Antes mesmo que o projeto da nova lei orgânica da AGU fosse encaminhado ao Congresso, o SINPROFAZ já buscava formas de colocar em discussão essa matéria vital para o pleno exercício da Advocacia Pública Federal. Por meio de diversos artigos, reportagens, ações no Congresso Nacional e manifestações nas ruas, o sindicato tem se posicionado veementemente contra o aparelhamento político da AGU e alertado para malefícios desse modelo de gestão que sustenta uma perniciosa advocacia de governo. Além de contaminar a eficiência operacional dos órgãos de controle, esse projeto estruturado à revelia das quatro carreiras que compõem a AGU tem o potencial de romper as defesas institucionais contra a o apadrinhamento, o partidarismo e, sobretudo, a corrupção.
Leia a seguir a integra do artigo.
Por Heráclio M. de Camargo Neto e José Roberto M. Couto
A discussão em torno do novo estatuto da Advocacia Pública Federal enviado recentemente ao Congresso Nacional vai muito além da questão corporativa. Refere-se, na verdade, à escolha de qual o modelo de serviço público mais adequado a um país rico em recursos naturais, mas carente de obras de infraestrutura essenciais ao seu pleno desenvolvimento.
Chegou a hora da escolha entre uma administração pública profissional, técnica, isenta, ou, em contraposição, uma administração permeável a influências econômicas e interesses partidários passageiros.
Ao contrário do que sustentam os arautos da privatização das consultorias dos ministérios de Estado, tendência expressa no artigo de Pedro Abramovay, publicado no Valor de 7 de janeiro, ganha relevo a necessidade de concurso público para o exercício dos cargos estratégicos da advocacia pública federal previstos no projeto da nova lei orgânica da Advocacia-Geral da União, a AGU (PLP 205/2012). Embora o projeto permita que os cargos de chefia de consultoria sejam loteados entre os amigos do poder, o Brasil merece melhor destino.
Para que o leitor entenda a dimensão dos interesses envolvidos no debate dessa lei, basta citar que todas as obras de infraestrutura essenciais ao crescimento do país, bem como as adequações viárias para a Copa do Mundo e para os Jogos Olímpicos, e mesmo todas as políticas públicas nas áreas de saúde, educação, energia, transportes, agricultura ou saneamento, como também todos os contratos e licitações firmados por todos os ministérios, autarquias, agências reguladoras e fundações, isso tudo passa pela análise prévia de conformidade jurídica emitida pela Advocacia Pública Federal.
São esferas que não se confundem: cabe ao gestor eleito traçar a política pública e ao técnico sua execução
Não surpreende, portanto, a disputa renhida pela indicação política de apadrinhados aos cargos de chefia de consultoria jurídica.
Todos os servidores públicos envolvidos nas denúncias relativas à Operação Porto Seguro ocupavam cargos de confiança e foram escolhidos pelos gestores de plantão, o que significa um padrão a ser estudado.
A ausência de critérios objetivos para a escolha dos ocupantes de cargos em comissão, omissão fortalecida no projeto da nova Lei Orgânica da Advocacia Pública, abre espaço para que muitos escolhidos sejam selecionados pelos atributos da subserviência ou da miopia exacerbada.
O cumprimento do princípio constitucional do concurso público é necessário, conquanto não seja suficiente. Não se cuida de corporativismo dos advogados públicos federais, que não coonestam o comportamento oblíquo de quem quer que seja. Mas, ao contrário, trata-se de maximizarmos o cumprimento do princípio da impessoalidade no controle da legalidade de atos administrativos e contratos do poder público, diminuindo a margem de manobra para malfeitos.
Também é falacioso o argumento de que a exigência do concurso público para as consultorias jurídicas dos ministérios de Estado significa a abdicação da democracia. O gestor público, democraticamente eleito, continua com a decisão política, e o consultor jurídico apenas confere a formatação legal e proba para essa escolha política. São esferas que não se confundem: cabe ao gestor eleito traçar a política pública e ao técnico sua execução, o que inclui a formatação legal e constitucional da política a ser desenvolvida.
A opção política do gestor público não justifica o cometimento de inconstitucionalidades ou ilegalidades a serem evitadas pelos advogados públicos no regular, salutar e esperado controle prévio da legalidade, sobretudo porque todos os atos administrativos carregam a presunção de legalidade e devem tê-la efetivamente resguardada, pois a primazia da Lei não é uma escolha do governante de plantão, mas uma questão indisponível num Estado democrático de direito.
Outro engano é aquele que tenta vincular um consultor jurídico a um matiz ideológico ou político-partidário: a propalada identidade política com o gestor público. A execução das políticas públicas não comporta casuísmos partidários. Ao contrário, exige apuro técnico, controle de legalidade e cobrança de eficiência, requisitos só compatíveis com agentes pertencentes a uma administração pública profissional e isenta.
A escolha política do gestor público não pode desbordar para a ilegalidade e, portanto, a independência técnica do advogado público não questiona o caminho político escolhido, mas apenas lhe garante a correção e licitude. Se o voto legitimasse o preenchimento aleatório dos cargos de livre nomeação, como querem os apóstolos da privatização das consultorias jurídicas, até o nepotismo seria legitimado pelas urnas.
Mais um sofisma a ser desmentido é a alegação de que a nomeação de apadrinhados afinados com o poder é necessária para garantir a atuação uniforme e coordenada dos membros da Advocacia Pública. Além de ilegal, o loteamento partidário da AGU é desnecessário, já que há e continuará existindo um enorme conjunto de regras em vigor, veiculadas, entre outros meios, por súmulas, instruções normativas e pareceres vinculantes, todas destinadas exatamente a uniformizar entendimentos e evitar ações desconexas ou movidas por interesses menores.
Uma nova lei orgânica para a Advocacia-Geral da União não pode nascer maculada com o vício de origem do tráfico de influência, porque deve ser duradoura e consentânea com a Constituição Federal, a qual exige o concurso público como corolário dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade pública.
Portanto, a defesa da democracia não pode servir de pretexto para aumentar ainda mais a já excessiva ocupação de cargos públicos por amigos do poder. A verdadeira reforma do Estado exige uma administração pública profissional, independente, livre de casuísmos partidários, isenta e escolhida pelo único instrumento apto a preservar os critérios da objetividade e impessoalidade: o concurso público.
Heráclio Mendes de Camargo Neto e José Roberto Marques Couto são procuradores da Fazenda Nacional no Estado de São Paulo.