Por Jomar Martins
Vinte e três após a promulgação da Constituição Federal, que plasmou a garantia dos direitos fundamentais do brasileiro, o desafio de levar justiça aos mais pobres ainda não foi superado. Salvo alguns casos isolados, o atendimento da advocacia gratuita esbarra em problemas como falta de defensores, de servidores de apoio, de material de escritório, celulares, computadores, carros e até mesmo de um local para trabalhar.
E não era para ser assim. Em recomendação feita em 2005, o Tribunal de Contas da União (TCU), após analisar o desempenho da instituição, já recomendava a criação de 807 vagas de defensor público federal em todo o Brasil. Contudo, de lá para cá, foram criadas somente 200 vagas.
Além deste brutal déficit, alguns defensores trabalham em salas improvisadas da Justiça Federal, da Advocacia-Geral da União (AGU) e dos Correios, como admitiu em artigo publicado na ConJur o presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), Gabriel Faria Oliveira. Os números mostram, cabalmente, que a Defensoria é o ‘‘primo pobre’’, literalmente, da estrutura do Judiciário Federal.
Pelos dados de agosto de 2011, existiam 3.574 juízes trabalhistas, 1.775 juízes federais, 1.698 membros do Ministério Público da União, 7.970 advogados gerais da União — e apenas 481 defensores públicos federais. “Ou seja, no âmbito da Justiça Federal, a batalha para o pobre está perdida, o acesso à Justiça é absolutamente deficitário, e a Justiça parece servir apenas ao Estado e parte da população”, lamenta o presidente da Anadef.
A precariedade, entretanto, é fruto da própria expansão deste serviço à população carente, justifica a chefe da Defensoria Pública da União no Rio Grande do Sul (DPU-RS), Patrícia Bettin Chaves, há cinco anos na instituição. Em 2005, contabiliza, a instituição contava apenas com 100 defensores públicos federais. De lá para cá, houve um salto considerável, totalizando em 2011 um quadro de 481 defensores federais no Brasil, com concursos sucessivos em 2004, 2008 e 2010. ‘‘Porém, ainda estamos muito aquém do necessário, já que o Brasil conta apenas com 1,5 defensor público para cada 100 mil habitantes. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 73% da população brasileira não têm condições de pagar um advogado’’, destaca a defensora pública-chefe.
Outra razão relevante para este crescimento, historia Patrícia, foi o processo de interiorização ocorrido a partir de 2009: além de contar com unidades em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal, foram criados núcleos em mais 34 cidades de médio porte do interior do país, distribuídos por 11 estados. No total, são 61 núcleos da instituição no Brasil.
Apesar dos avanços, há muito a fazer. No Rio Grande do Sul, por exemplo, são apenas 31 defensores públicos federais para atender a população carente. Segundo dados do IBGE, 48% dos gaúchos — ou seja, quase metade dos 10,7 milhões de habitantes — se enquadrariam no quesito de renda para ter direito ao atendimento jurídico. O critério diz que a renda domiciliar deve ser de até três salários-mínimos.
A situação de precariedade é mais visível nas 18 Subseções da Justiça Federal no interior gaúcho — das 23 existentes —, que ainda não contam com o serviço público da Defensoria Pública da União. ‘‘Em função do quantitativo reduzido de defensores públicos federais, temos grande dificuldade em absorver a demanda da Justiça do Trabalho. Ou seja, a falta de investimentos na instituição faz com que 116 varas do Trabalho presentes no estado não tenham atuação de um defensor público federal’’, informa Patrícia.
Na sua visão, para que haja uma assistência judiciária gratuita adequada na primeira instância da Justiça Federal gaúcha, seria necessário contar com dois defensores em cada uma das varas de suas Subseções Judiciárias, totalizando 168 defensores públicos federais; e ao menos três defensores por vara da Justiça do Trabalho, totalizando 348 defensores — em função da maior quantidade de audiências, característica da Justiça Trabalhista.
Isso daria um total de 516 defensores públicos federais contra os 31 atuando hoje no estado. ‘‘Tendo em vista que este quantitativo ideal é superior ao nacional, sabemos que este número, apesar de necessário, é deveras audacioso na atual conjuntura’’, admite a chefe da DPU-RS.
Leia a entrevista:
ConJur — Informações preliminares dão conta de que a DPU, em geral, vive uma situação difícil, pois além de não ter autonomia financeiro-administrativa, vem sendo submetida a um processo de sucateamento. Também no Rio Grande do Sul esta é a realidade?
Patrícia Bettin Chaves — Não obstante, é certo que a ausência de autonomia administrativa, orçamentária e financeira, cumulada com as características dos serviços prestados pela DPU — pobres sem possibilidade de lobby para implementar seus direitos — faz com que os serviços não avancem juntamente com o Poder Judiciário e as demais funções essenciais à Justiça. A título de exemplo, no ano de 2010, já com as ponderações de órgão do executivo, a DPU solicitou ao Ministério da Justiça um orçamento aproximado de R$ 188 milhões para o ano, sendo disponibilizado apenas R$ 137 milhões. Apenas para o ano de 2012, o Conselho da Justiça Federal enviará uma proposta orçamentária de R$ 142 milhões para pagar o sistema de dativos, não oficial e não constitucional. Há um contrassenso em o Executivo não permitir que a Defensoria Pública da União possa estar em toda a Subseção Judiciária, uma vez que os bolsões de pobreza existem não só nas capitais e principais cidades, mas também no interior. Além do mais, é indispensável que onde haja um juiz haja, também, ao menos, um defensor público. Sem isto, a ideia de que a Justiça é elitista permanecerá para sempre, sem que os juízes tenham tal postura. É uma questão de acesso à Justiça. Quem chega ao Judiciário tem seus pleitos analisados; quem não chega, o Poder Judiciário sequer, e naturalmente, sabe que existe.
ConJur — Em 2005, o Tribunal de Contas da União (TCU) listou uma série de deficiências na assistência jurídica prestadas pela DPU, dentre as quais a de que a instituição não estaria preparada para atuar junto aos Juizados Especiais Federais (JEFs), que empregam o processo eletrônico. Esta dificuldade ainda persiste?
Patrícia Bettin Chaves — Há dificuldades diversas dentro da DPU, desde o quantitativo de defensores, inexistência de estrutura de carreira jurídica de apoio, número insuficiente de carreira administrativa e das equipes interdisciplinares, assim como de acesso à internet. Na maioria das Subseções onde existe DPU, é possível a atuação nos JEFs, ressalvada as unidades recém-instaladas, que não contam, sequer ainda, apesar de um ano de instalação, com contratação de serviços de internet e da própria sede, o que inviabiliza a realização do trabalho. Já em 2005, o TCU recomendou a implementação de carreira de apoio e a contratação mínima de 807 defensores públicos. De lá para cá, apenas 200 defensores públicos foram contratados, o que demonstra que a vinculação da DPU ao Poder Executivo não permitirá a assistência jurídica estatal nos termos da Constituição.
ConJur — Aliás, como processo eletrônico está totalmente implantado na 4ª Região, há necessidade imperiosa de tecnologia, ou não é possível trabalhar com a Justiça Federal. Os defensores têm acesso a computadores, scanners, impressora, laptops, pen drives, banda larga etc.?
Patrícia Bettin Chaves — A DPU em Porto Alegre possui uma estrutura básica, na qual os defensores têm acesso a computadores, scanners, impressoras, laptops, pen drives, internet banda larga e internet móvel 3G, para atendimentos e eventos externos. Contudo, o sistema de internet ainda é muito deficitário, apresentando lentidão em determinados horários, em especial naqueles de pico de atendimento. Ademais, é necessário fazer revezamento na utilização da conexão de internet para uso que necessite de maior transmissão de dados, como é o caso da utilização de videoconferência para o projeto de visitas virtuais por familiares residentes no Rio Grande do Sul a reclusos das penitenciárias federais em outros estados. Quando temos visitas agendadas, é necessário interromper o atendimento ao público, pois a conexão de internet fica sobrecarregada pelo uso concomitante do Sistema E-PAJ e da videoconferência. Por essa razão, as visitas virtuais são sempre agendadas para o meio-dia das sextas-feiras, para garantir sua realização, evitando ao máximo transtornos ao atendimento ao público na instituição.
ConJur — Quantos atendimentos são feitos mensalmente, em média? Na comparação com 2010, este número vem aumentando?
Patrícia Bettin Chaves — Sim, vem aumentando consideravelmente. No ano de 2010, a DPU em Porto Alegre realizou, em média, 60 atendimentos diários (atendimentos para instauração de processos de assistência jurídica gratuita e atendimentos de acompanhamento processual), com uma média mensal de 1.187 atendimentos. Neste ano, houve um acréscimo de atendimentos, em especial no segundo semestre, quando da admissão dos novos concursados. Assim, para fins de levantamento estatístico da instituição, se comparado o segundo semestre de 2010 com o semestre anterior, é possível averiguar o impacto positivo que o aumento de recursos humanos teve na ampliação dos atendimentos ao público, em especial no aumento de instauração de novos processos de assistência jurídica, garantindo o acesso à Justiça a um público mais amplo. Atualmente, em média, a DPU em Porto Alegre realiza aproximadamente 120 atendimentos diários entre atendimentos para instauração de processos de assistência jurídica gratuita e atendimentos de acompanhamento processual, com uma média mensal de 2.445 atendimentos. Ou seja, com um leve incremento de recursos humanos, foi possível mais do que duplicar o número de atendimentos em apenas um ano, bem como qualificar de sobremaneira o serviço público prestado pela instituição.
ConJur — Quantos processos um defensor atende?
Patrícia Bettin Chaves — Em levantamento realizado para analisar a sobrecarga de trabalho dos defensores da DPU-RS que atuam na primeira instância da Justiça Federal, constatou-se, no mês-base da pesquisa, fevereiro, que cada ofício titulado por um defensor instaurou em média 21 processos de assistência jurídica gratuita, além de realizar, em média, 99 atendimentos de acompanhamento processual. Os picos de atendimento ficaram concentrados nos ofícios previdenciários, principal área de atuação da Defensoria Pública da União, podendo, no mês-base, isoladamente, instaurar um montante de 34 processos de assistência jurídica gratuita e realizar um montante de 247 atendimentos de acompanhamento processual.
ConJur — Qual o déficit de defensores?
Patrícia Bettin Chaves — No caso do Rio Grande do Sul, temos 25 em Porto Alegre, sendo que 15 atuam no âmbito da primeira instância da Justiça Federal, Militar e Eleitoral (um defensor com atuação exclusiva em Canoas, para todas as áreas de atuação da DPU) e 10 no âmbito das Turmas Recursais do Rio Grande do Sul, Tribunal Regional Federal da 4ª Região e Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. No interior, existem quatro unidades/núcleos: DPU Pelotas, que conta com um defensor; DPU Rio Grande, também com um defensor; DPU Santa Maria, com três defensores; e DPU Bagé, com um defensor. Ou seja, em todo Rio Grande do Sul, são apenas 31 defensores públicos federais para atender a população carente. A situação mais calamitosa é encontrada nas 18 cidades-sede da Justiça Federal no interior do Estado, que não contam com o serviço público da Defensoria Pública da União. A falta de investimentos na instituição faz com que 116 Varas do Trabalho presentes no estado não tenham atuação de um defensor federal. Respondendo à questão proposta, o quantitativo para a cobertura da assistência jurídica gratuita no Rio Grande do Sul, na primeira instância da Justiça Federal, seria de ao menos dois defensores em cada uma das varas de suas Subseções Judiciárias, totalizando 170 defensores públicos federais; e ao menos três defensores por vara da Justiça do Trabalho, totalizando 348 defensores, dado o maior quantitativo de audiências dela característico. Isso daria um total de 518 defensores públicos federais, contra os 31 atuando hoje no Estado. Tendo em vista que este quantitativo ideal de defensores é superior ao quantitativo nacional atual, sabemos que o número, apesar de necessário, é deveras audacioso na conjuntura atual. Todavia, se quisermos dar um primeiro passo para a ampliação do acesso ao serviço público prestado pela instituição no Estado, e consequentemente, para o acesso à Justiça, seria necessária a contratação emergencial de no mínimo 159 defensores públicos federais para atuar na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul, considerando o mínimo de um defensor por vara.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 15 de fevereiro de 2012