposto funcional do Estado Social e Democrático de Direito, uma vez que, para poder desenvolver suas funções, o Estado inevitavelmente necessita extrair uma parte importante dos ingressos de seus cidadãos através dos tributos. Com isso, constatase que as funções do Estado prestacional e as funções do Estado fiscal constituem funções complementares no Estado social, pois os tributos deixam de ser um instrumento neutro e com finalidade exclusivamente financeira, para exercer, também, a função de ordenação econômica e social, ocupando um lugar central dentro do catálogo de instrumentos de política econômica e social. 24
Deve ser destacado que o sistema tributário justo é aquele que observa os princípios e valores constitucionais. A justa distribuição da carga tributária entre os cidadãos, por intermédio de leis fiscais éticas, é princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito. Se não existir política fiscal justa, não há espaço para política justa. 25
No que tange às técnicas de implementação das ações afirmativas, a doutrina indica que podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os benefícios fiscais como instrumento de motivação do setor privado. Nesse sentido, Joaquim B. Barbosa Gomes destaca:
De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.26
Considerando que o Direito Tributário sofre os influxos do Direito Constitucional, é inconteste a possibilidade de se falar em discriminações positivas em matéria tributária. Como afirmou José Ricardo do Nascimento Varejão, “A ação afirmativa em Direito Tributário reflete a dinâmica do tributo em atendimento a sua função social.” 27
Desde longa data Raimundo Bezerra Falcão já adotava entendimento que se coaduna com a utilização do direito tributário como instrumento de inclusão social, o que pode ser realizado mediante o uso de ação afirmativa. Segundo citado autor:
É tempo de reformular a idéia de que um Estado ditando normas gerais e iguais para todos. Já se pode pensar em contrabalançar a situação dos menos favorecidos, com leis que sejam iguais para os iguais, mas diferenciadas em favor dos menos afortunados. 28
Em relação ao sistema constitucional tributário, a norma proclamada no art. 150, II, da Constituição Federal, estabelece ser vedado o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Essa proibição da desigualdade se expressa sob as formas principais de proibição de privilégios odiosos e proibição de discriminação fiscal. 29
A proibição de privilégios odiosos indica que qualquer discriminação que leve à diminuição ou à exclusão da carga tributária, aumentando a desigualdade entre contribuintes está proibida. Por sua vez, as discriminações fiscais odiosas são desigualdades desarrazoadas que excluem alguém da regra tributária geral ou de um privilégio não-odioso, constituindo ofensa aos direitos humanos do contribuinte.
Ao utilizar a função extrafiscal do tributo, portanto, o Estado intervém nas relações sociais e na economia, o que configura um poderoso instrumento para promoção dos direitos fundamentais, em especial o direito à igualdade.
O Direito Tributário, historicamente, tem camuflado a realidade de que a figura do contribuinte tem sido usada como instrumento de apropriação do patrimônio (riqueza) de uns (os mais fracos) em proveito de outros (os mais poderosos).30 Segundo o exemplo narrado por Alberto Nogueira, na dinâmica da Revolução Francesa, a burguesia assumiu a direção e o controle, deixando para trás os demais interlocutores e companheiros de luta, impondo também na área dos tributos seus interesses e sua vontade.31
Em contraposição a esse uso histórico do direito tributário, é necessária uma “reconstrução dos Direitos Humanos da Tributação” 32, razão pela qual se sustenta aqui a utilização desse ramo do Direito para a promoção de políticas públicas com a finalidade de alcançar o ideal de justiça social, a exemplo das ações afirmativas. Trata-se, primordialmente, de uma intervenção estatal por normas que induzem o comportamento dos particulares ou simplesmente os premiam: é a intervenção estatal por normas de indução, na classificação de Eros Grau. 33 Nessas espécies de normas, a sanção punitiva é substituída por um incentivo ou um prêmio, que pode ser um estímulo à iniciativa privada para adoção da política de ação afirmativa em contrapartida à concessão de benefícios fiscais.
O Direito Tributário, com sua função extrafiscal, já vem sendo utilizado no direito positivo de diversos países como instrumento das políticas de ação afirmativa. José Pastore informa que, ao lado do sistema de reserva de mercado para emprego de portadores de deficiências (cotas), instituídos na Europa ao longo do século XX com o objetivo de acomodar os ex-combatentes de guerra feridos, estabeleceu-se em diversos países, a exemplo da Alemanha, Áustria, França e Itália, um sistema de cotacontribuição, que estabelece a obrigatoriedade, para os empregadores que não conseguirem, por motivos justificados, preencher as cotas, da contribuição para um fundo público destinado à reabilitação profissional dos portadores de deficiência. 34
Segundo este autor, na Espanha as empresas recebem incentivos e subsídios para empregar portadores de deficiência, tais como redução de contribuições previdenciárias e deduções tributárias. Informa, também, que na América Latina muitos países têm previsão para concessão de incentivos e prêmios ao setor privado para contratação de pessoas portadoras de deficiência. Por exemplo, na Argentina, cita a Lei n. 24.465/95, que reduz em 50% as contribuições previdenciárias dos empregadores que contratam portadores de deficiência. No Peru, a Lei n. 23.285/82 concede benefícios tributários para empresas para contratação dessas pessoas. Na República Dominicana, as empresas têm reduções fiscais quando participam de planos de admissão de portadores de deficiência aprovados pelo governo.
Em Portugal, ainda segundo Pastore, há vários mecanismos de apoio financeiros às empresas. Por exemplo, a contribuição previdenciária é reduzida à metade (12,5%) na contratação de portadores de deficiência. No caso de contrato por prazo determinado, ou para trabalhos em casa, há reduções ainda maiores nas alíquotas das contribuições previdenciárias ou impostos.
No Brasil, ainda é modesta a utilização de benefícios fiscais como instrumento de ações afirmativas. Como exemplos do direito positivo pátrio, pode-se destacar que em diversas Constituições dos Estados-membros da federação tal instrumento é utilizado, em especial para estimular a inclusão de portadores de deficiência no mercado de trabalho, com a previsão de concessão de benefícios fiscais para as empresas que os empregam.
Há diversos exemplos, também no âmbito do direito estadual e municipal que aqui não serão citados, pela limitação deste trabalho. Contudo, no âmbito da legislação federal, merece destaque a isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados na aquisição de automóveis de passageiros de fabricação nacional por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas (art. 1°, IV, da Lei n° 8.989/95) 35; e a isenção de Imposto sobre Operações Financeiras nas operações de financiamento para aquisição de veículos por pessoas portadoras de deficiência (art. 72, IV, da Lei nº 8.383 de 30.12.91).
Há quem defenda que tais medidas afirmativas pudessem ser expandidas na legislação tributária federal, a exemplo da legislação do imposto de renda e proventos de qualquer natureza, que, permitindo o abatimento de verbas gastas em determinados investimentos, tidos como de interesse social ou econômico, poderia ser um campo fértil para o desenvolvimento de tais políticas de inclusão social. Essa técnica poderia, de lege ferenda, ser utilizada como ação afirmativa, permitindo-se a dedução de percentual da base de cálculo do IR para aquelas empresas que empregassem pessoas pertencentes a grupos vulneráveis, como afrodescendentes36, mulheres e portadores de necessidades especiais, ou que melhorassem as condições de trabalho dessas pessoas, contribuindo para uma maior inclusão social.
Américo Bedê Freire Júnior defende também a utilização de isenções fiscais condicionais para estimular as empresas à contratação de indivíduos discriminados, afirmando:
A empresa, então, que tiver determinado percentual de determinada categoria que sofreu discriminação terá um benefício fiscal. Ora, se a Constituição autoriza a adoção de isenções fiscais para a redução das desigualdades regionais, com muito mais razão é constitucional a adoção de isenções para diminuir as desigualdades vivenciadas pelos cidadãos brasileiros. Outra vantagem do regime é que a empresa precisaria manter esses percentuais de funcionários beneficiários sob pena de, se assim não proceder, não ter condições de continuar a usufruir da isenção. 37
Vale citar, também, programa de ação afirmativa, embasado em benefícios fiscais, na área da educação: o Programa Universidade para Todos (ProUni) institucionalizado pela Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, a estudantes que tenham cursado o ensino médio completo na rede pública de ensino ou em instituições privadas com bolsa integral; aos estudantes portadores de deficiência; e aos professores da rede pública de ensino, para determinados cursos destinados à formação do magistério da educação básica. Tal diploma legal, ainda, prevê que a instituição de ensino superior, ao aderir ao ProUni, adote um termo de adesão onde conste a cláusula da reserva de percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.
Nos termos do art. 8ª da supracitada lei, as instituições de ensino que aderirem ao ProUni ficam isentas de uma série de tributos federais, dentre eles: o IRPJ, a CSLL, a COFINS e Contribuição para o PIS.
Com essa aplicação da política de ação afirmativa, aumenta-se o comprometimento dos particulares com a não-segregação social de membros de grupos vulneráveis, bem como com a promoção dos direitos fundamentais. Isso porque uma das funções dos direitos fundamentais é propiciar um certo equilíbrio de forças entre partes conflitantes que não se encontrem em mínimas condições de igualdade38, sendo dever do legislador, com prioridade, a concretização dos direitos fundamentais. No Estado Democrático Social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades, mas também a sociedade participa mais ativamente do exercício do poder. Assim, os direitos fundamentais merecem proteção não apenas contra atos do poder público, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade39, devendo o Estado forçar o respeito pelos particulares aos direitos fundamentais, a exemplo do direito à igualdade, escopo das ações afirmativas.
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que essa utilização da função extrafiscal dos tributos como política de ação afirmativa é compatível com o princípio da igualdade, quando do julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade em que se alegava ser inconstitucional a Lei nº 9.085/95, do Estado de São Paulo, que instituiu a concessão de incentivos fiscais para as pessoas jurídicas domiciliadas no Estado que, na qualidade de empregador, possuíssem pelo menos 30% (trinta por cento) de seus empregados com idade superior a 40 (quarenta) anos.
Vejamos a ementa desse julgado, ressaltando que a declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal em relação ao ICMS se deu em razão de uma questão formal na instituição do benefício:
Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assembléia Legislativa Paulista usou o caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia.
Procede a alegação de inconstitucionalidade do item 1 do § 2º do art. 1º, da Lei 9.085, de 17/02/95, do Estado de São Paulo, por violação ao disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal. Em diversas ocasiões, este Supremo Tribunal já se manifestou no sentido de que isenções de ICMS dependem de deliberações dos Estados e do Distrito Federal, não sendo possível a concessão unilateral de benefícios fiscais. Precedentes ADIMC 1.557 (DJ 31/08/01), a ADIMC 2.439 (DJ 14/09/01) e a ADIMC 1.467 (DJ 14/03/97).
Ante a declaração de inconstitucionalidade do incentivo dado ao ICMS, o disposto no § 3º do art. 1º desta lei, deverá ter sua aplicação restrita ao IPVA.
Procedência, em parte, da ação.40
Como se constata, a utilização da extrafiscalidade não se deu de forma compulsória aos particulares. Ao contrário, tratou-se de induzir o comportamento destes com vistas ao respeito do direito fundamental à igualdade, mediante a concessão de um benefício fiscal, isto é, uma forma de sanção premial. Nesse desiderato, podem ser utilizados os mecanismos de redução de alíquotas, de dedução de despesas na base de cálculo de tributos ou mesmo a concessão de isenções condicionais, sendo necessário salientar que toda renúncia fiscal deve ser tomada com responsabilidade fiscal, em atenção ao art. 165, § 6°, da Constituição Federal e aos artigos 5°, II, e 14 da Lei Complementar nº 101/2000.
Pretendeu-se, com essas breves palavras, analisar o problema de como o Direito Tributário pode ser útil para a implementação de políticas de inclusão social, em especial as ações afirmativas, que visam à inclusão social de grupos desfavorecidos e discriminados negativamente ao longo da história, bem como à promoção da igualdade material entre os cidadãos, no sentido de auxiliar a todos na criação de condições necessárias para viver a vida que desejarem, respeitando-se as escolhas pessoais de cada um.
A utilização da tributação com tais fins pode propiciar ao Brasil, algum dia, a qualificação de país desenvolvido, pois, para isso, como alertou Amartya Sen, não basta apenas um enfoque no nível de renda da população, mas também proporcionar aos cidadãos um nível mínimo de qualidade de vida, de dignidade, ou seja, o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, eliminando-se as privações que limitam as suas escolhas e oportunidades sociais.
Nesse contexto, a diversidade humana não pode ser ignorada no tratamento das políticas destinadas à expansão das liberdades e à promoção da igualdade, podendo ser necessário dar um tratamento desigual àqueles que estão em desvantagem, como ocorre com as ações afirmativas.
Essas políticas podem ser utilizadas não apenas no âmbito da Administração Pública, podendo o Estado induzir o comportamento dos particulares para fortalecer a adesão a tais políticas. O direito tributário, por intermédio da função extrafiscal dos tributos, pode ser útil nesse desiderato, através da possibilidade de previsão legislativa da concessão de benefícios fiscais aos contribuintes que facultativamente aderirem a essas políticas. Exemplos de uso dos tributos com a finalidade de inclusão social já existem no direito comparado e no direito pátrio, embora essa utilização ainda seja modesta.
A Constituição Federal de 1988 possui um nítido caráter democrático e uma explícita preocupação com o ideal de justiça social, albergando perfeitamente as medidas de ação afirmativa nos objetivos fundamentais estabelecidos pela República, o que reflete na tributação, de forma que, através da concessão de benefícios fiscais, essas medidas podem ser úteis para inclusão social de membros de grupos vulneráveis.
Notas
1 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 5. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2003. p. 41.
2 SILVA, Sandoval Alves da. Direitos Sociais: leis orçamentárias como instrumento de implementação. Curitiba: Juruá, 2007. p. 183.
3 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17.
4 MENEZES, Paulo Lucena de. A Ação afirmativa (Affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 88.
5 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: (o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40.
6 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 199.
7 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 280-283.
8 SANTOS, op. cit., p. 313
9 O autor trata sobre as ações afirmativas em três obras: Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 437-494; Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 343-369; e A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 543-607.
10 No mesmo sentido: BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Ação afirmativa: fundamentos e critérios para sua utilização. Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, nº 98, v. 50, p. 7-16, 2006.
11 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
12 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008.p. 74-75.
13 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 63.
14 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6. ed. rev. e atualizada por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 1.
15 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 29.
16 NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 68.
17 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. III. Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 14.
18 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Livraria Almeidina: Coimbra, 1998. p. 185. 19 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15.
20 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 47.
21 SANTOS, António Carlos dos. Auxílios de Estado e Fiscalidade. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p. 354.
22 FALCÃO, op. cit., p. 44.
23 BARQUERO ESTEVAN, Juan Manuel. La función del tributo en el Estado social y democrático de Derecho. Cuadernos y debates n.º 125. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 21-22.
24 Ibidem, p. 37-38.
25 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 28.
26 GOMES, Joaquim B. Barbosa. O debate constitucional sobre as Ações Afirmativas. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=33. Acesso em: 21 abr. 2010.
27 VAREJÃO, José Ricardo do Nascimento. Princípio da Igualdade e direito tributário. São Paulo: MP, 2008. p. 173.
28 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981, p. 161.
29 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 78-82.
30 NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 111.
31 Ibidem, p. 77.
32 Ibidem, p. 78.
33 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 150.
34 PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTr , 2000. p. 157-176.
35 O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 567.873-MG, 1ª Turma, Relator Min. Luiz Fux, DJ de 25.02.2004, tratou sobre o tema sob a ótica das ações afirmativas, conferindo interpretação extensiva à citada isenção para conceder o benefício ao deficiente físico impossibilitado de dirigir.
36 Veja-se o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR (Decreto Federal n° 6.872, de 04.06.09), em que se prevê no anexo, eixo 1 (trabalho e desenvolvimento econômico), item VIII, como objetivo do Plano, propor um sistema de incentivos fiscais para empresas que promovam a igualdade racial.
37 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Ação afirmativa e isenções tributárias. Disponível em: http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0128.pdf. Acesso em 24 out. 2008.
38 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 109.
39 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 401.
40 STF, ADIn 1276/SP, Relatora Min. Ellen Gracie, julgamento em 29.08.2002, DJ de 29.11.2002.
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Autor: Matheus Carneiro Assunção, Bacharel em Direito pela UFPE, Bacharel em Administração pela UPE, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV, Pós-graduado em Direito Tributário pela USP, Mestrando na área de Direito Financeiro pela USP, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Procurador da Fazenda Nacional.
Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011
RESUMO – O presente artigo busca analisar os reflexos econômicos e financeiros dos incentivos fiscais concedidos pelo Governo Federal durante a crise internacional de 2008, bem como os impactos de tais medidas no federalismo fiscal brasileiro. O estudo também procura identificar a ligação entre os objetivos constitucionais que autorizam a intervenção do Estado sobre o domínio econômico e as desonerações tributárias realizadas no ápice dos efeitos da crise, quando ondas de incertezas no mundo geraram fortes retrações na produção e na demanda doméstica. Por fim, pretende evidenciar os reflexos das medidas anticíclicas adotadas entre 2008 e 2009 no sistema de repartição de receitas tributárias, especialmente os desequilíbrios nas finanças públicas de entes federados.
A crise financeira desencadeada em 2008 empurrou os mercados globalizados em queda livre1. Atirado no mar de tormentas do capitalismo contemporâneo, o Brasil precisou adotar medidas céleres para conter os efeitos danosos da retração econômica, através da implementação de políticas anticíclicas. Nesse sentido, foram concedidos diversos incentivos fiscais pelo Governo Federal, no fito de fomentar a reconstrução das demandas domésticas negativamente afetadas, de maneira a garantir a continuidade do desenvolvimento nacional. A intervenção estatal, mais do que necessária, revelou-se vital.
Todavia, em função do modelo de repartição de receitas tributárias previsto na Constituição de 1988, as desonerações fiscais utilizadas para conter a crise acabaram produzindo reflexos financeiros negativos para os entes federados, comprometendo o equilíbrio de contas públicas e a continuidade de programas sociais, especialmente nos pequenos municípios.
O presente estudo busca analisar, de um lado, os impactos econômicos dos incentivos fiscais editados no contexto da crise internacional, identificando em que compasso podem ser empregados para promover o desenvolvimento nacional, bem como os parâmetros jurídicos que permitem o seu controle. De outro lado, pretende cotejar os reflexos financeiros dessas medidas no arranjo de partilhas característico do federalismo fiscal brasileiro.
Inevitavelmente, toda crise chega ao fim, mas não sem deixar marcas, tanto positivas quanto negativas. Algumas são claramente perceptíveis; outras exigem exames com lupas de maior alcance, não apenas focadas no campo da visão tributária, mas também econômica e financeira. Procuraremos, nas linhas seguintes, examinar algumas dessas marcas, com lentes multifocais.
O intervencionismo estatal é fenômeno concernente ao exercício de uma ação sistemática sobre a economia, “estabelecendo-se estreita correlação entre o subsistema político e o econômico, na medida em que se exige da economia uma otimização de resultados e do Estado a realização da ordem jurídica como ordem do bem-estar social”2. Pode ocorrer de forma direta ou indireta. Na intervenção direta, o Estado assume o exercício de atividades econômicas. Na indireta, age através da direção ou controle normativo3. A modalidade indireta, assim, configura uma “intervenção exterior, de enquadramento e de orientação que se manifesta em estímulos ou limitações, de vária ordem, à actividade das empresas”.4
Ensina Eros Roberto Grau5 que a intervenção do Estado pode se dar: (i) por absorção ou participação; (ii) por direção; (iii) por indução. A primeira hipótese representa uma intervenção no domínio econômico, ou seja, no âmbito de atividades econômicas em sentido estrito, atuando o Estado em regime de monopólio (intervenção por absorção) ou de competição (intervenção por participação). As duas outras hipóteses consubstanciam modalidades de intervenção sobre o domínio econômico, desenvolvendo o Estado o papel de regulador.
Através das normas de indução, o Estado “privilegia determinadas atividades em detrimento de outras, orientando os agentes econômicos no sentido de adotar aquelas opções que se tornarem economicamente mais vantajosas”6, mas não fixa sanções pela não-adesão à hipótese estimulada. Entretanto, o incentivo ao comportamento sugerido tende a ser bastante atrativo, na medida em que gera posições de vantagem no mercado para os agentes econômicos alcançados pelo comando normativo, o qual pode prever diferentes espécies e níveis de estímulos.
É no campo da intervenção por indução que o Estado pode se valer da política fiscal para alcançar finalidades específicas, “com a concessão de incentivos fiscais setoriais ou regionais, utilizando a maior ou menor incidência de carga tributária como mecanismo redutor de custos e estimulador de atividades econômicas”.7 Tais finalidades, porém, devem ter amparo na Constituição. Afinal, são nos valores por ela albergados que encontra ressonância a própria justificativa da intervenção estatal.
Vale ressaltar que a Constituição de 1988 prevê, em seu art. 170, que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social8. A ação do Estado sobre o domínio econômico, com efeito, não poderá olvidar tais fundamentos, e deverá pautar-se nos princípios e objetivos fixados no texto constitucional, dentre os quais a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inciso VII), a busca do pleno emprego (art. 170, inciso VIII) e a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II).
Embora referidos princípios e objetivos sejam dotados de elevado grau de abstração e generalidade, o que dificulta o controle finalístico da medida interventiva, constituem cânones a subsidiar o intérprete. Intervenções estatais despropositadas, em afronta à igualdade ou à proporcionalidade, não podem ser toleradas no contexto de um Estado Democrático e Social de Direito.
A face geralmente oculta da tributação – a desoneração fiscal – pode ser um eficiente instrumento de intervenção indutora do Estado, com vistas à promoção do desenvolvimento econômico. Mas cabe ressalvar: o uso desse instrumento deve atentar para as molduras traçadas pela Constituição, uma vez que a eficiência econômica, por si mesma, não legitima as ações estatais9.
Os tributos, além de terem a função arrecadatória de receitas para a manutenção do Estado, apresentam funções redistributiva e regulatória10. Podem, assim, oportunizar desde a redução de desigualdades sociais à regulação de mercados. Nesse sentido, a principal finalidade de muitos tributos “não será a de instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada”11.
Por meio da tributação (e da desoneração), possibilita-se ao Estado intervir sobre o domínio econômico de forma indireta, induzindo a adoção de determinados comportamentos. É a vertente da extrafiscalidade. Nas palavras de Geraldo Ataliba, a extrafiscalidade se configura pelo “emprego deliberado do instrumento tributário para finalidades não financeiras, mas regulatórias de comportamentos sociais, em matéria econômica, social e política”.12 Segue esta mesma linha o pensamento de Raimundo Bezerra Falcão, para quem “a extrafiscalidade é atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para o seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou re-ordenar a economia e as relações sociais”.13
Explica José Casalta Nabais14 que a extrafiscalidade pode ser traduzida no conjunto de normas que tem por finalidade dominante a consecução de resultados econômicos ou sociais, por meio da utilização do instrumento fiscal, e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas. De acordo com os ensinamentos de Roque Antonio Carrazza, a extrafiscalidade se caracteriza “quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou as bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir contribuintes a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”.15
As exações e desonerações tributárias, desse modo, se colocam como ferramentas para o incentivo ou coibição de condutas por parte dos destinatários normativos, contribuindo para a realização – ou até realizando diretamente – finalidades propugnadas pela Constituição Federal.16 Quando as exonerações são utilizadas para incentivar condutas que promovem a efetivação de objetivos constitucionais, com impactos no seio social, justifica-se a extrafiscalidade17. São esses objetivos e finalidades, em síntese, que legitimam a intervenção estatal.
Nota-se, porém, que o conceito de extrafiscalidade está relacionado a características não-arrecadatórias, isto é, não-fiscais, dos tributos. O próprio prefixo “extra” é indicativo dessa alusão “para além”, ou seja, de exceção ao padrão da simples fiscalidade. A distinção entre fiscalidade de extrafiscalidade, neste compasso, repousaria na finalidade da norma tributária. Tributos de cunho fiscal seriam instrumentos de arrrecadação, enquanto tributos extrafiscais seriam preponderantemente mecanismos de intervenção na ordem econômica e social18.
Todavia, conforme adverte Alfredo Augusto Becker19, na construção dos tributos não se ignora o finalismo extrafiscal, nem se esquece o fiscal, pois ambos coexistem: há apenas maior ou menor prevalência deste ou daquele finalismo. A presença de uma dessas finalidades não exclui necessariamente a outra. Mesmo tributos de caráter eminentemente arrecadatório, como o Imposto sobre a Renda, podem ser alterados com finalidades extrafiscais.
Com base na lição de Klaus Vogel, que identifica nas normas tributárias a função de distribuir a carga tributária (conforme critérios de justiça distributiva), a função indutora e a função simplificadora, Luís Eduardo Schoueri defende ser a extrafiscalidade gênero, do qual seriam espécie as normas tributárias indutoras20. Tais normas visam a alcançar determinadas finalidades, demandando do intérprete o cotejamento de elementos extratextuais, como o contexto histórico e econômico em que editadas. Daí a pertinência do método teleológico.
O método teleológico tem por escopo “apanhar a função de cada dispositivo legal dentro da estrutura da ordem jurídico-tributária e em seu relacionamento com as demais partes da ordem jurídica”21. Essa forma de interpretar o Direito parte da premissa de que é sempre possível atribuir um dado propósito às normas. Seu movimento interpretativo, conforme explica Tercio Sampaio Ferraz Jr., “parte das conseqüências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema”22. Nesse giro, considerações econômicas podem ser levantadas em sustentação do alcance de determinada finalidade pela norma jurídica tributária.
Com efeito, é possível afirmar que finalidades inerentes à estrutura de normas tributárias indutoras formam um substrato axiológico que não se pode ignorar. A circunstância de carecerem de positivação expressa não deve conduzir ao absurdo de negá-las23. Cabe ao intérprete avaliar, com base no método teleológico, a compatibilidade entre tais finalidades e o sistema constitucional.
O Decreto n. 2.543A, de 05/01/1912, que estabelecia “medidas destinadas a facilitar e desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da maniçoba e da mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraída dessas árvores”, prevendo a isenção de impostos de importação, prêmios para aqueles que fizessem plantações regulares e inteiramente novas, além de outros incentivos, talvez tenha sido a experiência pioneira em da instituição de medidas de intervenção por indução no Brasil24. Já nesse momento se percebe a tendência de utilização de incentivos fiscais para o alcance de objetivos econômicos.
Desde tal antecedente histórico até os dias atuais, foram inúmeros os incentivos fiscais criados para viabilizar intervenções sobre o domínio econômico. Mas o que caracteriza esses instrumentos? Qual, afinal, a ideia por trás dos incentivos fiscais?
Numa concepção ampla, incentivos fiscais são medidas que estimulam a realização de determinada conduta25. Nesse sentido, “a concessão de incentivos fiscais se insere como instrumento de intervenção no domínio econômico a fim de que se possam concretizar vetores e valores norteadores do Estado”26.
De forma mais restritiva, parcela da doutrina entende que os incentivos constituem “medidas fiscais que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, aplicadas pelo Governo Central com a finalidade de desenvolver economicamente uma determinada região, ou um determinado setor de atividade”27. Seriam, portanto, incentivos fiscais “todas as normas que excluem total ou parcialmente o crédito tributário, com a finalidade de estimular o desenvolvimento econômico de determinado setor de atividade ou região do país”28.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal seguiu esse conceito ligado à ideia de exclusão do crédito tributário, no julgamento dos Recursos Extraordinários n. 577.348 e 561.485, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandoski, o qual asseverou em seu voto condutor que “incentivos ou estímulos fiscais são todas as normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário”29.
Entretanto, não são apenas os casos de exclusão do crédito tributário30 que podem configurar incentivos fiscais. O conceito de incentivos fiscais abrange também outras formas de desoneração, como a redução de alíquotas ou mesmo a postergação do prazo de recolhimento de determinada exação.
A técnica da “alíquota zero” é ontologicamente diversa da isenção, e também se insere na categoria dos incentivos fiscais. Ao se estabelecer a alíquota de 0%, ocorre a nulificação do montante devido a título de tributo, em virtude de uma operação matemática de multiplicação. Isso não significa que o produto seja isento, mas apenas que sua alíquota foi fixada em valor nulificante. O resultado da conta, de qualquer modo, é notoriamente um incentivo.
Conforme definição de Rubens Gomes de Souza, um dos idealizadores do Código Tributário Nacional – CTN, a isenção é “favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido”31. Pressupõe, portanto, a existência de um “tributo devido”, de acordo com a lógica que guiou a redação do art. 175 do CTN.
Com a aplicação de alíquota zero, sequer chega a existir tributo devido, pois o valor resultante da incidência tributária é nulo. Na prática, o resultado financeiro é equivalente a uma isenção, porém as premissas teóricas são distintas. E é precisamente essa distinção que assegura a inaplicabilidade das restrições fixadas no art. 150, §6º, da Constituição Federal32 nos casos de alterações, pelo Poder Executivo, das alíquotas do Imposto de Importação, do Imposto de Exportação, do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, e do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos e Valores Mobiliários – IOF, com fundamento no art. 153, §1º, da Lei Maior33.
Enquanto a outorga de isenção de referidos tributos depende de lei específica, a alteração de alíquotas pode ser realizada por simples decreto do Poder Executivo, permitindo uma maior flexibilidade e agilidade normativa em matéria de regulação econômica através de políticas fiscais. Nesse mesmo viés, o art. 14, §3º, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal, exclui alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição da obrigatoriedade de estimativa prévia do respectivo impacto orçamentário-financeiro.
Tampouco se pode enquadrar a concessão de créditos tributários ou diferimentos de prazos para recolhimento na noção de “exclusão” de crédito. No entanto, é inegável que esses estímulos se amoldam à ideia de incentivo fiscal. Assim como ocorre com a redução da base de cálculo ou a concessão de isenção, o mecanismo de creditamentos gera para o particular, ao final, um saldo menor de despesas com o pagamento de obrigações tributárias. O adiamento do prazo para adimplemento de tais obrigações (moratória) também é uma espécie de vantagem operada no lado da arrecadação, pois o custo da postergação (juros e correção monetária) é assumido pelo Estado. Da mesma forma, anistias (perdão legal de infrações) e remissões34 (dispensa do pagamento de débitos tributários) podem ser adotados como espécies de incentivos fiscais.
Nessa perspectiva, pode ser considerado incentivo fiscal qualquer instrumento, de caráter tributário ou financeiro, que conceda a particulares vantagens passíveis de expressão em pecúnia, com o objetivo de realizar finalidades constitucionalmente previstas, através da intervenção estatal por indução. Essas vantagens podem operar subtrações ou exclusões no conteúdo de obrigações tributárias, ou mesmo adiar os prazos de adimplemento dessas obrigações. É possível, ainda, que autorizem transferências diretas destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, como acontece nas hipóteses previstas no art. 12, §3º, da Lei nº. 4.320/6435 (subvenções).
As subvenções e os subsídios, a nosso ver, configuram incentivos financeiros, implementados no lado das despesas do Estado, e não da arrecadação tributária. As demais hipóteses acima mencionadas se enquadram como incentivos tributários. De toda sorte, tais instrumentos (incentivos tributários e incentivos financeiros) são muitas vezes cambiáveis entre si, sendo um problema secundário a forma que adquirem. O que realmente acaba importando, seja para os agentes no mercado, seja para as finanças públicas, é a expressão pecuniária resultante do benefício, bem como sua eficiência para o sistema econômico36. Por representarem perda voluntária de receitas públicas, sua concessão deve estar devidamente lastreada em finalidades constitucionais, sob pena de malferir os próprios fundamentos da intervenção sobre a ordem econômica.
Incentivos fiscais se afirmam como instrumentos indutores de comportamentos voltados ao alcance de objetivos constitucionalmente estipulados como relevantes no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito. Nessa medida, sua utilização deve conciliar-se com a busca do bem comum, ditando-se por considerações de interesse coletivo, como a promoção do desenvolvimento econômico37.
O papel promocional dos incentivos fiscais, segundo a lição de Heleno Tôrres, consiste precisamente no “servir como medida para impulsionar ações ou corretivos de distorções do sistema econômico, visando a atingir certos benefícios, cujo alcance poderia ser tanto ou mais dispendioso, em vista de planejamentos públicos previamente motivados”A análise da legitimidade da concessão de benefícios fiscais fundamenta-se na verificação das finalidades da medida, e na sua pertinência com relação aos valores refletidos no texto constitucional. Será legítimo o incentivo fiscal concedido sob o amparo de desígnios constitucionais, como instrumento de promoção de finalidades relevantes à coletividade. Por via transversa, será ilegítimo (e, portanto, odioso) o benefício que se destinar a privilegiar pessoas ou situações específicas, em detrimento do princípio da igualdade; ou que não guarde pertinência com os objetivos constitucionais autorizadores da intervenção do Estado sobre a economia.
Com arrimo em Misabel Derzi, ressalta Schoueri38 que representam privilégios intoleráveis aqueles incentivos fiscais que, não fiscalizados em seus resultados, se estendem excessivamente no tempo, ou servem à concentração de renda ou proteção de grupos economicamente mais fortes, em detrimento da maioria da população, à qual são transferidos seus altos custos sociais.
O ordenamento jurídico, de fato, não se coaduna com privilégios odiosos. A concessão de incentivos fiscais que não sejam compatíveis com as finalidades constitucionais que fundamentam a intervenção estatal por indução é perfeitamente suscetível de controle jurisdicional. Contudo, quais parâmetros podem ser utilizados para avaliar essa compatibilidade?
A norma tributária indutora não pode ir além do ponto necessário para alcançar os objetivos constitucionais que a lastreiam. Tampouco deve ser editada sem prévia análise econômica da sua potencial eficiência na busca dos fins pretendidos pelo Estado. Precisa, enfim, observar a regra da proporcionalidade na intervenção econômica39.
O exame da proporcionalidade é realizado com base em três elementos, que se relacionam subsidiariamente entre si: (i) adequação; (ii) necessidade; (iii) proporcionalidade em sentido estrito. Um meio é considerado adequado quando for apto para promover o alcance de um determinado resultado40. Se implicar restrições a direitos fundamentais, somente será considerado necessário “caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”41. Por último, verifica-se a proporcionalidade em sentido estrito a partir de um juízo de ponderação acerca da intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da efetivação do direito que com ele colide, e que lastreia a adoção da medida42.
Além da proporcionalidade, a igualdade estrutural é também parâmetro para o controle da compatibilidade dos incentivos fiscais com o sistema constitucional. Para que haja observância ao princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal43), a medida de comparação eleita para realizar diferenciações deve manter relação fundada de pertinência com a finalidade que lastreia sua utilização, com base em suportes empíricos consideráveis44. Significa que se deve comprovar que o critério de distinção elegido fomenta a finalidade visada, em maior medida do que outros critérios possíveis. Essa finalidade precisa ser clara e coerente, já que é dever do Estado tratar a todos igualmente45, e apenas são admissíveis distinções se existirem motivos razoáveis.
Diante da necessidade de observância ao princípio da igualdade, o tratamento diferenciado em matéria tributária, decorrente da utilização de instrumentos extrafiscais, apenas será considerado legítimo quando: (i) não configurar irrazoável benefício individual; (ii) estiver ancorado em finalidade constitucional; (iii) decorrer de fator de discriminação e medida de comparação adequados.46
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é escassa no que tange a verificações aprofundadas dos critérios de controle das normas tributárias indutoras. Num primeiro momento, em precedentes da década de 1990, o STF evitou adentrar no mérito de medidas extrafiscais, afirmando serem atos discricionários do Poder Público. Na análise do Recurso Extraordinário n. 149.659, julgado em 1995, a Corte entendeu que a isenção “decorre do implemento de política fiscal e econômica, pelo Estado, tendo em vista determinado interesse social; envolve, assim, um juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo”47, não estando sujeita a controle material pelo Poder Judiciário. Nada obstante a premissa da discricionariedade do ato, já naquela época o Supremo Tribunal Federal consignou a necessidade de legitimação das isenções, que se destinam “a partir de critérios racionais, lógicos e impessoais estabelecidos de modo legítimo em norma legal, a implementar objetivos estatais nitidamente qualificados pela nota da extrafiscalidade”48.
O STF também observou a via de mão dupla das normas tributárias indutoras, ou seja, a possibilidade de tais instrumentos serem utilizados para induzirem positiva ou negativamente comportamentos. Na hipótese de aumento de alíquotas de IPI sobre cigarros, destacou o Ministro Cezar Peluso a viabilidade da função inibidora, presente nos tributos de caráter extrafiscal proibitivo, refletido na elevada alíquota do IPI, com o nítido viés de desestímulo por indução na economia49.
De outra banda, examinando isenção fiscal de IPI sobre o açúcar de cana, concedida com base em critério espacial (art. 2º da Lei nº. 8.393/91), o STF reconheceu a ausência de conteúdo arbitrário na aludida norma tributária, afirmando que a sua concessão pela União Federal objetivou conferir efetividade ao art. 3º, incisos II e III, da Constituição da República. Ressaltou, ainda, que tal benefício pôs em relevo a função extrafiscal do IPI, “utilizado como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais”50. Tal precedente ilustra de forma clara a possibilidade de normas tributárias indutoras, como isenções sobre o IPI, serem utilizadas como instrumentos de promoção do desenvolvimento. O parâmetro de controle desses instrumentos acenado pelo STF seria a eventual arbitrariedade do Poder Público na sua concessão.
Todavia, pode ser tarefa extremamente difícil avaliar o grau de arbitrariedade de um benefício fiscal conjuntural. Por vezes, normas tributárias indutoras são empregadas com lastro em critérios de eficiência econômica, e não de justiça distributiva. Exemplos disto são os incentivos dirigidos a setores específicos durante a crise internacional, pautados em visões macroeconômicas sobre o comportamento da demanda doméstica e dos investimentos das empresas, e não na busca da equidade ou justiça social.
Tendo em vista que os incentivos fiscais se sujeitam rigorosamente aos ditames da Constituição, “devem ser concedidos a partir de análises técnicas da economia, que deve fornecer ao direito instrumentos úteis de busca das soluções para os problemas sociais”.51 Daí o papel de relevo do sistema econômico para o Direito Tributário. A partir de elementos objetivos da Economia é que se torna possível avaliar a adequação da intervenção indutora projetada, e consequentemente sua compatibilidade com o ordenamento constitucional. Essa adequação está relacionada à efetividade da medida jurídica, ou seja, à sua potencial capacidade de produzir os efeitos econômicos desejados. Quanto menor for a efetividade, menor o grau de adequação, e maior o desnível em relação ao objetivo constitucional que confere legitimidade à intervenção estatal. Caso esse grau de adequação revele assimetrias incompatíveis com os propósitos econômicos da intervenção, indicando a desproporção da medida adotada, a norma tributária indutora deverá ser retirada do sistema jurídico.
De modo semelhante, também deverá ser retirada do sistema a norma tributária indutora que viole o princípio da igualdade, concedendo benefício singular e irrazoável, ou elegendo medida de comparação ou fator de discriminação inadequados às finalidades constitucionais que fundamentam a indução econômica.
Em outubro de 2008, a economia americana desabou brutalmente, em virtude da total ruptura de confiança do mercado financeiro. Rapidamente, como um “efeito dominó”, o pânico se alastrou pelo mundo. Já não se podia acreditar na solidez dos bancos. Diante de um cenário de incertezas, o crédito tornou-se escasso, abalando o consumo.
Com a diminuição do consumo das famílias e dos investimentos das empresas, vigas estruturais do crescimento econômico, os números do Produto Interno Bruno – PIB são afetados, aumentando ainda mais o temor de recessões. Esse temor ocasiona efeitos prejudiciais na concessão de crédito. O resultado: menos dinheiro disponível, menos gastos, menos produção, menos crescimento, menos emprego. Os efeitos negativos de uma crise de confiança geram efeitos ainda mais negativos, e incertezas ainda maiores. É necessário agir rápido para evitar que esses efeitos não contaminem todos os setores da economia.
A redução da demanda doméstica tende a afetar bastante os setores industriais, principalmente o automotivo e o setor de bens de capital (relacionado a investimentos empresariais), os quais dependem diretamente da oferta de financiamentos. Em face do aumento do custo do crédito, provocado pelas incertezas da crise financeira, reduz-se o interesse pela aquisição de bens industrializados de alto valor, como os automóveis. De outra banda, empresas que dependem diretamente de financiamentos também passam a conter seus investimentos. A consequência é o abalo direto nos índices econômicos que medem o desempenho da indústria.
De fato, a crise intensificou a retração da indústria brasileira. No mês de dezembro de 2008, foi registrada desaceleração de 12,4% frente ao mês anterior, de acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sendo o pior resultado da série histórica, iniciada em 1991, influenciado principalmente pelo setor automobilístico, cuja produção caiu 39,7%52.
Diante desse cenário temeroso, medidas de estímulo à demanda interna são remédios indispensáveis. Dentre os instrumentos possíveis, a concessão de incentivos fiscais se destaca pela maleabilidade, celeridade e eficiência com que pode ser manejada pelo Poder Executivo, visando à retomada do crescimento econômico.
A possibilidade de estímulos na demanda agregada sob a forma de incentivos fiscais serem vistos como fonte de recuperação econômica foi analisada extensivamente por economistas norte-americanos após a crise de 1929. Pesquisas realizadas na década de 1940 já apontavam que a política fiscal revelou-se um efetivo instrumento de revigorar o fôlego da economia afetada pela crise53.
Uma das recomendações do Fundo Monetário Internacional, no tocante ao contorno da crise deflagrada em 2008, foi a promoção de medidas de estímulo fiscal até determinada data (como a redução de impostos sobre consumo durante um período certo)54. Instrumentos fiscais anticíclicos devem, a princípio, ter impacto transitório, sendo revistos tão logo a economia apresente os sinais de recuperação esperados.
Foi esse o principal caminho adotado pelo Brasil, por meio da redução das alíquotas de tributos com acento extrafiscal, notadamente o IPI e o IOF.
O IPI apresenta características que “o tornam adaptável às flutuações da política, das finanças, da conjuntura nacional e, até internacional”55. Pode ser manejado extrafiscalmente com bastante flexibilidade, em virtude previsão do art. 153, §1º, da Constituição.
Com o objetivo de aumentar a demanda interna os investimentos, evitando maiores retrações na produção industrial, as quais afetam o nível de emprego e as taxas de crescimento do país, foi promovida redução temporária (por prazo determinado) do IPI sobre veículos56, eletrodomésticos da linha branca, materiais de construção e bens de capital57. Paralelamente, reduziu-se a alíquota do IOF sobre crédito direto a pessoa física, no escopo de estimular a sua concessão58. Demais disso, alterouse a tabela do IRPF59, criando-se novas alíquotas, o que pragmaticamente implicou diminuições no valor final pago a título do imposto, aumentando de forma indireta o poder de consumo das famílias.
Se, por um lado, a redução de alíquotas do IPI apresenta função anticíclica típica, tendo sido concedida por tempo determinado e com gradual retorno após a verificação das condições econômicas que objetivavam promover, o mesmo não se pode afirmar com relação à alteração das faixas de incidência e novas alíquotas do IRPF, que configura medida anticíclica atípica, de efeitos permanentes.
A estimativa de renúncia de receitas tributárias decorrente de ações anticíclicas durante a crise, para o ano de 2009, foi inicialmente avaliada pelo Governo em 3.342 bilhões.60 As desonerações fiscais concedidas, destinadas a setores produtivos específicos e faixas de renda com capacidade de consumo, embora tenham gerado elevadas renúncias de receitas tributárias, contribuíram decisivamente para a frenagem dos efeitos negativos da crise no Brasil. A redução do preço final ao consumidor, em decorrência da aplicação de alíquotas menores do IPI (até zero), ocasionou um incremento nas vendas e, por conseguinte, na produção, evitando quedas acentuadas no nível de emprego. Nos meses de março e junho de 2009, quando os benefícios se encerrariam, houve intenso aumento nas vendas dos produtos alcançados pelas medidas indutoras. Automóveis e caminhões novos tiveram o melhor mês de março da história das montadoras no país, com um aumento de 36% em comparação com fevereiro de 2008, segundo dados da Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores61. Se não houvesse a desoneração, as quedas nas vendas de veículos provavelmente afetariam bastante a arrecadação dos Estados e Municípios, já que o volume do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores tenderia a ser significativamente menor.
Ademais, estima-se que a redução do IPI contribuiu para manter entre 50 mil e 60 mil empregos diretos e indiretos na economia brasileira no primeiro semestre de 200962. A demanda doméstica acabou sendo a indutora do crescimento em 2009 e no primeiro trimestre de 2010, principalmente pela menor afetação do consumo das famílias durante a crise, em face desonerações tributárias concedidas63.
As normas tributárias indutoras estruturadas durante a crise tiveram a importante função de estimular o crescimento econômico, por meio da redução do custo de impostos incidentes sobre o consumo, impulsionando a compra de bens de capital, automóveis e eletrodomésticos, de molde a incrementar os níveis da demanda doméstica. Contribuíram, assim, para a equalização das distorções provocadas no mercado em virtude da crise de crédito e da retração do consumo.
Percebe-se que, além de constituírem meios adequados (proporcionais) à promoção das finalidades constitucionais que embasaram a intervenção do Estado sobre o domínio econômico, as normas tributárias indutoras utilizadas pelo Governo para conter a crise se revelaram eficientes no alcance de seus objetivos. Tanto que geraram um aumento histórico da demanda nos setores alcançados pelos incentivos.
Por outro lado, constata-se que os benefícios concedidos não incorreram em afronta ao princípio da igualdade, uma vez que: (i) não denotam privilégios odiosos, pois foram destinados em caráter temporário, com objetivos de curto prazo claros e delimitados, aos setores mais prejudicados com a contração da demanda, e cujo impulso ocasionaria resultados econômicos potencialmente positivos; (ii) ancoram-se em finalidades constitucionais de promoção do desenvolvimento nacional e de busca do pleno emprego; (iii) elegeram fatores de discriminação e medida de comparação adequados a uma política fiscal anticíclica, que escalonou como metas prioritárias a retomada dos investimentos das empresas, o crescimento da demanda doméstica relacionada à indústria, e o estímulo ao crédito. O foco no setor automobilístico, de eletrodomésticos e de bens de capital se justifica em face dessas metas de curto prazo, de caráter políticoeconômico, e não a partir de considerações de justiça distributiva.
A compatibilidade com a regra da proporcionalidade e com o princípio da igualdade não significa, porém, a ausência de reflexos financeiros negativos das medidas adotadas pelo Governo Federal sobre o equilíbrio das finanças públicas dos entes subnacionais. Este equilíbrio, por sua vez, é fundamental para que possa ser garantido o desenvolvimento econômico nacional de modo harmônico na federação brasileira. Daí porque a correção de assimetrias financeiras negativas, decorrentes do uso de normas tributárias indutoras, se revela indispensável para a preservação da compatibilidade das medidas extrafiscais com as finalidades constitucionais que as lastreiam.
Os incentivos fiscais oferecidos em virtude da crise financeira de 2008 alteraram substancialmente a arrecadação do IPI e do IR. Apenas em relação ao IPI, principalmente em virtude das medidas propostas pelo Governo no ano de 2009, houve decréscimo de aproximadamente 7,7 bilhões de reais na arrecadação líquida, 22% a menos do que em 200864. No primeiro trimestre de 2009, a diferença para o mesmo período do ano anterior foi cerca de 1,2 bilhões de reais a menos. Além disso, calcula-se a alteração da tabela de alíquotas do IRPF tenha gerado uma diminuição de quase R$ 520 milhões na arrecadação do primeiro trimestre de 2009, relativamente ao ano de 200865. De acordo com estudos do Ministério da Fazenda, as desonerações estimadas para o IRPF foram da ordem de 5 bilhões de reais66.
Essa diminuição abrupta da arrecadação tributária relacionada ao IPI e ao IR impactou sensivelmente nos valores das transferências constitucionais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. É que, conforme a previsão do art. 159 da Constituição Federal, parcelas do produto da arrecadação do IR e do IPI devem ser destinados aos entes subnacionais, mediante repasses aos chamados Fundos de Participação.
Segundo o texto constitucional, do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, quarenta e oito por cento devem ser entregues pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, da seguinte forma: a) 21,5 % ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE; b) 22,5% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM; c) 3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento; d) 1% ao Fundo de Participação dos Municípios – FPM.
Esse arranjo de partilhas de receitas tributárias é traço do modelo de federalismo fiscal cooperativo consagrado pela Constituição Federal de 1988. Nesse modelo, a repartição de receitas se coloca como um canal de coordenação que viabiliza a coexistência entre a descentralização de encargos e a centralização da arrecadação tributária67. Configura uma intrincada rede financeira que “cria para os entes políticos menores o direito a uma parcela da arrecadação do ente maior”68. Esta parcela visa a reduzir o descompasso entre os meios de arrecadação disponíveis e as necessidades de gastos dos entes federados, chamado de “brecha fiscal vertical” (vertical fiscal gap)69, e representa um importante mecanismo de equilíbrio das finanças das unidades subnacionais.
Com diminuição da arrecadação nacional do IPI e do IR, decorrente das desonerações fiscais realizadas pelo Poder Executivo, acabou sendo gravemente afetado o equilíbrio das finanças dos pequenos municípios, que dependem substancialmente das transferências constitucionais do FPM.
No mês de fevereiro de 2009, os repasses aos Fundos de Participação de que trata o art. 159 da Constituição Federal sofreram diminuição de 6,8%, comparativamente ao mês anterior. Em relação a fevereiro de 2008, houve decréscimo da ordem de 12% (cerca de R$ 485 milhões). Em março de 2009, tais repasses foram diminuídos em 20,1%, relativamente ao mês anterior, representando aproximadamente 11% a menos do que o mesmo período do ano de 2008. Por conseguinte, no primeiro trimestre de 2009, constatou-se diminuição de quase 750 milhões de reais nos montantes das transferências ao FPM, tomando como parâmetro o ano. Com o corte repentino nos valores dos repasses constitucionais, serviços públicos prestados à população de inúmeros Municípios passaram a ficar comprometidos, diante da inviabilidade financeira de arcar-se de forma autônoma com os custos de programas sociais.
Ainda em março de 2009, o presidente Luís Inácio Lula da Silva reconheceu a gravidade da situação dos Municípios, afirmando ser o problema “resultado de uma crise que não nasceu no Brasil, de uma crise que aconteceu nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, e que demorou mais para chegar aqui”, mas que não poderia permitir a paralisação das prefeituras70.
Evidenciou-se um conflito axiológico. De um lado, dispositivos tributários editados com a finalidade de estimular a demanda interna, de modo a garantir a manutenção do nível de empregos e o desenvolvimento econômico, valores constitucionalmente consagrados (artigos 3º, II, e 170, VIII). De outro, o reflexos de tais normas no sistema de repartição de receitas tributárias, ocasionando a diminuição brusca de repasses aos municípios, o consequente comprometimento de políticas públicas destinadas à efetivação de direitos fundamentais.
A percepção de que medidas eficientes para promover o crescimento econômico podem impactar negativamente na rede de artérias financeiras do federalismo fiscal e na efetivação de programas de melhorias sociais e investimentos em infraestrutura, os quais constituem pilares para o equilíbrio do desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos, remete à importância da compreensão de plenitude do desenvolvimento econômico.
O desenvolvimento econômico pressupõe não apenas o fator do crescimento, mas também melhorias no âmbito social. Para que essas melhorias sejam implementadas de modo eficiente no arranjo federativo brasileiro, é necessário garantir às unidades descentralizadas, mais próximas da população (municípios), recursos financeiros suficientes para fazer frente aos encargos públicos. Sem tais recursos, resta prejudicada a eficiência alocativa, um dos fundamentos para a descentralização de políticas públicas sociais.
No intuito de contornar o problema, após discussões no âmbito do Ministério da Fazenda, ocorreu a publicação da Medida Provisória nº. 462, de 14/05/2009, convertida na Lei nº. 12.058, de 13/10/2009, que dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos entes federados71.
Assim, a Lei nº. 12.058/2009, em seu art. 1º, previu o dever da União de prestar apoio financeiro, no exercício de 2009, aos entes federados que recebiam o FPM, mediante entrega do valor correspondente à variação nominal negativa entre os valores creditados a título daquele Fundo nos exercícios de 2008 e 2009, antes da incidência de descontos de qualquer natureza, de acordo com os prazos e condições nela previstos e limitados à dotação orçamentária específica para essa finalidade, fixada por meio de decreto do Poder Executivo.
As estimativas para os valores do apoio financeiro previsto na MP nº. 462/2009, correspondendo às diferenças negativas nos repasses do FPM apuradas no período de janeiro a março de 2009, em relação a igual período de 2008, atingiram a estimativa de R$ 755.008.284,5972, com creditamento em maio de 2009. O apoio prosseguiu nos meses subsequentes. Em junho de 2009, foram estimados R$ 197.827.847,7673; em julho, R$, 9.734.549,1874; em outubro, R$ 904.925.735,4275.
Por meio dessa compensação financeira, restou superado o risco de comprometimento da prestação de serviços municipais de interesse social e da continuidade dos projetos de investimento e demais políticas públicas voltadas à promoção do desenvolvimento econômico. Os efeitos das restrições reflexas, provocadas pelas desonerações tributárias editadas durante a crise, foram assim balanceados por normas financeiras de caráter corretivo, visando o retorno ao ponto de equilíbrio das finanças dos municípios e a harmonia do federalismo fiscal cooperativo. Tal equilíbrio é indispensável à garantia da forma federativa de Estado, cláusula pétrea constante do art. 60, §4º, I, da Constituição Federal de 1988.
Todavia, vale lembrar que os reflexos financeiros das reduções de alíquotas do IPI e das alterações de faixas do IR eram perfeitamente previsíveis, desde o momento em que foram cogitados como medidas de política fiscal anticíclica. Os instrumentos equalizadores tardaram a ser editados, dentro de um contexto emergencial. O próprio veículo adotado para a concessão do apoio financeiro (medida provisória, que pressupõe casos de urgência, a teor do art. 62 da Constituição Federal), evidencia que não houve planejamento prévio de compensação financeira concomitante à concessão dos incentivos.
O modelo de federalismo fiscal cooperativo adotado no Brasil, entretanto, não pode se reduzir ao apoio conjuntural da União. É preciso aprimorar mecanismos que garantam a autonomia financeira dos entes subnacionais mesmo em face de políticas fiscais anticíclicas, a fim de que evitar a dependência de auxílios emergenciais, sob liberalidade do Poder Executivo Federal. Sob esse prisma, o legado da crise traz novas oportunidades de repensar os atuais modelos de cooperação existentes, com vistas a um desenvolvimento econômico federativamente harmônico e sustentável.
As normas tributárias indutoras podem se revelar eficientes instrumentos de estímulo do comportamento dos agentes econômicos, promovendo o aumento da demanda, da produção, dos investimentos internos, e da oferta de emprego. Tais fatores são indispensáveis ao crescimento econômico, componente da equação geradora do desenvolvimento nacional.
Decerto, “o desenvolvimento depende da capacidade de cada país para tomar decisões que sua situação requer”76. À evidência, o Brasil demonstrou essa capacidade, reunindo condições para superar, com êxito, os efeitos problemáticos da crise internacional deflagrada em 2008. Parte desse sucesso decorreu da política de concessão de incentivos fiscais utilizados conforme critérios de eficiência, os quais se revelaram adequados aos objetivos fomentados pela intervenção do Estado na economia. A função equalizadora das desonerações tributárias indutoras pelo Governo Federal foi determinante para corrigir tendências de contração da demanda interna. Entretanto, essas medidas emergenciais, de curto prazo, não são suficientes para garantir a continuidade do desenvolvimento econômico.
Apesar das dificuldades e dos riscos, o Brasil soube nadar no mar caudaloso da crise internacional, mesmo tendo sido nele arremessado de súbito. Ferramentas eficientes de indução econômica instrumentalizaram a política fiscal anticíclica levada a cabo pelo Governo Federal. Mas distâncias muito maiores ainda precisam ser percorridas para que o país possa galgar uma posição no pódio das nações desenvolvidas. Para tanto, é preciso avançar no aprimoramento dos instrumentos jurídicos tendentes à promoção do desenvolvimento econômico em sua concepção plena, levando em consideração a realidade de profundos desequilíbrios regionais e sociais que marcam a federação brasileira.
A efetividade do art. 3º, II, da Constituição de 1988, para além do crescimento econômico (elemento quantitativo), depende de medidas coordenadas entre União, Estados e Municípios, tendentes a promover melhorias qualitativas no nível de bem-estar geral da sociedade, sem olvidar as peculiaridades do federalismo fiscal cooperativo. Nessa perspectiva, caso o emprego de normas tributárias indutoras pela União acarrete situações de desequilíbrio no arranjo de repartição de receitas com os entes subnacionais, deverão ser adotadas medidas de compensação financeira, suficientes para corrigir as assimetrias negativas geradas, preservando os pilares do federalismo fiscal. Do contrário, poderá restar desvirtuada a finalidade constitucional que embasa a própria intervenção econômica, malferindose a legitimidade da sua utilização, na medida em que for ameaçado o custeio de programas sociais a cargo dos municípios e o atendimento das necessidades da população. O poder do Estado de desonerar é amplo, mas não ilimitado, sujeitando-se às diretrizes normativas e valores contidos no texto constitucional, que balizam o controle das normas tributárias indutoras à luz da proporcionalidade, da igualdade e das finalidades nas quais se ancoram.
Os ventos econômicos que sopram promissoramente a favor do país no cenário de oportunidades pós-crise precisam, enfim, vir acompanhados de arranjos jurídicos de densidade axiológica e efetividade prática, compatíveis com os objetivos trazidos pela Constituição Federal de 1988, rumo a um desenvolvimento federativamente equilibrado e sustentável. 2008.77, 78.
Notas
1 Cf. STIGLITZ, Joseph E. Freefall: Free Markets and the Sinking of the Global Economy. London: Peguin Books, 2010.
2 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Congelamento de Preços: Tabelamentos Oficiais. Rio de Janeiro, Revista de Direito Público, p.76-77, jul./set. 1989.
3 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 100.
4 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 33. 5 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 148.
6 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade Civil do Estado Intervencionista. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 107.
7 CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Reflexões sobre o papel do Estado frente à atividade econômica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 1, n. 20. p. 73-74, 1997.
8 A respeito desse tema, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170”. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.950. Relator: Min. Eros Grau. julgamento em 03.11.05, Plenário, DJ de 02.06.06. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
9 Vale lembrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição.” In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 205.193. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 25.02.97, 1ª Turma, DJ de 06.06.97. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
10 Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Os Três Objetivos da Tributação. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p.8-11, São Paulo, 2008.
11 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623.
12 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966. p. 151.
13 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 196.
14 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 629.
15 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 106-107, nota de rodapé n. 66.
16 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 17. 17 Cf. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A Extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 47.
18 CORREIA NETO, Celso de Barros. Instrumentos Fiscais de Proteção Ambiental. Revista Direito Tributário Atual, n. 22. p. 142, São Paulo, 2008.
19 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623- 624.
20 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 27-34.
21 ZILVETI, Fernando Aurelio. O ISS, a Lei Complementar nº 116/03, e a Interpretação Econômica. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 104. p. 39, São Paulo, 2004.
22 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 289.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008. p. 524.
24 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 28.
25 Eis a lição de Pedro Herrera Molina: “incentivos tributarios son aquellas exenciones configuradas de tal modo que estimulan la realización de determinada conducta”. MOLINA, Pedro Herrera. La Execión Tributaria. Madrid: Colex, 1990. p. 57.
26 GADELHA, Gustavo de Paiva. Isenção Tributária: Crise de Paradigma do Federalismo Fiscal Cooperativo. Curitiba: Juruá, 2010. p. 98.
27 MOURA, Maria Aparecida Vera Cruz Bruni de. Incentivos Fiscais Através das Isenções. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (Coord.). Estudos de Problemas Tributários. São Paulo: José Bushatsky, 1971. p. 135.
28 CALDERARO, Francisco R. S. Incentivos Fiscais à Exportação. São Paulo: Resenha Tributária, 1973. p. 17.
29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 577.348 e Recurso Extraordinário n. 561.485. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em 13.08.09, Plenário, Informativo n. 555. Disponível a partir de: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
30 Código Tributário Nacional: “Art. 175. Excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia. Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela conseqüente.”
31 SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. p. 97.
32 “art. 150 […] § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativas a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, § 2º, XII, g. (Redação da EC 03/93)”
33 “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I – importação de produtos estrangeiros; II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III – renda e proventos de qualquer natureza; IV – produtos industrializados; V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI – propriedade territorial rural; VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar. § 1º – É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.”
34 CTN: “Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I – à situação econômica do sujeito passivo; II – ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III – à diminuta importância do crédito tributário; IV – a considerações de eqüidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V – a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante. Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.”
35 “§ 3º Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como: I – subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa; II – subvenções econômicas, as que se destinem a emprêsas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril.”
36 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência Fiscal Internacional: a Concessão de Incentivos Fiscais em face da Integração Econômica Internacional. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2009. p. 33.
37 Cf. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 70-71.
38 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 290.
39 Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 648.
40 Cf, ÁVILA, Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, n. 215. p. 172, São Paulo, 1999.
41 SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. Revista dos Tribunais, n. 798. p. 38, São Paulo, 2002.
42 SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit.. p. 40.
43 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
44 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 61.
45 ÁVILA, op. cit., p. 69.
46 PAPADOPOL, Marcel Davidman. A Extrafiscalidade e os Controles de Proporcionalidade e de Igualdade. Tese (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2009. p. 83.
47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 149.659. Relator: Min. Paulo Brossard. DJ de 31.03.1995. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 142.348. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 02.08.94, 1ª Turma, DJ de 24.03.95. Disponível em: http:// www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar n. 1.657-MC. Voto do Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento em 27.06.07, Plenário, DJ de 31.08.07. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 360.461. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 06.12.05, 2ª Turma, DJE de 28.03.08. Disponível em: http://www. stf.jus.br. Acesso em: 08 set. 2010.
51 ELALI, André de Souza Dantas. Tributação e Regulação Econômica: um Exame da Tributação como Instrumento de Regulação Econômica na Busca da Redução das Desigualdades Regionais. São Paulo: MP, 2007. p. 117.
52 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u497886.shtml. Acesso em: 11 set. 2010.
53 Cf. SMITHIES, Arthur. The American Economy in the Thirties. The American Economic Review, vol. 36, 1946, pp. 11-27. Apud SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
54 SPILIMBERGO, Antonio; SYMANSKY, Steve; BLANCHARD, Olivier. Fiscal Policy for the Crisis. IMF Staff Position Note. International Monetary Fund, 29 dez. 2008. p. 8-9. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf. Acesso em: 07 set. 2010.
55 BOTALLO, Eduardo Domingos. IPI: Princípios e Estrutura. São Paulo: Dialética, 2009. p. 22.
56 Vide Decreto nº. 6.687, de 11 de dezembro de 2008, e Decreto nº 6.743, de 15 de janeiro de 2009.
57 Vide Decreto nº. 6.825, de 17 de abril de 2009 e Decreto nº. 6.890, de 29 de junho de 2009.
58 Vide Decreto nº. 6.691, de 11 de dezembro de 200
O assessor parlamentar do SINPROFAZ e do Forum Nacional, Antônio Augusto de Queiroz, comenta que o governo erra ao não valorizar as carreiras da Advocacia Pública.
Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, presidente do SINPROFAZ defende a tese de que a salvaguarda da crise é o fortalecimento da AGU.
O estoque total da dívida ativa é de R$ 881 bilhões. Segundo o fisco, para cada R$ 1 gasto na PGFN, o governo recebeu em troca R$ 34,47.
Por Alessandro Cristo
No Conjur
Um fantasma de R$ 390,8 bilhões assombra o governo. A cifra representa as principais ações que tramitam na Justiça contra a União e que podem gerar novos esqueletos aos cofres públicos.
Procuradores do núcleo de inteligência da PGFN identificaram uma dívida com a União de R$2,5 milhões no nome de uma empresa cujo proprietário ganhou recentemente na loteria.
Estão abertas até o dia 8 de outubro as inscrições para o concurso de monografia em advocacia pública federal da Advocacia Geral da União. O concurso, que conta com o apoio do Sinprofaz, prevê prêmios de R$ 7 mil, R$ 5 mil e R$ 3 mil para o primeiro, segundo e terceiros colocados, respectivamente.
O Sinprofaz rebateu nesta terça-feira (9) as declarações do presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luiz Flávio Borges D’urso, de que o projeto de lei que permite à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional executar administrativamente contribuintes sem direito de defesa transformaria os procuradores em juízes.
José Roberto Couto
Não, paciente leitor, não se trata de artigo destinado a profissionais da construção civil ou, muito menos, a estudiosos da oftalmologia.
Arnaldo Galvão
O governo quer, primeiro, remover as dúvidas dos parlamentares antes de enviar, ao Congresso Nacional, o pacote de quatro projetos de lei e uma medida provisória que muda os procedimentos para a cobrança de dívidas tributárias. O objetivo dessas medidas é dar maior rapidez e flexibilidade aos processos, agregando à fase administrativa etapas que, atualmente, são atribuições dos juízes. O exemplo mais polêmico dos poderes que o Executivo pretende obter é o da penhora de bens dos devedores.