Autor: Luiz Octavio Rabelo Neto, Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, em convênio com o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP e a REDE LFG. Procurador da Fazenda Nacional em Belém-PA.
Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011
RESUMO – Este artigo pretende analisar a utilização do Direito Tributário como instrumento de inclusão social, mediante a adoção de políticas de ação afirmativa, notadamente através da previsão legislativa de concessão de benefícios fiscais aptos a servirem como estímulo à iniciativa privada para adoção de tais políticas, utilizando-se da função extrafiscal dos tributos, com o escopo de materialização dos direitos humanos. Tendo em vista o rol de valores e objetivos estatuídos em nível constitucional, não se admite uma postura inerte do Estado, exigindo-se, ao contrário, que este adote políticas públicas para consecução daqueles objetivos e valores, proporcionando desenvolvimento humano. Conclui-se que o poder-dever tributário está estritamente vinculado aos direitos humanos e, dessa forma, os benefícios fiscais são utilizados como instrumento das medidas de ação afirmativa, embora essa utilização ainda seja modesta.
1 INTRODUÇÃO
Neste artigo, pretende-se analisar, em linhas gerais, a utilização do direito tributário como instrumento de inclusão social, especialmente mediante a instituição de políticas de ação afirmativa, que consiste em uma ação pública ou privada que tem por escopos combater a discriminação e promover a igualdade substancial, conferindo tratamento diferenciado a indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis socialmente, incluindo-os na sociedade.
Os grupos vulneráveis são aqueles grupos de pessoas que mais facilmente têm seus direitos humanos violados, a exemplo das pessoas com deficiência, mulheres, idosos, crianças, minorias étnicas, etc. Em outros termos, a vulnerabilidade corresponde à situação da pessoa ou grupo que, por motivos pessoais ou em razão de fatores externos, estejam submetidos a tratamentos discriminatórios ou desigualitários. Contudo, a preocupação do estudo não se concentra em um grupo vulnerável determinado, uma vez que no conceito de grupos vulneráveis se incluem vários e diferentes grupos, os quais possuem tratamento diversificado pelo ordenamento jurídico pátrio. Ao reverso, procurar-se-á destacar a possibilidade de ampliar a utilização e discutir uma medida de ação afirmativa que não é habitualmente tratada pela doutrina.
Para promover a inclusão social desses indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis, propõe-se analisar o direito tributário como mecanismo de promoção de mudanças sociais. Como afirmou o assistente social Romeu Kazumi Sassaki, “Para incluir todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros”. 1
Dessa forma, a inclusão social é um processo que visa à alteração do meio ambiente social, a fim de proporcionar a participação de qualquer pessoa. O objetivo de inclusão social não se satisfaz apenas evitando a discriminação e a exacerbação das desigualdades sociais, mas também promovendo políticas que proporcionem a indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis uma participação ativa na sociedade, o que é consentâneo com as políticas de ação afirmativa, pois estas permitem uma postura ativa por parte do Estado e da iniciativa privada no combate à discriminação e às desigualdades existentes, colaborando para inclusão social de todos.
Pretende-se avaliar de que maneira o tributo pode servir como instrumento de inclusão social, pois, através de seu caráter de solidariedade, todos os membros da sociedade podem contribuir para o bem comum, para o custeio dos gastos públicos e para concretização dos direitos fundamentais.
Tal temática se insere em um contexto doutrinário interessado em compatibilizar o poder tributário do Estado com os direitos fundamentais do contribuinte, de forma que, ao mesmo tempo em que seja possível garantir os recursos necessários para o custeio da máquina estatal e para a implementação dos direitos humanos, possa o ente público promover mudanças sociais e desenvolvimento humano, utilizando o Direito Tributário como instrumento.
Isso porque a temática da implementação dos direitos humanos está estritamente ligada às questões orçamentária e fiscal, havendo quem alegue a necessidade de aplicação da cláusula da reserva do possível como limite à possibilidade de concretização dos direitos fundamentais sociais. Segundo referida cláusula, os recursos orçamentários são escassos e insuficientes para atender a todas as demandas sociais, razão pela qual seria possível ao Estado tutelar apenas o mínimo existencial de cada pessoa.
Abstraída, neste trabalho, a discussão acerca da correção dessa tese, o certo é que as prestações positivas do Estado encontram limites na riqueza nacional e na situação econômica de um país, uma vez que não se pode acreditar na utópica inesgotabilidade dos recursos públicos. 2
Por outro lado, reconhece-se que não existem direitos sem custos de efetivação. Todos os direitos são positivos, no sentido de que exigem gastos públicos para sua proteção, o que sugere uma reflexão sobre a legitimidade democrática da destinação dos recursos escassos, a transparência e a prioridade dessa destinação, além da questão moral e política da justiça distributiva como forma de concretização da igualdade.
Nesse sentido, Stephen Holmes e Cass Sustein demonstram que mesmo os direitos civis e políticos possuem altos custos que devem ser sustentados por toda a sociedade através da tributação. Logo, não são apenas os direitos sociais que necessitam de verbas públicas para sua implementação, mas também os direitos civis e políticos, assim como outras espécies de direitos fundamentais. Como afirmam Holmes e Sustein, “todos os direitos são custosos porque todos os direitos pressupõem o financiamento pelo contribuinte de mecanismos eficazes de supervisão para monitoramento e execução”.3
Isso torna claro o quanto estão relacionadas a questão da efetividade dos direitos fundamentais e as finanças públicas, realçando a importância da destinação inteligente dos limitados recursos públicos, evitando-se desperdícios.
Dessa forma, diante da normatividade dos princípios constitucionais, a postura do Estado não deve ser somente negativa, no sentido de não intervir em demasia na esfera de liberdade dos cidadãos. Ao reverso, a Carta Magna Brasileira de 1988 previu, já no preâmbulo, a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar, entre outras coisas, o exercício dos direitos fundamentais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, albergando, em seu bojo, uma série de valores fundamentais, inclusive com o reconhecimento de direitos de caráter econômico e social, que devem nortear a ação estatal em todas as suas esferas, inclusive na política tributária, como objetivos a serem perseguidos.
2 DESENVOLVIMENTO, IGUALDADE E AÇÃO AFIRMATIVA
Como defende o economista indiano Amartya Sen, o desenvolvimento de um país não pode ser medido apenas com enfoque no nível de renda de sua população, devendo ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, eliminando-se as privações que limitam as suas escolhas e oportunidades sociais.4
Por outro lado, a diversidade humana não pode ser ignorada no tratamento das políticas destinadas à expansão das liberdades e à promoção da igualdade, uma vez que o efeito de ignorar as variações interpessoais pode contrariar a própria igualdade, na medida em que oculta o fato de que para conferir igual consideração a todos pode ser necessário dar um tratamento desigual àqueles que estão em desvantagem.
É exatamente esse tratamento diferenciado com o objetivo de expandir liberdades e promover a igualdade que está no centro da fundamentação das políticas de ação afirmativa. Tal expressão, derivada da língua inglesa (affirmative action), foi empregada pela primeira vez em um texto oficial pelo Presidente norte-americano John Kennedy, ao editar a Executive Order n. 10.925, de 06.03.1963, segundo a qual os contratantes com o governo federal deveriam, além de não discriminar funcionários ou candidatos a funcionários por motivos de raça, credo, cor ou nacionalidade, adotar ação afirmativa para assegurar que essas pessoas fossem empregadas.5
Também designadas como “discriminação positiva”, referidas políticas são tentativas de concretização da igualdade substancial ou material, na medida em que proporcionam um tratamento prioritário ou preferencial com vistas à inclusão social de determinados grupos socialmente fragilizados ou vulneráveis. Em outras palavras, considerando que os tratamentos desiguais que impliquem a negação de direitos são inválidos por violarem o princípio da igualdade, as ações afirmativas visam exatamente facilitar o acesso a tais direitos, daí resultando a sua legitimidade.
Em monografia sobre o tema, Joaquim B. Barbosa Gomes assim define as ações afirmativas:
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.6
Ao lado das normas que constituem o modelo repressor de combate à discriminação, que são pautadas na concepção de que o direito tem a função meramente negativa, utilizando-se de técnicas de desencorajamento, ganham destaque as normas que, utilizando-se da função promocional do direito, ao invés de se limitarem à proibição do tratamento discriminatório, têm o objetivo de combatê-lo e de eliminar ou atenuar os seus nefastos efeitos através de medidas de promoção social dos indivíduos discriminados. Trata-se do modelo de ação afirmativa, essencial para promoção da inclusão social desses indivíduos, proporcionando um alcance efetivo da igualdade material entre as pessoas. Nas palavras esclarecedoras de Flávia Piovesan:
Vale dizer, para garantir e assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. (…) O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a discriminação, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um persistente padrão de violência e discriminação. Nesse sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se as ações afirmativas. 7
Estimuladas pelo imperativo de atuação estatal positiva na tutela promocional dos direitos humanos e fundamentais e decorrentes do abandono da idéia de neutralidade estatal em questões sociais, que era típica do Estado liberal clássico, tais medidas afirmativas têm por meta atingir vários objetivos, dentre os quais se destacam os escopos de promover a igualdade material e o de combater a discriminação.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos argumenta que a regulação social da modernidade é constituída pelos sistemas da desigualdade e da exclusão/segregação, sendo o primeiro um fenômeno sócio-econômico produzido pela relação capital/trabalho e o segundo um fenômeno cultural e social, um fenômeno de civilização, tratando-se de um processo histórico através do qual uma cultura cria o interdito e o rejeita.8 Essa distinção pode ser utilizada para se defender que são objetivos da ação afirmativa, simultaneamente, combater a desigualdade sócio-econômica por políticas redistributivas de recursos, e combater a discriminação que proporciona a exclusão social de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis.
Segundo aduz Boaventura de Sousa Santos, deve-se buscar uma articulação entre as políticas de igualdade e políticas de identidade, devendo-se reconhecer que nem toda a diferença é inferiorizadora e que uma política de igualdade que desconhece e descaracteriza tais diferenças não inferiorizadoras, contraditoriamente, converte-se numa política de desigualdade. Em outras palavras, como salientou referido autor, “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.9
Com base nas lições do jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin a respeito das ações afirmativas10, podem ser destacados três critérios para utilização de tais medidas: justiça, adequação e eficiência.11 Tais critérios podem ser perfeitamente atendidos utilizando-se a função extrafiscal dos tributos como instrumento de ação afirmativa, especialmente no que atina à concessão de benefícios fiscais, como forma de implementar e estimular a adoção das políticas de ações afirmativas pela iniciativa privada.
Assim, a utilização de medidas de ação afirmativa só é justificável, ou seja, justa, quando houver uma situação de exclusão a ser corrigida; quando a medida for apta, isto é, adequada, em tese, a corrigir a situação de exclusão; e quando efetivamente provocar o fim ou a atenuação dessa exclusão.
Há perfeita compatibilidade das políticas de ação afirmativa com a Constituição Federal de 1988 e até mesmo a obrigatoriedade de o Estado promover essas medidas, haja vista os objetivos fundamentais da República definidos constitucionalmente. A Constituição de 1988, aliás, dispõe sobre algumas formas de ação afirmativa, assim como a prevista no art. 7º, XX, garantindo a proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, e no art. 37, VIII, que prevê a reserva de vagas para portadores de deficiência em concursos públicos.
O direito fundamental à igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional, pois é o centro medular de um Estado preocupado com o desenvolvimento social e com a garantia dos direitos fundamentais.
A par de outros dispositivos, o princípio da igualdade está disposto no art. 5º, caput, da Constituição de 1988.12 À primeira vista, parece que o princípio da igualdade foi previsto diversas vezes no mesmo dispositivo. Contudo, esclarece-se que o dispositivo protege duas dimensões da igualdade: a igualdade perante a lei, denominada de igualdade formal; e a igualdade na lei, chamada de igualdade material. 13
A igualdade formal ou perante a lei garante a aplicação uniforme da lei. Essa dimensão da igualdade corresponde à postura individualista que emergiu com o advento do Estado Liberal clássico do século XVIII, em que os direitos fundamentais eram vistos essencialmente como direitos negativos, isto é, como direitos de defesa do cidadão em face do Estado. Como acentua Daniel Sarmento, “na leitura estritamente individualista, a igualdade jurídica é a mera igualdade formal, com a recusa a qualquer pretensão de utilização do Direito para fins redistributivos”.14
A igualdade formal é insuficiente na medida em que a lei, mesmo sendo aplicada uniformemente a todos, pode trazer alguma discriminação arbitrária em seu conteúdo, além de ser insuficiente para os propósitos do regime constitucional de conferir uma vida digna a todos.
Essa constatação explica a expressão “sem distinção de qualquer natureza” constante no texto constitucional” acima transcrito, fazendo referência, nesse ponto, à igualdade na lei ou igualdade material. Ademais, a dimensão da igualdade material decorre de uma interpretação sistemática da Constituição como um todo, a qual institui um Estado Social promotor dos direitos fundamentais, de forma a buscar a efetiva igualdade substancial entre os cidadãos, no sentido de auxiliar a todos na criação de condições necessárias para viver a vida que desejarem, respeitando-se as escolhas pessoais de cada um.
Nesse contexto é que surgem as ações afirmativas, medidas que, promovendo a igualdade substancial ou material, são perfeitamente compatíveis com os objetivos da República brasileira traçados no art. 3º da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Além da compatibilidade com a Constituição, as ações afirmativas são previstas expressamente em tratados internacionais de direitos humanos, normas materialmente constitucionais, por força do texto constitucional brasileiro (§ 2° do art. 5º). A adoção de ações afirmativas está prevista, entre outros documentos internacionais, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, ambas ratificadas pelo Brasil.
3 DIREITO TRIBUTÁRIO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA
Segundo o magistério de Aliomar Baleeiro, “O tributo é a vetusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ele se projeta sobre o solo de sua dominação”.15 Isso significa que os tributos são fundamentais para a própria existência do Estado, que deles não pode prescindir para consecução dos seus objetivos constitucionais. No exercício de sua soberania, o Estado exige dos indivíduos os recursos que necessita e o faz usando o seu poder de império.
Deve-se observar, contudo, que a relação de tributação não é simples relação de poder de cunho autoritário, mas uma relação jurídica em que os indivíduos consentem, por seus representantes, na instituição do tributo, na limitação de sua liberdade em prol do interesse coletivo. 16
A tributação consentida foi um dos primeiros direitos humanos conquistados historicamente pelos cidadãos. Exemplo disso é que, segundo a narrativa de Alberto Nogueira, um dos pontos básicos da Revolução Francesa consistiu na eliminação dos privilégios fiscais da nobreza e do clero através da universalização do tributo, de tal modo que todos contribuiriam segundo suas possibilidades para a manutenção das despesas públicas. 17
Conforme lição de Ricardo Lobo Torres, “o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por eles é totalmente limitado”, significando que o Estado exerce o seu poder tributário sob permanente limitação dos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, o poder tributário exercido pelo Estado deve especial respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes e esse respeito não se refere apenas à observância das clássicas limitações constitucionais ao poder de tributar, mas também à utilização do direito tributário como instrumento de mudança social, de desenvolvimento humano, no sentido propugnado por Amartya Sen, através de um adequado manejo da tributação extrafiscal.
Essa constatação se deve ao fato de que o tributo não pode ser considerado tão somente uma relação de poder, na qual o Estado se sobrepõe aos seus súditos, ou mesmo como um sacrifício para os cidadãos. Pelo contrário, o tributo deve ser considerado como um dever fundamental, “como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado”. 18
Por sua vez e na mesma diretriz, Klaus Tipke e Douglas Yamashita lecionam que o dever de pagar impostos é um dever fundamental, porquanto se constitui em uma contribuição necessária para que o Estado possa cumprir suas tarefas no interesse da sociedade. Em razão disso, o Direito Tributário de um Estado de Direito não é Direito técnico de conteúdo qualquer, mas ramo jurídico orientado por valores, passando a exercer uma importância fundamental na realização dos fins estatais.19
O tributo não exerce, atualmente, unicamente a função de prover o Estado dos recursos necessários para a manutenção do aparato estatal ou para o financiamento dos direitos fundamentais e das necessidades públicas, função classicamente conhecida como função fiscal dos tributos. Mais do que isso, o tributo deve ser utilizado como forma de contribuir para consecução dos objetivos fundamentais da República brasileira, com a efetivação de uma justa distribuição de riquezas, para que o desenvolvimento sócio-econômico não seja uma prerrogativa de poucos e para que o bem-estar social seja uma garantia de todos, sem quaisquer discriminações odiosas.
A tributação extrafiscal decorre do intervencionismo do Estado, do abandono da tese de que os tributos devem ser neutros, tal como preconizava o liberalismo econômico, sob o entendimento de que a fazenda pública e a tributação deveriam se pautar por objetivos puramente fiscais, devendo se limitar ao mínimo possível, a fim de não provocar intervenções consideradas maléficas à economia. A tributação extrafiscal é fenômeno que caminha de mãos dadas com o intervencionismo do Estado, na medida em que é ação estatal sobre a sociedade, o mercado e a, antes sagrada, livre iniciativa.20
Ocorre que, na atualidade, já não se pode defender, seriamente, a limitação da tributação a objetivos meramente fiscais, em face das atribuições constitucionais que tem o Estado Democrático de Direito. António Carlos dos Santos destaca que a neutralidade é apontada por muitos como a principal norma de tributação. No entanto, tal doutrina não se sustenta, uma vez que, por definição, a fiscalidade é uma forma de intervenção do Estado. Como menciona o autor português, mais do que intervenção, em economias de mercado, a fiscalidade é uma condição de existência do próprio Estado, é algo imanente ao seu funcionamento.21
Conforme observação do citado jurista, até mesmo a experiência de tributação do liberalismo deslegitima uma visão radical da neutralidade, pois várias foram as formas de intervencionismo fiscal assumidas no período liberal, de fim econômico, social e moralizador, como as proteções aduaneiras; a tributação na hipótese de sucessão causa mortis como forma de redistribuição da riqueza, bem como a instituição de impostos sobre produtos nocivos à saúde.
Com efeito, inexiste neutralidade da tributação em termos absolutos, porque as normas tributárias indutoras, ao incentivarem certos comportamentos desejáveis, assumem a função de promover uma alteração no status quo, uma mudança em direção ao desenvolvimento econômicosocial. Essa perspectiva é condizente com a utilização dos tributos com finalidades extrafiscais, o que é uma evidência decorrente das finalidades atribuídas pelo moderno constitucionalismo aos tributos.
Na mesma diretriz, Raimundo Bezerra Falcão observa que mesmo sendo razoável falar em de uma tributação fiscal, “não se poderia, com êxito, cogitar da existência de uma fazenda neutral. Isso, ela nunca o foi. É ideal que, não obstante haja prosperado como tese, a prática se encarregou de fazer mirrar”. Citado autor anota um dado inegável: “a fazenda ‘neutral’ protege os favorecidos, deixando ao relento os desfavorecidos. É uma maneira de praticar um intervencionismo às avessas, pelo menos à luz da Justiça”.22
Com o advento do Estado social e dos direitos fundamentais prestacionais, conhecidos como direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão, a atividade fiscal do Estado foi intensificada, a fim de provê-lo dos recursos necessários para o financiamento de tais direitos. Dessa forma, o Estado experimentou uma série de transformações que afetaram as suas funções clássicas e, em conseqüência, seus instrumentos de atuação, a exemplo dos tributos, os quais ganharam nova configuração, sendo aptos a promoverem uma mudança social para melhor, proporcionando um combate à discriminação e à desigualdade de recursos, por intermédio de ações afirmativas.
Os tributos têm elevada potencialidade de proporcionar uma mudança social, o que ocorre, por exemplo, quando são utilizados como instrumentos de ação afirmativa, através da função extrafiscal destinada à promoção da igualdade. Segundo leciona Raimundo Bezerra Falcão,
Os diversos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro, já albergam propensões de utilização das potencialidades mudancistas da tributação, certamente em decorrência do convencimento de que é um – se bem que não o único – caminho importante na escalada do homem em busca de transformações o mais possível incruentas e que respeitem a dignidade e a vida do ser humano.
O jurista espanhol Juan Manuel Barquero Estavan explica a mudança na função dos sistemas tributários no âmbito do Estado Social:
el cambio más relevante tiene que ver justamente con las funciones que se asignan a esa Hacienda pública, que transcienden las puramente financieras, para incluir otras en consonancia con las asumidas por el Estado, de transformación o remodelación social y de dirección de la economía; a Hacienda pública aparece, en ese nuevo contexto, como uno de los más importantes instrumentos en manos del Estado para alcanzar esos objetivos.23
O tributo constitui um pressuposto funcional do Estado Social e Democrático de Direito, uma vez que, para poder desenvolver suas funções, o Estado inevitavelmente necessita extrair uma parte importante dos ingressos de seus cidadãos através dos tributos. Com isso, constatase que as funções do Estado prestacional e as funções do Estado fiscal constituem funções complementares no Estado social, pois os tributos deixam de ser um instrumento neutro e com finalidade exclusivamente financeira, para exercer, também, a função de ordenação econômica e social, ocupando um lugar central dentro do catálogo de instrumentos de política econômica e social. 24
Deve ser destacado que o sistema tributário justo é aquele que observa os princípios e valores constitucionais. A justa distribuição da carga tributária entre os cidadãos, por intermédio de leis fiscais éticas, é princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito. Se não existir política fiscal justa, não há espaço para política justa. 25
No que tange às técnicas de implementação das ações afirmativas, a doutrina indica que podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os benefícios fiscais como instrumento de motivação do setor privado. Nesse sentido, Joaquim B. Barbosa Gomes destaca:
De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.26
Considerando que o Direito Tributário sofre os influxos do Direito Constitucional, é inconteste a possibilidade de se falar em discriminações positivas em matéria tributária. Como afirmou José Ricardo do Nascimento Varejão, “A ação afirmativa em Direito Tributário reflete a dinâmica do tributo em atendimento a sua função social.” 27
Desde longa data Raimundo Bezerra Falcão já adotava entendimento que se coaduna com a utilização do direito tributário como instrumento de inclusão social, o que pode ser realizado mediante o uso de ação afirmativa. Segundo citado autor:
É tempo de reformular a idéia de que um Estado ditando normas gerais e iguais para todos. Já se pode pensar em contrabalançar a situação dos menos favorecidos, com leis que sejam iguais para os iguais, mas diferenciadas em favor dos menos afortunados. 28
Em relação ao sistema constitucional tributário, a norma proclamada no art. 150, II, da Constituição Federal, estabelece ser vedado o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Essa proibição da desigualdade se expressa sob as formas principais de proibição de privilégios odiosos e proibição de discriminação fiscal. 29
A proibição de privilégios odiosos indica que qualquer discriminação que leve à diminuição ou à exclusão da carga tributária, aumentando a desigualdade entre contribuintes está proibida. Por sua vez, as discriminações fiscais odiosas são desigualdades desarrazoadas que excluem alguém da regra tributária geral ou de um privilégio não-odioso, constituindo ofensa aos direitos humanos do contribuinte.
Ao utilizar a função extrafiscal do tributo, portanto, o Estado intervém nas relações sociais e na economia, o que configura um poderoso instrumento para promoção dos direitos fundamentais, em especial o direito à igualdade.
O Direito Tributário, historicamente, tem camuflado a realidade de que a figura do contribuinte tem sido usada como instrumento de apropriação do patrimônio (riqueza) de uns (os mais fracos) em proveito de outros (os mais poderosos).30 Segundo o exemplo narrado por Alberto Nogueira, na dinâmica da Revolução Francesa, a burguesia assumiu a direção e o controle, deixando para trás os demais interlocutores e companheiros de luta, impondo também na área dos tributos seus interesses e sua vontade.31
Em contraposição a esse uso histórico do direito tributário, é necessária uma “reconstrução dos Direitos Humanos da Tributação” 32, razão pela qual se sustenta aqui a utilização desse ramo do Direito para a promoção de políticas públicas com a finalidade de alcançar o ideal de justiça social, a exemplo das ações afirmativas. Trata-se, primordialmente, de uma intervenção estatal por normas que induzem o comportamento dos particulares ou simplesmente os premiam: é a intervenção estatal por normas de indução, na classificação de Eros Grau. 33 Nessas espécies de normas, a sanção punitiva é substituída por um incentivo ou um prêmio, que pode ser um estímulo à iniciativa privada para adoção da política de ação afirmativa em contrapartida à concessão de benefícios fiscais.
O Direito Tributário, com sua função extrafiscal, já vem sendo utilizado no direito positivo de diversos países como instrumento das políticas de ação afirmativa. José Pastore informa que, ao lado do sistema de reserva de mercado para emprego de portadores de deficiências (cotas), instituídos na Europa ao longo do século XX com o objetivo de acomodar os ex-combatentes de guerra feridos, estabeleceu-se em diversos países, a exemplo da Alemanha, Áustria, França e Itália, um sistema de cotacontribuição, que estabelece a obrigatoriedade, para os empregadores que não conseguirem, por motivos justificados, preencher as cotas, da contribuição para um fundo público destinado à reabilitação profissional dos portadores de deficiência. 34
Segundo este autor, na Espanha as empresas recebem incentivos e subsídios para empregar portadores de deficiência, tais como redução de contribuições previdenciárias e deduções tributárias. Informa, também, que na América Latina muitos países têm previsão para concessão de incentivos e prêmios ao setor privado para contratação de pessoas portadoras de deficiência. Por exemplo, na Argentina, cita a Lei n. 24.465/95, que reduz em 50% as contribuições previdenciárias dos empregadores que contratam portadores de deficiência. No Peru, a Lei n. 23.285/82 concede benefícios tributários para empresas para contratação dessas pessoas. Na República Dominicana, as empresas têm reduções fiscais quando participam de planos de admissão de portadores de deficiência aprovados pelo governo.
Em Portugal, ainda segundo Pastore, há vários mecanismos de apoio financeiros às empresas. Por exemplo, a contribuição previdenciária é reduzida à metade (12,5%) na contratação de portadores de deficiência. No caso de contrato por prazo determinado, ou para trabalhos em casa, há reduções ainda maiores nas alíquotas das contribuições previdenciárias ou impostos.
No Brasil, ainda é modesta a utilização de benefícios fiscais como instrumento de ações afirmativas. Como exemplos do direito positivo pátrio, pode-se destacar que em diversas Constituições dos Estados-membros da federação tal instrumento é utilizado, em especial para estimular a inclusão de portadores de deficiência no mercado de trabalho, com a previsão de concessão de benefícios fiscais para as empresas que os empregam.
Há diversos exemplos, também no âmbito do direito estadual e municipal que aqui não serão citados, pela limitação deste trabalho. Contudo, no âmbito da legislação federal, merece destaque a isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados na aquisição de automóveis de passageiros de fabricação nacional por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas (art. 1°, IV, da Lei n° 8.989/95) 35; e a isenção de Imposto sobre Operações Financeiras nas operações de financiamento para aquisição de veículos por pessoas portadoras de deficiência (art. 72, IV, da Lei nº 8.383 de 30.12.91).
Há quem defenda que tais medidas afirmativas pudessem ser expandidas na legislação tributária federal, a exemplo da legislação do imposto de renda e proventos de qualquer natureza, que, permitindo o abatimento de verbas gastas em determinados investimentos, tidos como de interesse social ou econômico, poderia ser um campo fértil para o desenvolvimento de tais políticas de inclusão social. Essa técnica poderia, de lege ferenda, ser utilizada como ação afirmativa, permitindo-se a dedução de percentual da base de cálculo do IR para aquelas empresas que empregassem pessoas pertencentes a grupos vulneráveis, como afrodescendentes36, mulheres e portadores de necessidades especiais, ou que melhorassem as condições de trabalho dessas pessoas, contribuindo para uma maior inclusão social.
Américo Bedê Freire Júnior defende também a utilização de isenções fiscais condicionais para estimular as empresas à contratação de indivíduos discriminados, afirmando:
A empresa, então, que tiver determinado percentual de determinada categoria que sofreu discriminação terá um benefício fiscal. Ora, se a Constituição autoriza a adoção de isenções fiscais para a redução das desigualdades regionais, com muito mais razão é constitucional a adoção de isenções para diminuir as desigualdades vivenciadas pelos cidadãos brasileiros. Outra vantagem do regime é que a empresa precisaria manter esses percentuais de funcionários beneficiários sob pena de, se assim não proceder, não ter condições de continuar a usufruir da isenção. 37
Vale citar, também, programa de ação afirmativa, embasado em benefícios fiscais, na área da educação: o Programa Universidade para Todos (ProUni) institucionalizado pela Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, a estudantes que tenham cursado o ensino médio completo na rede pública de ensino ou em instituições privadas com bolsa integral; aos estudantes portadores de deficiência; e aos professores da rede pública de ensino, para determinados cursos destinados à formação do magistério da educação básica. Tal diploma legal, ainda, prevê que a instituição de ensino superior, ao aderir ao ProUni, adote um termo de adesão onde conste a cláusula da reserva de percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.
Nos termos do art. 8ª da supracitada lei, as instituições de ensino que aderirem ao ProUni ficam isentas de uma série de tributos federais, dentre eles: o IRPJ, a CSLL, a COFINS e Contribuição para o PIS.
Com essa aplicação da política de ação afirmativa, aumenta-se o comprometimento dos particulares com a não-segregação social de membros de grupos vulneráveis, bem como com a promoção dos direitos fundamentais. Isso porque uma das funções dos direitos fundamentais é propiciar um certo equilíbrio de forças entre partes conflitantes que não se encontrem em mínimas condições de igualdade38, sendo dever do legislador, com prioridade, a concretização dos direitos fundamentais. No Estado Democrático Social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades, mas também a sociedade participa mais ativamente do exercício do poder. Assim, os direitos fundamentais merecem proteção não apenas contra atos do poder público, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade39, devendo o Estado forçar o respeito pelos particulares aos direitos fundamentais, a exemplo do direito à igualdade, escopo das ações afirmativas.
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que essa utilização da função extrafiscal dos tributos como política de ação afirmativa é compatível com o princípio da igualdade, quando do julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade em que se alegava ser inconstitucional a Lei nº 9.085/95, do Estado de São Paulo, que instituiu a concessão de incentivos fiscais para as pessoas jurídicas domiciliadas no Estado que, na qualidade de empregador, possuíssem pelo menos 30% (trinta por cento) de seus empregados com idade superior a 40 (quarenta) anos.
Vejamos a ementa desse julgado, ressaltando que a declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal em relação ao ICMS se deu em razão de uma questão formal na instituição do benefício:
Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assembléia Legislativa Paulista usou o caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia.
Procede a alegação de inconstitucionalidade do item 1 do § 2º do art. 1º, da Lei 9.085, de 17/02/95, do Estado de São Paulo, por violação ao disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal. Em diversas ocasiões, este Supremo Tribunal já se manifestou no sentido de que isenções de ICMS dependem de deliberações dos Estados e do Distrito Federal, não sendo possível a concessão unilateral de benefícios fiscais. Precedentes ADIMC 1.557 (DJ 31/08/01), a ADIMC 2.439 (DJ 14/09/01) e a ADIMC 1.467 (DJ 14/03/97).
Ante a declaração de inconstitucionalidade do incentivo dado ao ICMS, o disposto no § 3º do art. 1º desta lei, deverá ter sua aplicação restrita ao IPVA.
Procedência, em parte, da ação.40
Como se constata, a utilização da extrafiscalidade não se deu de forma compulsória aos particulares. Ao contrário, tratou-se de induzir o comportamento destes com vistas ao respeito do direito fundamental à igualdade, mediante a concessão de um benefício fiscal, isto é, uma forma de sanção premial. Nesse desiderato, podem ser utilizados os mecanismos de redução de alíquotas, de dedução de despesas na base de cálculo de tributos ou mesmo a concessão de isenções condicionais, sendo necessário salientar que toda renúncia fiscal deve ser tomada com responsabilidade fiscal, em atenção ao art. 165, § 6°, da Constituição Federal e aos artigos 5°, II, e 14 da Lei Complementar nº 101/2000.
4 CONCLUSÃO
Pretendeu-se, com essas breves palavras, analisar o problema de como o Direito Tributário pode ser útil para a implementação de políticas de inclusão social, em especial as ações afirmativas, que visam à inclusão social de grupos desfavorecidos e discriminados negativamente ao longo da história, bem como à promoção da igualdade material entre os cidadãos, no sentido de auxiliar a todos na criação de condições necessárias para viver a vida que desejarem, respeitando-se as escolhas pessoais de cada um.
A utilização da tributação com tais fins pode propiciar ao Brasil, algum dia, a qualificação de país desenvolvido, pois, para isso, como alertou Amartya Sen, não basta apenas um enfoque no nível de renda da população, mas também proporcionar aos cidadãos um nível mínimo de qualidade de vida, de dignidade, ou seja, o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, eliminando-se as privações que limitam as suas escolhas e oportunidades sociais.
Nesse contexto, a diversidade humana não pode ser ignorada no tratamento das políticas destinadas à expansão das liberdades e à promoção da igualdade, podendo ser necessário dar um tratamento desigual àqueles que estão em desvantagem, como ocorre com as ações afirmativas.
Essas políticas podem ser utilizadas não apenas no âmbito da Administração Pública, podendo o Estado induzir o comportamento dos particulares para fortalecer a adesão a tais políticas. O direito tributário, por intermédio da função extrafiscal dos tributos, pode ser útil nesse desiderato, através da possibilidade de previsão legislativa da concessão de benefícios fiscais aos contribuintes que facultativamente aderirem a essas políticas. Exemplos de uso dos tributos com a finalidade de inclusão social já existem no direito comparado e no direito pátrio, embora essa utilização ainda seja modesta.
A Constituição Federal de 1988 possui um nítido caráter democrático e uma explícita preocupação com o ideal de justiça social, albergando perfeitamente as medidas de ação afirmativa nos objetivos fundamentais estabelecidos pela República, o que reflete na tributação, de forma que, através da concessão de benefícios fiscais, essas medidas podem ser úteis para inclusão social de membros de grupos vulneráveis.
Notas
1 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 5. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2003. p. 41.
2 SILVA, Sandoval Alves da. Direitos Sociais: leis orçamentárias como instrumento de implementação. Curitiba: Juruá, 2007. p. 183.
3 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17.
4 MENEZES, Paulo Lucena de. A Ação afirmativa (Affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 88.
5 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: (o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40.
6 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 199.
7 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 280-283.
8 SANTOS, op. cit., p. 313
9 O autor trata sobre as ações afirmativas em três obras: Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 437-494; Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 343-369; e A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 543-607.
10 No mesmo sentido: BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Ação afirmativa: fundamentos e critérios para sua utilização. Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, nº 98, v. 50, p. 7-16, 2006.
11 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
12 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008.p. 74-75.
13 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 63.
14 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6. ed. rev. e atualizada por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 1.
15 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 29.
16 NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 68.
17 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. III. Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 14.
18 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Livraria Almeidina: Coimbra, 1998. p. 185. 19 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15.
20 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 47.
21 SANTOS, António Carlos dos. Auxílios de Estado e Fiscalidade. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p. 354.
22 FALCÃO, op. cit., p. 44.
23 BARQUERO ESTEVAN, Juan Manuel. La función del tributo en el Estado social y democrático de Derecho. Cuadernos y debates n.º 125. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 21-22.
24 Ibidem, p. 37-38.
25 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 28.
26 GOMES, Joaquim B. Barbosa. O debate constitucional sobre as Ações Afirmativas. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=33. Acesso em: 21 abr. 2010.
27 VAREJÃO, José Ricardo do Nascimento. Princípio da Igualdade e direito tributário. São Paulo: MP, 2008. p. 173.
28 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981, p. 161.
29 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 78-82.
30 NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 111.
31 Ibidem, p. 77.
32 Ibidem, p. 78.
33 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 150.
34 PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTr , 2000. p. 157-176.
35 O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 567.873-MG, 1ª Turma, Relator Min. Luiz Fux, DJ de 25.02.2004, tratou sobre o tema sob a ótica das ações afirmativas, conferindo interpretação extensiva à citada isenção para conceder o benefício ao deficiente físico impossibilitado de dirigir.
36 Veja-se o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR (Decreto Federal n° 6.872, de 04.06.09), em que se prevê no anexo, eixo 1 (trabalho e desenvolvimento econômico), item VIII, como objetivo do Plano, propor um sistema de incentivos fiscais para empresas que promovam a igualdade racial.
37 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Ação afirmativa e isenções tributárias. Disponível em: http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0128.pdf. Acesso em 24 out. 2008.
38 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 109.
39 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 401.
40 STF, ADIn 1276/SP, Relatora Min. Ellen Gracie, julgamento em 29.08.2002, DJ de 29.11.2002.
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