Resultados da pesquisa por “Nota de Pesar” – SINPROFAZ

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Resultado da busca para: Nota de Pesar

NOTA DE PESAR

Foi com imenso pesar que o SINPROFAZ recebeu a notícia do falecimento do respeitado Colega Dr. Joubert Farley Eger. Procurador da Fazenda Nacional há quase vinte anos, Dr. Joubert atuava na UV da 4ª Região, dedicando-se à Divisão de Assuntos Fiscais (Diafi/SC). Estimado pelos pares, também foi professor universitário e apreciador da cultura e da literatura. Leia a íntegra da Nota de Pesar.


NOTA DE PESAR: SINPROFAZ COMUNICA FALECIMENTO DO DIRETOR SÉRGIO CARNEIRO

A Diretoria do SINPROFAZ manifesta as mais sinceras condolências à família e aos demais amigos do Colega e faz votos de serenidade e consolo. Dr. Sérgio Luís de Souza Carneiro deixará eternas saudades. A ele, toda a nossa gratidão.


NOTA DE PESAR

Foi com extrema tristeza que o SINPROFAZ recebeu a notícia do falecimento, em Curitiba/PR, do querido filiado João Antônio Catarino Farinha Pires. Aos 53 anos, o PFN colecionava amigos na Instituição. Seu carisma, senso de colaboração e humanidade ficarão na memória de todos. Para os Colegas, João Catarino era uma unanimidade. Discreto, bondoso e gentil, era aquele a quem todos recorriam para uma conversa.


Nota de pesar e solidariedade

O SINPROFAZ – Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional – se solidariza com a Procuradora Municipal Gabriela Samadello Monteiro de Barros, que sofreu, no exercício de suas funções, um ataque covarde e brutal do colega também Procurador Demétrius Oliveira de Macedo, nessa segunda-feira, 20 de junho de 2022.


NOTA DE PESAR

É com extrema consternação que o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional recebeu a notícia do falecimento do Ex-Presidente Ernane Brito, na manhã de hoje (22), na cidade de João Neiva/ES. Ernane ingressou na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional no ano de 2008, desde então com relevantes serviços prestados à instituição.


NOTA DE PESAR PELO FALECIMENTO DO DOUTOR CARLOS ALBERTO LOPES

Referido colega ingressou na carreira por meio do concurso de 1993, tendo atuado nas Divisões de Defesa, de Assuntos Fiscais e de Dívida Ativa. Teve, também, uma breve passagem pela PFN/SP. O SINPROFAZ presta suas condolências à família e aos amigos do finado colega.


NOTA DE PESAR

Ex-Procurador-Geral da Fazenda Nacional (1963-1965), ex-Presidente do Conselho Federal da OAB (1971-1973), ex-Presidente da OAB-PE (1953-1971) e um dos mais antigos Filiados ao Sindicato, Doutor José Cavalcanti Neves comemorou o centenário no dia 3 de julho de 2021, data em que recebeu distintas homenagens à altura do homem e do profissional que foi em vida. Confira a íntegra da Nota.


NOTA DE PESAR PELO FALECIMENTO DO JURISTA JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

O SINPROFAZ manifesta pesar pelo falecimento do jurista e professor José Souto Maior Borges. Conforme depoimento de alunos e admiradores, o Brasil perde, além de um dos maiores estudiosos do Direito Tributário, um grande ser humano. Confira a íntegra da Nota.


NOTA DE PESAR

O Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional lamenta a morte do procurador da Fazenda Nacional Matheus Carneiro Assunção, uma perda inestimável para a Carreira. Procurador da Fazenda Nacional desde 2008 e mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, Matheus foi um profissional dedicado. Confira a íntegra da Nota de Pesar do SINPROFAZ.


NOTA DE PESAR

É com consternação que a Diretoria do SINPROFAZ comunica o falecimento, em 5 de novembro de 2019, do Procurador da Fazenda Nacional Sérgio Murilo Zalona Latorraca. Latorraca foi um profissional valoroso e combativo, sempre comprometido com a defesa dos interesses da União, de rara sensibilidade e simpatia e muito querido por todos que o conheceram e com ele conviveram.


NOTA DE PESAR

Faleceu na última quarta-feira (8) o procurador da Fazenda Nacional Marcelo Mendel Schefler. Ele ingressou na Procuradoria da Fazenda Nacional em 1993. Integrava a Divisão de Defesa na 2ª Instância – DIDE2 da PRFN3.


NOTA DE PESAR

É com muito pesar que comunicamos a infeliz notícia do falecimento do nosso respeitável colega aposentado, Dr. Eduardo Boquimpani. O SINPROFAZ se compadece, presta condolências e deixa os mais sinceros pêsames aos amigos e familiares.


NOTA CONJUNTA DE ESCLARECIMENTO: EM DEFESA DA ADVOCACIA PÚBLICA E DA DEMOCRACIA

É com respeito à instituição democrática e à função primordial desempenhada pela Advocacia Pública que as associações subscritas, por meio desta nota, esclarecem sobre as recentes declarações proferidas pelo Presidente do Senado Federal.


IMPRENSA REPERCUTE NOTA DO SINPROFAZ SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA

Tendo em conta a aprovação, pelo Senado Federal, da PEC 45/2019, o SINPROFAZ divulgou nota em que celebrou o avanço da reforma tributária no Brasil. Para o Sindicato, o texto aprovado proporciona avanços no sentido da simplificação tributária e da segurança jurídica no país.


NOTA DE REPÚDIO À NOMEAÇÃO DO NOVO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

SINPROFAZ repudia a forma de escolha do novo advogado-geral da União.


NOTA SOBRE O “PACOTE DE BONDADES”

A ANAJUR, ANPAF, ANPPREV, APBC, SINPROFAZ e UNAFE vêm a público externar sua opinião referente à matéria intitulada “Governo anuncia pacote de bondades para carreiras jurídicas”, publicada nesta quinta (15/10) no Portal Jornalístico JOTA.


Nota de falecimento – Maria Lúcia Sá Motta Américo dos Reis

É com pesar que a Diretoria do SINPROFAZ comunica o falecimento da Colega PFN, no último dia 21 de novembro. Missa de sétimo dia será no próximo sábado, 29/11, no Rio de Janeiro.


Nota Pública – Advocacia Pública Federal

Entidades representativas das Carreiras da AGU emitem nota pública sobre as últimas deliberações acerca da intensificação das ações em prol da autonomia institucional e das prerrogativas funcionais.


Nota pública das entidades representativas das carreiras de Estado

Segundo Dia Nacional de Mobilização de Advertência está marcado para 30 de maio. Se o governo não apresentar contraproposta, carreiras podem parar em 18 de junho.


Nota de falecimento

SINPROFAZ e Forum Nacional externam profundo pesar e comunicam luto pelo falecimento do Procurador Federal Ricardo Franco Neto.


Nota de falecimento – Subprocurador-geral da Fazenda Nacional, Leon Frejda

É com pesar que a diretoria do SINPROFAZ comunica o falecimento de ícone da velha guarda da carreira de PFN. Entre outros feitos, Leon é co-autor da Lei de Execução Fiscal.


REFORMA PREVIDÊNCIA DO RPPS NA BERLINDA: ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA ADOÇÃO DE ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS E DA PREVISÃO DE CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA (ARTS. 1º E 11 DA EC 103/2019)

Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Mestre em Direito. Professor de Direito Tributário e de Direito Financeiro, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Ex-Procurador da Fazenda Nacional de Categoria Especial (aposentado). Advogado e parecerista. Diretor científico fundador da “Revista Fórum de Direito Tributário”. Sumário: 1. Introdução. 2. Considerações propedêuticas. 3. Exame da…


Jornal O Globo destaca carta aberta do Sinprofaz contra à nomeação do novo AGU

Jornal O Globo destaca ação do Sinprofaz contra a nomeação do ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para chefiar a AGU.


Veja a cobertura e entrevistas que marcaram o primeiro turno da PEC 443/2009

A TV SINPROFAZ acompanhou a mobilização dos PFNs e de todas as Carreiras da AGU em 5 de agosto e na madrugada do dia 6, na Câmara dos Deputados


Constituição também incumbiu à AGU preservar a Justiça

A atual Constituição, nominada pelo presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, de Constituição Cidadã, completa 25 anos de sua promulgação no dia 5 de outubro de 2013, contudo, muitas de suas pretensões ainda não foram plenamente concretizadas ou sofrem ataques até os dias atuais.

Recorda-se que nos debates que antecederam a promulgação da Constituição a atribuição dual exercida pelo Ministério Público, de defesa da sociedade e do Executivo, passou a ser contestada. Após muitas discussões o Constituinte entendeu que era necessário haver divisão das atribuições do Ministério Público, criando a Advocacia-Geral da União (AGU), positivada no art. 131 da CF/88, no capítulo referente às Funções Essenciais à Justiça. Todavia, apesar da transferência da atribuição de defesa do Estado para o órgão recém-criado, a AGU, o Constituinte não diferenciou, em prevalência ou hierarquicamente, a defesa da sociedade e do Estado, permitindo que os membros do Ministério Público pudessem fazer a escolha pelo exercício das atividades no novo órgão, conforme preconiza o art. 29, § 2.º, do ADCT.

Outrossim, a organicidade e constituição da AGU somente foi implementada após a publicação da Lei Complementar 73/93, completando 20 anos de existência em 11 de fevereiro de 2013.

A Advocacia-Geral da União é a instituição que representa judicialmente e extrajudicialmente a União, prestando as atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao poder Executivo federal, bem como de defesa em juízo do poder Executivo, Legislativo e Judiciário.

Entre os órgãos que compõem a estrutura da AGU, pode-se citar a Procuradoria-Geral da União, que faz a assessoria e a defesa da administração pública direta; a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que faz a consultoria e a defesa da União nas causas de natureza fiscal, além de executar a dívida ativa da União; e a Procuradoria-Geral Federal, responsável pela consultoria e pela defesa da administração pública indireta. Ressalta-se, ainda, as atribuições da Procuradoria-Geral do Banco Central no assessoramento e na representação judicial do Banco Central, autarquia de caráter especial.

O papel constitucional destinado à AGU de defesa do Estado (patrimônio público), correspondente ao interesse público secundário, não pode contrapor arbitrariamente aos legítimos interesses da sociedade, interesse público primário, cabendo aos advogados públicos federais resolver o conflito dentro do que determina a Constituição e as leis. Esse controle decorre do dever mediato de defesa da Justiça, insculpido quando o Legislador Constituinte inseriu a AGU em um capítulo à parte do poder Executivo, Função Essencial à Justiça, havendo a necessidade de defesa do Estado desde que a ação não transborde os preceitos constitucionais e legais.

O desígnio “Justiça”, inserido no Título IV, não teve um alcance restrito, de prestação jurisdicional, mas sim de isonomia, imparcialidade, preservação dos direitos, eliminação da ingerência do Estado, cidadania e democracia, o que Diogo de Figueiredo Moreira Neto convencionou chamar de “Estado de Justiça”.

O Título IV da Constituição deixa claro que a prestação da Justiça não ficou restrita ao Judiciário, exigindo a intervenção do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da Advocacia Privada, como garantidores e defensores dos interesses da sociedade e do Estado. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao discorrer sobre o papel afeto às Funções Essenciais à Justiça, consigna que[1]:

Sem esses órgãos, públicos e privados de advocacia, não pode haver justiça, aqui entendida como a qualidade ética que pretende exigir do Estado pluriclasse quanto à legalidade, à legitimidade e à licitude. E porque essa justiça só pode vir a ser realizada em sua essencialidade se dispuser dessas funções, autônomas, independentes, onipresentes, e, sobretudo, corajosas, o legislador constitucional as denominou de ‘essenciais à justiça’ (Título IV, Capítulo IV, da Constituição).

Nessa senda, em relação à AGU, podem-se citar diversas ações que vão ao encontro do dever de preservar a Justiça, sem descurar da tarefa de defesa do Estado, o qual não pode ser confundido com o governante de plantão. A um, a criação da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) é fruto desse dever constitucional de resguardar a Justiça, ajudando na prevenção e solução de controvérsias. Atendendo esses mesmos anseios os órgãos de consultoria e assessoramento da AGU resolvem cotidianamente diversos conflitos judiciais por meio de pareceres, que, após ratificados pelo advogado-geral da União, determinam atuação impositiva, evitando-se o efeito em cascata das ações judiciais.

A dois, a Lei da Ação Civil Pública, da Ação Popular, do Mandado de Segurança e de improbidade preservam a discricionariedade ao membro da AGU, quando da orientação jurídica da União, representando a administração pública direta ou indireta, para avaliar qual conduta se adequa às regras e princípios constitucionais, possibilitando integrar o polo ativo ou passivo da ação. Podendo defender o ato que foi impugnado, se entender que o administrador agiu dentro da legalidade ou integrar o polo ativo se verificar que o praticante extrapolou suas funções (como casos recentes em que a AGU tem cobrado o ressarcimento ao erário de administradores que praticaram atos de corrupção).

A três, o controle de legalidade e constitucionalidade do ato administrativo exercido pela AGU, por meio de seus órgãos, exterioriza seu papel de guardião da juridicidade do ato administrativo, corolário da observância ao Estado Democrático de Direito.

Para que esses deveres sejam resguardados sem qualquer tipo de interferência o art. 133, caput, da CF/88 positivou a garantia da independência e inviolabilidade aos advogados (sejam eles públicos ou privados) no exercício de suas atividades, cujo objetivo principal é preservar a essencialidade da “Justiça” e todas as normas e princípios correlatos.

O Estatuto dos Advogados ou da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei nº 8.906/94, que também se aplica aos advogados públicos (Art. 3º, § 1º), pormenorizou essas garantias, precipuamente a liberdade funcional e independência no livre exercício da função nos artigos 7º, I e § 2º e 18.

Para o exercício das atribuições ínsitas à advocacia, garantindo a promoção da Justiça com liberdade e igualdade, é imprescindível proteger a independência técnica do advogado, que, como observado, está atrelada à defesa do Estado Democrático de Direito e dos cidadãos. Considerando a importância do bem tutelado o art. 2º, parágrafo único, II, do Código de Ética e Disciplina da OAB impõe como dever do advogado “atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé.”

Para garantir essa liberdade também é necessário preservar a inviolabilidade no exercício da função, ferramenta indispensável para o exercício de suas competências de maneira isenta e técnica, impedindo a intervenção que possa macular a independência profissional e indispensável para que a atividade tenha como único desiderato a defesa do Estado e do interesse público. Nessa esteira, Derly Barreto e Silva Filho entende que a autonomia funcional:

“há de ser entendida como a prerrogativa que assegura aos advogados públicos o exercício da função pública de consultoria e representação dos entes políticos independente de subordinação hierárquica (seja a outro poder, seja aos próprios chefes ou órgãos colegiados da Advocacia Pública) ou de qualquer outro expediente (como manipulação de remuneração) que tencione interferir, dificultar ou impedir o seu poder-dever de oficiar de acordo com a sua consciência e a sua missão de velar e defender os interesses públicos primários, sem receio de “desagradar” quem quer que seja, chefes de poderes executivos, ministros, secretários, advogado geral da União, procuradores gerais de estados, órgãos colegiados das procuraturas, chefia mediatas ou imediatas, magistrados ou parlamentares”. (Silva Filho, Derly Barreto e. O Controle da Legalidade diante da remoção e inamovibilidade dos Advogados Públicos, tese aprovada no XXIII Congresso Nacional de Procuradores do Estado, 11/97. Disponível em (http://jus.com.br/revista/texto/3233/o-advogado-publico-sua-independencia-e-sua-imunidade#ixzz2LO2228Ic).

Ante ao exposto, para a construção da advocacia pública federal conforme os anseios constitucionais exige-se o respeito à garantia da independência técnica de seus integrantes, preservando uma advocacia de Estado que auxilia o governante a executar as políticas previstas na Carta Magna e nas leis, bem como resguarda o interesse dos cidadãos e da Justiça.

Portanto, o papel destinado à AGU é incompatível com escolhas políticas que não tenham como premissas a Constituição e as leis, cabendo aos advogados públicos federais fazerem essa conformação. Bem longe de regular ou interferir nas escolhas das políticas públicas, o papel da AGU é justamente fazer o controle da juridicidade da sua implementação e execução. Assim, para que esse papel seja exercido atendendo aos preceitos constitucionais é necessário que os grupos governantes respeitem as atribuições do profissional técnico, imparcial e altamente qualificado, que não sujeito às pressões políticas, e à submissão a interesses não Republicanos do governo da ocasião, trará um ganho de qualidade para o desenvolvimento e a execução da política pública escolhida, evitando, da mesma forma, os desvios.


Notas

[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Constituição e Revisão: Temas de Direito Político e Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 31.


Allan Titonelli Nunes é Procurador da Fazenda Nacional, ex-Presidente do Sinprofaz e do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal.

Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2013


A fundamentação das decisões judiciais no Projeto do CPC

Por Pablo Bezerra Luciano Tive a oportunidade de sugerir aqui na ConJur uma outra concepção do dever de fundamentação das decisões judiciais imposto pela Constituição, como decorrência necessária do princípio do contraditório (clique aqui para ler). Na ocasião questionei a invocação pela jurisprudência, como fatores de justificação do decisionismo judicial, de normas como a do…


Direito Constitucional Tributário no Império do Brasil

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional. Exerceu os cargos de Advogado da União/PU/AGU, Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região, tendo também exercido a função de Conciliador Federal (Seção Judiciária do Maranhão). É Professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís e ex-professor substituto de Direito da UFMA. Especialista em Docência e Pesquisa no Ensino Superior. Membro do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União.

SUMÁRIO: Introdução; 1 O Nascimento do Império do Brasil; 2 A Competência Tributária; 3 Limites ao Poder de Tributar; 5 Conclusão.

RESUMO: Direito Tributário Constitucional no Império do Brasil. Trata-se de artigo que tem por finalidade estudar o sistema tributário brasileiro vigente durante o Império do Brasil, sobretudo durante o entre os anos de 1822 e 1840, que marca o período das grandes definições fiscais imperiais, relacionadas sobremaneira com a fixação das competências tributárias nacionais, sem deixar de analisar problemas jurídicos surgidos relacionados com estas escolhas políticas. Por se pretender analisar a repartição do poder de tributar, almejou-se estudar o direito constitucional tributário então vigente, bem como as limitações ao poder de tributar opostas ao Estado imperial brasileiro. Por meio de tal análise buscou-se também vislumbrar a construção do Império do Brasil e suas turbulências, nestas primeiras décadas, relacionadas, sobretudo, com o tipo de Estado adequado para atender aos conflitos entre as pretensões provinciais e a Monarquia centralizadora.

PALAVRAS-CHAVE: História. Direito. Tributário. Constitucional. Brasil império.

INTRODUÇÃO

O direito, em qualquer sociedade, não pode ser compreendido como um fenômeno isolado no tempo e no espaço. Não pode ser vislumbrado como um amontoado de normas que não estão relacionadas com os valores, as visões de mundo e as expectativas de um grupo social (que o cria e que por ele é governado), em determinado momento da sua história (FERREIRA, 1975, p.31).

A percepção deste fenômeno fica mais evidente quando se estuda o direito contemporâneo, pois, de certo modo, vive-se sob a égide destas normas e se consegue compreender os institutos e o alcance deles, sendo possível vislumbrar-se a alteração da interpretação do Direito, e como as normas se relacionam para construir um sistema jurídico.

Os indivíduos que integram a nossa sociedade, por exemplo, sejam ou não operadores do Direito, percebem as normas jurídicas, isto é, tem uma mínima compreensão dos principais limites impostos pelo ordenamento às suas condutas, inferindo também os direitos que lhe são assegurados.

Em outras palavras, por se viver sob o império do direito, é possível senti-lo; consegue-se perceber a sua dinâmica.

Para o operador do Direito, ao se ler as grandes obras jurídicas, ao conversar com os demais colegas, ao trocar informações na faculdade, ao se defrontar com a jurisprudência dos Tribunais ou ao se atualizar com as informações colhidas na internet, fica manifesta a vivacidade do ordenamento jurídico que está em vigor.

Entretanto, quanto mais se recua no tempo, ao se estudar o direito do passado, algo começa a desaparecer: a percepção de “vida” das normas começa a se esvair.

Não se detecta, com mais facilidade como estas normas se organizavam, de como era construído o sistema jurídico, qual era o alcance e a sua aplicação.

Por exemplo, por constar nos livros dos grandes autores clássicos, como Pontes de Miranda (MIRANDA, 1966, p. 25) ou Aníbal Bruno (BRUNO, 2003, p. 106), compreende-se como era aplicado e compreendido o Código Penal, quando dos primeiros anos da sua origem. Ainda se é possível perceber como era a sua essência e a sua conexão com o direito penal atual, pois, além deste diploma legal está em vigor (apesar da reforma da sua parte geral e de inúmeros dispositivos da parte especial), houve uma constante aplicação, sem rupturas, desde a sua criação, com a interpretação das suas normas, tomando por base as inúmeras constituições vigentes, em cada um dos períodos históricos (Constituições de 1937, de 1946, de 1967/69 e de 1988).

Em outras palavras, um leitor que viesse a desejar fazer a leitura do Código Penal, na sua redação original, não estranharia o seu conteúdo, pois se trata de diploma legal que ainda guarda pontos de contato com o pensamento jurídico contemporâneo e com a própria sociedade brasileira, em alguns de seu aspectos, apesar de tal Código ser datado da década de 40, no século XX, já possuindo algumas de suas partes, quase 70 anos.

No direito tributário, vive-se uma experiência um pouco mais complicada.

O Código Tributário Nacional (Lei nº. 5.172/66), decorrente da Emenda constitucional nº 18/66, foi um diploma revolucionário na história do Brasil, por ter conseguido, de forma sucinta, clara e precisa, apresentar alicerces para a construção de uma teoria do tributo e das novas bases para a relação entre Fisco e contribuinte (MARTINS, 2005, p. 29-31).

Toda a teoria contemporânea do direito tributário, por óbvio, foi edificada sobre os alicerces lógicos do nosso Código Tributário de 1966.

Em outras palavras, o operador do direito, quando busca estudar o Direito Tributário, irá sempre tentar visualizar as normas jurídicas sob as categorias lógicas fornecidas pelo nosso Código Tributário: competência tributária, capacidade tributária, limitações ao poder de tributar (princípios e imunidades), conceito de tributo, elementos da norma tributária, espécies tributárias, legislação tributária, obrigação tributária, crédito tributário etc.

Em outras palavras, a legislação fiscal brasileira pré-Código Tributário, para alguns, pode até se parecer com leis de civilizações desaparecidas, como se fora o Código de Hamurabi, da Babilônia, pelo seu exotismo e estranha forma de se apresentar, não guardando, aparentemente, nenhum contato com o nosso direito atual.

De fato, ao se estudar o direito tributário do Império do Brasil, o operador do direito se defronta com obstáculos que devem ser transpostos, sendo que o primeiro deles é que alguns dos parâmetros interpretativos contemporâneos não se conectam às estruturas fiscais do Brasil imperial, isto é, a doutrina jurídica não cria pontos de enlace entre o direito tributário brasileiro atual e o que vigia no século XIX.

O segundo empecilho reside no fato de que estudar o direito vigente no Império do Brasil é estudar normas jurídicas que foram criadas para reger uma sociedade que possui significativas diferenças econômicas (e culturais) em relação ao Brasil contemporâneo, logo, as bases para compreensão não podem se fundamentar em valores vigentes atualmente.

As categorias lógico-jurídicas que regiam o direito brasileiro no Império do Brasil são, em demasia, distintas das que vigoram atualmente, a começar pela inexistência de um Código Civil, pela manutenção do odioso instituto jurídico da escravidão como alicerce do trabalho produtivo (pelo menos até 1860), e pelo fato de que o Império era um Estado unitário sui generis, sobretudo após o Ato Adicional de 1834, que reformou a Constituição de 1824.


Adverte-se que, assim como no estudo do direito romano (ALVES, 1995, p. 67-74.), não se pode vislumbrar o Império do Brasil como um conjunto monolítico de normas, inalteradas no tempo.

As necessidades fiscais do reinado de D. Pedro I, sem dúvidas, não se assemelham às da Regência, muito menos às existentes durante o longo reinado em que D. Pedro II governou a nação, no qual o Brasil se envolveu muito na política interna dos seus vizinhos do cone sul, culminando no conflito armado no Paraguai. (BALTHAZAR, 2005, p.93)

Para saciar estas necessidades fiscais, o Império criou tributos (e as províncias também) sobre novos fatos geradores, instituiu alíquotas adicionais sobre tributos já existentes, abusou da bitributação, mas, sobretudo, buscou taxar as principais atividades econômicas da sociedade brasileira: a exportação, a importação e o consumo de bens não-duráveis.

Mas o Império, apesar do seu desequilíbrio fiscal, deixou de tributar a renda e a propriedade territorial rural, se abstendo de impor taxação sobre a acumulação de riqueza da elite brasileira.

Estudar o direito do Império do Brasil é assaz interessante pelo fato de que nos fornece as perspectivas da sociedade brasileira que estava, após a independência, tentando construir uma nação continental, já sendo possível perceber o nascer de algumas das estruturas do Brasil contemporâneo.

No estudo que será realizado, por óbvio, tenta-se sistematizar o conhecimento à luz de algumas das categorias lógicas do direito tributário contemporâneo, para que o leitor possa compreender o direito vigente naquele período tentando-se adentrar na essência das normas tributárias.

Assim como nas obras de direito romano (CRETELLA JUNIOR, 1995, p. 19-20), faz-se uma tentativa de, didaticamente, apresentar aos operadores do direito as facetas de como era a estrutura e a aplicação do direito em uma sociedade que existiu há quase dois séculos.

Evidente que não se busca cair no erro do anacronismo, mas apenas utilizar as ferramentas dadas pela moderna ciência do estudo do Direito Tributário para entender a realidade passada, a fim de compreender as normas então vigentes, segundo os valores da sociedade brasileira do século XIX.

Este passo é necessário, pois, por óbvio, não seria possível ao autor, simplesmente, estudar o direito do passado, com os olhos do homem daquele contexto histórico, já que tanto o leitor deste trabalho quanto o seu autor integram a sociedade brasileira do início do século XXI, ou seja, pertencem ao presente.

Por esta razão, ao longo desta pequena obra, buscou-se estudar o Direito imperial do Brasil à luz das interpretações do Marquês de São Vicente, que talvez possa ser considerado o grande Constitucionalista do período imperial. A visão e a compreensão deste autor acerca do ordenamento jurídico serviu de ponto de partida para nossas reflexões.

Não obstante esta forma de fazer a leitura da legislação, não nos furtamos a tentar adequar os institutos tributários com a tecnologia lingüística do direto contemporâneo, sobretudo a fim de decifrar as disposições legais estabelecidas. Deve-se frisar que o estudo da legislação tributária imperial, com a utilização de alguns dos arquétipos construídos pala doutrina de direito tributário contemporâneo, não é algo estranho ao estudo de temas relacionados com a história do direito

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Este mesmo método é utilizado pelos autores quando se busca a compreensão do direito romano (CORREIA e SCIASCIA, 1996, p. 32): realiza-se a divisão da matéria em uma parte geral e especial, analisando os institutos civilísticos romanos, sob os parâmetros dados pela codificação do direito civil moderno, apesar de o direito romano clássico (aproximadamente, de 140 a.C, com a criação da Lei Aebutia, até o término do reinado de Diocleciano, em 305 d.C.) não ter construído nenhum código ou instrumento legal similar, já que, neste período, surgiram duas ordens distintas: o ius civile (direito aplicável apenas aos cidadãos romanos) e o ius honorarium (criado pela atuação dos pretores peregrinos, com o advento da Lei Aebutia, os quais eram magistrados que dirimiam os conflitos entre gentios, ou entre estes e os romanos). (ALVES, 1995, p. 69-70)

Feitas estas considerações iniciais, convida-se o leitor a vislumbrar o nascimento do Império do Brasil, com a outorga da Constituição de 1824.

1 O NASCIMENTO DO IMPÉRIO DO BRASIL

1.1 A INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DE UMA NAÇÃO

O Império do Brasil não nasceu pronto e acabado: trata-se de um projeto político das elites das províncias do sul ao qual se associou a figura do Imperador D. Pedro I.

A proclamação da independência por sua majestade imperial, um ato derivado, sem dúvidas, da sua impetuosidade (LUSTOSA, 2006, p.152-153) não foi suficiente, por si só, para promover a adesão das demais capitanias (e futuras províncias) do então restante Reino do Brasil, sobretudo no norte da América lusitana.

Não existia uma nação brasileira, não existia um Estado brasileiro.

Em verdade, ao longo da história colonial, a metrópole lusitana buscou fazer com que os principais portos e zonas econômicas tivessem laços imediatos apenas com Portugal e não entre si. Pode-se afirmar que os principais pólos econômicos da colônia brasileira estariam mais interligados ao contexto de exploração econômica do Atlântico sul (Luanda, Guiné etc.), devido ao intercâmbio escravista, do que de regiões interioranas do Brasil (ALENCASTRO, 2000, p.9).

Nas palavras de MELLO (2004, p.18): “Como observava Horace Say, ao tempo da Independência, o Brasil era apenas “a designação genérica das possessões portuguesas na América do Sul”, não existindo “por assim dizer unidade brasileira”.

A inexistência de uma nação brasileira, de um país denominado de Brasil, fica mais claro ainda quando se vislumbra o surgimento da Confederação do Equador (1824), quando as capitanias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e do Ceará não compactuaram com o projeto político de criação do Império do Brasil, que faria com que estas passassem a se subordinar à Corte imperial, no Rio de Janeiro.

Entretanto, a Corte necessitava da Bahia, de Pernambuco e das demais capitanias do norte, tendo em vista que estas ricas regiões poderiam financiar tanto a independência da América portuguesa, quanto os projetos políticos de D. Pedro I e a guerra na província Cisplatina. (MELLO, 1999, p. 249-250)

1.2 A HERANÇA LEGISLATIVA COLONIAL

O Império do Brasil não herdou apenas a estrutura econômico-social vigente durante o seu período de vínculo para com Portugal colônia, mas também a legislação metropolitana portuguesa que foi recepcionada pela Lei de 20 de outubro de 1823:

Art. 1.º As Ordenações, Leis, Regimentos, Avaras, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelíssima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brazil, em quanto reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negócios do interior deste Império, emquanto se não organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas.

O Império do Brasil, no seu nascedouro, recepcionou a legislação portuguesa inclusive a legislação tributária da metrópole.


Por esta razão os mesmos defeitos que constavam no sistema de tributação da metrópole portuguesa, no que se refere a sua lei vigente no Brasil, também assolavam a estrutura tributária brasileira quando da ocorrência da independência do Brasil:

[…] a Independência não significava um rompimento com a estrutura patrimonialista, tendo em vista o interesse de determinados setores de manter o status quo. Desta forma, quanto aos tributos, herdou-se a frágil estrutura colonial, embora a mudança na excessiva carga tributária constasse como um dos objetivos do movimento patriótico. (BALTHAZAR, 2005, p.78)

D. Pedro I proclamou expressamente que uma das razões para independência era a necessidade de um novo regime de tributação, diferente do existente na metrópole, que não asfixiasse a vida econômica do Brasil:

[…] grande dose de verdade havia na afirmativa que o então príncipe regente constitucional fizera, dias antes do grito do Ipiranga, de que Portugal, em suas relações com a antiga colônia, queria “que os brasileiros pagassem até o ar que respiravam e a terra que pisavam. (ELLIS, 1995, p. 62)

O então Príncipe regente alardeava os seus desejos:

[…] os brasileiros teriam um sistema de impostos que respeitaria “os suores da agricultura, os trabalhos da indústria, os perigos da navegação e a liberdade do comércio”, sistema esse tão “claro e harmonioso” que facilitaria “o emprego e a circulação dos cabedais”, desvendando “o escuro labirinto das finanças”, que não permitia ao cidadão “lobrigar o rosto do emprego que se dava às rendas da Nação”. (ELLIS, 1995, p.62)

Evidente que tal promessa não foi cumprida, tendo em vista a impossibilidade de reforma profunda da legislação lusitana que havia sido recepcionada, pelos sucessivos déficits fiscais e pelos tratados internacionais que fixavam as alíquotas do imposto de importação em patamares insignificantes.

O brilhante Procurador da Fazenda Nacional Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, ao analisar a tributação no período joanino, expõe as razões dadas pelo príncipe regente (o futuro rei D. João VI) para a diminuição da alíquota do imposto de importação em face de mercadorias portuguesas (Decreto de 11 de junho de 1808):

Sendo conveniente ao bem público remover todos os embaraços que possam tolher o livre giro e a circulação do comércio: e tendo consideração ao estado de abatimento, em nome de que presente se acha o nacional, interrompido pelos conhecidos estorvos e atuais circunstâncias da Europa: desejando animá-lo e promovê-lo em benefício da causa pública, pelos proveitos, que lhe resultam de se aumentarem os cabedais da Nação por meio de um maior número de trocas e transações mercantis, e de se enriquecerem os meus fiéis vassalos que se dão a este ramo de prosperidade pública e que muito pretendo favorecer como uma das classes úteis ao Estado: e querendo outrossim aumentar a navegação que prospere a marinha mercantil, e com ela a de guerra, necessária para a defesa dos meus Estados e Domínios: sou servido ordenar que todas as fazendas e mercadorias que forem próprias dos meus vassalos, e por sua conta carregadas em embarcações nacionais, e entrarem nas Alfândegas do Brasil, pagarem por direito de entrada dezesseis por cento somente. (GODOY, 2008, p.31)

Tendo em vista este desequilíbrio estrutural na legislação fiscal, o Império do Brasil nasceu tendendo a não conseguir organizar seu orçamento, já que, além das inúmeras obrigações político-militares que teve de assumir, em face do rompimento com a metrópole lusitana, ainda recepcionou tratados internacionais que lhe impediam de tributar, de modo significativo, a importação de mercadorias, então a mais significativa atividade econômica do país.

1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1824: A CONSTRUÇÃO DE UM ESTADO UNITÁRIO

1.3.1 A DISSOLUÇÃO DA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DE 1823

Pelo Decreto de 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que havia sido convocada, pelo próprio soberano, pelo Decreto de 03 de junho de 1822.

Segundo o nosso Imperador, tal fato se deu porque este órgão (fundante do próprio Estado brasileiro) teria perjurado o solene juramento de defender a integridade do Império, sua independência e a dinastia de D. Pedro I. Tal ato extremo, segundo o soberano, deu-se para a salvação do Império, como consta no referido instrumento normativo.

Observe-se que Frei Caneca, na edição natalina do periódico Typhis Pernambucano, de 25 de dezembro de 1823, demonstra que as decisões políticas cristalizadas no título 1º, arts. 1, 2 e 3, da abortada Constituição de 1823, não agrediam o juramento feito pelos constituintes de defender a integridade do Império, sua independência e a dinastia de D. Pedro I. (CANECA, 2001, p.309)

Pela Proclamação de 13 de novembro de 1823, S. Majestade Imperial comunicou ao povo brasileiro, que a Assembléia Constituinte de 1823 foi dissolvida e, em seguida, pelo Manifesto de 16 de novembro de 1823, explicitou as razões da prática de tal ato: o “fel da desconfiança”, que elaboravam planos ocultos para semear a discórdia no Brasil, ameaçando o futuro e a própria existência da Nação.

Em 17 de novembro do mesmo ano (de 1823), também por meio de Decreto, o Defensor Perpétuo do Brasil ratificou mandou proceder à realização de eleições para composição de nova Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que como se sabe, nunca promulgou nova Constituição.

Coube ao Conselho de Estado, sobretudo pelo trabalho de José Joaquim Carneiro de Campos (o futuro Marquês de Caravelas, integrante da futura regência trina provisória, constituída em 07 de abril de 1831), influenciado pelo pensamento de Benjamin Constant, preparar um anteprojeto de Constituição, sobre os escombros dos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1823.

Este anteprojeto foi apresentado à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, que, ao declarar que o seu texto era imelhorável, apresentou respectiva proposta de juramento (em 08 de janeiro de 1824), para coincidir com o Dia do Fico.

O Imperador rejeitou a proposta e fixou o juramento da Constituição para 25 de março daquele ano (1824). (MELLO, 2004, p.169)

Ao povo brasileiro, por meio da Carta de Lei de 25 de março de 1824, o Imperador do Brasil apresentou o teor da Constituição do Império do Brasil que deveria ser jurada por ele e pelos representantes das Câmaras (advindas de diversas províncias), em local e data já fixados: no dia 25.03.1824, na Câmara do Rio de Janeiro, como consta no Decreto de 13 de março de 1824.


É interessante observar que o Imperador buscou legitimidade para a outorga da sua carta política não em uma Assembléia Constituinte (ou Legislativa), mas nas Câmaras municipais, a começar, pela Câmara do Rio de Janeiro, o que era de se estranhar, já que tais órgãos não eram representantes do povo, mas do próprio Rei, tendo em vista a sua natureza jurídica oriunda da legislação metropolitana portuguesa:

No direito português, o poder das Câmaras, como o das antigas Cortes, não advinha da nação mas do Rei, pois uma e outras „não são representantes dos povos; representam sim pelos povos. A Câmara do Rio, […], tomava-se pelo Senado romano e decidia pelo Brasil, como havia feito em 1822 o Conselho de Procuradores, que tampouco tivera competência para aclamar d. Pedro fosse Defensor perpétuo, fosse Imperador. [grifos do autor] (MELLO, 2004, p.170)

Portanto, por ato do Defensor Perpétuo do Brasil, foi outorgada a Constituição de 1824.

1.3.2 O ESTADO UNITÁRIO

A natureza jurídica do Império do Brasil era a de um Estado Unitário (LOPES, 2002, p.313), resultante de uma proclamada: “associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se opponha á sua Independencia. (art. 1, da Constituição de 1824)”.

As províncias eram órgãos administrativos decorrentes da desconcentração do órgão central, sendo, portanto, uma extensão deste, que tinham por atribuição a gestão das regiões do Império, na forma da Lei (arts. 165 e 166 da Constituição de 1824)

Tais Províncias, por serem órgãos responsáveis pela gestão de parcela do território da Nação, poderiam ser alteradas, isto é, a sua amplitude territorial poderia ser modificada sem consulta aos habitantes destas regiões: “art. 2. O seu territorio é dividido em Provincias na forma em que actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado.”.

Como exemplo, menciona-se o Decreto de 07 de julho de 1824, da lavra de Sua Majestade Imperial, que, após parecer do Conselho de Estado (art. 137 da Constituição de 1824), “desligou” da província de Pernambuco a comarca do Rio de São Francisco.

A Constituição que em cada Província seria assegurado aos cidadãos o direito de intervir nos seus negócios, tendo em vista os interesses peculiares destas regiões.

Tal direito deveria ser exercitado pelos Conselhos Gerais de cada Província (art. 71 e 72 da Constituição de 1824), cujas resoluções deveriam ser submetidas ao Poder Executivo (art. 77 da Constituição de 1824), não podendo estes órgãos deliberativos dispor sobre: assuntos de interesse geral; ajustes interprovinciais; criação de imposições (tributos); ou execução das leis (art. 83 da Constituição de 1824).

1.4 A REFORMA DA CONSTITUIÇÃO DE 1824: O ATO ADICIONAL DE 1834

1.4.1 O PROCEDIMENTO DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO DE 1824

A Constituição de 1824 estabelecia que durante determinado período (04 anos) ela seria imutável (MORAES, 2003, p.39), podendo a partir daí ser reformada (art. 174 da Constituição de 1824): “Se passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se conhecer, que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem na Camara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte delles”.

Apesar desta imutabilidade transitória, a Constituição de 1824 poderia ser classificada como uma constituição semi-rígida (ou semi-flexível): isto é, parte do seu texto poderia ser alterado pelo procedimento das leis ordinárias. (MORAES, 2003, p.39)

A Constituição declarava que existiam determinados temas contidos no seu corpo que eram materialmente constitucionais: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos” (art. 178, 1ª parte, da Constituição de 1824).

Tais normas que dispunham sobre tais temas representavam o núcleo constitucional desta Charta e só poderiam ser alteradas sob o rito previsto nos seus arts. 175, 176 e 177.

Todas as demais matérias eram consideradas apenas formalmente constitucionais e, portanto, não se submetiam a este rito especial de reforma: “Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinarias.” (art. 178, 2ª parte, da Constituição de 1824).

1.4.2 A ABDICAÇÃO DE D. PEDRO I

Por uma ironia do destino, o reinado do Defensor Perpétuo do Brasil D. Pedro I se encerrou com a sua abdicação, em favor de seu filho, às 10 horas, de 07 de abril de 1831, praticado no Senado brasileiro, onde se encontravam presentes 26 senadores e 30 deputados.

Além de ter ocorrido durante as férias parlamentares (art. 18 da Constituição de 1824) (VIANNA, 1967, p.104), a abdicação trazia um problema em si: não existia previsão de a Assembléia Geral eleger um Regente para esta situação (art. 15, II, da Constituição de 1824), pois a Charta política apenas elencava tal possibilidade em caso de falecimento do soberano, se não fosse possível a coroação

do seu sucessor (art. 47, IV c/c arts. 121 e 122, da Constituição de 1824).

Ou seja, a sucessão deveria se dar apenas na forma do art. 117 da Charta imperial, o que se apresentava como outro problema.

O Regente deveria ser o parente mais próximo do soberano com mais de 25 anos e, se não houvesse, deveria ser instituída uma Regência provisória composta por dois Ministros (Estado e Justiça) e dois dos mais antigos membros do Conselho de Estado, sob a presidência da Imperatriz viúva (e, na sua ausência, pelo mais antigo membro do Conselho de Estado). Esta Regência provisória se manteria até a escolha da Regência permanente pela Assembléia Geral, na forma do art. 123 da Constituição de 1824.

Entretanto, os fatos do turbulento dia de 07 de abril de 1831 atropelaram as disposições constitucionais, já que a Imperatriz havia falecido (em 11.12.1826), não existiam outros herdeiros maiores de 25 anos e o Imperador, que deveria ter sido o Defensor Perpétuo do Brasil, havia subitamente abdicado: “A regulamentação constitucional, como se vê, pressupunha situações normais, enquanto o que acontecera naquele tumultuado 7 de abril fora anormalíssimo, excepcional, reclamando, desta sorte, tratamento diferente”. (PORTO, 1981, p.10)

No mesmo ato de abdicação foi constituída provisoriamente uma Regência Trina, composta pelos seguintes membros: Brigadeiro Francisco de Lima e Silva, José Joaquim Carneiro de Campos (o Marques de Caravelas) e pelo Senador Nicolau Pereira do Santos Vergueiro.

Iniciava-se o período regencial no Brasil e com ele aguçaram-se os debates sobre a reforma constitucional.


1.4.3 O ADVENTO DO ATO ADICIONAL DE 1834

Com o advento da era regencial, a pressão por maior autonomia provincial se intensificou, culminando na edição de uma verdadeira tentativa de revolução constitucional: o Ato Adicional de 1834.

O Ato Adicional de 1834 que instituiu a Regência Una, foi o resultado de um processo de negociação que se iniciara em 1831 e que concedeu autonomia às Províncias, estabelecendo a existência nelas de dois centros de poder: a Assembléia Legislativa – que substituiu os Conselhos Gerais, e a presidência provincial. (DOLHNIKOFF, 2005, p. 93 e 97)

Nas palavras do Padre FEIJÓ, Regente do Brasil, vislumbrava-se os limites da autonomia político-legislativa concedida às províncias:

Somente os negócios gerais, quais os direitos e obrigações dos cidadãos, os códigos criminal e de processo, o emprego das forças e do dinheiro foram excluídos da ação das assembléias provinciais. Hoje as províncias têm em seu meio a potência necessária para promover todos os melhoramentos materiais e morais. A seus filhos está encarregada a espinhosa tarefas, mas honrosa, de fazer desenvolver os recursos necessários a seu bem ser. (apud DOLHNIKOFF, 2005, p. 100)

Ou seja, a Constituição do Império foi alterada de tal forma que já se nota o despontar do embrião da futura federação brasileira.

O Ato Adicional de 1834, a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, foi votado observando os ritos previstos para a reforma da Constituição (DOLHNIKOFF, 2005, p. 97), bem como ao disposto na Lei de 12 de outubro de 1832, que determina que os eleitores, ao elegerem os membros da Câmara dos Deputados, para legislatura seguinte, lhes concederiam poderes para a reforma de inúmeros dispositivos da Constituição Imperial.

Devido a problemas gerados pela aplicação de normas jurídicas contidas no Ato Adicional de 1834, foi editado uma Lei Interpretativa deste diploma, Lei nº 105, de 12 de maio de 1840, restringindo os excessos desta experiência semi-federalista ocorrida durante o período regencial (DOLHNIKOFF, 2005, p. 125), inclusive com a possibilidade revogação de leis provinciais, por ato praticado pelo Poder Legislativo Geral (art. 8º), se afrontarem as interpretações autênticas conferidas por este diploma legal; bem como a faculdade de o presidente da província negar sanção a projeto de lei local que venha contrariar a Constituição do Império (art. 7º da Lei Interpretativa combinado com o art. 16 do Ato Adicional de 1834). (VIANNA, 1967, p.111)

Evidente que a história legislativa imperial não se encerra neste momento, mas a partir daqui o leitor já possui subsídios para a compreensão dos temas que serão a seguir estudados.

Nos capítulos seguintes pretende-se adentrar no estudo do Direito Tributário no Império do Brasil.

2 A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

2.1 A CONSTITUIÇÃO E O PODER DE TRIBUTAR

A partir da ascensão da doutrina constitucionalista (MORAES, 2003, p.35), no século XVIII, o poder de tributar, assim como qualquer espécie de poder, tem a sua origem no Povo, que se apresenta como o seu titular.

O Povo, por meio de seus representantes, reunido em assembléia constituinte, poderá instituir um Estado, por meio de uma Constituição:

A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais ser exercidas. Ela regula procedimentos de vencimento d conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal. Ela cria as bases e normaliza traços fundamentais da ordem total jurídica. Em tudo, ela é “o plano estrutural fundamental, orientado por determinados princípios de sentido, para a configuração jurídica de uma coletividade.” (HESSE, 1998, p.37)

Pelo fenômeno do constitucionalismo, o Povo, por meio da Constituição por ele proclamada, edificaria o Estado, delegaria poderes às entidades políticas do Estado, repartiria atribuições entre os órgãos estatais, criaria limites e os respectivos instrumentos para assegurar as liberdades individuais.

Dentro da perspectiva da delegação de poderes e a sua repartição entre os órgãos estatais, pode-se vislumbrar um dos fundamentos do Direito Tributário: o exercício da competência tributária.

2.2 O PODER DE TRIBUTAR E A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA NA CHARTA MAGNA DE 1824

O Direito Tributário, como nós conhecemos, também só pode ser compreendido a partir dos eventos das revoluções burguesas do século XVIII que ensejaram o surgimento do fenômeno do constitucionalismo.

Pode-se afirmar, sem muitos receios, que um dos marcos, do direito tributário, foi a revolta popular contra a Lei do Selo de 22 de março de 1765, que impunha a obrigatoriedade de obtenção de selo público em todos os contratos, jornais e cartazes, mediante pagamento de taxa nas colônias americanas da Inglaterra. A Declaração dos colonos, oferecida ao rei Jorge III, se inspirou na idéia de que o Parlamento inglês não poderia impor uma tributação à sociedade (da colônia), pelo simples fato de que neste órgão legislativo não existiam representantes populares das colônias americanas, as quais sofreriam a imposição fiscal: not tributation without representation. A lei foi revogada em 1766.

Mais adiante, como o Parlamento metropolitano inglês pretendia instituir tributação adicional sobre o chá que seria exportado desta colônia para a metrópole, a comunidade de Boston reputou por injusta e abusiva a incidência deste tributo, o qual prejudicaria o seu comércio, bem como a vida econômica daquela sociedade: estava armado o palco para a deflagração da revolta, que culminou com o Massacre de Boston, em 5 de maio de 1770. (KERNAL, 2008, p. 77-79).

O tributo passou a ser compreendido como uma exceção a dois direitos fundamentais, o de livre obrigar-se e o de propriedade: ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude lei (art. 179, I, da Constituição de 1824) e é assegurado a todos o direito de possui patrimônio (art. 179, XXII, da Constituição de 1824).

Ou seja, o indivíduo só estaria obrigado a pagar algo, contra a sua vontade, transferindo parte do seu patrimônio, se a lei (em sentido formal) assim o declarasse.


A Charta Magna de 1824 incorporava estes princípios, ao estabelecer, em seu art. 36, I, que era da competência privativa da Câmara dos Deputados, cujos representantes eram eleitos (para mandato provisório) pelo voto dos cidadãos habilitados (art. 35 e 90 da Constituição de 1824), a instauração do processo legislativo sobre impostos:

Os impostos e o recrutamento são dois gravames que pesam muito sobre os povos, são dois graves sacrifícios do trabalho ou propriedade, do sangue e da liberdade, são dois assuntos em que a nação demanda toda a poupança, meditação e garantias.

[…]

Se a Câmara rejeita a medida, a rejeição é peremptória, pois que o Senado não pode propô-la; se adota, os termos da adoção vêm já acompanhados do juízo expressado, das circunstâncias dos debates, de uma influência moral ou predomínio importante, que gera impressão sobre a opinião pública e que deve ser bem considerado pelo Senado, que antes disso não é chamado a manifestar suas idéias. Acresce que , por uma conseqüência lógica e rigorosa, o senado não pode mesmo emendar tais projetos no fim de aumentar por forma alguma o sacrifício do imposto […], ou de substituir a contribuição por outra mais onerosa, pois que seria exercer uma iniciativa nessa parte. Seu direito limita-se a aprovar, rejeitar ou emendar somente no sentido de diminuir o peso ou duração desses gravames

[…]

Tal é o privilégio que a Câmara dos Comuns mais zela na Inglaterra; ela não tolera que nenhuma medida que tem relação direta ou estreita com money-bill possa ser iniciada na Câmara dos Lordes. (SÃO VICENTE, 2002, p. 172-173)

Este poder conferido à Câmara dos Deputados se justificava, em verdade, pela natureza da composição deste órgão, no qual se faziam presentes os mandatários que representavam o Povo, de modo mais imediato:

Os deputados são os mandatários, os representantes os mais imediatos e ligados com a nação, com os povos. Tema a missão sagrada de expressar as idéias e desejos destes, de defender suas liberdades,, poupar os seus sacrifícios, servir de barreira a mais forte contra os abusos e invasões do poder, em suma, de substituir na Assembléia Geral a presença dessas frações sociais e da nação inteira cumpre pois que sejam escolhidos e eleitos por aqueles que lhes cometem tão importante mandato, cumpre que dependam só e unicamente daqueles de cujas idéias, necessidades e interesses, de cujo bem ser e progresso têm o destino de ser órgãos imediatos e fiéis. (SÃO VICENTE, 2002, p. 112)

Portanto, apesar do silêncio (e concordância tácita) sobre a escravidão (art. 94, II), apesar da manutenção do padroado (art. 102, II e XIV) et cetera, a Constituição de 1824 estava (formalmente) em plena sintonia com os baluartes liberais do século XIX, como vangloria LIMA:

A monarquia no Brasil achava-se estreitamente ligada ao sistema parlamentar e foi, até, no século XIX, sem falar na Inglaterra, alma mater do regime representativo e não obstante defeitos procedentes das deficiências políticas do meio, uma das expressões mais legítimas e pode mesmo dizer-se mais felizes. (LIMA, 1962, p. 371)

A competência tributária, portanto, seria o poder delegado pela Constituição para que órgãos do Estado pudessem, mediante Lei, instituir tributos. O exercício de tal competência, em última análise, pressupõe que aquele órgão teria, também, atribuição legiferante, já que o tributo deveria ser instituído mediante Lei em sentido formal (AMARO, 2005, p. 93):

Após a Independência constitui-se, no Brasil, o estado fiscal. A principal característica deste estado consiste em um “novo perfil da receita pública, que passou a se fundar nos empréstimos, autorizados e garantidos pelo legislativo, e principalmente nos tributos” em vez de estar consubstanciada nos ingressos originários do patrimônio do príncipe. Além disso, o tributo deixa de ser cobrado transitoriamente, vinculado a uma determinada necessidade conjuntural (ainda que, às vezes, continuasse sendo cobrado mesmo quando não existia mais necessidade, como se verificou no caso de dotes nupciais), para ser cobrado permanentemente. (BALTHAZAR, 2005, p.79)

A Lei (em sentido formal) é espécie legislativa que, por meio de determinado processo realizado pelos representantes políticos (art. 52 usque art. 70 da Constituição de 1824), a vontade do Estado fica cristalizada. A Lei, portanto, seria um instrumento de inserção, no ordenamento jurídico, daquelas normas que o Estado entende por criar, após a observância de determinado procedimento.

Em outras palavras, a lei é fruto da vontade popular, que, por meio de determinado procedimento, e concretiza as decisões políticas tomadas pelos mandatários do povo (deputados, senadores etc.), inserindo novas normas no ordenamento jurídico, permitindo que o povo se governe.

2.3 A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA NO IMPÉRIO DO BRASIL

2.3.1 A CONCENTRAÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Como exposto, a Constituição de 1824 instituiu um Estado Unitário, em que as províncias não gozavam de autonomia, não participavam do exercício do poder político, o qual estava concentrado no ente central, que representava a Nação.

Se não existia repartição deste poder, sendo as Províncias mera extensão do ente político central, é evidente que não faria sentido que o legislador constituinte as dotasse de parcela do poder de tributar.

De fato, os Conselhos Gerais, que eram órgãos colegiados de deliberação sobre assuntos provinciais (art. 71 da Constituição de 1824), foram expressamente proibidos de instituir tributos (ELLIS, 1995, p.64):

Art. 83. Não se podem propôr, nem deliberar nestes Conselhos Projectos.

I. Sobre interesses geraes da Nação.

II. Sobre quaesquer ajustes de umas com outras Provincias.

III. Sobre imposições, cuja iniciativa é da competencia particular da Camara dos Deputados.

IV. Sobre execução de Leis, devendo porém dirigir a esse respeito representações motivadas á Assembléa Geral, e ao Poder Executivo conjunctamente.

Somente a Câmara dos Deputados detinha a atribuição privativa para iniciar os debates sobre a instituição de tributos, na forma do art. 36, I, da Charta imperial, logo, nenhum outro órgão estatal (central ou provincial) poderia iniciar o processo legislativo para a criação da lei tributária.


Note-se que a deliberação e a aprovação de uma lei (inclusive a tributária) era da atribuição da Assembléia Geral (arts. 13 e 15, VIII, da Constituição imperial), a qual era composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (art. 14, da Constituição imperial).

Apesar de a atribuição para instituir a Lei tributária residir na Assembléia Geral, o exercício da iniciativa para apreciação de propostas de criação de lei tributária partia, necessariamente, da Câmara dos Deputados.

O Poder Legislativo, consoante a Charta Magna imperial, era delegado à Assembléia Geral, com a sanção do Imperador (art. 13 da Constituição imperial), isto é, o Imperador participava do exercício deste Poder, como se infere da interpretação dos arts. 64 a 70 da Constituição imperial. (SÃO VICENTE, 2002, p.111)

2.3.2 PROBLEMAS DECORRENTES DA CONCENTRAÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Tendo em vista a concentração da competência tributária no Ente central, as Províncias ficaram na dependência de decisões políticas de repasses do tesouro público, algo que não ocorria com freqüência, tendo em vista o déficit fiscal crônico que assolava o governo imperial (LIMA, 1962, p.452) e que praticamente impedia a realização de significativas transferências.

Ademais, como exposto, o Império do Brasil recepcionou a legislação tributária lusitana e as Províncias, tendo em vista a penúria fiscal crônica, além de continuarem a cobrar tributos antigos, em flagrante agressão à Charta Magna, instituíram, dissimuladamente, novos tributos, inclusive sobre as mesmas hipóteses de incidência de tributos gerais (isto é, instituídos pelo ente central) (BALTHAZAR, 2005, p.82): “A Constituição de 1824 não resolveu o problema de competências tributárias. Alguns impostos eram cobrados várias vezes sobre o mesmo gênero.” (BALTHAZAR, 2005, p.81)

A situação se agravou a ponto que, em 1835, o Ministro da Fazenda Miguel Calmon du Pin e Almeida, por meio da Circular, de 17 de dezembro de 1827 (decisão nº 126), veio a exigir que as Juntas de arrecadação, nas províncias, elaborassem uma lista completa e circunstanciada de todos os “tributos e impostos”, com a indicação da denominação, da data da criação, do ato normativo que o instituiu, do valor arrecadado líquido (nos últimos três anos), bem como a indicação da despesa pública e do estado atual da dívida ativa da Nação, naquela Província.

Dois dias depois, por meio da Circular, de 19 de dezembro de 1827 (decisão nº 129), o mesmo Ministro da Fazenda exigiu que os presidentes das províncias informassem, minuciosamente os impostos “mais gravosos aos contribuintes e por isso mais nocivos ao desenvolvimento da riqueza pública”, de modo a ser possível determinar quais poderiam ser arrecadados diretamente pela Fazenda pública e quais poderiam ser arrematados por contratos. Requereu também informações sobre eventuais abusos quando da cobrança e fiscalização dos tributos e como corrigir estes excessos, tudo isto a fim de diminuir as despesas e aumentar as receitas.

Com o advento da primeira Lei orçamentária brasileira, a Lei de 14 de novembro de 1827, buscou-se organizar a precária relação entre despesas e receitas.

Apesar desta lei expressamente se referir ao Tesouro público da Corte e da Província do Rio de Janeiro, ela também conferia parâmetros para as demais províncias.

Note-se que as províncias deveriam concorrer para custear as despesas gerais, sendo que seus eventuais saldos existentes deveriam servir para o financiamento do governo central (art. 4º), tendo em vista o déficit público existente (art. 5º). Foram mantidos em vigor, para o exercício de 1828, todos os tributos que estavam sendo exigidos (art. 6º).

2.3.3 O ATO ADICIONAL DE 1834: O SURGIMENTO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PROVINCIAL E A GUERRA FISCAL

2.3.3.1 O ATO ADICIONAL DE 1834.

O Ato Adicional de 1834, a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, transformou os Conselhos Gerais em Assembléias Legislativas (art. 1º) e delegou a estes órgãos diversas competências legislativas (art. 10), dentre elas as de fixar as “despesas municipais e provinciais e os impostos para elas necessários, contanto que não prejudiquem as imposições gerais do Estado”.

Recebendo esta competência legislativa, bastante genérica, o legislador, no art. 12, do mesmo Ato Adicional, também estabeleceu outro limite ao exercício do poder de tributar por aqueles órgãos legislativos provinciais: “As Assembléias Provinciais não poderão legislar sobre impostos de importação […]”.

Com o advento deste Ato Adicional ocorreu que as Províncias receberam poderes para instituir quaisquer tributos, desde que não prejudicassem as imposições gerais do Estado e que não se confundissem com os impostos de importação. (SÃO VICENTE, 2002, p.252)

2.3.3.2 INVASÕES DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA.

Evidente que estas vedações genéricas não bastavam para impedir os excessos dos legisladores provinciais, que reiteradamente invadiam a competência tributária do ente central:

É que as Assembléias Provinciais, contrariando proibição expressa da lei de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional), continuavam a legislar sobre importação e exportação, bem como sobre outras contribuições […] “A circulação dos produtos da indústria nacional é gravada em algumas Províncias com imposições quase proibitivas; em outras os próprios gêneros que já pagaram direitos de importação são novamente tributados, segundo a sua natureza e qualidade, com o intuito de proteger algumas fábricas estabelecidas nas ditas Províncias”. Impunha-se, assim, uma decisão sobre o assunto, pois, do contrário, não só seria perturbado o sistema fiscal, “como prejudicada profundamente a riqueza pública.” (SÃO VICENTE, 2002, p.252)

Em verdade, ao se dotar às províncias de competência tributária sem se estruturar um sistema tributário nacional, que de modo eficaz impedisse os conflitos no exercício deste poder de tributar, criou-se uma grande guerra fiscal no Império do Brasil, pois as províncias, em busca de novas fontes de receitas, instituíam muitas vezes adicionais aos impostos gerais ou então estabeleciam dissimuladamente impostos de importação ou de exportação (o que era vedado), ou tributavam o comércio interprovincial.

A razão para este fenômeno era, sem dúvidas, a escassez de fontes significativas de receitas provinciais:

Dois anos depois, Sales Tôrres Homem acentuava, também, e igualmente na posição de ministro da Fazenda, as distorções causadas pela exorbitância legislativa das Assembléias Provinciais, em matéria de impostos, com grave reflexo nas atividades do país. Mas esse era, sem dúvida, o resultado, que se agravava com o decorrer do tempo, do excessivo poder de tributar que detinha o governo central, em detrimento das províncias, as quais, na falta de recursos, exigidos pela evolução de sua própria economia, não viam outro meio para obtê-los senão desrespeitar os limites fiscais que lhes haviam sido traçados. (ELLIS, 1995, p.73)


2.3.3.3 CRISE FISCAL

Esta falta de recursos, justificada pela impossibilidade de criação de tributos, que pudessem incidir sobre relevantes fatos econômicos se agrava pelo fato que a sociedade brasileira do século XIX continuava a ter por principais atividades econômicas aquelas relacionadas com a monocultura agrícola, fundada no trabalho escravo, bem como, e a exportação destes produtos primários:

[…] podemos dizer que o Período Imperial se assemelhou ao Período Colonial em três aspectos: a economia do Brasil conservava-se monocultora, agro-exportadora e escravocrata. Outro ponto em comum residiu na importância dada ao imposto de importação, alterado conforme as necessidades e anseios protecionistas da Coroa. (BALTHAZAR, 2005, p.101)

As Províncias, portanto, eram praticamente compelidas a invadir a competência tributária do ente central, em busca de fontes de financiamento, tendo em vista que significativamente muito pouco restava para a incidência de eventuais tributos locais: “Na área provincial, como se viu, os governos locais, premidos pela falta de meios, eram levados a recorrer com freqüência, a impostos que conflitavam, ostensivamente, com sua reduzida competência tributária”. (BALTHAZAR, 2005, p.101).

Este conflito ficava mais evidente quando se tinha em conta que, antes mesmo do advento do Ato Adicional de 1834, por meio de leis ordinárias, o Império discriminou as competências tributárias do ente central e das Províncias, classificando-as em Receitas Gerais e Receitas Provinciais.

2.3.3.4 RECEITAS GERAIS E RECEITAS PROVINCIAIS: A REPARTIÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

O conceito de Receita Geral e de Receita Provincial foi inicialmente previsto na Lei nº 58, de 08 de outubro de 1833, que era a lei orçamentária para o exercício financeiro que foi de 1º de julho de 1834 a 30 de junho de 1835.

Inicialmente, como era de praxe nas leis orçamentárias imperiais, determinou-se que todos os impostos que haviam sido instituídos pela lei orçamentária de 24.10.1832 continuariam em vigor naquele exercício financeiro (art. 30, Lei nº 58, de 08 de outubro de 1833).

Por Rendas públicas integrantes da Receita geral (art. 36, da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834), enquanto lei geral não viesse a dispor especificamente sobre o tema, consideravam-se todos as receitas (inclusive os impostos) a que se referiam a Lei nº 58, de 08 de outubro de 1833, bem como os impostos provinciais da Corte e do Município do Rio de Janeiro.

Ou seja, a especificação das receitas gerais era discriminada de forma taxativa, numerus clausus, sendo que na Corte e no Município do Rio de Janeiro havia uma competência tributária cumulativa do ente central (art. 36, §1º, da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834) para cobrar os impostos provinciais, com exceção de alguns impostos que eram de competência da Câmara Municipal do Rio de Janeiro: os arrecadados pela Polícia e os foros anuais decorrentes de terreno de marinha, art. 37, §§1º e 2º, da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834.

As Rendas Provinciais (art. 39 da Lei nº 38, de 03 de outubro de 1834) eram as demais rendas que eram cobrados pelas Províncias e que não eram abarcadas pela competência tributária do ente central, passando a pertencer o produto da arrecadação à Receita Provincial, sendo possível a sua alteração pelas respectivas Assembléias Legislativas.

Ressalte-se que antes mesmos das alterações na competência tributária instituídas pelo Ato Adicional de 1834, a Lei orçamentária nº 58, de 08 de outubro de 1933 já fazia referência expressa ao poder de tributar das Províncias (art. 35), isto é, todos os impostos não inclusos dentro do conceito de Receita Geral, sendo permitido que os Conselhos Gerias (das províncias) fixassem o orçamento local.

A partir da Lei orçamentária nº 99, de 31 de outubro de 1835, que fixava as despesas e receitas para o exercício financeiro compreendido entre 1º de julho de 1936 e 30 de junho de 1937, ficou melhor delineado a amplitude das receitas gerais (art. 11). Por este diploma legislativo, as províncias recebiam uma espécie de competência tributária residual, que deveria ser exercida por sua Assembléia Legislativa (art. 12, da Lei nº 99, de 31 de outubro de 1835):

Ficam pertencendo à Receita Provincial todas as imposições não delineadas nos números do art. 11 antecedente; competindo ás Assembleas Provinciaes legislar sobre a sua arrecadação e altera-las, ou aboli-las, como julgarem conveniente.

O complicador na delimitação das competências tributárias residia no fato de que não existiam normas constitucionais dispondo sobre o tema, ficando ao arbítrio do legislador ordinário, ao elaborar as leis orçamentárias, definir a repartição do poder de tributar e também na existência de um efetivo sistema de controle de constitucionalidade das leis provinciais.

2.3.3.5 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CHARTA MAGNA IMPERIAL E A GUERRA FISCAL

Ao contrário das Constituições republicanas que adotaram, na sua evolução, um misto do sistema americano-germânico para o Controle de Constitucionalidade das leis, a ser exercido pelo Judiciário, de forma difusa (por qualquer órgão jurisdicional, a partir de 1891) ou concentrada (pela nossa Corte Suprema, a partir de 1946), a Charta Magna imperial adotou o sistema britânico de controle, isto é, somente o Parlamento, órgão composto por representes populares, poderia realizar a fiscalização dos atos normativos à luz da nossa Constituição. (MENDES, 2007, p. 154 e 983)

Competia à Assembléia Geral velar pela guarda da Constituição, bem como interpretar, suspender ou revogar as Leis (art. 15, IX e X, da Constituição de 1824), pelo fato de que, pelos ensinamentos de SÃO VICENTE:

O art. 15, §9º da Constituição confirma uma atribuição que o direito de fazer as leis por certo importa; ele inclui necessariamente o direito de inspecionar, de examinar se elas são ou não fielmente observadas.

[…]

De todas as leis as que demandam maior inspeção, por isso mesmo que demandam o mais alto respeito, são as leis constitucionais, pois que são o fundamento de todas as outras e da nossa existência e sociedade política. São os títulos dos direitos dos poderes políticos, e não são só títulos de seus direitos, mas também de suas obrigações, não são só brasões de autoridades, são também garantias dos cidadãos; ligam o súdito e o poder; é por isso que a Constituição ordena que a Assembléia Geral que vele na guarda de seus preceitos. (SÃO VICENTE, 2002, p. 168)

Competia também à Assembléia Geral controlar os atos do Poder Executivo, limitando os seus poderes:

A principal vigilância que a Assembléia Geral deve exercer é que o poder executivo se encerre em sua órbita, que não invada o território constitucional dos outros poderes, é a primeira condição da pureza do sistema representativo e que decide das outras; que respeite as liberdades individuais.

A exata observância das leis ordinárias, das leis fiscais, cujos abusos são mui opressivos, das que promovem os melhoramentos vitais do país, como suas estradas e colonização, cuja omissão tanto pode afetar a sorte do povo, enfim de todas as normas da sociedade, muito interessada, ao seu desenvolvimento e bem-estar. (SÃO VICENTE, 2002, p. 168)


A Charta Magna de 1824 originariamente, por instituir um estado Unitário, sem delegar aos Conselhos Gerais provinciais competências legislativas, estabeleceu que as resoluções tomadas por estes órgãos deveriam ser remetidas ao Poder Moderador (o Imperador), por meio do Presidente da Província (art. 84, da Constituição imperial), o qual poderia mandar executar ou suspender a eficácia da resolução até ulterior deliberação da Assembléia Geral (arts. 86, 87, 88, e 101, IV, da Constituição imperial).

Se a Assembléia Geral estivesse reunida, deveria ser enviada diretamente para este órgão a resolução do Conselho geral provincial, nos termos do art. 85 (da Constituição imperial), para que fosse a proposta debatida como projeto de lei.

Em outras palavras, como os Conselhos Gerais tinham sua atribuição legislativa limitadíssimas, o risco de haver leis provinciais inconstitucionais também era (em tese) reduzido.

Com o advento do Ato Adicional de 1834 e a criação de Assembléias provinciais dotadas de competência legislativa, inclusive tributária, a situação se modificou, pois o risco de surgimento de leis inconstitucionais provinciais aumentou em muito (art. 10, da Lei nº 16, de 12, de agosto de 1834).

Este risco ficou tão evidente para SÃO VICENTE que ele analisa, de modo enérgico, a natureza de uma lei provincial inconstitucional:

§2º Das leis provinciais ofensiva das Constituição:

235. É evidente que qualquer lei provincial que ofender a constituição, ou porque verse sobre assunto a respeito de que a Assembléia Provincial não tenha faculdade de legislar, ou porque suas disposições por qualquer modo contrariem algum preceito fundamental, as atribuições de outro poder, os direitos ou liberdades individuais ou políticas dos brasileiros, é evidente, dizemos, que tal lei é nula, que não passa de um excesso ou abuso de autoridade.

Um ato tal é uma espécie de rebelião da autoridade provincial contra seu próprio título de poder. A própria A própria Assembléia Geral não tem direito para tanto, as Assembléias Provinciais não podem, pois, pretendê-lo. No caso de se dar tal abuso ele deve ser desde logo cassado. (SÃO VICENTE, 2002, p.251)

Como se daria esta cassação da lei provincial inconstitucional?

O art. 20, do Ato Adicional de 1834 (que reformou a Constituição imperial) atribuiu à Assembléia Geral poderes para revogar apenas as leis provinciais que ofendessem a Constituição, os impostos gerais, os direitos de outras províncias ou os tratados.

Entretanto, esta revogação não era automática, dependendo de expressa prática de ato pelo Poder legislativo (art. 8º da Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 (Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834)).

A Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 (Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834), estabelecia, no seu art. 10, §8º, a possibilidade de o Presidente provincial vetar (não sancionar) lei aprovada pela Assembléia Legislativa, por inconstitucionalidade (art. 7º). (SÃO VICENTE, 2002, p.258)

O problema envolvendo esta forma de controle de constitucionalidade era manifesta: a revogação (ou suspensão da eficácia) de uma Lei provincial, pela Assembléia Geral, necessitava de articulação política para que resultasse em deliberação no legislativo nacional, como ocorreu com o imposto de consumo (de giro) instituído pela Assembléia Legislativa pernambucana (1885), em manifesta afronta ao disposto no art. 10, §5º, do Ato Adicional de 1834. O Governo imperial preferiu manter-se inerte, não comprando esta briga, tendo em vista que a existência destas espécies de imposto provinciais era um “mal menor”: o Poder Executivo não desejava intervir para não gerar conflito com as Assembléias Provinciais. (MELLO, 1999, p.277-278)

Diante deste deficiente sistema de controle de constitucionalidade, o estudo dos limites ao poder de tributar ganha um realce maior.

3 LIMITES AO PODER DE TRIBUTAR

À luz do constitucionalismo, o poder de tributar, como qualquer outra forma de poder, tem como seu titular o próprio Povo, que o delega, pela Constituição a órgãos do Estado.

Evidente que o Povo não delega o poder de tributar de forma absoluta, ao contrário, limita o exercício destes poderes a fim de proteger os direitos fundamentais à liberdade e ao patrimônio.

Neste momento, busca-se estudar quais os limites ao poder de tributar que existiam no Direito do Império do Brasil.

3.1 LEGALIDADE

Não existia, no art. 179, da Constituição do Império, uma previsão explícita de que os tributos apenas poderiam ser instituídos por meio lei, em sentido formal.

Entretanto, facilmente se extrai este princípio da leitura da Constituição de 1824: estava assegurado, como direito fundamental dos cidadãos, que ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude lei (art. 179, I, da Constituição de 1824) e é que seria assegurado, a todos, o direito de possuir patrimônio (art. 179, XXII, da Constituição de 1824).

Esta proclamação do império da Lei também se percebe quando se está diante da criação de tributos.

Nos termos da Constituição do Império, a atribuição privativa para se iniciar o processo legislativo para criação de tributos, nos termos do art. 36, I, era da Câmara dos Deputados, cujos representantes eram eleitos (para mandato provisório) pelo voto dos cidadãos habilitados (art. 35 e 90 da Constituição de 1824). Entretanto, a criação da Lei deveria se dar após procedimento que previa debate e deliberação em ambas as Casas do Poder Legislativo (arts. 55 e 60, da Constituição de 1824), com posterior sanção do Imperador, no exercício do Poder Moderador (art. 101, III, da Constituição de 1824).

Portanto, para a criação de tributos, nos termos da Constituição de 1824, exigia-se Lei, em sentido formal.

3.1.1 LEIS ORÇAMENTÁRIAS

Uma prática muito comum, durante o Império do Brasil, a partir da Lei orçamentária nº 58, de 08 de outubro de 1833, era a descrição e a possibilidade de instituição de tributos por meio das leis orçamentárias que iriam vigorar no exercício fiscal seguinte.

Nas próprias leis orçamentárias vinha a descrição dos tributos existentes e, em alguns casos, a instituição de outros ou a alteração das alíquotas dos tributos existentes.


3.1.2 TRATADOS INTERNACIONAIS

Os tratados internacionais podem ser considerados como o calcanhar de Aquiles do 1º Reinado e merecem um estudo mais detalhado.

Nos termos do art. 102, VII e VIII, da Constituição de 1824, competia ao Poder Executivo entabular negociações co


Reforma Tributária: Uma breve análise da PEC nº 233/2008

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional
Lotação: Procuradoria da Fazenda Nacional no Estado do Maranhão

RESUMO: O presente artigo buscou analisar o Projeto de Emenda à Constituição nº 233/2008, que pretende alterar o Sistema Tributário Nacional. Almeja-se, de forma sistematizada, realizar estudo acerca da estrutura da PEC e suas principais inovações. Por meio do estudo do conteúdo da PEC nº 233/2008, à luz da doutrina e jurisprudência pátria, teceu-se análise acerca dos seus principais tópicos: o novo ICMS federal, o Imposto sobre Valor Agregado federal (IVA-F), e as alterações na forma de repartição de receitas, com a criação de novos fundos constitucionais. No estudo desta proposta de alteração da Carta Magna, foi realizado estudo acerca das alterações das regras determinantes das competências tributárias, suas conseqüências jurídicas, questionando-se, inclusive, acerca da existência de agressão ao pacto federativo. Pelo emprego de método dedutivo, tendo como premissa maior a nossa carta magna e como menor as propostas de inovações constitucionais, aplicou-se interpretação integrativa, a fim de demonstrar a constitucionalidade da PEC nº 233/2008. Por fim, conclui-se pela adequação destas inovações constitucionais, em face da necessidade de racionalização do Sistema Tributário Nacional

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Tributária. PEC nº 233/2008. ICMS. IVA-F.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A ESSÊNCIA DA REFORMA TRIBUTÁRIA: a criação de novas competências tributárias para instituição do novo ICMS; 2.1 O ICMS FEDERAL: INTRODUÇÃO; 2.2 O novo ICMS federal (art. 155-A, da PEC nº 233/08); 2.2 O novo ICMS federal (art. 155-A, da PEC nº 233/08); 2.2.1 PRINCIPAIS CARACTERISTICAS DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS FEDERAL; 2.2.1.1 LEI COMPLEMENTAR FEDERAL DESCREVERÁ OS ELEMENTOS NUCLEARES DESTE TRIBUTO; 2.2.1.2 REGULAMENTAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR QUE CRIA O ICMS; 2.2.1.3 AGRESSÕES À COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: SANÇÕES; 2.2.1.4 ALÍQUOTAS; 2.2.1.5 LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR; 2.2.1.6 NÃO-CUMULATIVIDADE E SELETIVIDADE; 2.2.1.7 PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DO NOVO ICMS E A CÂMARA DE COMPENSAÇÃO;2.2.1.8 FIM DO ICMS ESTADUAL; 3 O IVA FEDERAL: PRINCIPAIS CARACTERISTICA DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA; 4 ALTERAÇÕES NA REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS; 4.1 IMPOSTOS RESIDUAIS DA UNÃO; 4.2 FUNDO DE EQUALIZAÇÃO DE RECEITAS E FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL; 4.3 NOVAS ATRIBUIÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO; 5 OUTRAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA PEC Nº 233/2008; 5.1 INTERVENÇÃO FEDERAL; 5.2 MEDIDAS PROVISÓRIAS; 5.3 utilização da receita do novo ICMS como garantia; 5.4 CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS; 5.5 ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; 5.6 EXECUÇÃO EX OFFICIO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA DO TRABALHO; 5.7 MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE; 6 CONCLUSÃO; 7 REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO

O Presidente da República, no exercício das suas competências constitucionais (art. 60, II e art. 84, III, da CF), enviou ao Congresso Nacional, por meio da mensagem nº 81/2008, Projeto de Emenda à Constituição Federal (PEC nº 233, apresentada em 28.02.2008), alterando o Sistema Tributário Nacional.

A análise de qualquer projeto de criação de normas constitucionais é sempre um trabalho baseado no estudo da “lei que virá”, de lege ferenda.

Pode-se afirmar que tal análise passa por três etapas distintas: analisa-se o direito existente, vislumbra-se a proposta de alteração e busca-se inferir quais as conseqüências destas modificações legislativas.

Sem sombras de dúvida exige-se do operador do Direito a utilização plena dos métodos interpretativos lógicos e sistemáticos, a fim de se verificar como as normas se introduzirão no ordenamento, em face das demais normas já existentes, e como estas novas disposições deverão ser interpretadas, sem que se produzam absurdos.

Esta advertência fica mais evidente quando se verifica que, na interpretação das disposições constitucionais, não é possível a realização da mesma a ponto de subverter a própria existência da Constituição, sob pena de obtenção de absurdo resultado, já que o legislador reformador constitucional (poder constituído) jamais poderia implodir a própria Constituição (resultado do exercício do poder constituinte)1.

Neste sentido os ensinamentos de BARROSO, ao analisar o princípio da unidade da constituição, como princípio orientador para o intérprete da nossa Carta Magna:

O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou “otimização” das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas.2

Portanto, ao se analisar os dispositivos existentes na PEC nº 233/2008, que procura alterar o Sistema Tributário Nacional, alerta-se que o presente autor não busca extrair conclusões que desconstruam a nossa Carta Magna, ao contrário, busca harmonizar as proposições de lege ferenda ao sistema constitucional atualmente vigente. Ou seja, neste texto busca-se interpretar os dispositivos da PEC nº 233/2008, conforme a Constituição Federal, isto é:

A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico.3

Evidente que tal artigo não pretende esgotar o tema, mas tão somente torná-lo de mais fácil compreensão ao operador do direito, concatenando os temas correlatos, que estão dispersos pela PEC, e sistematizando-os, a fim de melhor esclarecê-los ao leitor.

2 A ESSÊNCIA DA REFORMA TRIBUTÁRIA: A CRIAÇÃO DE NOVAS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS PARA INSTITUIÇÃO DO NOVO ICMS

2.1 O ICMS FEDERAL: INTRODUÇÃO

Se fosse possível resumir a reforma tributária a ser implementada pela aprovação da PEC nº 233/2008, ela poderia ser sintetizada da seguinte forma: trata-se de uma profunda alteração das competências tributárias, em que haverá repercussão, também da repartição das receitas tributárias.

Por esta razão, para se realizar reforma tributária de tal porte era necessária a utilização da emenda constitucional, tendo em vista a necessidade de alteração destas competências tributárias.


Como sabido, a competência tributária é definida como:

O poder de criar tributos é repartido entre os vários entes políticos, de modo que cada um tem competência para impor prestações tributárias, dentro da esfera que lhe é assinalada pela Constituição. Temos assim, que Competência Tributária, ou seja, a aptidão para criar tributos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Todos tem dentro de certos limites, o poder de criar determinados tributos e definir o seu alcance, obedecidos os critérios de partilha estabelecidos pela Constituição4

O núcleo desta reforma reside, sem dúvidas, na criação do novo ICMS federal e na instituição do Imposto sobre o Valor Agregado Federal (que surgirá para substituir diversos tributos), e também nas novas formas de repartir as receitas decorrentes da arrecadação de tributos.

A Constituição Federal de 1988, originariamente, atribuiu a competência tributária para instituição do ICMS aos Estados Membros:

Em 1987 advém a Assembléia Nacional Constituinte, e nela planta-se com extraordinário vigor os anseios dos estados de “independência e autonomia financeiras” nas estiras da descentralização do poder Central.

Opera-se, então, a construção do maior conglomerador tributário de que se tem notícia na história do país, com a adesão de deputados “expertos” em tributação. As constituintes modernas, que seguem a rupturas inconstitucionais, são radicais. As que seguem “acordos de transição” são compromissórias, embora em ambas existam sempre o “elemento radical” e a “componente compromissória”. Sobre a nossa Constituinte – compromissória aqui e radical acolá – convergiram pressões altíssimas de todas as partes. Dentre os grupos de pressão há que destacar o dos Estados-Membros em matéria tributária, capitaneada pela tecnoburocracia das secretarias de fazenda dos estados. E surge o ICMS, outra vez à revela das serenas concepções dos juristas nacionais, senhores das experiências européias e já caldeados pela vivência de 23 anos de existência do ICM. Suas proposições não foram aceitas. Prevaleceu o querer dos estados. A idéia era, à moda dos IVAs europeus, fazer o ICM englobar o ISS municipal ao menos nas incidências ligadas aos serviços industriais e comerciais. O ISS municipal restou mantido. Em compensação, os três impostos únicos federais sobre (a) energia elétrica, (b) combustíveis e lubrificantes líquidos e gasosos e (c) minerais do país passaram a integrar o fato gerador do ICM, ao argumento de que são tais bens “mercadorias” que circulam. Certo, são mercadorias, mesmo a energia elétrica equiparada a “coisa móvel” pelo Direito Penal para tipificar o delito de furto. Ocorre que são mercadorias muito especiais, com aspectos específicos que talvez não devessem se submeter à disciplina genérica do ICMS. Além de englobar os impostos únicos federais da Carta de 1967, o ICM acrescentou-se dos serviços de (a) transporte e (b) comunicações em geral, ainda que municipais, antes tributados pela União, tornado-se ICM + 2 serviços = ICMS. A rigor, o ICMS é um conglomerado de seis impostos, se computando o antigo ICM, a que se pretende dar um tratamento fiscal uniforme a partir do princípio da não cumulatividade, ao suposto de incidências sobre um ciclo completo de negócios (plurifasia impositiva).5

O que existe atualmente é um tributo, que engloba pelo menos cinco hipóteses de incidência diferentes6, cuja competência tributária é atribuída a cada um dos 27 Estados e ao Distrito Federal. Cada um destes entes da Federação pode criar, no exercício da sua competência tributária privativa7, uma legislação própria (obedecendo a algumas balizas federais), e estas 27 legislações (já que cada Estado institui seu próprio ICMS) repercutem em fatos geradores ocorridos fora dos seus próprios territórios, interferindo no comércio jurídico nacional.8

O ponto de partida do presente estudo da PEC nº 233/2008, portanto, será a criação do novo ICMS federal, cuja competência legislativa passou a ser atribuída à União e cuja regulamentação e gestão se dará por meio de órgãos colegiados compostos por representantes da União e dos Estados (e DF).

Em outras palavras, o novo ICMS passa a ter uma regulamentação federal, já que a PEC nº 233/08 acrescenta à competência tributária da União, a atribuição para, por meio de lei complementar, instituir o novo ICMS federal.

Desde já, afirma-se que não há agressão ao pacto federativo (cláusula pétrea: art. 60, §4, I, da CF), tendo em vista que o que se busca não é suprimir competências tributárias para agredir a autonomia9 dos Estados membros (arts. 18 e 25 da CF).

A intenção da reforma é tão-somente racionalizar a tributação, sobretudo em relação ao ICMS (art. 155, II, da CF), o qual, apesar de ser um tributo cuja atribuição legislativa para instituí-lo (poder de tributar) foi conferida aos Estados (e ao DF: art. 147 da CF), em verdade, o mesmo possui características de tributo “federal”10, já que o seu fato gerador é a circulação de mercadoria de bens (e de determinados serviços) dentro do território nacional, não havendo razão para existência de diferentes regimes de tributação, em cada ente regional da nossa República.

Tal desiderato é manifestado, inclusive, pela exposição de motivos nº 16 que acompanhava o anteprojeto desta PEC, enviada ao Chefe do Poder Executivo federal, em 26 de fevereiro de 2008, pelo Ministro do Estado da Fazenda:

No tocante ao imposto de competência estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), tem-se, atualmente, um quadro de grande complexidade da legislação. Cada um dos Estados mantém a sua própria regulamentação, formando um complexo de 27 (vinte e sete) diferentes legislações a serem observadas pelos contribuintes. Agrava esse cenário a grande diversidade de alíquotas e de benefícios fiscais, o que caracteriza o quadro denominado de “guerra fiscal”. Para solucionar essa situação, a proposta prevê a inclusão do art. 155-A na Constituição, estabelecendo um novo ICMS em substituição ao atual, que é regido pelo art. 155, II, da Constituição, o qual resta revogado. A principal alteração no modelo é que o novo ICMS contempla uma competência conjunta para o imposto, sendo mitigada a competência individual de cada Estado para normatização do tributo. Assim, esse imposto passa a ser instituído por uma lei complementar, conformando uma lei única nacional, e não mais por 27 leis das unidades federadas.”11

2.2 O NOVO ICMS FEDERAL (ART. 155-A, DA PEC Nº 233/08)

2.2.1 PRINCIPAIS CARACTERISTICAS DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA INSTITUIR O ICMS FEDERAL

A PEC nº 233/08 acresce, à nossa Carta Magna, o art. 155-A, artigo único de uma nova Seção intitulada “o imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal”.

Por meio desta proposta, atribui-se aos Estados e ao DF, conjuntamente, a receita do produto da arrecadação do imposto incidente sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

Tal tributo também incidirá sobre “as importações de bem, mercadoria ou serviço, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a finalidade” e “o valor total da operação ou prestação, quando as mercadorias forem fornecidas ou os serviços forem prestados de forma conexa, adicionada ou conjunta, com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios”. (art. 155-A, §1º, III, “a’ e “b”).

Cria-se uma nova competência tributária para a União, a qual deverá ser exercida por meio de lei complementar12, utilizando-se o fato gerador do antigo ICMS (art. 155, II, da CF), atribuindo-se aos Estados e ao DF o produto da arrecadação deste tributo.


Em outras palavras, pode-se afirmar que a alteração da competência tributária proposta pela PEC nº 233/2008 acarreta, implicitamente, no fato de que os Estados e o DF receberão delegação, pela própria Constituição Federal, para fiscalizar e arrecadar este novo ICMS federal13. Ao se utilizar a expressão “implicitamente” o que se pretende dizer é que, nesta PEC não há a previsão expressa desta delegação (como ocorre, por exemplo, com o ITR, em relação aos Municípios, por exemplo, no art. 153, §5º, III, da CF), mas dela pode se inferir, já que não se pretende que os Estados e o DF desmontem suas estruturas fiscalizadoras (do ICMS) e também pelo fato de que em inúmeras passagens se vislumbra a possibilidade desta dupla atuação por estes entes da federação. Note-se que haverá inclusive um período de transição (art. 3º e art. 12, II, da PEC nº 233/2008).

Quando se fala que a o art.155-A atribui aos Estados tão-somente a receita do produto da arrecadação, diz-se isto porque a competência legislativa plena para a instituição do tributo (art. 6º do CTN) foi conferida à União, que deverá exercê-la por meio de lei complementar.

A iniciativa legislativa14 para deflagrar o processo legislativo da lei complementar15 que disporá sobre o novo ICMS é atribuída, exclusivamente, na forma do art. 61, §3º, (contido na PEC nº 233/2008), aos seguintes órgãos:

“I – a um terço dos membros do Senado Federal, desde que haja representantes de todas as Regiões do país;

II – a um terço dos Governadores de Estado e Distrito Federal ou das Assembléias Legislativas, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros, desde que estejam representadas, em ambos os casos, todas as Regiões do País;

III – ao Presidente da República.”

As explicações para esta restrição em relação à competência para iniciativa legislativa é dada pela exposição de motivos nº 16, que acompanhava o anteprojeto desta PEC, enviada ao Chefe do Poder Executivo federal, em 26 de fevereiro de 2008, pelo Ministro do Estado da Fazenda:

Dada a peculiaridade dessa lei complementar, que vai além da norma geral, fazendo as vezes de lei instituidora do imposto para cada Estado e o Distrito Federal, são propostas, no § 3o do art. 61 da Constituição, regras especiais para a iniciativa dessa norma, que ficará a cargo do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, dos Governadores ou das Assembléias Legislativas, sendo que nessas hipóteses deverão estar representadas todas as Regiões do País. Tal configuração tem o objetivo de prover maior estabilidade à legislação do imposto, que, com isso, estará sujeita a um menor volume de propostas de alteração.16

Isto posto, necessário agora vislumbrar pontos específicos do novo ICMS, os quais, para fins didáticos, são expostos em tópicos, a fim de melhor compreensão das propostas de inovação constitucional:

2.2.1.1 LEI COMPLEMENTAR FEDERAL DESCREVERÁ OS ELEMENTOS NUCLEARES DESTE TRIBUTO

O §6º, do art. 155-A, da PEC nº 233/08, prescreve que competirá à lei complementar nacional definir os seguintes aspectos nucleares deste novo tributo:

“I – definir fatos geradores e contribuintes;

II – definir a base de cálculo, de modo que o próprio imposto a integre;

III – fixar, inclusive para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações e prestações;

IV – disciplinar o regime de compensação do imposto;

V – assegurar o aproveitamento do crédito do imposto;

VI – dispor sobre substituição tributária;

VII – dispor sobre regimes especiais ou simplificados de tributação, inclusive para atendimento ao disposto no art. 146, III, “d”;

VIII – disciplinar o processo administrativo fiscal;

IX – dispor sobre as competências e o funcionamento do órgão de que trata o §7º, definindo o regime de aprovação das matérias;

X – dispor sobre as sanções aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal e seus agentes, por descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência do imposto, especialmente do disposto nos §§ 3º a 5º;

XI – dispor sobre o processo administrativo de apuração do descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência do imposto pelos Estados e Distrito Federal e seus agentes, bem como definir órgão que deverá processar e efetuar o julgamento administrativo.”

Os elementos nucleares da norma tributária (art. 97 do CTN) deverão vir contidos, pela PEC, na lei complementar nacional, que criará um ICMS único a viger em toda a Federação.

A hipótese de incidência, a definição da base de cálculo, os elementos referentes à qualificação do contribuinte, bem como as hipóteses para extinção do crédito tributário e a padronização do procedimento administrativo tributário, serão todos objeto de disposição desta lei. Procura-se conferir um tratamento uniforme, para uma matéria que está fragmentada entre os Estados da Federação.

2.2.1.2 REGULAMENTAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR QUE CRIA O ICMS

As atribuições para promover a regulamentação deste tributo (art. 99 do CTN), sem poderes de inovação, serão conferidas a órgão colegiado composto por agentes públicos dos Estados e Distrito Federal, presidido por representante da União (sem direito à voto), que terão atribuições para dispor sobre: parcelamento; hipóteses de anistia, remissão, moratória e transação; fixar prazos para recolhimento do tributo; bem como critérios e procedimentos fiscalizatórios que ultrapassem o território de cada Estado da federação (art. 155-A, §7º).

Na verdade, trata-se do CONFAZ, que passará a ter poderes para promover a regulamentação do ICMS federal.


O regulamento do novo CONFAZ, bem como suas atribuições e procedimentos de deliberação, deverão vir previstos na lei complementar que criar o ICMS, na forma do art. 155-A, §6º, IX.

2.2.1.3 AGRESSÕES À COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: SANÇÕES

O §8º, do art. 155-A da PEC nº 233/08, cria, também sanções por eventual agressão às competências tributárias inseridas no texto constitucional, permitido-se que, se agredidas tais disposições, seja possível a aplicação de penalidades, na forma da lei complementar, tanto ao ente político violador (Estados e DF), com sujeição deste a multas, retenção dos recursos oriundos das transferências constitucionais e seqüestro de receitas; quanto ao agente público que a perpetrou, que poderá se sujeitar às seguintes sanções: multas, suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário (o que nos poderia levar a crer que se pretende que tal prática seja compreendida como um ato de improbidade administrativa).

A União poderá reter as transferências constitucionais aos Estados, ou ao DF, nas hipóteses de agressão às competências tributárias estabelecidas em relação ao novo ICMS (art. 155-A, §8º, I c/c art. art. 160, §2º, com a redação conferida pela PEC nº 233/2008).

A lei complementar que instituir o novo ICMS também deverá dispor sobre as sanções aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal e seus agentes, por descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência deste tributo (art. 155-A, §6º, X) e também estabelecerá o processo administrativo de apuração do descumprimento das normas que disciplinam o exercício da competência do imposto pelos Estados e Distrito Federal e seus agentes, bem como definir órgão que deverá processar e efetuar o julgamento administrativo (art. 155-A, §6º, XI)

2.2.1.4 ALÍQUOTAS

As alíquotas17 deste tributo federal serão fixadas pelo Senado Federal, por meio de Resolução (art. 155-A, §2º, I, da PEC nº 233/08), o qual também terá atribuição para, por meio da mesma espécie legislativa, definir “a alíquota padrão aplicável a todas as hipóteses não sujeitas a outra alíquota”, bem como o “enquadramento de mercadorias e serviços nas alíquotas diferentes da alíquota padrão” (art. 155-A, §2º, II, da PEC nº 233/08).

A lei complementar nacional, que instituir o novo ICMS, definirá sobre quais mercadorias (e serviços) os Estados (e o DF) poderão, por meio de lei própria, alterar as alíquotas do ICMS federal incidente sobre aqueles bens (e serviços), indicando também os limites e as condições para o exercício desta competência (art. 155-A, §2º, V, da PEC nº 233/2008). Nestas hipóteses o Senado Federal não poderá fixar tais alíquotas por meio de Resolução.

2.2.1.5 LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR

As alíquotas poderão ser reduzidas ou restabelecidas por atos do órgão colegiado, o que por si só constitui uma exceção à legalidade (art. 150, I, CF), como previsto no art. 155-A, §7º, da PEC nº 233/2008.

Será possível a criação de isenções, por meio de convênios interestaduais, na forma do §4º, I, do art. 155-A c/c art 150, §6º, da CF. Todas as demais isenções deverão estar prevista na lei complementar que cria tal tributo.

Ademais é importante frisar as importantes imunidades tributárias18 que excluem a incidência deste tributo, elencadas no §1º, IV, do art. 155-A, da CF:

a) as exportações de mercadorias ou serviços, garantida a manutenção e o aproveitamento do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores;

b) o ouro, nas hipóteses definidas no art. 153, § 5o;

c) as prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.

Não se aplica, ao novo ICMS federal, o princípio da anterioridade (art. 150, III, “b”, da CF), nem a “noventena” (prevista no art. 150, III, “c”, da CF), até o prazo de dois anos a contar da sua exigência, por força do disposto no art. 4º, da PEC nº 233/08. Se norma tributária, no prazo de dois anos, vier a aumentar o referido tributo, ela só produzirá efeitos 30 dias após a sua publicação, nos termos do parágrafo único, do art. 4º, da PEC nº 233/08.

2.2.1.6 NÃO-CUMULATIVIDADE E SELETIVIDADE

O novo ICMS federal será não-cumulativo19 (na forma da lei complementar) e, nas operações em que estejam sujeitas a “alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade”, não haverá surgimento de crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes (salvo se a lei complementar dispuser em contrário) (art. 155-A, §1º, I e II). Em outras palavras, o legislador constitucional tenta evitar futuros litígios decorrentes da natureza não-cumulativa deste tributo. O novo ICMS poderá ser seletivo, isto é suas alíquotas (fixadas por Resolução do Senado Federal, na forma do art. 115-A, §2º, I, da PEC nº 233/2008) poderão variar em face da quantidade e do tipo de consumo (art. 155-A, §2º, IV).

2.2.1.7 PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DO NOVO ICMS E A CÂMARA DE COMPENSAÇÃO

Nos termos do art. 155-A, §1º, III, “a”, c/c art. 155-A, §3º, I contido na PEC nº 233/2008, o produto da arrecadação do imposto, nas operações interestaduais, competirá ao Estado de destino da mercadoria, salvo em relação à parcela equivalente a 2% sobre a base de cálculo do imposto, que será atribuída ao Estado de origem (art. 155, §3º, II, da CF). Nas operações em que o valor do tributo seja irrisório, a totalidade deste pertencerá ao Estado de origem (art. 155, §3º, II, “a”).

Observe-se que nas operações com petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica, o imposto pertencerá integralmente ao Estado de destino (art. 155, §3º, II, “b”).

Pelo texto da PEC nº 233/2008, fica criada também uma câmara de compensação (entre os estados federados) com a finalidade de obrigar o Estado de origem a transferir, ao Estado de destino, o montante global do imposto. A esta câmara de compensação, também poderá ser atribuída parcela do produto da arrecadação deste imposto com a única finalidade de liquidar as obrigações do estado relativas a operações e prestações interestaduais (art. 155-A, §3º, III, da PEC nº 233/2008).

2.2.1.8 FIM DO ICMS ESTADUAL

O antigo ICMS vigorará até o 7º ano subseqüente à promulgação desta PEC. No curso deste prazo haverá uma uniformização das alíquotas dos ICMS estaduais, com a padronização também de normas referentes à constituição de créditos fiscais, bem como lei complementar poderá dispor, nas operações interestaduais, sobre a destinação do produto da arrecadação do tributo. (art. 3º, da PEC nº 233/2008)

3 O IVA FEDERAL: PRINCIPAIS CARACTERISTICA DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

A PEC nº 233/2008 acrescentou, ao rol de competências tributárias privativas20 da União, o poder para que este ente da Federação institua imposto sobre “operações com bens e prestações de serviços, ainda que as operações e prestações se iniciem no exterior” (art. 153, VIII, da PEC nº 233/08).


O próprio legislador constitucional reformador nos apresenta indicativo para compreensão do que seria prestação de serviços: “considera-se prestação de serviço toda e qualquer operação que não constitua circulação ou transmissão de bens”, ou seja, poderá ser prestação de serviços tudo aquilo não constituir circulação de bens, ou que não esteja sob a incidência do novo ICMS federal (art. 155-A, a ser acrescentado pela PEC nº 233/2008).

Tal tributo também incidirá sobre as importações (art. 153, §6º, III, previsto na PEC nº 233/08) e integrará sua própria base de cálculo (art. 153, §6º, V, previsto na PEC nº 233/08).

É interessante assinalar que tal tributo não se sujeita ao princípio da anterioridade, por força da nova redação conferida pela PEC nº 233/2008, ao §1º, do art. 150, da CF, mas tão somente à noventena (art. 150, III, “c”, da CF).

Tal imposto não deverá incidir (ou seja, trata-se de uma hipótese de imunidade) sobre a exportação de operações com bens ou prestações de serviços, sendo garantida “a manutenção e o aproveitamento do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores” (art. 153, §6º, IV)

O IVA federal será não-cumulativo (na forma da lei) e, nas operações em que estejam sujeitas a “alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade”, não haverá surgimento de crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes (salvo se lei dispuser em contrário) (art. 153, §6º, I e II, contidos na PEC nº 233/2008). Em outras palavras, o legislador constitucional tenta evitar futuros litígios decorrentes da natureza não-cumulativa deste tributo.

Tal tributo terá por finalidade substituir a COFINS (art. 195, I, “b”, da CF), a CIDE (art. 177, §4º, da CF), o salário-educação (art. 212, §5º, da CF) e a contribuição para o PIS (art. 239, da CF), cujos respectivos dispositivos foram alterados, por força do disposto nos art. 8º e art. 13, bem como da nova redação dada ao “caput” do art. 239, da PEC nº 233/2008.

Esta intenção é manifestada, inclusive, na exposição de motivos nº 16 que acompanhara o anteprojeto desta PEC, enviada ao Chefe do Poder Executivo federal, em 26 de fevereiro de 2008, pelo Ministro do Estado da Fazenda:

No caso da União, propõe-se uma grande simplificação, através da consolidação de tributos com incidências semelhantes. Neste sentido, propõe-se a unificação de um conjunto de tributos indiretos incidentes no processo de produção e comercialização de bens e serviços, a saber: a contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins), a contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e a contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível (CIDE-Combustível).
Tal unificação seria realizada através da criação de um imposto sobre operações com bens e prestações de serviços – que, nas discussões sobre a reforma tributária vem sendo denominado de imposto sobre o valor adicionado federal (IVA-F) –, consubstanciada na inclusão do inciso VIII e dos parágrafos 6o e 7o no art. 153 da Constituição, bem como pela revogação dos dispositivos constitucionais que instituem a Cofins (art. 195, I, “b” e IV, e § 12 deste artigo), a CIDE-Combustíveis (art. 177, § 4o) e a contribuição para o PIS (modificações no art. 239).
Além da simplificação resultante da redução do número de tributos, esta unificação tem como objetivo reduzir a incidência cumulativa ainda existente no sistema de tributos indiretos do País. Esta redução da cumulatividade resultaria da eliminação de um tributo que impõe às cadeias produtivas um ônus com características semelhante ao da incidência cumulativa, a CIDE-Combustíveis, e da correção de distorções existentes na estrutura da Cofins e da contribuição para o PIS, as quais, pelo regime atual, têm parte da incidência pelo regime não-cumulativo e parte pelo regime cumulativo.
Vale destacar que, na regulamentação do IVA-F, será possível desonerar completamente os investimentos, através da concessão de crédito integral e imediato para a aquisição de bens destinados ao ativo permanente. Também será possível assegurar a apropriação de créditos fiscais, atualmente obstados, relativo a bens e serviços que não são diretamente incorporados ao produto final – usualmente chamados de “bens de uso e consumo” –, eliminando assim mais uma importante fonte de cumulatividade r

emanescente nos tributos indiretos federais.21

O produto da arrecadação do imposto sobre a renda (art. 153, III, da CF), do imposto IPI (art. 153, IV, da CF) e do IVA (art. 153, VIII) será repartido nos seguintes termos (art. 159, com a redação atribuída pela PEC nº 233/08):

  1. 38,2% será destinado ao financiamento da seguridade social;
  2. 6,7% será destinado ao financiamento do abono do PIS e o seguro-desemprego (nova redação do art. 239, dada pela PEC nº 233/08)
  3. lei complementar estabelecerá o percentual a ser utilizado para: (c.1) “o pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo, o financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás, e o financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”; (c.2) “o financiamento da educação básica”.

O percentual 21,5% do IVA-F integrará o somatório das rendas para constituição o Fundo de Participação dos Estados (art. 159, II, “a”, com a redação dada pela PEC nº 233/08), enquanto que 22,5% deste tributo integrará o Fundo de Participação do

Município (art. 159, II, “b”, com a redação dada pela PEC nº 233/08).

Parcela (1,8%) deste tributo também será destinada para a constituição do Fundo de Equalização (art. 159, II, “d”), previsto no art. 5º da PEC nº 233/2008.

4 ALTERAÇÕES NA REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS

Anteriormente ao CTN/66 (Lei nº 5172/66) vigorava no Brasil um Sistema Tributário tripartite que, em base essencialmente política, consistia na coexistência de três sistemas tributários autônomos (federal, estadual e municipal), cada qual com seus impostos privativos, cujo produto da arrecadação pertencia em sua totalidade à pessoa política competente para instituí-lo.

A Comissão da Reforma Tributária de 1965, ao elaborar o anteprojeto de que resultou a Emenda Constitucional nº 18/65, teve por escopo a criação de um Sistema Tributário uno e nacional, em que se consideram conjugados os sistemas individuais de cada nível de governo, como partes integrantes de um todo.22


A quase unanimidade dos autores considera o tema Repartição das Receitas Tributárias como inserido no campo de Estudo do Direito Tributário, entretanto, para HARADA,

a repartição das receitas tributárias nenhuma relação tem com os contribuintes; interessa apenas às entidades políticas tributantes; insere-se no campo da atividade financeira do estado, objeto de estudo pelo Direito Financeiro.23

Neste mesmo sentido COÊLHO:

De observar que esta questão da repartição de receitas fiscais ou, noutro giro, das participações das pessoas políticas no produto da arrecadação das outras, não tem, absolutamente nenhum nexo com o Direito Tributário. Em verdade são relações intergovernamentais, que de modo algum dizem respeito aos contribuintes. A inclusão da seção ou, por outro lado, do assunto por ela versado, no Capítulo do Sistema tributário, constitui evidente equívoco.24

Já é tradição nas Cartas Políticas brasileiras que, logo após a outorga das competências tributárias aos entes da federação (competência tributárias privativas), haja a fixação do mecanismo de repartição das receitas tributárias, isto é, a definição dos critérios de participação de um ente da federação na arrecadação dos tributos de outros entes.Nas palavras de HARADA:

Esse critério vias, antes de mais nada, assegurar recursos financeiros suficientes e adequados às entidades regionais (estados-membros) e locais (Municípios) para o desempenho de suas atribuições constitucionais.25

Neste sentido:

[…] é uma das técnicas aptas a garantir a autonomia das ordens políticas parciais na forma federativa de Estado, uma vez que não é possível falar-se em autonomia política se inexiste a autonomia financeira.26

Outra técnica para assegurar a autonomia financeira dos entes da Federação é a distribuição das competências tributárias. Pode-se deduzir que ambas as técnicas são adotadas pela CF/88.

A PEC nº 233/2008 altera significativamente os critérios de repartição de receitas tributárias, a fim de, inclusive, evitar a guerra fiscal (com a criação de fundo para implementar o desenvolvimento regional), bem como perdas de arrecadação dos Estados em face da Reforma Tributária proposta, sobretudo com o advento do novo ICMS.

4.1 IMPOSTOS RESIDUAIS DA UNÃO

Nas palavras de ÁVILA, a competência tributária residual poderia ser assim vislumbrada:

A Constituição Brasileira prevê competência para a instituição de determinados tributos que só poderão ser instituídos mediante a edição de lei complementar: […] impostos não previstos na competência ordinária da União Federal, a serem instituídos no exercício da sua competência residual (art. 154, I). Essa exigência de lei complementar decorre do caráter extraordinário desses tributos.27

Na redação conferida ao art. 157 da CF, o percentual de 20% do produto da arrecadação dos impostos derivados do exercício da competência tributária residual da União (art. 154, I, da CF) são destinados aos Estados e ao DF.

Pela PEC nº 233/2008, o produto da arrecadação destes impostos, decorrentes do exercício desta competência tributária, deverão integrar os Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, nos termos da redação dada ao art. 159, II, da CF, por este Projeto.

4.2 FUNDO DE EQUALIZAÇÃO DE RECEITAS E FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL

O Fundo de Equalização de Receitas (FER), a ser instituído por meio de lei complementar, tem por objetivo compensar a eventual redução de arrecadação dos Estados e do Distrito Federal em decorrência de alterações introduzidas por esta Emenda, em relação ao advento do novo ICMS (art. 155-A), na forma do art. 5º da PEC nº 233/08.

Para composição deste fundo, na forma do art. 159, II, “d”(pela PEC nº 233/08), será destinado 1,8% do produto da arrecadação do montante global do imposto sobre a renda (art. 153, III), do IPI (art. 153, IV), do IGF (art. 153, VII) e do IVA federal (art. 153, VIII), bem como dos impostos residuais da competência tributária da União (art.154, I).

O Poder Executivo da União deverá enviar ao Congresso nacional, em até 180 dias, da data da promulgação da Emenda resultante da aprovação da PEC nº 233/2008, o projeto de lei complementar com a finalidade de instituir tal Fundo de Equalização (art. 5º, §6º, da PEC nº 233/08.

Até que esta lei complementar entre em vigor, “os recursos do Fundo de Equalização de Receitas serão distribuídos aos Estados e ao Distrito Federal proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados, sendo que a nenhuma unidade federada poderá ser destinada parcela superior a vinte por cento do total.” (art. 5º, §7º, da PEC nº 233/2008).

Os Estados (e o DF) somente terão direito à percepção dos recursos deste fundo se implementarem as medidas “concernentes à emissão eletrônica de documentos fiscais, à escrituração fiscal e contábil, por via de sistema público de escrituração digital” (previstas no art. 37, XXII, da CF), nos prazos definidos na lei complementar que cria o Fundo de Equalização de Receitas (FER) (art. 5º, §5º, da PEC nº 233/2008).

Para enfrentamento das desigualdades regionais, a PEC nº 233/2008, pretende instituir um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR, art. 161, IV), o qual terá os seus recursos oriundos de percentual (4,8%) do total da arrecadação de tributos federais (art. 159, II, “c”, acrescentado pela PEC nº 233/2008).

Parte do montante arrecadado (5%) poderá ser utilizado em regiões menos desenvolvidas do Sul e do Sudeste, sendo que, no mínimo, 60% do montante do Fundo deverá ser utilizado para o financiamento de atividades produtivas, havendo até a possibilidade de parte do montante ser repassado para fundos estaduais de desenvolvimento (art. 161, IV, com a redação dada pela PEC nº 233/2008)

4.3 NOVAS ATRIBUIÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

O art. 161 da Constituição, por meio da PEC nº 233/08, passará a conferir novas atribuições ao Tribunal de Consta da União, o qual terá a missão de estabelecer normas para a entrega dos recursos para o Fundo de Participação dos Estados, para o Fundo de Participação dos Municípios28 e para o Fundo de Equalização de Receitas, bem como estabelecerá a normatização para aplicação e distribuição de recursos para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (art. 7º da PEC nº 233/2008):


“Art. 161. omissis

I – estabelecer os critérios de repartição das receitas para fins do disposto no art. 158, parágrafo único, I;

II – estabelecer normas sobre a entrega dos recursos de que trata o art. 159, II, “a”, “b” e “d”, especialmente sobre seus critérios de rateio, objetivando promover o equilíbrio sócioeconômico entre Estados e entre Municípios;

III – omissis;

IV – estabelecer normas para a aplicação e distribuição dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, os quais observarão a seguinte destinação:

a) no mínimo sessenta por cento do total dos recursos para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste;

b) aplicação em programas voltados ao desenvolvimento econômico e social das áreas menos desenvolvidas do País;

c) transferências a fundos de desenvolvimento dos Estados e do Distrito Federal, para aplicação em investimentos em infra-estrutura e incentivos ao setor produtivo, além de outras finalidades estabelecidas na lei complementar.

§ 1o O Tribunal de Contas da União efetuará o cálculo das quotas referentes aos fundos a que alude o inciso II.

§ 2o Na aplicação dos recursos de que trata o inciso IV do caput deste artigo, será observado tratamento diferenciado e favorecido ao semi-árido da Região Nordeste.

§ 3o No caso das Regiões que contem com organismos regionais, a que se refere o art. 43,

§ 1o, II, os recursos destinados nos termos do inciso IV, “a” e “b”, do caput deste artigo serão aplicados segundo as diretrizes estabelecidas pelos respectivos organismos regionais.

§ 4o Os recursos recebidos pelos Estados e pelo Distrito Federal nos termos do inciso IV, “c”, do caput não serão considerados na apuração da base de cálculo das vinculações constitucionais.”

5 OUTRAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA PEC Nº 233/2008

5.1 INTERVENÇÃO FEDERAL

Nas palavras de SLAIBI FILHO, a intervenção seria:

[…] a medida excepcional, decorrente da forma de Estado Federal, através da qual o nível federativo mais elevado assume temporariamente as funções executivas, legislativas e administrativas, total ou parcialmente, do ente federativo imediatamente inferior, visando defender o sistema federativo através do eficiente funcionamento dos órgãos públicos nos seus limites constitucionais e legais de competência.

O objetivo da intervenção é,assim, a assunção dos serviços do ente federativo inferior, de forma excepcional e temporária, de acordo com as estritas hipóteses previstas na Constituição.”29

A PEC nº 233 acrescenta nova alínea ao art. 34, V, ao estabelecer que a União poderá intervir nos Estados quando estes retiverem parcela do novo ICMS (v.g. art. 155-A, III, contido na PEC nº 233/2008) devida a outro ente da Federação da mesma natureza.

Nesta hipótese, para iniciar o procedimento interventivo, seria necessária a solicitação do Poder Executivo do Estado prejudicado pela retenção ilícita dos repasses (art. 36, V, contido na PEC nº 233/2008).

5.2 MEDIDAS PROVISÓRIAS

As medidas provisórias, são espécies legislativas, previstas no art. 59, V, da CF, assim analisadas por MORAES:

Apesar dos abusos efetivados com o decreto-lei, a prática demonstrou a necessidade de um ato normativo excepcional e célere, para situações de relevância e urgência. Pretendendo regularizar esta situação e buscando tornar possível e eficaz a prestação legislativa do Estado, o legislador constituinte de 1988 previu as chamadas medidas provisórias, espelhando-se no modelo italiano.

Desde antes da EC nº 32/2001 (com a introdução do §2º, ao art. 62, da CF), o Supremo Tribunal Federal já admitia a possibilidade de Medida provisória dispor sobre tributos30, inexistindo, portanto, qualquer, limite material ao exercício da competência tributária por meio desta espécie legislativa, salvo nos casos de tributos que, para sua criação (ou alteração), fosse exigida lei complementar.

Ressalte-se que o art. 62, §2º, da CF, admite a instituição (ou majoração) de imposto por meio de medida provisória, estando a eficácia destes tributos, no exercício financeiro seguinte, condicionada à conversão em lei (publicação desta) da referida espécie legislativa (MP), no mesmo exercício financeiro de sua edição.31

Pela redação proposta nesta Reforma Tributária, não se aplica à instituição ou à majoração do IVA-F (art. 153, VIII, contido na PEC nº 233/2008), por meio de Medida Provisória, a necessidade de sua prévia conversão em lei, como requisito para a sua produção de efeitos (§2º, art. 62, com a redação apresentada pela PEC nº 233/2008).

5.3 UTILIZAÇÃO DA RECEITA DO NOVO ICMS COMO GARANTIA

Desde o advento da EC nº 03/2003, admitiu-se a possibilidade de vinculação, pelos Estados, Municípios e DF, de suas receitas geradas pelos seus impostos e dos seus repasses constitucionais (arts. 155 e 156, e arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, da CF) para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta (art. 167, §4º, da CF).


Pela PEC nº 233/2008, atribui-se nova redação ao §4º, do art. 167 da CF, pela PEC nº 233/08, é permitido, também, aos Estados e ao DF, a vinculação de receitas próprias geradas pelo novo ICMS como garantia ou contragarantia à União, para pagamento de seus débitos para com esta.

5.4 CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS

As contribuições sociais possuem natureza jurídica de tributos:

“As contribuições passaram a ser consideradas tributos por força da EC nº 01/69, que estabeleceu, ao lado da competência da União para instituir impostos, sua competência para instituir contribuições de intervenção no domínio econômico, de interesse da previdência social e do interesse de categorias profissionais, conforme se vê do art. 21, §2º, I, da CF/67 com a redação da EC nº 01/69, situado dentro do Capítulo V – Do sistema Tributário Nacional. Com a EC nº 08/77, porém, embora a previsão da competência da União para instituir contribuições tenhas permanecido dentro do capítulo atinente ao Sistema Tributário Nacional, houve o acréscimo do inciso X ao art. 43, que cuidava da competência legislativa da Unia, passando a constar, separadamente, a competência legislativa para dispor sobre tributos, arrecadação e distribuição de rendas (inciso I) e para dispor sobre contribuições sociais (inciso X). Tal foi suficiente para quie o STF entendesse que o Constituinte havia entendido não serem, as contribuições, tributos. A Constituição de 1988, por fim, deu-lhes tratamento dentro do Sistema Tributário Nacional e, escoimando qualquer dúvida, estabeleceu que lhes seriam aplicadas limitações constitucionais ao poder de tributar, bem como as normas gerais em matéria tributária.”32

Com a extinção da COFINS e da CSLL (art. 13, I, “d”, da PEC nº 233/08), subsiste tão-somente a competência tributária para a União instituir a contribuição social cobrada ao empregador, à empresa e à entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício. (art. 195, I, da CF, com a nova redação dada pela PEC nº 233/2008)

Em verdade, a CSLL (instituída pela Lei nº 7.689/89) será absorvida pelo Imposto de Renda (Pessoa Jurídica), por força do acréscimo do III, ao §2º, do art. 153 da CF, bem como por alteração da legislação infraconstitucional:

Outra importante simplificação que está sendo proposta é a incorporação da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) ao imposto de renda das pessoas jurídicas (IRPJ), dois tributos que têm a mesma base: o lucro das empresas. Para tanto propõe-se a revogação da alínea “c” do inciso I do art. 195, da Constituição, sendo que os ajustes decorrentes da incorporação poderão ser feitos através da legislação infra-constitucional que rege o imposto de renda. Faz-se necessário, no entanto, um ajuste nas normas constitucionais relativas ao imposto de renda, de modo a permitir que possam ser cobrados adicionais do IRPJ diferenciados por setor econômico, a exemplo do que hoje já é permitido para a CSLL. Tal ajuste é feito através da inclusão o inciso III no § 2o do art. 153 da Constituição.33

Fica mantida a contribuição social paga pelo trabalhador (art. 195, II, da CF), mas revoga-se o inciso IV, do art. 195 da CF (art6. 13, I, “d”, da PEC nº 233/08), que admitia a instituição de contribuições sociais a serem cobradas do importador de bens ou serviços do exterior (e equiparados), já que o art. 153, §6º, III, referente ao IVA federal, admite este evento como possibilidade para definição da sua hipótese de incidência.

Não houve alteração, em relação à competência tributária, para a instituição de contribuição social incidente sobre concursos de prognóstico (art. 195, III, da CF).

Ressalte-se, por fim, que, pela alteração na redação conferida ao §12, do art. 195, pela PEC nº 233/2008, nos termos fixados lei, a agroindústria, o produtor rural pessoa física ou jurídica, o consórcio simplificado de produtores rurais, a cooperativa de produção rural e a associação desportiva podem ficar sujeitos a contribuição sobre a receita, o faturamento ou o resultado de seus negócios, em substituição à contribuição de que trata o inciso I, do “caput” do art. 195 (sobre empregador ou empresa, com base nos rendimentos pagos a qualquer título), hipótese na qual não se aplica o disposto no art. 149, § 2o, da CF (não-incidência das CIDEs e das contribuições sócias sobre as receitas decorrentes das exportações)

5.5 ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Para MORAES, tal órgão jurisdicional poderia ser assim compreendido:

Assim como podemos afirmar que o STF é o guardião da Constituição, também podemos fazê-lo no sentido de ser o STJ o guardião do ordenamento jurídico federal.34

As atribuições do Superior tribunal de Justiça podem ser classificadas em originária e recursal. Nesta última, pode-se identificar a competência recursal originária e a especial, que agora nos interessa.

A competência jurisdicional para processar e julgar o recurso especial é atribuída ao STJ. O recurso especial seria aquele que :teria por escopo “garantir a efetividade e a uniformidade de interpretação do direito objetivo em âmbito nacional”, sendo admissível daquela “decisão de que já não caiba mais recurso ordinário e que tenha contrariado ou negado vigência a tratado ou a lei federal.”.35

Pela PEC nº 233/2008, passará a competir, ao STJ, processar e julgar o recurso especial das causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais (art. 107 da CF), Tribunais de Justiça (art. 125 da CF) e Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Territórios (art. 92, VII, da CF) que almeje a revisão da decisão que contrarie lei complementar que institua o novo ICMS ou a sua regulamentação, ou que lhe negue vigência ou lhes confira interpretação divergente da que lhes tenha atribuído outro tribunal (alínea “d”, do Inciso III, do art. 105, acrescentada pela PEC nº 233/2005).

Eis as razões apresentadas na exposição de motivo nº 16, pelo Ministro da Fazenda, ao Presidente da República, para esta alteração da competência do Superior Tribunal de Justiça:

Mais uma vez, em função da peculiaridade do modelo proposto, com suas regras nacionais sendo aplicáveis diretamente pelos Estados e julgadas nas respectivas justiças estaduais, prevê-se alteração no art. 105 da Constituição, conferindo-se ao Superior Tribunal de Justiça a competência para o tratamento das divergências entre os Tribunais estaduais na aplicação da lei complementar e da regulamentação do novo ICMS.36

5.6 EXECUÇÃO EX OFFICIO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA DO TRABALHO

A Justiça do Trabalho, após o advento da EC nº 20/98, passou a deter competência jurisdicional para promover a execução de contribuições socais decorrentes das sentenças que proferir, como ensina TEIXEIRA FILHO:


“Durante largo período, muito se discutiu, nos foros da doutrina e da jurisprudência, sobre a competência da justiça do trabalho para promover execuções relativas a contribuições previdenciárias e ao Imposto de Renda.

Encontrava-se no auge essa controvérsia quando adveio a emenda constitucional n. 20, de 12 de dezembro de 1998 (DOU de 16 do mesmo mês), que introduziu o §3º no art. 114 da Constituição Federal, com esta redação: “Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir”.

A contar daí, a Justiça do trabalho ficou dotada de competência para executar as contribuições devidas à Previdência Social. Essa competência, todavia é reflexa ou derivada, uma vez que pressupõe a existência de sentença ou acórdão condenatório proferido pela Justiça do Trabalho. Assim, sem uma lide trabalhista preexistente, não se pode cogitar da competência desta Justiça Especializada para executar contribuições previdenciárias, ainda que estas possuam origem em um contrato de trabalho.”37

Tal competência foi mantida pela EC nº 45/2004, ao acrescentar o inciso VIII, ao art. 114, da Constituição Federal38.

Pela PEC nº 233/2008, os órgãos da Justiça do Trabalho continuam a possuir competência para executar, de ofício, inclusive, as contribuições sociais previstas no art. 195, I (a cargo do empregador, incidente sobre a folha de salários e rendimentos pagos a qualquer título) e II (a cargo dos trabalhadores, incidentes sobre a sua remuneração), bem como seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças prolatadas por estes órgãos jurisdicionais. (nova redação ao inciso VIII, art. 114, contido na PEC nº 233/2008).

5.7 MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE

A própria lei (Lei Complementar nº 123/2006) fornece o conceito de microempresa e empresa de pequeno porte:

Art. 3o Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:

I – no caso das microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais);

II – no caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).

Nos termos do art. 146, III, “d”, da CF (com a redação dada pela PEC nº 233/2008), as microempresas e empresas de pequeno porte também terão tratamento diferenciado e favorecido, nos termos de lei complementar, inclusive em relação ao novo ICMS (art. 155-A) e ao IVA-F (Art. 153, VIII).

6 CONCLUSÃO

Como apresentado na introdução, o presente artigo não busca exaurir o tema, mas tão-somente apontar ao leitor os principais pontos do projeto de Reforma Tributária previsto pela PEC nº 233/208, o qual, na sua essência, poderia ser resumido na idéia de alteração de competências tributárias, a fim de melhor sistematizar a estrutura fiscal brasileira.

A Reforma Tributária tem como cerne a alteração da competência tributária para a criação do ICMS e a instituição de poderes para que a União possa criar o IVA Federal, o qual absorveria, sobretudo, a PIS, a COFINS e a CIDE.

A importância desta reforma fica evidente quando se depara com alguns números, apresentados por ALVARENGA39:

  1. no ano de 2000, o ICMS representou mais de 20% da receita tributária do valor global arrecadado por todos os entes da federação;
  2. 70% da arrecadação tributária de toda a federação brasileira derivava, em 2000, apenas dos seguintes tributos ICMS, contribuições para a Previdência Social (lei nº 8212/91), Imposto sobre a Renda, COFINS e FGTS;
  3. No grupo dos dez maiores tributos, é evidente a elevado crescimento da incidência de tributos cumulativos no total da receita tributária da federação (COFINS: 10,9%; e PIS: 4,0%).

Tal situação foi, inclusive, reconhecida pelo próprio executivo federal, o qual, na sua Cartilha da Reforma Tributária40, na qual se vislumbra que os tributos, quando cumulativos (PIS/COFINS, CIDE, ICMS e ISS), implicariam um impacto sobre a economia de modo a transferir 1,9% do PIB para o poder público.

Na verdade, o que ocorre é que o sistema tributário brasileiro perdeu, à luz da teoria econômica, há um bom tempo, a característica da neutralidade, ou seja, que tributação está introduzindo profundas alterações nos mecanismos de funcionamento da economia de mercado e interferindo substancialmente na alocação dos capitais existentes.

Isto se corrobora com algumas conclusões extraídas da mesma Cartilha da Reforma Tributária, a seguir transcritas:

Além da cumulatividade, o custo dos investimentos é elevado devido ao longo prazo de recuperação dos créditos dos impostos pagos sobre os bens de capital. Uma empresa leva 48 meses para compensar o ICMS pago na compra de uma máquina (ao ritmo de 1/48 por mês) e 24 meses para compensar o PIS/Cofins.

O custo efetivo deste diferimento depende da situação financeira da empresa. Para uma empresa líquida corresponde ao que deixa de receber por não aplicar os recursos no mercado financeiro. Para uma empresa endividada, corresponde aos juros pagos sobre o crédito que tem de tomar para financiar o longo prazo de recuperação do imposto.41


Pelo exposto, fica evidente que o atual sistema tributário brasileiro possui sérias distorções, detectadas pelo próprio Executivo federal, as quais pretendem ser sanadas pela PEC nº 233/2008 e que o debate a ser travado no Congresso Nacional será essencial para se delinear a estrutura da reforma tributária, ou mesmo se ela virá ser efetivada.

Seja como for, alguns dos principais problemas da tributação na economia brasileira já foram diagnosticados e a PEC nº 233/2008 busca efetivamente alterar o atual sistema tributário brasileiro a fim de apresentar soluções para eles.

7 REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito tributário na Constituição e no STF. 7.ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

ALVARENGA, Cleuda Maria Alvarenga. Carga Tributária Brasileira: análise da evolução histórica. 10 e 11pp, http://www.univap.br/biblioteca/hp/Mono%202001%20Rev/07.pdf, acessado em 14.03.2008.

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005.

ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário: de acordo com a emenda constitucional n° 42, de 19.12.03.São Paulo: Saraiva, 2004.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. atual., São Paulo: Malheiros Ed., 2005.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 12ª ed., ver. e atual., Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

CARTILHA: Reforma Tributária
http://www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2008/fevereiro/Cartilha-Reforma-Tributaria.pdf, acessado em 11.03.2008

CASSONE, Vittorio. Direito Tributário. 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2000.

CASTRO, Aldemário Araújo. Direito Tributário. Brasília: Fortium, 2005, p. 104.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002.

DALLEGRAVE NETO, José Affonso


A Prisão da Hermenêutica no Ensino do Direito Tributário: Em busca de novas possibilidades para o seu ensino e sua aplicação

André Emmanuel Batista Barreto Campello
Procurador da Fazenda Nacional, já exerceu os cargos de Advogado da União/PU/AGU, Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região, bem como a função de Conciliador Federal – Seção Judiciária do Maranhão. É professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís e ex-professor substituto de Direito da UFMA.
Especialista em Docência e Pesquisa no Ensino Superior.

RESUMO: Trata-se de artigo que tem por finalidade questionar as limitações interpretativas e integrativas do Direito Tributário, previstas nos arts. 107 a 112 do Código Tributário Nacional, demonstrando como a interferência destas normas cerceia, de modo injustificado, a aplicação e as possibilidades deste ramo do Direito, interferindo, inclusive, no ensino do Direito Tributário.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Tributário. Hermenêutica. Limites. Ensino. Crítica

SUMÁRIO: Introdução; 1 Erro e ilusão no Direito; 2 O Direito como forma de controle social; 3 Os limites para a interpretação do Direito; 4 O Problema da Criação do Conhecimento no Ensino do Direito; 5 A Prisão da Hermenêutica no Direito Tributário e o seu Ensino; 6 Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O fenômeno jurídico é uma instigante manifestação da experiência humana, não apenas porque serve de repositório dos valores da sociedade que o edifica, mas também porque, ao ser erigido, ganha uma autonomia que o torna uma entidade distinta, quase que como o seu fiscal.

Desta forma, o Direito carrega consigo uma força simbólica tão intensa que faz com que se permita até se auto-explicar, a servir de própria referência interpretativa.

O presente texto é uma crítica a esta construção tautológica do fenômeno jurídico: uma crítica específica aos limites interpretativos do Código Tributário Nacional.

A Lei nº 5.172/66, o nosso Código Tributário Nacional, criou um micro-sistema interpretativo-integrativo das normas tributárias, por força do art. 107 do CTN, cerceando a liberdade do operador do Direito, impedindo que outros métodos (ou perspectivas) interpretativos, pudessem arejar o abafado (e quase hermético) universo deste ramo do direito.

Neste texto, sobretudo, buscou-se tratar das possibilidades, ou seja, romper um paradigma que há mais de 40 anos impede que o direito tributário brasileiro possa vir a caminhar para outras rotas, em busca de outros fundamentos, que possam inspirar o aplicador do Direito quando vier a manejar as normas tributárias. Pretendeu-se vislumbrar possibilidades quando da aplicação do Direito, sobretudo quanto às possibilidades no ensino jurídico, quando a criatividade e as alternativas surgidas em sala de aula, poderão gerar frutos nos discentes, no momento que estiverem atuando como operadores do Direito.

Inicia-se o texto tratando do erro e da ilusão no estudo do Direito, sob a perspectiva de Edgar Morin, a fim de se deduzir, ao final, que não se pode aceitar uma racionalização cega quando da explicação dos fenômenos jurídicos.

A seguir passa-se a estudar a natureza simbólica do Direito: analisa-se o direito como uma forma de controle social, verificando a sua natureza e como este se realiza por meio do poder simbólico, vislumbrando o Direito enquanto fenômeno social que tem por escopo o controle comportamental de uma coletividade em busca da manutenção do status quo.

E, à luz dos ensinamentos de Bourdieu, faz-se reflexões acerca do monopólio do Estado da jurisdição e, portanto, da interpretação definitiva do direito, apontando suas razões e consequ?ências.

Em seguida, será apresentada a crítica à teoria do conhecimento científico dominante, na perspectiva de Santos, com a finalidade de, a partir dos elementos desta crítica, demonstrar que não é possível em sala de aula se construir um válido conhecimento científico sem que haja uma atuação ativa do discente.

Por fim, pretende-se revelar que a tautológica construção do Código Tributário Nacional nada mais representa que uma simbólica forma de cercear a liberdade hermenêutica, edificada em um outro contexto histórico, para finalidades que se perderam no tempo e que, sob égide da Charta Magna de 1998, não seria mais possível se tolerar esta restrição, então decorreria a possibilidade de que, tanto o operador do Direito, quanto o professor, possa vir a superar estas limitações apresentadas pelo CTN.

1 ERRO E ILUSÃO NO DIREITO

Estudar o fenômeno jurídico é uma atividade que exige, daquele que pretende realizá-la, não apenas o conhecimento do direito-que-aí-está, mas a possibilidade de compreender o Direito além dos seus próprios limites.

No campo das aparências, o Direito, por diversas vezes, busca se apresentar como um universo fechado, com sua tecnologia lingu?istica própria e que contém os elementos necessários (e suficientes) para fornecer sua própria compreensão. Isto é, tratar-se-ia de um espaço do conhecimento humano em que suas conclusões e “verdades” seriam retiradas das relações lógica entre os seus próprios elementos: uma estranha tautologia científica.

Para ilustrar tal situação, poderia-se imaginar uma hipotética sala de aula em que um aluno, chamado Sócrates, iria formular uma pergunta a um professor que estaria ministrando aula de, por exemplo, Direito Tributário: – O que seria uma “lei”?

Em uma resposta bastante direta, o professor poderia afirmar que se trata de uma espécie legislativa prevista no art. 59 da Constituição Federal, podendo se apresentar como lei ordinária ou lei complementar (art. 68 da Constituição), mas que, em ambos os casos, introduziriam normas no nosso ordenamento que obrigariam as condutas dos sujeitos de direito (art. 5º, II, da Constituição).

Tal resposta, evidentemente, parte de um pressuposto, a de que o conceito de “lei” pode ser extraído apenas da Constituição Federal. Verifica-se que se trata de uma resposta dogmática, que se fundaria apenas na lógica lingu?ística, semântica, isto é, na tecnologia do próprio Direito.

Note-se que a primeira resposta apresentada não é uma verdade absoluta, mas um discurso retórico, no sentido que se pretende, pelos argumentos apresentados, convencer o discente Sócrates que as conclusões são verdadeiras, à luz do direito-que-aí-está.

Importante atentar para as palavras de Santos (1989, p.96-97) sobre a verdade científica, cuja natureza não coincide com a idéia de revelação, mas com persuasão:

[…] a verdade é a retórica da verdade. Se a verdade é o resultado, provisório e momentâneo, da negociação de sentido que tem lugar na comunidade científica, a verdade é intersubjetiva e, uma vez que essa intersubjetividade é discursiva, o discurso retórico é o campo privilegiado da negociação de sentido. A verdade é, pois, o efeito de convencimento dos vários discursos de verdade em presença. A verdade de um discurso de verdade não é algo que lhe pertença inerentemente, acontece-lhe no decurso do discurso em luta com outros discursos num auditório de participantes competentes e razoáveis […]

Retornado à hipotética sala de aula: apresentada tal explicação pelo professor, poderia o aluno Sócrates solicitar a palavra e a permissão para formular novas perguntas. Verificando o professor que haveria tempo e que ele não estaria “atrasado” com o “conteúdo da disciplina”, a permissão seria concedida.


Tal aluno, empolgado, então se “liberta” e indaga: “então “lei” é só o que a Constituição afirma que é “lei”? Pode existir outra espécie legislativa que tenha a mesma força de “lei”, mas que não seja “lei”? Medida Provisória (art. 62 CF) tem “força de lei”, mas não é “lei”, como isto é possível? “Lei” obriga, mas “decreto” não obriga? Qual a essência da distinção entre “lei” e “decreto”? O que é que a “lei” tem, em sua essência, que permite a esta espécie legislativa criar obrigações para os indivíduos? Existe alguma essência no conceito de “lei” que não seja jurídico? A coerção e imperatividade da “lei” advém do Direito ou do Poder? O Poder interfere no Direito ou o comanda?”

Perplexidade: tais reflexões, que são todas pertinentes com o tema, inicialmente, são uma mera decorrência da busca de concatenação entre os conceitos jurídico-constitucionais, mas, a seguir, evoluem para questionamentos que transcendem o próprio Direito.

Sob uma visão dogmática, algumas destas perguntas não possuem resposta no campo do Direito, já que apresentam problemas que buscam respostas em outros ramos do conhecimento. As respostas que poderiam ser oferecidas ao aluno Sócrates seriam aquelas que apenas poderiam ser obtidas pela utilização lógica da tecnologia jurídica.

Evidentemente que tal perspectiva não é aceitável, pois o fenômeno jurídico não pode ser resumido ao direito-que-aí-está. O Direito não é suficiente para se auto-explicar, pois não seria possível construir uma Ciência do Direito fundada, tão-somente, nos elementos dados pela própria tecnologia jurídica, sob pena de nada desvendar, nada responder.

Poder-se-ia, portanto, concluir que aplicar a racionalidade ao estudo do fenômeno jurídico nos levaria a admitir, necessariamente, que as respostas aos questionamentos jurídicos não poderiam se adstringir apenas à tecnologia lingu?ística do Direito, ou seja, não pode se admitir que o estudo jurídico seja hermético, fechado sobre si próprio.

Com perspicácia, Morin (2000, p.23) analisa este problema e dele extrai o princípio da incerteza racional, ao fazer uma distinção entre racionalidade construtiva e a racionalização:

A racionalidade é a melhor proteção contra o erro e a ilusão. Por uma lado existe a racionalidade construtiva que elabora teorias coerentes, verificando o caráter lógico da organização teórica, a compatibilidade entre as idéias que compõem a teoria, a concordância entre suas asserções e os dados empíricos aos quais se aplica: tal racionalidade deve permanecer aberta ao que contesta para evitar que se feche em doutrina e se converta em racionalização [que, por sua vez] se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta.

Por esta razão, não poderia o conhecimento científico arvorar-se como um reflexo puro e simples da realidade. O método científico moderno não se basta para produzir a explicação da realidade: “A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia.” (SANTOS, 1989, p.83)

A incerteza, deve ser considerada como algo intrínseco ao conhecimento humano e, portanto, à própria ciência. Note-se que tal incerteza é intrínseca ao fenômeno jurídico, tendo em vista que este é edificado sobre a linguagem, sobre o ato comunicativo, e que, essencialmente, não se pode construir para a Ciência do Direito um método de estudo do seu objeto que o admita como inalterável, imutável, estático.

Inegavelmente, o Direito somente conteria esta incerteza, porque na verdade ele poderia ser compreendido como símbolo, sobre o qual seria admitida a aplicação da hermenêutica, tema que será objeto de estudo no próximo capítulo.

2 O DIREITO COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL

2.1 O direito é um fenômeno social: não se pode conceber um Direito sem sociedade, ou uma sociedade sem normatização, que venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar a condutas dos indivíduos e dos grupos que lhes integram. Seria possível até afirmar que, para que exista sociedade, faz-se necessário a existência do Direito, sendo este, portanto, uma necessidade daquela:

A sociedade sem o Direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O Direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o direito representa um grande esforço, para adaptar o mundo exterior às suas necessidades da vida.(NADER, 1994, p.298)

Evidente que não se fala aqui de que qualquer sociedade, para existir, terá necessariamente que possuir uma codificação (fenômeno tipicamente ocidental) para reger a sua vida social, mas tal coletividade deverá estar regida por um conjunto de normas que lhe conceda estabilidade e que permita o desenvolvimento de atividades econômicas e relativa segurança tanto aos indivíduos, quanto às relações surgidas entre estes, a fim de evitar que a força (individual), por si só, seja o único elemento que possa definir o resultado das querelas da sociedade.

Presume-se que os indivíduos, de uma dada sociedade, ao edificarem o Direito que irá reger as suas relações sociais e limitar a satisfação das suas necessidades, aceitam como legítimo tanto o poder que cria as normas, quanto válidas (e também aceitáveis) os conteúdos destas, pois, do contrário existiria, no mínimo, um contexto de subversão política, já que, estaria, em questionamento, a própria obediência ao estatuto social criado pelo poder político constituído.

De certa forma, o Direito estrutura-se segundo a forma como uma sociedade se enxerga, trazendo consigo uma forte característica simbólica, em outras palavras, a forma como a sociedade edifica seu direito, cristalizando normas e positivando princípios, que, na verdade fazem com que este espelho seja um reflexo daquilo que ela é, ou daquilo que ela busca esconder de si mesma:

[…] Ou seja, as sociedades são a imagem que têm de si vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico. São os espelhos que, ao criar sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida em sociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu próprio terror. […] A ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão entre os mais importantes espelhos das sociedades contemporâneas. O que eles reflectem é o que as sociedades são, Por detrás ou para além deles, não há nada. (SANTOS, 2000, p. 45-46)

Pelo que foi apresentado, para a continuação deste ensaio, se faz necessária a formulação de questões acerca de alguns aspectos: a) Se o Direito é um fenômeno social, como poderia este controlar a própria sociedade que o engedrou? b) Qual o fundamento de legitimidade para que o Direito possa se impor sobre uma determinada sociedade? c) Como o Estado consegue impor um Direito sobre uma sociedade?


2.2 O primeiro ponto de análise deve ser a compreensão da construção da “Ciência do Direito”

Ora, a construção de uma ciência jurídica, teria, por óbvio, uma faceta simbólica manifesta: a de apresentar ao espectador uma aparência de lógica, de autonomia, de sistema fechado, que serviria para isolar (para fins de estudo?) o fenômeno jurídico dos demais eventos sociais, ou das demais disciplinas, de modo que se pudesse construir e compreender o Direito, pelos seus próprios princípios, nos seus próprios termos. Bourdieu (2007, p.209) assim enfrenta o tema:

A ciência jurídica tal como concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna.

Portanto, construir uma teoria pura, para o fenômeno jurídico, seria algo “natural”, dentro desta lógica da absoluta autonomia da ciência jurídica, tendo em vista que, se o direito constitui um sistema que se auto-explica, deveria conter categorias lógicas próprias. Bourdieu (2007, p. 209) tece interessante crítica sobre a construção de uma teoria pura para o Direito:

A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento.

A respeito do tema, deve ser lida também uma interessante crítica de Maman (2003, p.45) a esta construção kelseniana:

Muito mais para explicar, do que para compreender o fenômeno jurídico, constroem-se modelos teóricos que são pura ficção científica. Veja-se Kelsen e sua pretensa neutralidade axiológica e epistemológica. A neutralidade axiológica já não era colocada bem mesmo no Círculo de Viena. E a compreensão da realidade jurídica em termos de força material organizada está no neokantismo. A norma fundamental como pressuposto jurídico leva ao positivismo, que não é senão o represamento da decisão. Assim, toda a construção de Kelsen é uma construção dogmática que deve ser interpretada silogisticamente, segundo uma lógica superada […].

Kelsen lisonjeia o comodismo dos aplicadores do direito, com a lei, numa interpretação racional, abstrata, pré-moldada, podemos resolver todos os problemas. Abre caminho para a cibernética e a solução do computador.

Esta concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que almeja apenas treinar/instruir “técnicos jurídicos”.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam submetidos àquelas normas.

Bourdieu (2007, p.242) explica que esta construção de um discurso homogêneo para a “ciência jurídica” advém inclusive de formação jurídica também homogênea que os operadores do direito adquirem: uma tecnologia que lhes permitirá, pela vias do direito, trabalhar com os conflitos sociais:

A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.

As normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos seus movimentos. Ao isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo.

2.3 Portanto, o Direito procura construir uma simbologia própria para, pela sua utilização por operadores do direito “aptos” e “treinados”, que seja possível controlar e manter, dentro das expectativas do aceitável, os potenciais conflitos sociais que possam emergir das diversas interações entre os agentes sociais.

O Direito cria um discurso, baseado na forma, a fim limitar não apenas a atuação de agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas, mas para tanto, para conseguir manter a eficácia destas regras (ou princípios), faz-se necessária a adesão daqueles que irão suportar o seu peso, e isto se concretiza pela perda do discernimento (dos destinatários das normas), do seu potencial para a questioná-las ou delas discordar, por não estarem “tecnicamente aptos”:

É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais cerca quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento.(BOURDIEU, 2007, p.243)

SANTOS, de forma brilhante, cria uma imagem, uma metáfora, muito forte para demonstrar as consequ?ências este distanciamento entre o Direito e a sociedade que o engedrou: o Direito seria uma espelho da sociedade, refletindo suas estruturas, seus valores, seus ideais, entretanto, tal espelho ganha “vida”, ou seja, a imagem passa a ser uma estátua viva, autônoma em face da coletividade que ela representa. Seria como se o Davi, de Michelangelo, ou a sua Pietá, passassem a exigir que a beleza humana fosse aferida pelos seus parâmetros, pela sua irreal estética:

[…] os espelhos sociais, porque são eles próprios processos sociais, têm vida própria e as contingências dessa vida podem alterar profundamente a sua funcionalidade enquanto espelhos. […] Quanto maior é o uso de um dado espelho e quanto mais importante é esse uso, maior é probabilidade de que ele adquira vida própria. Quando isto acontece, em vez de a sociedade se ver reflectida no espelho, é o espelho a pretender que a sociedade a reflicta. De objecto do olhar, passa a ser, ele próprio, olhar. Um olhar imperial e imperscrutável, porque se, por uma lado, a sociedade deixa de ser reconhecer nele, por outro não entende sequer o que o espelho pretende reconhecer nela. É como se o espelho passasse de objetcto trivial a enigmático super-sujeito, de espelho passasse a estátua. Perante a estátua, a sociedade pode, quando muito, imaginar-se como foi ou, pelo contrário, como nunca foi. Deixa, no entanto, de ver nela uma imagem credível do que imagina ser quando olha. A actualidade do olhar deixa de corresponder à actualidade da imagem.

Quando isto acontece, a sociedade entra numa crise que podemos designar crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira do terror de ver refletida nenhuma imagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado.. Entre os muitos espelhos das sociedades modernas, dois deles, pela importância que adquiriram, parecem ter passado de espelhos a estátuas: a ciência e o direito.(SANTOS, 2000, p. 45-46)


2.4 Pelo distanciamento dos seus destinatários o Direito busca exercer o controle social. Como se daria este distanciamento? De modo brilhante, eis a percepção de Bourdieu (2007, p. 215-216):

[…] A maior parte dos processos lingu?ísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em um sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado [são] próprios para exprimirem a generalidade e atemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético […]

Ou seja, na construção das normas jurídicas, pretende-se apresentar aos seus destinatários um aspecto de impessoalidade e abstração, que, em verdade, apenas existiriam na edificação do discurso cristalizado na lei e que serviriam para, diante do leitor/súdito da norma, transmitir-lhe a crença de que a sua natureza (ou a sua finalidade) coincidiria com a forma como foi redigida. Neste sentido, FERRAZ JR. (2008, p. 45-46):

[…] o jurista da era moderna, ao construir os sistemas normativos, passa a servir aos seguintes propósitos, que são também seus princípios: a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível. Por meio de leis, fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental, que deve ser captada como tal. As lei tem um caráter formal e genérico, que garante a liberdade dos cidadãos no sentido de disponibilidade. Nesses termos, a teoria jurídica estabelece uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria bordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítimas da utilidade privada. Sobretudo, esboça-se uma teoria da regulação genérica e abstrata do comportamento por normas gerais que fundam a possibilidade da convivência dos cidadãos.

Pelo discurso, pretende-se construir um mise en scène, desviando a atenção do leitor/súdito da norma do verdadeiro desiderato do comando, gerando neste a crença na impessoalidade e neutralidade da norma jurídica:

Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização […] que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto há séculos. (BOURDIEU, 2007, p.216)

Logo, para exercer o controle da sociedade, não basta apenas deter o monopólio da produção do direito, sendo necessário também que haja uma limitação ao ato de interpretar as normas jurídicas.

Se o discurso cristalizado no direito positivo busca o controle da sociedade, necessário analisar, a seguir, quem detém o monopólio sobre a atuação de dizer o Direito, de dar a última palavra acerca da relação entre os fatos e as normas: o atuar do Estado-Juiz.

3 OS LIMITES PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

3.1 O direito positivado, cristalizado em normas escritas, que estão corporificadas nas espécies legislativas, podem, sem dúvidas, subverter o próprio sistema. Como poderia isto acontecer?

A construção do direito passa necessariamente da atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural como a nossa a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Evidentemente que existe um risco (decorrente de insegurança) se o conteúdo das normas jurídicas forem criados livremente pelos seus próprios intérpretes. Aí reside a insegurança jurídica, que não pode ser tolerada, sob pena de que, pela ausência de um dos pilares que justificam a sua existência, venha o Direito perder a sua legitimidade em face dos seus súditos.

Por esta razão, para limitar a pluralidade de interpretações, o Direito limita: (a) o espaço em que este debate se realizará; (b) os atores legitimados para validamente realizar a interpretação das normas; e (c) a sua duração, concedendo ao Estado-Juiz a última palavra sobre o tema debatido.

3.2 Bourdieu (2007, p. 229), de forma brilhante, percebe que este debate jurídico realizado sobre a válida interpretação das normas jurídicas deve ocorrer em um campo próprio:

O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflicto directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as lei escritas e não escritas do campo- mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei […].

E mais:

A constituição do campo jurídico é um princípio de constituição da realidade […]. Entrar no jogo, conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia violência física e às formas elementares de violência simbólica. (BOURDIEU, 2007, p. 233)

3.3 Ao adentrar neste campo jurídico, os litigantes renunciam à possibilidade de solução própria individual do litígio, conferindo o poder de encontrar a interpretação adequada, ao caso concreto, para o Estado-Juiz, aceitando, portanto, as “regras do jogo”, para que possam ter acesso, de forma legítima, ao bem da vida que está sob disputa, mas, em regra, deverão as partes atuar por meio de profissionais habilitados para tanto:


O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele (pelo recurso da força ou a um árbitro não oficial ou pela procura directa de uma solução amigável), ao estado de clientes de profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que garante o domínio dos meios vê recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo. (BOURDIEU, 2007, p. 233)

3.4 O Direito não admite a eternização do debate e da disputa jurídica acerca dos bens da vida, pelo fato que, se assim ocorresse, a insegurança permearia as relações humanas, tendo em vista que os conflitos não encontrariam fim, já que seria possível, aos litigantes, sempre reiterar (ou renovar) seus pontos de vista. Para tanto, ao Estado-Juiz, é concedido o poder de pôr termo às disputas, apresentando a interpretação definitiva do fato, à luz do Direito:

Confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo tempo cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto solenemente enunciado de uma “autoridade” socialmente mandatada, o pliro representa uma encenação paradigmática da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem impor-se ao reconhecimento e, deste modo realizar-se, está em jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de divisão […], portanto, de distribuição legítima. (BOURDIEU, 2007, p. 236)

Ou seja, o monopólio da jurisdictio, de interpretar o mundo, está contido nas mãos do Estado, que em regra não delega a particulares os seus atos de jurisdição, como fica bem evidente no tipo “Exercício ilegal das próprias razões” (art. 350, do Código Penal), em que a parte, julga e age, em busca da concretização do direito que entende ser seu. Neste sentido Bourdieu (207, p. 236-237) aprofunda o tema:

O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negociações a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publicamente o que elas são na verdade, em última instância, pertence à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim do insulto lançado por um simples particular que, enquanto discurso privado – idios logos – , que só compromete o seu autor, não tem qualquer eficácia simbólica; ele representa a forma por excelência da palavra autorizada, palavra pública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes enunciados performativos, enquanto juízos de atribuição formulados publicamente por agentes que actuam como mandatários autorizados de uma colectividade e constituídos assim em modelos de todos os actos de categorização […], são actos mágicos que são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem.

E conclui afirmando que o Direito seria o poder simbólico por excelência (LYRA FILHO, 2006, p.8), já que controla a sociedade, moldando os rumos da história:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas.

O direito é a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este. (BOURDIEU, 2007, p.237)

Se o direito busca criar os próprios limites para o exercício da limitação da interpretação do fenômeno jurídico, a fim de controlar a insegurança que poderia surgir no próprio sistema, reprimindo a atuação dos particulares, delegando a palavra final para o Estado-Juiz, estas características ficam mais evidentes quando a própria lei limita o próprio intérprete, como ocorre com o art. 111 do CTN:

Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II – outorga de isenção;

III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

Por este dispositivo, quando da aplicação de determinados tipos de normas tributárias, o operador do Direito estaria adstrito, tão-somente, a um único e específico tipo de interpretação. Entretanto, em verdade, tal norma jurídica, que como se nota, não estabelece nenhuma sanção, atuaria como um símbolo que contaminaria todo o Direito Tributário, cerceando a liberdade interpretativa e cristalizando este ramo do Direito, inclusive no que se refere ao ensino jurídico.

4 O PROBLEMA DA CRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NO ENSINO DO DIREITO

4.1 Desde o século XVI, após o Renascimento, a civilização ocidental viveu à sombra de um paradigma que alcançou seu auge no Iluminismo e no século XIX, mas, no nosso atual contexto histórico, as suas construções científicas nada mais são que “uma pré-história longínqua”, pois chegamos à pós-modernidade, que traz consigo a idéia de superação de um modelo cognoscitivo.

Nas palavras de SANTOS (2005, p.21-22):

Os modelos de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. […] Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

Daí se conclui que, no paradigma científico dominante, o que não é mensurável não seria (cientificamente) relevante, tendo em vista que, para se conhecer a realidade, faz-se necessário reduzir a complexidade a modelos simples, a fim de detectar os elementos essenciais de cada objeto, definindo as suas principais características, com o espeque de dividi-los e classificá-los.


4.2 Ora, edificado este paradigma pela ciência moderna, Santos identifica e demonstra que o mesmo está em crise, vislumbrando-se a ascensão de um novo paradigma científico: “A crise do paradigma [científico] dominante é o resultado interactivo de uma pluralidade de condições [dentre elas] o aprofundamento do conhecimento que permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda [a própria ciência].” (SANTOS, 2005, p.41)

Em verdade, vive-se uma “perda de confiança epistemológica”, isto é, duvida-se se a ciência clássica, seus métodos e a própria capacidade de explicar a realidade, como foram edificadas, desde o século XVI, ainda fornecem respostas válidas para trazer explicações para o mundo em que se vivia.

O conhecimento científico buscou, pelo seu discurso e pela sua construção teórica, arvorar-se como espelho da realidade, isto é, a própria ciência nada mais seria que um reflexo da realidade, já que a descreveria e a explicaria, por meio da sua linguagem.

4.3 Se o Direito não é uma realidade objetiva, não se pode conceber que a transmissão do conhecimento jurídico, dentro de um ambiente de sala de aula se dê por meios que suprimam a criatividade interpretativa do aluno.

Ao contrário, na sala de aula, em um ambiente em que se pretenda transmitir o conhecimento jurídico, não basta apenas expor o direito positivo (direito-que-aí-está), deve-se construir o Direito, deve-se edificar o seu conteúdo.

Portanto, a aquisição do conhecimento jurídico é uma atividade realizada pelo sujeito, logo a sua subjetividade e a qualidade das relações existentes em um ambiente de sala de aula são dados relevantes para tanto.

A construção do direito passa necessariamente pela atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.

Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural (como a nossa) a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.

Surgem então os extremos da dogmática jurídica, que desembocam na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que pode ser considerada como uma das grandes obras que influenciou o pensamento jurídico do século XX, pela qual se pretendia construir uma teoria do direito que não pode ser “contaminada” por elementos que não fossem jurídicos:

O esforço notável de Hans Kelsen de constituir uma ciência do direito livre de toda ideologia, de toda intervenção de considerações extra-jurídicas, e que se concretizou pela elaboração de sua teoria pura do direito (Reine Rechtslehre), foi talvez o fato que suscitou mais controvérsias entre os teóricos do direito do último meio século. As teses apresentadas por esse mestre inconteste do pensamento jurídico, com a clareza e a força de convencimento que caracterizam todos os seus escritos, colocaram em questão tantas idéias comumente admitidas, atingiram tantas consequ?ências paradoxais — das quais a mais escandalosa diz respeito à concepção tradicional da interpretação jurídica, bem como ao papel do juiz na aplicação do direito –, que nenhum teórico do direito poderia nem as ignorar nem abster-se de posicionar-se a seu respeito.

A ciência do direito, como conhecimento de um sistema de normas jurídicas, não pode constituir-se, segundo nosso autor, senão excluindo tudo o que é estranho ao direito propriamente dito. O direito, sendo um sistema de normas coercitivas válido em um Estado determinado, pode ser distinguido nitidamente, por um lado, das ciências que estudam os fatos de toda espécie, o que é e não o que deve ser (o Sein oposto ao Sollen), e, por outro, de todo sistema de normas diverso — de moral ou de direito natural — com o qual gostaríamos de confundi-lo ou ao qual gostaríamos de subordiná-lo. Uma ciência do direito não é possível, segundo Hans Kelsen, a não ser que seu objeto seja fixado sem interferências estranhas ao direito positivo. Eis porque a teoria pura do direito se apresenta como a “teoria do positivismo jurídico”.(PERELMAN, 2008)

Tal concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando-se com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que busca apenas formar “técnicos jurídicos”, como já exposto.

Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam sendo submetidos às normas. Ora, as normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos movimentos destes agentes sociais.

Ao pretender isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir, para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo. A essência desta separação entre direito e agente social se encontra na concepção de que o estado seria algo abstrato, distante da sociedade: “O conceito de Estado, enquanto entidade abstracta, separada quer do governante quer do governado, é o resultado de um longo percurso conceptual que remonta à recepção do direito romano nos séculos XII e XIII.”(SANTOS, 2000, p.162)

Ora, se o Estado, fonte “única” e “central” da produção normativa, de criação do Direito, encontra-se isolado da sociedade que por ele é submetida, por óbvio, as normas jurídicas que dele provêm também estariam distantes desta sociedade e seriam suficientes para reger a vida civil do civites, do cidadão. Esta é a perspectiva dogmática. Seria ela válida? Óbvio que não. Eis um exemplo manifesto:

O Código Civil (Lei nº 10.406/2002) tem por pretensão reger as relações civis no âmbito do território brasileiro. Pelo nosso código, apesar de vigorar o princípio da socialidade, nele ainda se encontra a idéia de que o condomínio é uma exceção a regra de que a propriedade não pode ser compartilhada, logo, o caminho natural, de qualquer condomínio, seria a sua dissolução (art. 1320 e 1321 do Código Civil/2002).

Tal lógica possui substrato na concepção capitalista de propriedade, mas, talvez, não possua sentido em uma sociedade quilombola, ou em uma sociedade indígena, em que as normas jurídicas dominicais do nosso Código Civil não possam ser aplicadas pelo fato de que não encontrariam o devido substrato social para sua incidência, sob pena de destruição da própria vida comunitária e da própria autonomia cultural dos agentes sociais.

Fica evidente que, para a construção de um conhecimento jurídico válido para a realidade em que vivemos, é necessário que o discente seja agente do processo educacional, porque ele também é agente na construção do fenômeno jurídico.

Neste mesmo sentido, Freire (1996, p.47):

Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua própria produção ou para a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento


Portanto, o papel para construção de um novo ensino jurídico seria a pesquisa (em substituição à aula), já que, nas palavras de Demo (2006, p.6), ela seria “a base da educação escolar”, pois ela possibilitaria interpretações próprias, com a utilização da vivência do aluno, com a reconstrução do conhecimento, que é um processo complexo, a partir do senso comum, com a real compreensão do que se vislumbra.

Pela pesquisa, seria possível fornecer ao discente técnicas para reconstruir o conhecimento jurídico, possibilitando que o aluno passe a ser agente na construção do próprio fenômeno, ou seja, operador do direito e não apenas um mero técnico, que conhece as normas, mas não constrói os seus conteúdos.

5 A PRISÃO DA HERMENÊUTICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO E O SEU ENSINO

5.1 O Código Tributário Nacional (CTN), inegavelmente, é o melhor diploma legislativo fiscal que o Brasil já possuiu. A Lei nº 5.172/66, criada para regulamentar os dispositivos inseridos pela Emenda constitucional nº 18/65, à Constituição de 1946, deu precisos contornos ao Sistema Tributário Nacional.

Fundado na idéia de que o tributo seria uma relação obrigacional pecuniária, instituída por lei, que vincularia o indivíduo e o Estado, o CTN buscou assegurar deveres e direitos recíprocos para as partes, afastando do sujeito passivo tributário a absoluta sujeição patrimonial, já que este teria direitos que poderiam ser opostos perante o detentor do poder de tributar.

Entretanto, desde a criação do CTN, já se vão mais de 40 anos. É natural que ocorra o fenômeno do ancilosamento normativo, isto é, as normas jurídicas começam a caducar, tendo em vista a transformação do substrato social que ampara tais normas, surgindo lacunas ontológicas no sistema. De fato, desde a década de 1960, o Brasil transformou-se muito.

O CTN, criado pelo governo militar de Castello Branco (1964-1967), sob a Constituição de 1946, pretendia apresentar conceitos nucleares para as relações tributárias, em um país ainda eminentemente agrário, em que as relações empresariais eram regidas pelos atos de comércio do Código Comercial de 1850 e pelas relações civis, pelo liberal Código de 1916.

O Brasil de 2009 quase que não consegue imaginar a década de 1960, pois além de ter sofrido uma profunda alteração social, a partir da década de 1970, com o fenômeno da urbanização massiva, as relações empresariais e civis também evoluíram, com a tecnologia das comunicações (a partir da década de 1980), permitindo a consumação de milhões de contratos, pelo uso da informática.

Sem dúvidas, a principal mudança introduzida pelo CTN foi a de possibilitar que surgisse uma espécie de arquétipo tributário, isto é, que os tributos possuíssem uma uniformidade em todo território nacional, sendo regidos por institutos que seriam sempre similares por todo o país.

A fim de robustecer esta identidade, esta padronização, para todos os entes federativos, o CTN criou o que poderia se denominado de micro-sistema hermenêutico para as normas tributárias (arts. 107 a 112 do CTN) fazendo com que estas somente pudessem vir a serem interpretadas à luz do que o próprio Código estabelecesse.

5.2 Como já exposto, o Código Tributário Nacional (CTN), Lei nº 5.172, de 1966, inseriu, no ordenamento jurídico brasileiro, uma norma que buscava limitar a atuação dos operadores do direito no momento em que estavam a analisar o alcance das normas previstas na legislação tributária: o art. 111 do CTN.

Tal dispositivo legal busca restringir a atividade interpretativa do operador do direito, sobretudo em temas que envolvam causas de suspensão (moratória, depósitos do montante integral etc, como previsto no art. 151 do CTN) e exclusão do crédito tributário (isenção e anistia, nos termos do art. 175 do CTN).

Havia uma justificativa para criação desta norma, já que o Código Tributário Nacional (CTN), no seu nascedouro, teve por meta atuar como uma meta-lei, transcendendo às legislações estaduais e municipais, conferindo um padrão geral (um standard) para criação dos tributos (e da legislação tributária em geral).

O art. 111 do CTN, portanto, dentro deste contexto, buscava impedir que os órgãos administrativos e judiciários, por meio de normas interpretativas, viessem a quebrar este padrão, instituindo, por meio de meras interpretações, benefícios fiscais que não estavam expressamente previstos em lei. Em suma, buscava-se limitar a liberdade interpretativa do operador do Direito, seja o Estado-Juiz, seja a autoridade tributária, com a finalidade, sobretudo, de se evitar possível lesão aos cofres públicos (pela perda de recitas), bem como agressão à isonomia (com a concessão de benefícios fiscais particulares).

Entretanto, o que deveria ser uma limitação pontual, pela própria natureza simbólica do direito, tornou-se quase que uma proibição genérica que passou a cercear a liberdade interpretativa no âmbito de todo Direito Tributário, engessando, por mais de quatro décadas, a liberdade do Estado-Juiz de dizer o direito no caso concreto, inclusive construindo regra jurídica mais equânime para cada situação.

Agravando-se tal situação, esta limitação interpretativa, associada à limitação de integração da legislação tributária, prevista no art. 108 do CTN, fez com que, no ensino do direito tributário, fossem criadas amarras que impedem uma evolução interpretativa da legislação, reproduzindo-se, portanto, a mesma forma de se estudar e de se compreender o Direito Tributário, desde a década de 1960.

É nesse contexto, que surge a crítica à manutenção desta ilusória e simbólica limitação, que serve, mais do que tudo, para a reprodução de um status quo fiscal baseado, portanto, em apenas uma interpretação literal da lei tributária.

Pode-se afirmar que o art. 111 do CTN se apresenta para a estrutura do Direito tributário quase como o Código de Napoleão de 1804, que impedia a livre interpretação dos seus dispositivos, a fim de evitar uma destruição do sentido original da própria lei.

Em verdade, tal dispositivo, sem dúvidas, se apresenta como um símbolo que enclausurou todo o direito tributário, seja quando da interpretação do CTN e da legislação infraconstitucional, seja porque tais regras interpretativas afastam, no campo da aplicação das normas constitucionais (princípios e regras) do Sistema Tributário Nacional, os demais princípios norteadores da nossa Cartha Magna.

Em verdade, pode-se afirmar que este micro-sistema hermenêutico tributário aprisionou inclusive o próprio estudo e ensino do Direito tributário: se a interpretação e a integração do direito tributário somente podem ser realizadas sob a égide dos dispositivos presentes entre os arts. 107 e 112 do CTN, porque permitir novos olhares sobre este ramo do Direito?

Muito interessante seria se, por exemplo, o CTN pudesse ser interpretado à luz da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) que representa o alicerce sobre o qual se ampara toda a República Federativa do Brasil.

Como poderiam ser as conclusões que surgiriam deste tipo de interpretação? Em um exercício de imaginação, admissível concluir que seria possível: a) a dispensa do pagamento de tributo, pela aplicação da equ?idade, quando tal cobrança acarretasse em impossibilidade de se assegurar vida digna ao indivíduo (estaria, portanto, revogado o §2º, do art. 108, do CTN); b) ao Estado-Juiz pudesse ampliar a extensão das normas referentes à causa de exclusão do crédito tributário (isenção e anistia), por meio de aplicação de regras interpretativas, ou, até mesmo, por equ?idade, quando viessem conferir vida digna ao indivíduo, obtida por meio da valorização do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF); e c) ao Estado-Juiz se libertar das amarras hermenêuticas que o prendem, em face da livre convicção motivada das suas decisões (art. 93, X, CF), sendo possível que, por exemplo, pudessem vir a ser construídos, caso a caso, meios de transação do crédito tributário, por conciliação judicial, para colocar fim aos litígios existentes, sempre que, nesta conciliação, estivesse presente a necessidade se assegurar a possibilidade de o indivíduo explorar de modo lícito sua atividade econômica, retirando sustento para a sua vida (e da sua família). Em outras palavras, as possibilidades são tantas, tão vastas, que não seria possível elencar todas, mas, seguramente, o Direito tributário que iria emergir seria algo absolutamente diferente, vivo, adaptado à realidade brasileira do Século XXI, no qual o Estado-Juiz poderia construir uma novo tipo de relação entre o ente tributante e o sujeito passivo da relação tributária.


6 CONCLUSÃO

O ato de educar, inegavelmente, é um processo lingu?ístico, no qual, a construção do conhecimento é uma atividade coletiva, já que nesta relação humana finalística faz-se necessário que haja uma interação e que nesta, tanto o docente, quanto o discente atuem como protagonistas.

O atuar como protagonista pressupõe que o discente terá de efetivamente interferir e, sobretudo, participar na construção do conhecimento que, em sala de aula, pretendeu ser transmitido.

Fica evidente que a experiência do discente, mesmo que fundada apenas em (um difuso) senso comum, deverá ser fonte da criação/transformação do conhecimento que, em sala de aula, é apresentado. Se se admitir que a experiência do aluno, mesmo que fundada apenas no senso comum, serve de ponto de partida para que o discente possa edificar novos conhecimentos, deve-se considerar que esta experiência deve servir, inclusive, como fonte autorizada para a realização da hermenêutica do próprio conhecimento científico.

Ora, se a interpretação é da essência do Direito, já que o direito é símbolo, construída sob formas lingu?ísticas, como demonstrado, não é possível que se admita limites à interpretação, mesmo que derivados de vedação legal, logo, nem o operador do Direito, nem o estudante estão tolhidos de enxergar o ordenamento jurídico pátrio se valendo da regra matriz do ordenamento jurídico brasileiro, a proteção da dignidade humana (art. 1º, III, da CF).

Portanto, não se pode tolerar, durante o processo educativo, da validade ou da aplicabilidade das normas de interpretação e integração da legislação tributária, previstas nos arts. 107 a 112 do CTN, sob pena de transformar o Direito Tributário em um estéril campo de atuação dos alunos (e futuros juristas), com a reprodução de uma ideologia de um outro contexto histórico da sociedade brasileira.

Necessária a transformação dos critérios de interpretação e de integração da legislação tributária (arts. 111 e 108, CTN), para permitir que o Estado-Juiz, quando da aplicação do Direito ao caso concreto, tenha a liberdade para moldar a estrutura tributária aos fundamentos da República, sobretudo o da dignidade humana e da valorização social do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, CF).

Se, como exposto, o Direito é um espelho da sociedade, cuja imagem tende a se transformar em estátua, quando este corpo social não detecta pontos de contato entre a sua realidade e as normas deste ordenamento, manter esta vedação à livre interpretação e integração do CTN representaria transformar o melhor diploma fiscal do Brasil em um imenso Colosso de Rodes, à espera de um terremoto que viesse a espalhar deus destroços: seria impelir o CTN a caducar, a perder contato com a realidade brasileira que necessita dele.

REFERÊNCIAS

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

_______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000, v.1.

________. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2005.


A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas

André Emmanuel Batista Barreto Campello1

“[…] fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso.
As leis concernentes à escravidão (que não são muitas)
serão pois classificadas à parte, e formarão nosso Código Negro.”.

Augusto Teixeira de Freitas, na sua Consolidação das Leis Civis, de 1858.

RESUMO:

Trata-se de estudo que busca realizar uma análise da escravidão enquanto fenômeno jurídico durante o Império do Brasil, analisando-se o ordenamento jurídico brasileiro do referido período, em busca do regime jurídico do escravo e dos fundamentos legais da escravidão.

Palavras-chave: Escravidão. História do Direito. Brasil Império. Direito Constitucional. Direito Civil. Direito Penal.

1 INTRODUÇÃO

O fascínio de se realizar um estudo sobre história do direito reside no fato de que ao se adentrar na legislação de um ordenamento jurídico que não mais vigora, em verdade, se depara com a alma de uma sociedade que não mais existe.

Seria como reanimar, com um sopro, um ser que não mais vive, vendo como ele se move, quais são seus objetivos, seus valores, seus traumas, em suma, tentando enxergar o cotidiano do reanimado, pois, com o estudo das formas jurídicas, é possível compreender como uma sociedade tutela seus principais valores e como pretende defender e efetivar os direitos assegurados, que estão cristalizados nas normas jurídicas.

Sem dúvidas este ato de reconstrução da dinâmica jurídica é uma atividade artificial, já que os integrantes daquela sociedade, sobre a qual incidiam aquele ordenamento jurídico estudado, não se encontram presentes, logo, para o estudo do direito deve-se buscar a doutrina, a opinio iuris, de contemporâneos que pudessem nos explicar a dinâmica daquele Direito.

Portanto, ao se realizar um estudo sobre o direito que regia uma outra sociedade, que não mais existe, deve-se buscar interpretar a legislação, não com os nossos olhares, mas pelos padrões de compreensão daqueles que viveram sob aquele ordenamento.

Neste presente artigo pretende-se vislumbrar os marcos jurídicos do instituto da escravidão vigentes durante o Império do Brasil.

É manifesto que os aspectos sociológicos e econômicos da escravidão são em demasia abordados na farta bibliografia nacional sobre o tema, entretanto, por mais estranho que possa parecer, não é usual encontrar artigos que venham a trazer análise do ordenamento jurídico brasileiro vigente no século XIX, que amparava tal instituto.

A escravidão, muitas vezes, é enxergada apenas como um fenômeno fático, percebido sob nuances sociológicas ou econômicas, que simplesmente existia no Brasil do século XIX e que foi extinto por meio da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888.

Entretanto, a questão não é tão simples assim: a escravidão era amparada por uma legislação, que, inclusive a constitucionalizava, apesar de não se referir a ela diretamente (MORAES, 1966, p.372).

Neste artigo pretende-se apresentar ao leitor os marcos jurídicos e a sua dinâmica, a fim de ser possível conhecer o regime jurídico da escravidão, bem como analisar como a natureza jurídica do escravo, tanto no âmbito civil, quanto no âmbito penal.

O primeiro passo, sem dúvida é desvendar o mistério de como a Constituição de 1824 conseguiu conciliar a contradição existente na manutenção da escravidão e a sua natureza liberal, que inclusive trazia um grande rol de direitos fundamentais.

2 A ESCRAVIDÃO COMO INSTITUTO DO DIREITO VIGENTE NO IMPÉRIO DO BRASIL

2.1 A Escravidão: fundamentos constitucionais do instituto.

O fenômeno constitucionalista brasileiro não adveio de uma revolução, pois a Independência não significou uma ruptura com o passado brasileiro.

A independência do Reino do Brasil Unido a Portugal e Algarves (desde a chegada da família real portuguesa e da transferência da Corte para o Rio de Janeiro) não significou um rompimento das estruturas sociais e econômicas vigentes no período histórico anterior, mas uma manutenção destas, conferindo-se poderes políticos à aristocracia rural brasileira.

Pela sua perspectiva de manutenção do status quo, não haveria como a futura constituição do Império do Brasil eliminar subitamente o instituto jurídico da escravidão que servia de fundamento jurídico do sistema produtivo brasileiro.

Apesar disto, na Assembléia Constituinte de 1823 foi apresentada, por José Bonifácio, representação contra a escravatura, nos seguintes termos:

[…] sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso, e uma marinha florescente. Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade, e justiça; e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força, e poder entre as nações. (DOLHNIKOFF, 2005, p.51)

A escravidão não estava prevista, expressamente, em nenhum dos dispositivos da Constituição Imperial, de 1824, o que não poderia ser diferente, já que, pela sua inspiração liberal, não poderia tal Charta Magna, explicitamente trair a sua própria finalidade, como preconizado pela teoria constitucionalista, o resguardo das liberdades individuais.

Dispor sobre a escravidão em uma Constituição liberal seria uma contraditio in terminis, entretanto, o legislador constituinte encontrou uma saída: implicitamente, fez referência aos cidadãos brasileiros libertos, ou seja, que emergiram da capitis diminutio maxima, passando a gozar de seu status libertatis, mas sem alcançar o mesmo status civitatis dos cidadãos brasileiros ingênuos.

Tal conclusão pode ser ratificada pela leitura do art. 6º, §1º, da Constituição de 1824, que classificava os cidadãos brasileiros em duas categorias, os ingênuos e os libertos:

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.


Para perfeitamente definir estes termos jurídicos contidos na Charta imperial, importantíssima a leitura das lições do Conselheiro Joaquim Ribas (1982, p. 280):

Em relação ao direito de liberdade, dividem-se os homens em – livres e escravos, e aquelles se subdividem em – ingênuos e libertos. Chama-se ingênuo o que nasce livre; liberto o que tendo nascido escravo, veio a conseguir a liberdade.

Pode-se concluir que, se a própria Charta Magna imperial atribuía a condição de cidadãos apenas àqueles indivíduos que se apresentavam como ingênuos ou libertos era porque este diploma admitia, ao menos tacitamente, a existência de, no território do Império (art. 2º), haver a possibilidade de existência de outros indivíduos que não poderiam ser cidadãos, por não possuírem este status libertatis, ou seja, porque eram escravos.

A Constituição imperial não declarou a existência da escravidão, mas dela poderia se inferir a existência e a legitimidade deste instituto, pelo ordenamento jurídico brasileiro.

2.2 O estatuto constitucional do liberto

O art. 94, §2º, da Charta imperial reduz o liberto à condição de cidadão de segunda classe: apesar de os libertos serem cidadãos e, portanto, gozarem de liberdade, não poderiam ser eleitores (em um contexto do voto censitário), portanto, também estaria vedado o seu acesso a cargos públicos cujo requisito fosse a condição de eleitor:

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléia Parochial. Exceptuam-se.
I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
II. Os Libertos.

Deve-se frisar que há uma aparente antinomia entre o dispositivo em comento e o art. 179, XIV, da Charta imperial, já que se o liberto era um cidadão brasileiro, não poderia haver vedação dos cidadãos ao cargos públicos, nem criação de restrições, senão com fundamento nos talentos e virtudes de cada um: “XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.”.

Evidente que, à luz da Charta imperial, talentos e virtudes não seriam suficientes para suprir a perda do status libertatis (em algum momento da sua existência), que impossibilitaria que ex-escravos viessem a ocupar cargos públicos.

O Conselheiro Joaquim Ribas assim comenta o status do liberto, demonstrando que ele poderia retornar ao estado de escravo (RIBAS, 1982, p. 280):

Entre os Romanos esta distinção [entre ingênuos e libertos] influía poderosamente na condição do liberto para tornal-a inferior à do ingênuo. Entre nós esta influencia hoje só se entende à esphera do direito político; pois a possibilidade de ser o liberto reconduzido ao estado de escravidão, por ingratidão, nos casos definidos pela Ord. L. 4, Tit. 63 §7 e seguintes, cessou pela disposição do art. 4 §9 da lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871.

Observe-se que o liberto, em verdade, no ordenamento jurídico brasileiro, vivia sob um estado de constante insegurança jurídica, já que existia uma real possibilidade jurídica de perda do seu status libertatis em face da possibilidade de se invocar a ingratidão por supostos atos praticados pelo alforriado em detrimento do seu antigo dominus.

Esta possibilidade de revogação do status libertatis é objeto do raciocínio do Conselheiro Joaquim Ribas, que a justificava aplicando-lhe o regime jurídico da doação, com fundamento no disposto no § 7º, Título 63, do Livro IV, das Ordenações Filipinas:

Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, commetter contra quem o forrou, alguma ingratidão pessoal em sua presença, ou em sua absencia, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá este patrono revogar a liberdade, que deu a este liberto, e reduzil-o à servidão, em que antes estava. E bem si por cada huma das outras causas de ingratidão, porque o doador pôde revogar a doação feita ao donatário, como dissemos acima.

As consequ?ências práticas deste odioso dispositivo podem ser assim compreendidas:

A prática da alforria permitia a um indivíduo constituir uma clientela de homens obrigatoriamente dedicados. Mercê da alforria, o político escravista podia aumentar o número de votos que controlava nas eleições primárias ou paroquiais. Nisto reside a explicação da circunstância, repetidamente lamentada por Joaquim Nabuco, de que nas eleições os libertos votavam nos candidatos antiabolicionistas. Por medo de serem acusados de ingratos, os libertos denunciavam as conspirações escravas. O liberto se vinculava ao patrono até mesmo pelo sobrenome. Escravos, como se sabe, não tinham sobrenome, e por isto ao se alforriarem adotavam o do patrono. A Lei Rio-Branco (Lei n.º 2.040), de 1871, ao revogar o dispositivo das Ordenações que facultava a revogação da alforria, conferiu a todos os libertos a mais completa independência jurídica, mas nem por isso suprimiu a restrição aos seus direitos políticos. (FREITAS, 1988, p. 55-56)

Como exposto, a previsão legal de reversão da alforria concedida foi revogada, expressamente, pelo §9º, art. 4.º, da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871, a denominada “lei do ventre livre”, que derrogava os dispositivos das ordenações Filipinas que admitiam esta possibilidade: “§9.º Fica derrogada a Ord.. liv. 4.º, tit.63, na parte que revoga as alforrias por ingratidão.”

É importante frisar que este odioso dispositivo, que permitia a reversão no status do liberto, somente foi revogado aproximadamente transcorrido meio século após a outorga da Charta imperial, pela Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871.

2.3 A herança legislativa portuguesa e a compra e venda de escravos

Quando se busca investigar as estruturas legislativas do ordenamento jurídico brasileiro, vigentes no Império do Brasil, não se pode deixar de falar que o país não herdou apenas a estrutura econômico-social vigente durante a colônia, mas também a legislação metropolitana portuguesa, recepcionada pela Lei de 20 de outubro de 1823:

Art. 1.º As Ordenações, Leis, Regimentos, Avaras, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelíssima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brazil, em quanto reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negócios do interior deste Império, emquanto se não organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas.

Na falta de um Código, os atos da vida civil deveriam ser regidos pelo Livro IV, das Ordenações Filipinas, que tratava especificamente deste tema, mas que não possuía ponto de contato com a sociedade brasileira do século XIX, já que este diploma legislativo havia sido criado antes da União Ibérica, isto é, já datando mais de 200 quando da independência do Brasil.


O Conselheiro Joaquim Ribas assim comenta e critica a aplicação das Ordenações Filipinas à sociedade brasileira (RIBAS, 1982, p. 76):

O ultimo [trabalho legislativo português], que ainda até hoje se acha em vigor, foi começado no reinado de Fellippe II de Hespanha e I de Portugal, e concluída no seguinte, sendo sancionado e publicado pelo Alv. De 11 de Janeiro de 1603. Em consequ?ência, porém, da elevação da casa de Bragança ao throno de Portugal, entende-se necessário revalidar estas Ordenações, e para este fim expediu D. João IV a lei de 29 de Janeiro de 1643, que revogou todas as legislações anteriores a ella, [salvo algumas exceções] (…). Dos cinco livros das Ordenações Philipinas quase que só o 4º é destinado à theoria do direito civil. Mas os seus preceitos, além de nimiamente [sic.] deficientes, e formulados sem ordem, não estão ao par das necessidades da sociedade actual e dos progressos da sciencia jurídica.

Não obstante estas críticas, os negócios jurídicos civis em geral, bem como os contratos, deveriam ser regulados por este diploma legislativo que apresentava inclusive as regras para regência do contrato de compra e venda de escravos, nos termos do Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas:

Qualquer pessoa, que comprar algum scravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se delle, o poderá engeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro de seis meses o dia, que o escravo lhe for entregue.

É de se ressaltar que, nos parágrafos do Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas, havia a regulamentação, bem como de eventuais vícios redibitórios, além de outros que pudessem contaminar o referido negócio jurídico:

Se o scravo tiver commettido algum delicto, pelo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda e não declarar, poderá o comprador engeital-o dentro de seis meses, contados da maneira, que acima dissemos. E o mesmo será, se o scravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

Em suma, no próprio negócio jurídico de compra e venda, já se pode constatar que, aos escravos, poderiam ser aplicadas sanções, tendo em vista o peculiar regime jurídico dos cativos, distinto daquele relacionado aos homens livres. Esta diversidade de regimes sancionatórios será analisada mais adiante.

3 DEBATES ACERCA DA LEGALIDADE DA ESCRAVIDÃO

3.1 Questionamentos sobre a legitimidade da escravidão

Evaristo de Moraes, em brilhante obra, questiona a legalidade da própria manutenção da escravidão e de escravos, à luz nas normas vigentes durante o Império do Brasil.

O mencionado autor, para espanto, cita um trecho da fala do senador Ribeiro da Luz, em discurso proferido no dia 07 de julho de 1883, tecendo reflexões sobre a validade e eficácia da Lei de 07 de novembro de 1831 (mais adiante analisada):

Não sei qual foi a lei que autorizou a escravidão. O que nos diz a história pátria é que, havendo índios escravos entre nós, para libertá-los, foram introduzidos os africanos, que passaram a substituí-los no cativeiro. Conheço muitas leis, que fazem referência à escravidão, e estabelecem, disposições especiais a respeito do escravo; mas não sei de nenhuma que autorize expressamente a escravidão no Brasil. Foi o tempo e depois as lei, que se referiam à escravidão, que a legalizaram. (MORAES, 1966, p. 156-157)

A regra é a liberdade, já que a escravidão não se presume:

Sendo a escravidão, como fato anormal contrário à lei natural, somente tolerada pela lei civil, por força de razões puramente econômicas, nunca e e em caso algum se presume, mas deve pelo contrário, se provada sempre: Inst. Just. pr. de libert. 1.º e 5.º; Ord. I, 4º tit 42; alv. 30 de junho de 1609. (MARQUES apud MOARES, 1966, p. 165)

Esta conclusão decorre de um exercício de lógica: se a Constituição política, que deveria servir de fundamento para a defesa de direitos fundamentais, não declara (ao menos expressamente) a existência da escravidão, não tolerando a violação do direito à liberdade (art. 179, I e VII, da Charta de 1824, por exemplo), não haveria razão para, de forma tácita, inferir que este abominável instituto civil viesse a prosperar no nosso solo. Evidente que não era desta forma que se interpretava a Charta imperial.

Prova disto é que o Supremo Tribunal de Justiça (cuja existência e competências se encontravam previstas no art. 163 da Carta imperial), julgou em sentido contrário a este preceito clássico de direito romano e canônico, entendendo que a liberdade não pode se presumir se houver agressão ao direito de propriedade do dominus sobre o escravo. Tal decisão é assim comentada pelo jurista Cândido Mendes de Almeida:

As causas de liberdade pelo nosso antigo Direito sempre forão reputadas causas pias (…), e por conseguinte gozando de todo o favor. Entretanto uma decisão do Supremo Tribunal de 5 de Julho de 1832 publicada no Diário do Rio de Janeiro de 23 de Agosto do mesmo ano declarou, que não se podia conceder nestes casos liberdade aos escravos em prejuízo dos direitos de propriedade, i. e., contra o princípio aqui firmado. Em vista do que diz o §4º [do título 11, do Livro 4, das Ordenações Filipinas] em se principio toda a legislação Romana e Canônica em pró da liberdade dos captivos deve ser aceita e executada; nem seria possível que em uma epocha de liberdade a legislação outr’ora executada com tanto favor em pró dos escravos, se tornasse sem nenhum motivo ou lei de repugnante dureza. (MENDES, 1870, p.790)

Ressalte-se que o direito romano e o canônico eram considerados como fontes do direito civil brasileiro, consoante aplicação das Ordenações Filipinas (RIBAS, 1982, p.107), com aplicação subsidiária, nos termos do título LXIX, do Livro III, das Ordenações e sob as limitações conferidas pela lei da boa razão, a Lei de 18 de agosto de 1769. (RIBAS, 1982, p.110)

Entretanto, no Império do Brasil, os fundamentos da sua economia justificavam a existência da situação fática da escravidão (SENTO-SÉ, 2000, p.37-39), pois, pelos diplomas legais existentes, a vigência das normas referentes a sua manutenção passaram a ser, cada vez com mais intensidade, questionadas pela sociedade. Uma situação fática irreformável legitimava a vigência de diplomas não recepcionados.

3.2 A tese da ilegalidade da escravidão

Não obstante este debate acerca da legitimidade da escravidão, uma forte tese começou a surgir no Brasil imperial: a escravidão era uma conduta ilegal e que, em verdade, os senhores dos escravos estavam realizado dupla conduta típica, contrabando (art. 177 do Código Criminal) e reduzir pessoa livre à escravidão (art. 179 do Código Criminal).


A idéia era simples, o Império do Brasil firmou com o Reino da Inglaterra tratado internacional, em 26 de novembro de 1826, por este instrumento: “[…] o Brasil proibia o tráfico dentro de três anos improrrogáveis. Seriam então punidos como piratas quantos neles se envolvessem. Conferiu-se à Inglaterra o tão cobiçado direito de visita e busca.” (TAUNAY, 1941, p. 264)

Este tratado foi ratificado em 13 de março de 1827, devendo passar a viger a partir de 1830.(VIANNA, 1967, p. 148)

Pela Portaria de 21 de maio de 1831, expedida pelo Ministro da Justiça Manoel José de Souza Franco, durante a Regência, ficou expressamente vedado o contrabando de escravos:

Constando ao Governo de S. M. Imperial que alguns negociantes, assim nacionais como estrangeiros, especulam com desonra da humanidade o vergonhoso contrabando de introduzir escravos da Costa da África nos portos do Brasil, em despeito da extinção de semelhante comércio, manda a Regência Provisória, em nome do Imperador, pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, que a Câmara Municipal desta cidade faça expedir uma circular a todos os juízes de paz das freguesias do seu território, recomendando-lhes toda a vigilâncias policial ao dito respeito; e que no caso de serem introduzidos por contrabando alguns escravos novos no território de cada uma das ditas freguesias, procedam imediatamente ao respectivo corpo de delito e constando por este que tal ou tal escravo boçal foi introduzido aí por contrabando, façam dele sequ?estro, e o remetam com o mesmo corpo de delito ao juiz criminal do território para ele proceder nos termos de direito, em ordem a lhe ser restituída a sua liberdade, e punidos os usurpadores dela, segundo o art. 179 do Código, dando de tudo conta imediatamente à mesma Secretaria.(MORAES, 1966, p. 366)

Tal portaria teve muito pouca repercussão, além, de baixíssima efetividade. Cumpre ressaltar que as portarias eram consideradas fontes do direito que buscavam regular os casos nela tratados, sem prejudicar terceiros, nem revogar ou alterar a legislação vigente (RIBAS, 1982, p.83 e MORAES, 1966, p.154), por esta razão adveio a Lei de 07 de novembro de 1831.

O Art. 1º de tal diploma estabelecia: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres.”.

De duas alternativas, uma das teses deve prevalecer:
Primo, se for considerado o argumento de que eventual ato de traficar escravos da Costa da África é importação de mercadoria – compreendendo o escravo como mercadoria, tendo em vista a sua possível natureza de res –, vislumbra-se que a importação destes é proibida desde 13 de março de 1827, portanto, o importador comete o crime público de contrabando:

Art. 177. Importar, ou exportar gêneros, ou mercadorias prohibidas; ou não pagar os direitos dos que são permittidos, na sua importação, ou exportação.
Penas – perda das mercadorias ou gêneros, e de multa igual à metade do valor delles.

No caso concreto o senhor que viesse a importar tais escravos poderia figurar, no mínimo, como cúmplices, na forma do art. 6º, 1.º, do Código Criminal do Império:

Os que receberem, occultarem ou comprarem cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o foram, ou devenddo sabel-o em razão da qualidade, ou condição das pessoas, de quem receberam, ou compraram. (fls. 143)

Secundo, entretanto, é manifesto que o legislador, pela Lei de 07 de novembro de 1831, em verdade, assegurou que escravos introduzidos após a vigência deste dispositivo seriam considerados como homens livres.

Em tese, não poderia mais existir escravos que tivessem sido importados para o Brasil, a partir da publicação deste diploma legal. Esta é a única conclusão que se pode chegar.

Qualquer indivíduo que reduzisse estes homens à condição de escravo estaria cometendo o crime particular, contra a liberdade individual, de reduzir à escravidão pessoa livre, (como previsto no art. 4º desta mencionada lei):

Art. 179. Reduzir à escravidão pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade.
Pena – de prisão por três a nove annos, e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor, que o do captiveiro injusto, e mais uma terça parte.

Comentando o tema, o brilhante deputado pernambucano Joaquim Nabuco:

Com efeito, a grande maioria desses homens, sobretudo no Sul, ou são africanos, importados depois de 1831, ou descendentes destes. Ora, em 1831 a lei de 7 de novembro declarou no seu artigo 1.º: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres.”. Como se sabe, essa lei nunca foi posta em execução, porque o Governo brasileiro não podia lutar com os traficantes; mas nem por isso deixa ela de ser a carta de liberdade de todos os importados de pois de sua data. Que antes de 1831, pela facilidade de aquisição de africanos, a mortalidade dos nossos escravos, ou da Costa ou crioulos, era enorme, é um fato notório. “É sabido dizia Eusébio de Queirós em 1852 na Câmara dos Deputados, que a maior parte desses infelizes [os escravos importados] são ceifados logo nos primeiros anos, pelo estado desgraçado que os reduzem os maus tratos da viagem, pela mudança de clima, de alimentos e todos os hábitos que constituem a vida”. Desses africanos, porém, – quase todos eram capturados na mocidade – introduzidos antes de 1831, bem poucos restarão hoje, isto é, depois de cinqu?enta anos de escravidão na América a juntar aos anos que vieram da África; e, mesmo sem a terrível mortalidade, de que deu testemunho Eusébio entre os recém-chegados, pode-se afirmar que quase todos os africanos vivos foram introduzidos criminosamente no país (NABUCO, 1977, p. 115-116, grifo nosso).

Nas palavras do advogado Busch Varela (apud MORAES, 1966, p. 159-160), em discurso proferido no dia 09 de março de 1884, em conferência realizada no Rio de Janeiro:

Como já observei, a lei de 1831 não criva uma disposição transitória; não se limitava a abolir o tráfico; foi além – declarou livres todos os escravos, importados de então em diante. Tal disposição é, de sua natureza, irrevogável; a liberdade, uma vez adquirida, nunca mais se pode perder. Os importados depois de 1831 adquiriram-na, por disposição expressa de lei, nunca foram escravos no Brasil; foram vítimas de atroz e condenada pirataria; ninguém dirá que o roubo é meio de adquirir propriedade e de transmiti-la legitimamente.

A conclusão que chega Evaristo de Moraes é peremptória:


Uma e única: muitos senhores de escravos, orgulhosos latifundiários brasileiros, se não eram ladrões, eram, pelo menos, receptadores de grande número de liberdades humanas; boa porção das suas fortunas tinha raízes na prática do crime previsto no art. 179 do Código Criminal do Império, pois resultava da escravidão direta dos africanos contrabandeados e da indireta dos africanos livres, misturados no eito com os outros (MORAES, 1966, p. 165).

Ora, se a partir de 1831, qualquer escravo que, após o advento desta lei fosse importado e viesse a ser desembarcado no Brasil seria considerado como homem livre, logo, pode-se concluir que somente poderiam ser considerados cativos, em território brasileiro, os filhos de mãe e pais escravos que já houvesse chegado ao território nacional, anteriormente a este diploma legislativo.

4 A NATUREZA JURÍDICA DO ESCRAVO

Pode-se afirmar, que falar da natureza jurídica de algo é inserir o objeto estudado dentro das categorias lógicas do direito vigente naquele contexto histórico, isto é, é afirmar que aquilo que está sendo estudado tem características que tornam possível, para fins de classificação, afirmar que ele se encontra dentro de um específico conjunto com propriedades similares.

O debate sobre a natureza jurídica do escravo versa necessariamente sobre a controvérsia se aquele ser humano, à luz do direito, deveria ser regido pelo regime jurídico das coisas ou das pessoas.

4.1 O status do escravo na legislação brasileira: persona e res

Para o Conselheiro Joaquim Ribas, o escravo não era tão-somente uma res, era considerado também como personae, ou seja, os direitos do senhor sobre seu escravo (dominica potestas) não eram apenas exercidos a título de dominus, mas também como potestas:

A dominica potestas dos Romanos, constando de dous elementos – o dominium e a potestas, impunha ao escravo duplo subjeição ao senhor, e o considerava ao mesmo tempo como cousa e como pessoa. Esta instituição não despessoalizava, pois, inteiramente o escravo, nem poderia elle sel-o, pois que a sua incapacidade era subjeita a restrições. À proporção, porém, que o direito estricto se foi aproximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza,e a liberdade como faculdade natural. Entre nós também os direitos do senhor sobre o escravo constituem domínio e poder, em relação ao domínio o escravo é cousa, em relação ao poder é pessoa (RIBAS, 1982, p. 281-282).

Tal raciocínio pode ser explicado pela compreensão dos institutos de direito romano que eram aplicados subsidiariamente para sistematizar a escravidão brasileira: o escravo era res e personae ao mesmo tempo, desde que se compreenda este último termo não como sujeito de direito, mas como ser humano:

No direito romano o termo personae era usado como equivalente a homo e não como titular de direito. Por isso os escravos eram considerados ao mesmo tempo personae, e res. Isto não significa que o escravo pudesse ser titular de direito, pois Ulpiano esclarece muito bem a sua posição perante o direito civil – “Quod attinet ad IUS CIVILE SERVI pro nullis habentur.” O escravo não era sujeito de direito, pois era considerado uma coisa, ou melhor, um animal humano. O dominus exercia sobre o servus o direito de propriedade e para sancionar esse direito fazia uso da reivindicatio, isto é, da mesma ação de que se servia em se tratando de um objeto móvel. (NÓBREGA, 1955, p. 120 e p. 130)

Para exemplificar, pode-se analisar um caso concreto, descrito no Parecer nº. 05, de 20 de março de 1858, da lavra do Conselho de Estado do Império, que discutia as questões apontadas, analisando a extensão do direito de propriedade do dominus sobre o servus.

A questão levada ao Conselho de Estado iniciava-se com o fato de que Porfírio Fernandes Siqueira, residente na província do Rio Grande do Sul, hipotecou três escravos seus a Francisco Manuel dos Passos.

A hipoteca, assim como hoje, era considerada direito real, nos termos das Ordenações Filipinas, Livro II , f. 52, §5º e livro 4º, f. 3º. O art. 13, do regulamento de 14 de novembro de 1846 previa os efeitos legais da hipoteca: “[…] são efeitos legais o registro das hipotecas, tornar nula a favor do credor hipotecário, qualquer alienação dos bens hipotecados por título, quer gratuito, quer oneroso.”

Posteriormente, com a finalidade de retirar o gravame que incidia sobre seus escravos, com manifesta má-fé, Porfírio Fernandes Siqueira levou-os à República Oriental do Uruguai, cuja legislação considerava livre os escravos que ali se encontrassem.

Francisco Manuel dos Passos, diante deste prejuízo, com a perda da garantia real do seu crédito, formulou requerimento ao Presidente da Província requerendo que este, junto a legação imperial em Montevidéu, reclamasse a extradição dos escravos brasileiros hipotecados, com fundamento no art. 6º do tratado de extradição firmado entre a República Oriental do Uruguai e o Império do Brasil, que possuía o seguinte conteúdo:

O governo da República Oriental do Uruguai reconhece o princípio da devolução dos escravos pertencentes a súditos brasileiros que, contra a vontade dos seus senhores, forem, por qualquer maneira, para o território da dita república e aí se acharem.

Na fundamentação da decisão ao requerimento formulado por Francisco Manuel dos Passos (de 15 de dezembro de 1857, da lavra do Presidente da Província do Rio Grande do Sul), encontra-se a perfeita descrição do status do servus perante a legislação brasileira:

O governo [da República] oriental, concedendo a devolução, como exceção da lei que aboliu a escravatura em todo o território da república, limitou-a aos casos em que os escravos passarem a esse território contra a vontade de seus senhores. O Governo Imperial, aceitando essa limitação, garantiu a liberdade aos que se acharem no caso contrário. Por isso, em toda questão de devolução, é mister ter em vista não somente os direitos do governo oriental e do senhor do escravo, mas também a posição deste para com aquele. O escravo ignora as transações de que é objeto, não entra, nem pode entrar, no exame delas: obedece a seu senhor. Se este o traz para o Estado Oriental, quaisquer que sejam as obrigações contraídas, haja ou não hipotecas, por aquele simples fato, o escravo adquire a sua liberdade, é livre nesta república, é liberto no Brasil. Ambos os governos estão obrigados a manter-lhe o direito que lhe concederam, nem um pode reclamar a sua devolução, nem o outro pode concedê-la. […]. Finalmente, devem ser considerados libertos os escravos, que estando como contratados, ou em serviço autorizado por seus senhores no território indicado – voltarem à província do Rio Grande do Sul, porquanto, pelo princípio geral acima exposto, o fato de permanecer ou ter permanecido, por consentimento do seu senhor, em um país onde está abolida a escravidão, dá imediatamente ao escravo a condição de liberto […] (O Conselho de Estado, 2005, p. 32-33).

Tais conclusões foram remetidas ao Conselho de Estado do Império, que as ratificou e acrescentou:

Se esses escravos voltassem ao Império, então poderia o reclamante fazer valer seus direitos hipotecários contra uma liberdade conferida com fraude manifesta e, ainda assim, o êxito seria duvidoso. (O Conselho de Estado, 2005, p. 34)

O Imperador aprovou o parecer em 29 de março de 1859.

4.2 Capacidade jurídica minorada e responsabilidade

Portanto, manifesto que o escravo possuía, ao lado da sua condição de personae, a natureza de coisa, tendo em vista que sobre ele, inclusive poderiam recair inclusive direitos reais de garantia. Nas palavras de COSTA: “Nas formas jurídicas do século XIX, o escravo é tido como ser ausente. É ausente por não ser sujeito ou ser quase-sujeito” (COSTA, 2009, p. 204).

O ordenamento jurídico brasileiro, como exposto, também considerava o escravo como pessoa, mas diferindo destas perspectivas clássicas, o servus poderia ser paciente ou agente de condutas que desencadeariam o surgimento de consequ?ências jurídicas (ou seja, não haveria atribuição das consequ?ências jurídicas para o dominus).

As consequ?ências jurídicas oriundas da prática de atos jurídicos incidiriam tão-somente sobre a sua pessoa (escravo), que poderia vir a integrar um dos pólos de uma relação jurídica.

Cumpre ressaltar que, apesar da aparente ilogicidade desta argumentação, está a se tentar explicar um determinado fenômeno jurídico valendo-se da teoria do fato jurídico contemporânea.

Para o direito brasileiro do século XIX era possível que o escravo fosse res e personae2, pelo simples fato de que, pela aplicação subsidiária do direito romano, não haveria óbices para que o escravo pudesse vir a ser objeto de sanção penal, pois desde a antiguidade o mesmo respondia por eventuais condutas criminosas por ele perpetradas, tendo o dominus direito de vida e de morte sobre o servus. (NÓBREGA, 1955, p. 138)

É de se observar que, para o Estado Imperial, qualquer aplicação da sanção capital deveria restar submetida ao devido processo legal (art. 179, XI, da Charta da 1824).

Inclusive o escravo deveria figurar como parte, como preceitua o art. 332 do Código de Processo Criminal do Império, de 1932 (que atribui ao Júri a competência para “imposição da pena de morte”). Ou seja, pela legislação imperial, o servus poderia inserir-se em relação processual.

Entretanto, não poderia figurar como testemunha no processo criminal, consoante a Lei de 29 de novembro de 1832, o Código de Processo Criminal do Império:

Art. 89. Não podem ser testemunhas o ascendente, descendente, marido, ou mulher, parente até o segundo gráo, o escravo, e o menor de quatorze annos; mas o Juiz poderá informar-se delles sobre o objecto da queixa, ou denuncia, e reduzir a termo a informação, que será assignada pelos informantes, a quem se não deferirá juramento. Esta informação terá o credito, que o Juiz entender que lhe deve dar, em attenção ás circumstancias.

Para o direito romano clássico, o servus não poderia integrar validamente relação processual:

Nas Novelas de Teodósio encontramos um texto segundo o qual a incapacidade do escravo para participar de um processo se explicava pelo fato de não ser ele persona. O Escravo, esclarece Sohm, é um homem, que não é pessoa jurídica, mas uma coisa; não podia participar de qualquer relação jurídica; não tinha bens ativos (propriedade) nem passivos (contrair dívidas); não participava de qualquer relação de direito de família. Um processo contra um escravo seria completamente inócuo (NÓBREGA, 1955, p. 138).

Portanto, pelo exposto acima, pode-se concluir que: (a) para o direito imperial, o servus, apesar de não ser cidadão brasileiro, poderia se inserir em algumas relações jurídicas. Conclui-se que, para a legislação brasileira, o escravo era um sujeito de direito cuja capacidade jurídica estava minorada, pois se inexistisse esta capacidade e o direito brasileiro adotasse plenamente a doutrina romanística, não poderia o escravo integrar validamente nenhuma relação processual; e(b) para o direito brasileiro, os atos praticados pelo escravo não necessariamente repercutem sobre o seu dominus. Ou seja, o senhor não se torna responsável pelos fatos praticados pelo escravo (inaplicabilidade da teoria pelo fato da coisa), nem a título de culpa, até porque a pena não pode passar da pessoa do condenado (art. 179, XX, da Charta imperial). Ou seja, como o escravo poderia ser sujeito ativo de crime, sofrendo as consequ?ências de condenação criminal, a pena não poderia repercutir sobre a pessoa do dominus, que não concorreu para o resultado delituoso.

A conclusão não poderia ser diferente, para o direto imperial, o escravo poderia ser sujeito de relação jurídica penal, sobretudo na condição de agente.


4.3 A capacidade do escravo para figurar nas relações jurídicas civis

O escravo, paulatinamente, ao longo do século XIX, foi adquirindo legitimação para a prática de atos da vida civil:

A ab-rogação da penalidade consistente em açoites – penalidade excepcional e de extensão arbitrária – não teve, somente, o efeito que lhe atribuíram alguns escravistas, entre os quais Lourenço da Albuquerque e Ratisbona, não influiu, apenas, por haver suprimido o receio de atrozes sofrimentos físicos. Mais importante foi o reflexo moral da lei n.º 3.310, de 15 de outubro de 1886. Ela acresceu a série de atos legislativos que, desde 1871, vinham conferindo personalidade ao escravo; aumentou o grau da sua elevação na escala para a cidadania; colocou-o, quanto à repressão penal, quase na mesma plana das pessoas livres; numa palavra, forrou o escravo do opróbio, sempre, e por toda parte, ligado aos castigos corporais.” (MORAES, 1966, p. 244)

Pela Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871, pelo seu art. 4.º, o escravo estava autorizado a constituir um pecúlio com finalidade de obter sua alforria:

Art. 4.º É permittido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo pecúlio.

Observe-se que até efeitos sucessórios eram descritos, bem como o reconhecimento de relação conjugal, no §1.º, deste mesmo art. 4.º:

§ 1.º Por morte do escravo, metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmittirá aos seus herdeiros, na fôrma da lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio será adjudicado ao fundo de emancipação de que trata o art. 3.º.

Na lúcida visão do Conselheiro Joaquim Ribas (RIBAS, 1982, p. 282):

À proporção, porém, que o direito estricto se foi approximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza, e a liberdade como faculdade natural.

O escravo, inclusive estava autorizado ao contratar, em prol da sua liberdade, nos termos do art. 4.º, §1.º, da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). Tal diploma legal foi exaustivamente criticado, por contemporâneos, pela sua limitada e lenta efetivação:

Em matéria de emancipação, temos uma lei falha e manca, triste e arrastadamente executada, e mais nada. Nas arcas do Tesouro existem 4.000 contos do fundo de emancipação por qualquer pretexto fiscal. Quatro mil homens ainda escravos por qualquer relaxação administrativa. Até hoje, três anos depois da lei, nem a mínima, providência sobre a educação dos ingênuos e dos emancipados (REBOUÇAS apud MORAES, 1966, p. 24).

Estudada a capacidade civil do escravo, deve-se vislumbrar como o ordenamento jurídico brasileiro do século XIX dispunha sobre a responsabilidade penal dos escravos.

5 O DIREITO PENAL MATERIAL E PROCESSUAL E O ESCRAVO

5.1 A responsabilidade penal do escravo

O Código Criminal do Império do Brasil, a Lei de 16 de dezembro de 1830, estabelecia o conceito de criminoso, nos seus arts. 3º e 4º:

Art. 3.º Não haverá criminoso, ou delinqu?ente, sem má fé, isto é, sem conhecimento do mal, e intenção de o praticar.
Art. 4.º São criminosos, como autores, os que commetterem, constragerem, ou mandarem alguém commetter crimes.

Os escravos não se enquadram em nenhum dos casos de inimputabilidade previsto no art. 10 do referido Código Criminal:

Art. 10. Também não se julgarão criminosos: 1.º Os menores de quatorze annos.
2.º Os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lúcidos intervallos, e nelles commtterem o crime.
3.º Os que commetterem crimes violentados por força, ou por medo irresistíveis.
4.º Os que commetterem crimes casualmente no exercício, ou pratica de qualquer acto licito, feito com a tenção ordinária.

Portanto, por óbvio, os escravos, apesar sua capitis dimininutio maxima, estavam submetidos ao Código Penal, podendo figurar como “criminosos” das condutas previstas neste diploma legal: “Em geral, o Direito penal considera o escravo como pessoa, quando julga apto para servir de agente ou paciente de qualquer delicto” (RIBAS, 1982, p. 282).

Uma outra questão que merece análise é a da possibilidade de o escravo vir a ser vítima do crime homicídio praticado pelo seu senhor: juridicamente falando, o dominus que perpetrasse conduta que viesse a resultar na morte do escravo poderia ser processado pelo delito previsto no arts. 192 ou 193 do Código Criminal do Império ou estaria ele no exercício de uma faculdade sua, derivada do seu poder de propriedade sobre o seu servus?

Para responder tal questionamento, deve-se vislumbrar que o art. 14, item 6º do Código Criminal do Império admitia a possibilidade de o dominus praticar conduta lesiva que viesse a resultar dano a seu escravo, desde que de forma moderada, sob a forma de castigo, salvo se agredisse as leis em vigor no Império: tratava-se de uma hipótese de “crime justificável”, segundo a legislação penal da época, mas não seriam admitidas denúncias do escravo contra o senhor, nos termos do art. 75, § 2º, do Código de Processo Criminal do Império de 1932, já que “a vontade do cativo não pode colidir com a vontade do seu proprietário” (COSTA, 2009, p. 205).

Note-se que, segundo o Código Criminal do Império, o senhor não poderia matar o escravo, como sanção privada pelos atos cometidos por este. Como castigo moderado não se inclui a morte do servus. (RIBAS, 1982, p.282)

Cometendo este ilícito, o Estado estaria autorizado a realizar a persecução penal em face do senhor que houvesse provocado o resultado morte no seu escravo, pelos castigos aplicados.


Neste sentido, a denúncia oferecida pelo promotor adjunto (art. 74 do Código de Processo Criminal do Império: Lei de 29 de novembro de 1832), perante o Juiz Substituto do 3º Distrito Criminal da Comarca de São Luís do Maranhão, em face de D. Anna Rosa Vianna Ribeiro, Baronesa de Grajaú (esposa do presidente da Província do Maranhão Dr. Carlos Fernando Ribeiro, em 1884), pelo homicídio do seu escravo Inocêncio, em face de castigos imoderados por ela perpetrados:

Desta sorte indigitada a denunciada, como autora das sevícias e maus tratos encontrados e reconhecidos no cadáver do seu escravo Inocêncio, visto que este durante o tempo em que foi possuído por ela, jamais esteve em outro poder e debaixo de outras vistas, torna-se a mesma denunciada, D. Anna Rosa Vianna Ribeiro criminosa; e, por isso, e em cumprimento da lei, dá o abaixo assinado a presente denúncia, para o fim de ser ela punida com as penas decretadas no art. 193 do Código Criminal, oferecendo por testemunhas aos adiante nomeados, os quais serão citados para deporem no dia e hora que V. S.ª designar, e bem assim a denunciada para se ver processar, sob pena de revelia, fazendo-se as requisições necessárias (ALMEIDA, 2005, P. 65-70).

Ressalte-se que a pena de galés, ou seja, prestação de trabalhos públicos forçados, com os pés acorrentados era inaplicável às mulheres, nos termos do art. 45, 1º, do Código Criminal do Império, devendo ocorrer a sua conversão em prisão, com a realização de serviços compatíveis com o sexo feminino, pelo mesmo período de tempo fixado na sentença.

No caso em comento, foi proferida sentença de impronúncia (em 23.01.1877), nos termos do art. 145 do Código de Processo Criminal do Império, a qual, sendo objeto de recurso, foi reformada (no dia 13.12.1877), determinando o juízo ad quem (Tribunal da Relação) a pronúncia da ré, que foi levada a júri popular, sendo absolvida em 22.02.1877.

Após apelação (art. 301 do Código de Processo Criminal do Império), foi julgado improcedente o recurso (em 22.05.1877), e, não havendo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art. 305 do Código de Processo Criminal do Império), o feito transitou em julgado.

5.2 As penas aplicadas aos escravos

Os regimes das penas aplicadas aos escravos, manifestamente, diferiam das sanções aplicadas aos homens livres.

5.2.1 A pena de açoitação

A priori, é de se ressaltar que a Charta imperial, no seu art. 179, XIX, abolia as penas cruéis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[…]
XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.

Entretanto, o art. 60 do Código Criminal do Império do Brasil, estabelecia:

Art. 60. Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será conmdemnado na de açoute, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar. O número de açoutes será fixado por sentença; e o escravo não poder´pa levar por di mais de cincoenta.

Ademais, nas Ordenações Filipinas, Livro V, título LX, §2º, recepcionadas, verifica-se a previsão da pena de açoitação para o delito de furto, aplicável tanto a homens livres quanto a escravos.

Aos escravos, segundo o disposto nas Ordenações, seriam aplicadas a penas açoitação nos seguintes termos: “Porém, se for escravo, quer seja Christão, quer infiel, e furtar valia de quatrocentos reis para baixo, será açoutado publicamente com baraço e pregão.”.

Para solucionar tal antinomia, a doutrina jurídica do período realizava a harmonização destes dispositivos alegando que o art. 179 da Constituição imperial assegurava direitos fundamentais e liberdades públicas tão-somente aos “Cidadãos Brazileiros”, ora, se o escravo perdeu seus status libertatis (ocorrendo a capitis diminutio maxima), não poderia ser um Cidadão, portanto, inaplicável tal proteção a estes indivíduos. (MORAES, 1966, p. 175).

Portanto, revogada estava à pena de açoitação, prevista nas Ordenações Filipinas, somente para os cidadãos e não para os escravos.

Tal pena era assim executada, nas palavras do Conselheiro Otoni:

Era castigo crudelíssimo: – atava-se o paciente solidamente a um esteio (poste vertical de madeira) e, despidas as nádegas, eram flageladas até ao sangue, às vezes até à destruição de uma parte do músculo. Se não havia o esteio, era o infeliz deitado de bruços e amarrado em uma escada de mão; aí tinha lugar o suplício (apud MORAES, 1966, p. 177).

Cumpre esclarecer que o regime de pena de açoitação, poderia ser judicial ou doméstico. O regime judicial, como referido no art. 60 do Código Criminal, possuía seus limites no arbítrio do órgão jurisdicional (art. 60 do Código Criminal): “o legislador penal da monarquia não limitava o número total dos açoites; deixava ao arbítrio do julgador. Apenas limitava a dose diária” (MORAES, 1966, p. 176).

No que se refere à pena de açoitação, os fundamentos para o exercício deste poder punitivo no âmbito doméstico podem ser encontrados no art. 14, § 6º, do Código Criminal do Império, que estabelecia, dentre as causas de “crimes justificáveis”, a aplicação de castigo moderado que os senhores venham a aplicar a seus escravos. Quando o dominus exercia este seu poder, o critério para fixação do quantum desta sanção decorria do seu livre arbítrio, mas “a maneira material da execução do suplício era, em uma e outra hipótese, os mesmos.” (MORAES, 1966, p. 177).

Tal pena aplicada aos escravos foi revogada pela Lei nº. 3.310, de 15 de outubro de 1886.

5.2.2 A pena de morte

5.2.2.1 A pena de morte e o direito penal imperial

Antes do advento do Código Criminal do Império, vigorava no Brasil, como fonte do direito penal, o Livro V, das Ordenações Filipinas, que previa a existência da pena capital.

Apesar de inúmeros debates, de manifestações inclusive contrárias, Bernardo Pereira de Vasconcelos, autor do anteprojeto do Código Criminal de 1932, manteve a pena de morte tanto para crimes comuns, quanto para crimes políticos, sob o fundamento de que, tal sanção subsistiria para poucos delitos e que o anseio de segurança pública deveria prosperar, já que a inocência, em verdade, era sempre a vítima do crime (RIBEIRO, 2005, p. 27).


Ademais, consoante argumentos do relator, a Constituição Imperial admitia implicitamente a possibilidade de existência da pena capital, como se depreende da leitura do art. 27 desta Charta Magna:

Art. 27. Nenhum Senador, ou Deputado, durante a sua deputação, póde ser preso por Autoridade alguma, salvo por ordem da sua respectiva Camara, menos em flagrante delicto de pena capital.

Como exposto, o Código Criminal do Império trazia, dentre as espécies de pena, a de morte (art. 38), a qual era executada na forca, após o trânsito em julgado do feito, no dia seguinte após a intimação, mas nunca antes de domingo, dia santo ou de festa nacional (art. 39).

Para o cumprimento da pena capital, o réu era conduzido pelas “ruas mais públicas” até a forca, acompanhado pelo Juiz Criminal, pelo escrivão e pela força policial necessária (art. 40).

A presidência dos atos de execução desta pena era feita pelo juiz Criminal, com a lavratura de certidão de todos os atos pelo Escrivão, a qual será juntada aos autos do processo (art. 41).

O corpo do réu poderia ser entregue à família (ou amigos), se requisitado ao juiz, mas não haveria enterro com pompa, sob pena de prisão daqueles que descumprissem este comando (art. 42).

Mulheres grávidas não poderiam ser enforcadas, nem julgadas enquanto perdurasse este estado, somente após transcurso 40 dias do parto (art. 43).

Nos processo criminais em que fosse determinada a condenação nesta pena, poderia haver o perdão pelo exercício do Poder Moderador (art. 66 do Código Criminal c/c art. 101, §8º, da Constituição Imperial), ou, no caso de “crimes particulares” (“sem accusação por parte da Justiça” – art. 67). A pretensão executiva era imprescritível (art. 65).

5.2.2.2 A pena de morte e a Lei n.º 04, de 10 de junho de 1855

Em relação às penas de morte aplicadas aos escravos, necessário o estudo da execrada, desde sua época, Lei n.º 04, de 10 de junho de 1855. Tratava-se de lex specialis que previa tipificação especial e pena capital para algumas condutas delituosas dos escravos, além de rito processual específico para julgar estes crimes, quando figurassem como réus tais agentes.

Anteriormente à Lei nº. 04, de 10 de junho de 1835, foi instituído o Decreto de 11 de abril de 1829 (anterior, portanto ao Código Criminal do Império, de 1830), pelo qual “todo réu escravo, condenado à pena máxima por assassínio do seu senhor devia ser executado, imediatamente, sem direito ao recurso de graça, interposto ao Poder Moderador.”.

Inicialmente, deve-se frisar que tal Decreto, além de agredir ao disposto no art. 101, §8º, da Constituição do Império, por ofensa explícita às competências constitucionais do Poder Moderador imperial, criava-se uma inconstitucional exceção à Lei de 06 de setembro de 1826, que atribuía ao próprio Imperador (no exercício das suas atribuições) ressalvas ao seu poder de moderar ou perdoar as penas aplicadas.

O Decreto de 11 de abril de 1829, sem dúvidas é o embrião da cruel Lei nº. 04, de 10 de junho de 1835, tendo em vista a manifesta ratio legis, isto é, acirrar o terror, pela célere aplicação da sanção capital para réus escravos.

Iniciando o estudo da Lei nº 04, de 10 de junho de 1835, seu art. 1º estabelecia:

Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas que matarem por qualquer maneira que seja, que propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendência ou ascendentes, que em, sua companhia morarem, a administrador, feitor e as suas mulheres que com elês viverem. Se o ferimento, ou ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.

Observe-se que, por este dispositivo, buscava-se criar uma norma protetiva do status quo escravista, não apenas para a proteção do senhor e da sua família, mas também dos indivíduos (e respectivo grupo familiar) incumbidos do gerenciamento desta mão-de-obra escrava.

Pela leitura de um trecho de Parecer da Seção de Justiça do Conselho de Estado, de 09 de setembro de 1854, cujo relator fora o Visconde do Uruguai, consegue-se captar a ratio legis do referido diploma: “[…] É uma lei inteiramente excepcional, ad terrorem, feita para produzir terror, que, ao menos agora, não produz.”, na verdade, a Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835, foi uma consequ?ência da revolta dos negros Malés na cidade de Salvador:

Em 24 de janeiro de 1835 irrompia em Salvador, uma insurreição armada, que passaria à história como Revolta dos Malês ou a Grande Insurreição. Esta revolta faz parte de um grande ciclo de rebeliões ocorridas na Bahia desde o início do século XIX, e que se estenderia até o ano de 1844. […].
Os primeiros tiros partiram da casa de Manuel Calafate, onde os revoltosos atacados, revidaram e passaram à ofensiva dirigindo-se então para a Rua da Ajuda “onde tentaram arrombar a cadeia a fim de libertar Pacífico Licutan”, não conseguindo lograr êxito. O grupo marcha para o Largo do Teatro, onde trava combate com a polícia derrotando-a pela segunda vez. Essa vitória tinha aberto “caminho para atingirem o Forte de São Pedro. No entanto, com as forças que dispunham era impossível tomar o Forte de artilharia”. Buscam, então, outras alternativas. “Os escravos vindos do Largo do Teatro tentaram estabelecer junção com outra coluna que vinha da Vitória, sob o comando dos dirigentes do Clube da Barra. Esses, por sua vez, já haviam conseguido unir-se ao grupo do Convento das Mercês. Os escravos da Vitória operaram a junção planejada, abriram caminho para a Mouraria onde travaram combate com a polícia, sendo que neste combate perderam dois homens. Rumam, então, para a Ajuda; daí estabelecem uma mudança de rumo na sua marcha: desceram para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos Coqueiros.3

Até então, os crimes praticados pelos escravos eram processados de acordo com o legislação procedimental comum (a Lei de 29 de novembro de 1832, isto é, o Código de Processo Criminal), mas com o surto de pânico que assolou a sociedade escravista brasileira, em face de tal revolta, inclusive, com reflexos na Corte e na Província do Rio de Janeiro (FREITAS; SOUZA, 1988, p. 63-65), surgiu uma legislação que de modo sumário e extremamente agressivo, cominava penas capitais, quando da prática de insurreições escravas, a fim de responder aos anseios de manutenção da paz e do status quo.

Tal afirmação pode ser corroborada com o fato de que o art. 2º, da Lei n.º 04, de 10 de junho de 1835, também aplicava os seus rigores quando ocorresse o crime de insurreição, restando revogadas as penas cominadas, no Código Criminal, para este delito (art. 5º, da Lei de 10 de junho de 1835):

Art. 2º. Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1.º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Jury do Termo (caso não esteja em exercíciio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados (grifos nossos).


Como exposto, fica manifesto que a intenção do legislador é a proteção ao bem jurídico “sistema de produção escravista”, com a previsão que a pena capital será aplicada aos escravos que cometerem o delito de insurreição (art. 113 do Código Criminal):

Art. 113 Julgar-se-ha commettido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da fôrça. Penas – aos cabeças – de morte no grão Maximo; de galés perpétuas no médio; e por quinze annos no minimo; – aos mais – açoutes.

Observe-se que o delito de Insurreição (que era um crime público, contra a segurança interna do Império, e publica tranqu?ilidade) poderia contar com a participação de homens livres (arts. 114 e 115 do Código Criminal), mas, a tais agentes, não se estendia a pena prevista no art. 1º da Lei nº 04, de 10 de junho de 1835, em face de que estes detinham seu status libertatis pleno.

Ratificando o que foi exposto, faze-se necessário ler-se os dispositivos deste diploma legislativo, que prescrevem procedimento penal específico (e absurdo) para estas condutas delituosas:

Art. 2º. Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1.º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinária do Jury do Termo (caso não esteja em exercíciio) convocada pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados.
Art. 3.º Os Juizes de Paz terão jurisdicção cumulativa em todo o Município para processarem taes delictos até a pronuncia com as diligencias legaes posteriores, e prisão dos delinqu?entes, e concluído seja o processo, o enviarão ao Juiz de Direito para este apresenta-lo no Jury, logo que esteja reunido e seguir-se os mais termos.
Art. 4.º Em taes delictos a imposição da pena de morte será vencida por dous terços do número de votos; e para as outras pela maioria; e a sentença, se for condemnatoria, se executará sem recurso algum.

Por tal procedimento, cria-se um rito sumaríssimo para julgar os delitos praticados pelos escravos, presos preventivamente, sendo a imposição da pena de morte uma consequ?ência automática, que somente não ocorrerá se vencida por 2/3 (dois terços) dos votos dos membros do Júri.

Observe-se que se a sentença for condenatória ela será irrecorrível, ou seja, a contrariu sensu, somente se favorável ao réu (isto é, se absolutória), é que será admitida a interposição de recurso.

Entretanto, esta previsão legal de sentença capital irrecorrível, contrariava, o disposto no art. 101, §8º, da Constituição do Império (que foi regulamentado pelo art. 1º da Lei de 11 de setembro de 1826): “nenhuma sentença de pena capital podia ser, então, executada, sem que, previamente, fosse presente ao imperador, para, se assim o entendesse, perdoar ou minorar, a pena”.

Como exposto, das sentenças condenatórias, com fundamento nos dispositivos da Lei n.º 04, de 10 de junho de 1835, não caberia recurso algum.

Entretan


O ritmo do serviço público

Certa vez, um burocrata de carreira, daqueles que já se esqueceram por que prestaram concurso e simplesmente parasitam o serviço público como se este fosse um fim em si mesmo, explicou ao servidor mais novo, que tentava fazer as coisas acontecerem de forma célere e eficiente: “Meu caro, o serviço público tem um ritmo próprio”. Leia-se: “Vá com calma, pois no serviço público as coisas não caminham assim rápida e eficazmente”.

Entretanto, o serviço público é uma das mais altas funções dentro de uma sociedade democrática. E os servidores públicos implementam as políticas públicas, notadamente para aqueles que mais precisam da escola pública, do posto de saúde, da segurança pública. Logo, o ritmo do serviço público deve ser aquele de seus melhores servidores, não o dos piores.

Assim, a cultura do serviço público eficiente e tempestivo deve ser consolidada, a fim de expurgarmos os encostados e os apaniguados, que maculam o nome de todos os servidores, ao apresentarem perfil indolente, ultrapassado e leniente, do tempo em que o Estado brasileiro era apropriado por poucos para impedir o atendimento público das necessidades de muitos.

A sociedade brasileira já demonstrou nas urnas das recentes eleições municipais de 2012 que não aceita mais velha política da ineficiência e do compadrio.

E a ladainha enfadonha e mentirosa de que o Estado é ineficiente interessa apenas aqueles poucos que se acostumaram a amesquinhar o uso da máquina pública em detrimento da maioria.

Mas não aceitamos mais essa farsa, pois, para a nova etapa que se nos apresenta, os gestores públicos devem contar com os servidores públicos concursados para mudarmos a imagem fabricada ideologicamente de que nada pode funcionar bem na esfera pública.

Então, é chegada a hora da valorização e qualificação efetivas dos servidores públicos e da assunção de metas objetivas para melhorarmos a educação, a saúde, a segurança e as demais políticas públicas, dando o salto de qualidade que países parecidos com o Brasil deram há décadas, notadamente através da adoção de uma educação pública de excelência, a qual transbordará e contaminará positivamente todas as demais áreas.

Dessa forma, se e quando você ouvir de algum arremedo de gestor público a conversa descrita acima do “Sabe como é…”, saiba que esse gestor deve ser substituído imediatamente, porque por inépcia ou corrupção, não serve mais para o país que vimos construindo, pois essa mudança de cultura já está acontecendo.

A advocacia pública federal tem dado exemplos de sobra, porque, nada obstante a tentativa ostensiva de sucateamento material e institucional da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, os resultados colhidos por servidores altamente qualificados têm sido muito bons para a sociedade brasileira.

Esse é um caso típico de como o Estado pode funcionar, apesar de alguns gestores, quando os seus servidores têm a qualificação e a resolução para fazer a sua parte.

A atitude proativa da Advocacia Pública Federal opõe resistência inclusive a projetos de lei anacrônicos, que caminham na contramão da profissionalização do serviço público, provavelmente formulados por gestores que não leram “Coronelismo, enxada e voto” de Victor Nunes Leal, que descreve o país antigo a ser suplantado.

Portanto, nivelemos por cima o ritmo do serviço público e denunciemos os gestores ineptos e arrivistas, pois esses não têm mais lugar no serviço público brasileiro, que vimos construindo desde a promulgação da Constituição de 1988, balizadora da atuação impessoal e eficiente da Administração Pública.

Em conclusão, não nos esqueçamos: o ritmo do serviço público deve satisfação à dinâmica sociedade brasileira e aos cidadãos do outro lado do balcão: o Povo, primordial razão de ser dos servidores públicos e do Estado.

Heráclio Mendes de Camargo Neto, procurador da Fazenda Nacional e diretor do SINPROFAZ.


Campanha de doação de sangue mobiliza carreiras

PFNs participam nesta terça, 28/08, em todo o Brasil, de grande coleta de sangue em hospitais ou hemocentros em mais um ato de protesto contra o descaso do Governo.


Lei Orgânica da AGU não pode ser modificada sem debates

Por Luciane Moessa de Souza

Em alguns dos temas mais sensíveis para a advocacia pública federal, os dois anteprojetos em tramitação pouco avançam ou, no caso do anteprojeto Adams, chega-se a retroceder. É o caso dos seguintes temas: a) autonomia institucional (administrativa e financeira) da Advocacia-Geral da União; b) autonomia funcional ou independência técnica e inamovibilidade de seus membros; c) necessário fortalecimento da consultoria jurídica; d) necessário avanço em termos de democratização e profissionalização da gestão, aí incluídos o preenchimento de cargos de confiança, a lotação e a distribuição de trabalhos de acordo com critérios previamente definidos, relacionados ao perfil do cargo e de seus potenciais ocupantes.

É bom notar que todos estes aspectos são facetas de uma mesma moeda: a realização de um controle de juridicidade efetivo da atuação da Administração Pública, missão primordial da advocacia pública, quando compreendida enquanto advocacia de Estado, como peça essencial na engrenagem que está presente em um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Também merece menção, pelas inúmeras controvérsias envolvidas, o fato de os dois anteprojetos tratarem de forma inadequada da possibilidade de utilização de meios consensuais de solução de controvérsias na esfera pública, já que as diretrizes neles contidas pouco ou nada contribuem para o avanço de tais métodos de forma segura, eficiente e democrática.

Por fim, descreverei como dois temas controvertidos de grande importância para as carreiras da advocacia pública federal são tratados de forma absolutamente inadequada pelo anteprojeto Adams: a representação judicial e extrajudicial de agentes públicos e o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.

A autonomia institucional da Advocacia-Geral da União é assunto ignorado pelo anteprojeto Adams, ao passo que o anteprojeto Toffoli a prevê de forma bastante “tímida”, eis que sujeita aos termos de contrato de desempenho firmado com os três poderes. Cabe ressaltar que, no anteprojeto Adams, a inexistência de tal autonomia não se revela apenas na ausência de menção expressa à mesma, mas sobretudo na mal-vinda ingerência do Poder Executivo na nomeação de todos os cargos de cúpula da instituição, desde o procurador-geral federal, da União e do Banco Central, passando pelos procuradores-chefes de todas as autarquias e fundações federais até o consultor geral da União e os consultores jurídicos junto aos Ministérios — tudo nos mesmos moldes da escolha política do advogado-geral da União.

É de se reconhecer que o sistema constitucional em vigor concede a esta função o mesmo tratamento instável que caracteriza todos os cargos de ministro de Estado, já que não se assegura ao seu titular o exercício de qualquer mandato, a exemplo do que se dá com o procurador-geral da República. Todavia, se, para efeito de nomeação do advogado-geral, seria necessária uma mudança no texto constitucional, não se pode dizer o mesmo de tais funções e nada impede — muito pelo contrário, tudo recomenda — que a Lei Orgânica venha a prever critério diverso do meramente político para o preenchimento de tais cargos, bem como a existência de mandato, de modo a proteger os seus titulares de pressões políticas ilegítimas, que muitas vezes distorcem a atuação de seus ocupantes com o intuito puro e simples de permanecer no cargo.

Cabe sublinhar que o anteprojeto Adams se diferencia negativamente do elaborado durante a gestão Toffoli pelo fato de estipular que tais cargos de cúpula serão exercidos “preferencialmente” por membros da carreira, enquanto que o de Toffoli estabelece que tais cargos devem ser sempre exercidos por membros de carreira. Além disso, no anteprojeto Toffoli, a escolha dos ocupantes de tais cargos é de competência do AGU, devendo apenas serem ouvidos o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, para os cargos de procurador-geral da Fazenda Nacional e procurador-geral do Banco Central, respectivamente.

É evidente que não faz qualquer sentido falar em autonomia funcional ou independência técnica (como dispõe o anteprojeto Toffoli, de forma genérica, “nos termos de regulamentação do Conselho Superior da AGU”) dos membros da advocacia pública federal se nossos gestores ocuparem cargos de natureza política e não técnica. Ademais, a falta de respeito à independência técnica está evidente nos dois anteprojetos em todas as previsões de que os pareceres deverão ser aprovados por superiores hierárquicos (detentores singulares de cargos), sem jamais ser prevista a discussão de divergências por comitês de especialistas, que poderiam propiciar a uniformização do entendimento no âmbito de uma discussão de caráter técnico e aberta à participação dos interessados e detentores de argumentos relevantes.

A hierarquia entre membros da carreira, que deveria ser apenas administrativa, revela-se assim claramente técnica, com a cristalina sobreposição do critério político sobre o jurídico. No anteprojeto Toffoli, contudo, ao menos está prevista a inamovibilidade dos membros, ressalvadas as mesmas exceções constitucionalmente previstas para magistrados e membros do Ministério Público, colocando tais membros a salvo de retaliações pela via das remoções de ofício.

Aliás, é preciso notar que esta prevalência do poder político sobre o critério jurídico se expressa claramente quando não há regras prévias para distribuição dos trabalhos, como é comum na consultoria jurídica de cúpula. Este sistema permite claramente o direcionamento das atividades de acordo com a possibilidade de “influenciar” no conteúdo do parecer que será emitido. Se eventualmente algum imprevisto ocorrer e for proferido parecer que desagrade aos “superiores”, está prevista a excrescência do instituto da avocação (mantida pelos dois anteprojetos), sendo que o anteprojeto Adams “supera” qualquer precedente ao estabelecer que o parecer não aprovado deverá ser desentranhado dos autos do procedimento administrativo, de modo a prejudicar a um só tempo a transparência administrativa e a possibilidade de controle posterior da juridicidade da atuação administrativa, seja pelo controle externo, seja pelo controle social, seja pelo controle judicial.

Também é expressão clara desta renúncia à autonomia e ao reconhecimento da competência técnica da instituição para realizar controle interno de juridicidade o fato de que se mantém o sistema de pareceres jurídicos não vinculantes para a Administração Federal, a menos que o(a) presidente da República os aprove com esta finalidade. Atribui-se ao leigo, detentor de cargo político, a palavra final acerca de opinião de caráter técnico-jurídico, afrontando-se assim a lógica e os sustentáculos básicos de um Estado Democrático de Direito.

No que concerne ao controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, os anteprojetos Toffoli e Adams se diferenciam, pois o primeiro prevê que haja manifestação do advogado-geral da União (não vinculando a posição deste, portanto, à defesa do texto questionado nas ações diretas de inconstitucionalidade), ao passo que o anteprojeto Adams tem uma redação que constitui uma contradição lógica, já que fala ao mesmo tempo em defesa do ato normativo e defesa da supremacia da Constituição, tal qual se a própria razão da instituição do controle de constitucionalidade (qual seja, a possibilidade de serem editados atos normativos inconstitucionais) inexistisse.

No que toca à profissionalização e democratização da gestão, nenhum dos dois anteprojetos, sequer de longe, prevê a necessidade de estipular critérios claros e objetivos para lotação de membros da carreira e seus servidores, para o preenchimento de funções de confiança ou para a distribuição dos trabalhos. Tais critérios somente são lembrados no que concerne à promoção. Contudo, eles são necessários não apenas para proteção de interesses corporativos, mas sobretudo para a garantia de exercício das atribuições institucionais de forma eficiente e isonômica — interesse de toda a sociedade portanto. Ainda caberia aos anteprojetos avançar na previsão de hipóteses e formato de audiências e consultas públicas. Estas estão previstas apenas no anteprojeto Adams, porém da forma centralizada que caracteriza todo o anteprojeto, como atribuição exclusiva do advogado-geral da União. Vale registrar que o anteprojeto Adams também retrocede ao não prever a Ouvidoria-Geral da Advocacia-Geral da União, extensamente detalhada no anteprojeto Toffoli.

No que tange à utilização de meios consensuais de solução de controvérsias, assim como desistências e reconhecimentos de pedidos, os dois anteprojetos mantêm a excessiva centralização de atribuições e pecam por não estipularem claramente os critérios jurídicos para prática de tais atos e homologação de atos ou acordos celebrados. Se não é adequada a celebração de transações individualmente por cada advogado público, seria muito mais apropriada a criação de comitês temáticos aptos a analisarem e homologarem tais acordos do que a concentração no advogado-geral da União — o que certamente inviabiliza a expansão desta alternativa.

Outro equívoco comum aos dois anteprojetos consiste em manter as competências atinentes aos meios consensuais no âmbito da Consultoria-Geral da União, que não tem qualquer ingerência sobre os conflitos judicializados. Por último, resta evidente a inconstitucionalidade (por violação ao princípio federativo) do anteprojeto Adams ao prever que transações entre entes federais e estados, Distrito Federal e municípios sejam firmadas sem a participação simétrica de seus órgãos jurídicos, mas tão somente sob a supervisão da AGU. O assunto que mais mereceria tratamento neste aspecto — em quais conflitos deve ser adotado o caminho consensual — não foi abordado por nenhum dos anteprojetos.

Quanto à representação judicial e extrajudicial de agentes públicos, o anteprojeto Toffoli avança, estipulando critérios para que esta situação ocorra, quais sejam, a solicitação do agente, que a controvérsia se refira a atos praticados no exercício de suas funções e na defesa do interesse público, nos termos de ato do AGU. Melhor teria feito se previsse nos termos de ato do Conselho Superior da AGU. O anteprojeto Adams simplesmente permite tal ocorrência sem estipular qualquer requisito, deixando o assunto em aberto para a lei ordinária, violando claramente a reserva constitucional de matéria atinente às atribuições institucionais da AGU à lei complementar.

Por fim, quando se trata de exercício da advocacia fora das atribuições institucionais, enquanto o anteprojeto Toffoli contém retrocesso ao não possibilitar a advocacia pro bono, atualmente permitida por ato normativo do AGU, o anteprojeto Adams, apesar de acertar ao manter esta possibilidade, passa a permitir o exercício da advocacia “quando em licença sem vencimento”, sem sequer excepcionar os casos em que há conflito de interesses entre a parte e a Administração Pública federal, abrindo as portas tanto para o uso de informações privilegiadas, com claro risco de prejuízo ao interesse público, quanto para a concorrência desleal com os advogados privados.

Em suma, o anteprojeto Toffoli, marcado pela relativa participação que caracterizou sua elaboração, consagrou alguns avanços importantes para a advocacia pública, embora devesse ir muito além do que foi. Foi, porém, esquecido pelo atual advogado-geral da União, que, às margens tanto do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União quanto das associações que representam os membros das carreiras, elaborou um outro anteprojeto que, no que diz respeito aos temas essenciais aqui versados, apenas promoveu retrocessos.

Muitos outros temas estão presentes nos dois anteprojetos, como a descrição das atribuições da Corregedoria, as prerrogativas, deveres, vedações e impedimentos dos membros da carreira, o regime de responsabilidade, as atribuições do Conselho Superior, a incorporação da Procuradoria-Geral do Banco Central, os requisitos para aprovação no concurso, entre vários outros.

Não se trata certamente de norma que possa ser reformada de forma centralizada e arbitrária, mas sim deve ser propiciada a ampla discussão, embasada em argumentos pertinentes que permitam avançar rumo a uma advocacia de Estado efetivamente comprometida com a concretização de um Estado Democrático de Direito. Ainda não é tarde para exigirmos esta mudança de rumos.


Luciane Moessa de Souza é procuradora do Banco Central do Brasil, integrante da Associação dos Procuradores do Banco Central.

Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2012


Ministério da Fazenda orienta pelo voto contrário ao PL que combate a Lavagem de Dinheiro

Nota Pública elaborada pelo Inesc propõe que o governo reavalie sua orientação de voto contrário ao PL 5.696/2009.


O incidente de uniformização para TNU pode tratar de questão exclusivamente constitucional?

Resumo: O presente estudo busca demonstrar um breve panorama do incidente de uniformização para a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU e, principalmente, que a competência da TNU reclama discussões teóricas, inclusive, quando cotejados os próprios julgados deste colegiado.

Palavras-chave: Incidente de uniformização. Cabimento. Competência. Matéria Constitucional. TNU. Jurisprudência. Representativo de controvérsia.

Sumário: Introdução. 1. Incidente de uniformização. 1.1. Nomenclatura. 1.2. Fundamento legal. 1.3. Natureza jurídica. 1.4. Finalidade. 1.5. O incidente de uniformização como novo paradigma recursal dos juizados. 2. O incidente de uniformização para TNU como recurso de fundamentação vinculada e o princípio da tipicidade das competências. Conclusão.

Introdução

O incidente de uniformização para a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU não é objeto de aprofundados debates pelos processualistas, em que pese seu importante papel uniformizador de âmbito nacional.

Da expressa menção do art. 14, da Lei 10.259 de 12 de julho de 2001 aos termos “de lei federal” conclui-se que a uniformização de interpretação não abarca questão constitucional. Porém, a TNU, em que pese a sua, até então, consolidada jurisprudência no sentido de ser incabível o incidente para a TNU em matéria constitucional, julgou recentemente (15/05/2012) incidente de uniformização, como representativo de controvérsia, em matéria constitucional (I.U. nº 2010.51.51.040706). Seria mera adequação da jurisprudência ou haveria error in procedendo?

1. O incidente de uniformização para a TNU.

Compete à Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais processar e julgar os incidentes de uniformização de interpretação de lei federal para a TNU (além deste há incidentes para turmas regionais ou para o STJ) interpostos contra decisões proferidas por turmas recursais ou turmas regionais, que versem sobre questões de direito material. A abrangência cingida apenas à legislação federal do incidente de uniformização constou, detaque-se, expressamente do art. 14, da Lei n. 10.259 de 2011 (Lei instituidora dos Juizados Especiais Federais).

1.1. Nomenclatura.

O nomem iuris nunca foi uma grande preocupação da legislação do microssistema dos Juizados Especiais. No caso do recurso cabível contra sentença, a Lei n. 10.259 de 2001 não se dedicou à escolha de um nome e este recurso acabou sendo conhecido pelos operadores do direito como recurso inominado ou recurso contra sentença. Esta postura do legislador mostra o maciço envolvimento com o princípio do informalismo que orienta os juizados especiais.

O caso do incidente de uniformização segue a mesma linha, pois a Lei n. 10.259 de 2001 mencionou que “caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal” em seu art. 14, mais uma vez deixa de lado o nomem iuris do recurso. E, valendo-se do aludido termo “pedido”, parcela da doutrina (VIEIRA, 2011, p. 95) utiliza o designativo “Pedido de uniformização” para identificar o meio de impugnação de acórdão de turma recursal ou regional.

Outra parcela da doutrina (TOURINHO NETO; FIGUEIRA JUNIOR, 2007, p. 296) apropriou-se do nome do recurso do sistema processual civil ordinário, qual seja, os embargos de divergência, que possui maior proximidade com o recurso em tela. Por seu turno, o Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformização (Resolução n. 22 de 04 de setembro de 2008, art. 6º, caput) preferiu a designação de incidente de uniformização de interpretação de lei federal.

Por fim, existe ainda quem (SOUZA, 2011, p. 324) ignorou este aspecto, tratando apenas de uniformização de jurisprudência o recurso em tela. Assim, a par das divergências, opta-se pelo nome “incidente de uniformização” por ser este designativo o que, s.m.j., melhor expressa as nuances do recurso uniformizador de jurisprudência dos Juizados Especiais Federais.

1.2. Fundamento legal.

O incidente de uniformização de interpretação de lei federal para a TNU encontra-se unicamente previsto no art. 14, da Lei n. 10.259 de 2001, lei instituidora dos Juizados Especiais Federais.

O processamento é tratado pelo Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (Resolução CJF n. 22 de 04 de setembro de 2008, alterada mais recentemente pela Resolução CJF n. 62, de 25 de junho de 2009).

1.3. Natureza jurídica.

A natureza jurídica do incidente de uniformização é de recurso, sendo que este guarda maior proximidade, repita-se, com os embargos de divergência previstos no art. 496, VIII do Codex Processual Civil.

Apesar do nome, não se cuida de incidente, diferentemente do que ocorre com o instituto do art. 476, do Código de Processo Civil, este sim, autêntico incidente processual de uniformização de jurisprudência.

1.4. Finalidade.

Sua função no sistema recursal dos juizados especiais federais é uniformizadora e tem como objeto de atuação o conflito exegético entre turmas recursais ou turmas regionais dos Juizados Especiais Federais, observados os demais requisitos. O seu “equivalente” no Código de Processo Civil, os embargos de divergência, visam uniformizar a jurisprudência interna do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça (DIDIER JR; CUNHA; 2010, p. 351). Porém, o incidente de uniformização para a TNU é extra corte, ou seja, deixa o plantel de um determinado órgão para atingir o acervo das turmas recursais e regionais federais de todo país.

1.5. O incidente de uniformização como novo paradigma recursal dos juizados.

A fase embrionária da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Projeto de Lei 1.480-D, de 1989) arquitetava um sistema recursal onde havia previsão de recurso uniformizador de jurisprudência (art. 47) para os Juizados Especiais Estaduais. Contudo, o dispositivo do aludido Projeto de Lei encontrou pelo caminho o veto presidencial, fundamentado este na celeridade processual que poderia ser, na visão do então Presidente da República, comprometida com a criação de novo recurso no microssistema.

Contudo, com a edição da Lei n. 10.259/2001 foi introduzido o incidente uniformizador de jurisprudência no âmbito dos Juizados Especiais Federais.

E isso não seria um retrocesso em relação à decisão política tomada em 1995? A resposta é negativa, porquanto uma variável muda drasticamente nos Juizados Especiais Federais, qual seja, as partes ocupantes dos pólos passivos das demandas nestes ajuizadas se caracterizam pela atuação nacional, por exemplo: a União, o INSS, a CEF, a EBCT etc.

Este fato acrescentou peso no lado da balança (ponderação) em que figura o princípio da segurança jurídica em detrimento do princípio da celeridade (princípio da proporcionalidade também é aplicável ao legislador1). Neste caso, há, é verdade, um detrimento aparente ao princípio da celeridade pelo fato de que a uniformização de jurisprudência pode até atrasar o processo em que se formará o leading case, porém contribuirá com o desfecho abreviado de vários outros feitos com o mesmo objeto que estejam em trâmite ou que serão ajuizados.

A mesma linha argumentativa fez com que se criasse recurso também de caráter uniformizador de jurisprudência nos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei n. 12.153 de 2009, arts. 18 e 19), demonstrando que a inovação trazida pela Lei n. 10.259 de 2001 é um modelo de sucesso.

2. O incidente de uniformização para TNU como recurso de fundamentação vinculada e o princípio da tipicidade das competências.

É pertinente a classificação dos recursos como de fundamentação livre ou de fundamentação vinculada. Pode-se afirmar de fundamentação vinculada o recurso que tem seu objeto lindado pela lei (ou Constituição Federal), restando impossibilitado de enfrentar todos os pontos de um decisum, pois a lei especificadamente registra seu âmbito de atuação. O recurso de fundamentação livre, por sua vez, como o próprio nome sugere, pode veicular toda a matéria em que haja sucumbência da parte recorrente. Os clássicos exemplos (MEDINA; WAMBIER, 2011, p. 46) dos embargos de declaração (art. 535, do CPC) e do recurso especial (art. 105, III, da CRFB/88) são extremamente didáticos para a identificação do recurso como de fundamentação vinculada, pois são recursos largamente utilizados, bem ainda pertencem ao sistema recursal do CPC (comum).


Ocorre que no microssistema dos Juizados Especiais Federais também há recurso com fundamentação vinculada, é o caso do incidente de uniformização para a TNU. Este caráter do recurso contribui para a aferição da competência jurisdicional da TNU, panorama umbilicalmente ligado ao princípio da tipicidade das competências. Este preceitua que um órgão jurisdicional somente pode julgar aquilo delineado previamente pela lei ou pela Constituição Federal como de sua competência.

Assim, as questões de cunho eminentemente constitucional não se inserem na competência da TNU, porquanto o recurso cabível para a aludida questão é o recurso extraordinário, inclusive a própria TNU tem julgados nesse sentido, v.g., Agravo Regimental em Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal n. 2007.70.50.016646-5, Relator Juiz Federal Janilson Siqueira, julgado em 29 de fevereiro de 2012.

Ocorre que o mencionado princípio (tipicidade das competências) restou nitidamente olvidado ao se apreciar recurso de contribuinte com fundamentação exclusivamente constitucional (imunidade tributária) na recentíssima sessão do colegiado de 15 de maio de 2012. Confira-se da ementa do aresto a natureza eminentemente constitucional da questão posta no incidente de uniformização (I.U. n. I.U. nº 2010.51.51.040706-0 – Rel. Juiz Federal VLADIMIR VITOVSKY, julgado em 15/05/2012, DOU, Seção I, pg. 153, de 01/06/2012), verbis:

TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE REMUNERAÇÃO DE MILITARES INATIVOS E PENSIONISTAS – INEXISTÊNCIA DE DIREITO À IMUNIDADE CONFERIDA AOS SEGURADOS DO RGPS E SERVIDORES – ART. 5º EC 41/03 – ART. 40 §18 CR 88 – INCIDENTE CONHECIDO E NÃO PROVIDO
1. A contribuição previdenciária dos militares inativos e pensionistas deve incidir sobre o total das parcelas que compõem os proventos da inatividade, de acordo com a norma do artigo 3-A da Lei nº 3.765/60, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2215- 10/2001, não havendo direito à imunidade conferida aos segurados do RGPS e servidores.
2. Sugiro, respeitosamente, ao MM. Ministro, que imprima a sistemática prevista no art. 7º do Regimento Interno, que determina a devolução às Turmas de origem dos feitos congêneres, para manutenção ou adaptação dos julgados conforme a orientação ora pacificada.
3. Incidente conhecido e não provido.” (grifo nosso)

Frise-se que o aludido precedente possui envergadura de representativo de controvérsia, conforme divulgado pela própria TNU em seu sítio eletrônico2, bem ainda sugerido pelo item “2” da ementa do aresto transcrita nas linhas volvidas.

Com efeito, o recurso extraordinário é cabível de acórdão de Turma Recursal, porquanto o inciso III do art. 102 da Constituição Federal não limitou o cabimento a julgados de Tribunais, como fez o inciso III, do art. 105 também da Constituição (Nesse sentido súmula 640, do STF).

Assim, a parte sucumbente que se deparar com acórdão de turma recursal ou regional que enfrente questão exclusivamente constitucional deve-se valer do recurso extraordinário e não do incidente de uniformização para a TNU.

Conclusão.

O paradigma que se cria com o julgado em destaque neste abreviado estudo (I.U. n. I.U. nº 2010.51.51.040706-0) demonstra que o ainda impúbere sistema recursal dos Juizados Especiais Federais reclama cuidados de ordem primária, como o respeito ao princípio da tipicidade das competências.

Verdadeiramente, a celeridade é o maior avanço dos Juizados Especiais, contudo as bases principiológicas e legais do sistema recursal não devem ser suprimidas, sob pena de se instaurar a insegurança jurídica aos cidadãos que buscam a prestação jurisdicional dos juizados, reconhecidamente um grupo composto, em maior número, por pessoas que se encontram em alguma projeção da vulnerabilidade humana.

Referências

DIDIER JR. Fredie; CUNHA. Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de Impugnação às Decisões judiciais e Processo nos Tribunais. Salvador. Editora Jus Podivm, 2010.

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Tereza Arruda Alvin Wambier. Recursos e Ações Autônomas de Impugnação. Processo civil moderno; v. 2. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória. São Paulo: Saraiva, 2011.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do processo civil e processo de conhecimento. v. 1. 53. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

TOURINHO NETO, Fernando Costa; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais: comentários à Lei n. 10.259, de 10.07.2001. 2ª ed. rev. atual. ampli. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

VIEIRA, Luciano Pereira. Sistemática Recursal dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.


Notas

1Questão bem desenvolvida no voto condutor do Min. Gilmar Mendes na Intervenção Federal n. 298.

2Apesar de inexistir no Regimento Interno ou na Lei 10.259/2011 a expressão “representativo de controvérsia”.


AUTOR

Wesley Luiz de Moura
Procurador da Fazenda Nacional


SINPROFAZ cobra providências da PGFN

Em nota aprovada na última AGO, Sindicato endurece com Administração cobrando engajamento na defesa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.


Federalismo e Construção do Espaço Público Democrático no Brasil

MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA1

RESUMO: Este artigo jurídico está voltado ao estudo do modelo de Estado federativo adotado pela Constituição de 1988, que contribui para a participação do indivíduo nas esferas decisórias de poder e na construção do espaço público democrático no Brasil. O arranjo instituído possibilita maior atuação do cidadão nas questões estatais, em especial as locais, considerados os instrumentos constitucionais disponibilizados, como o plebiscito (consulta anterior ao ato a ser veiculado pelo Poder Público), o referendo (consulta após a realização do ato) e a lei de iniciativa popular (projeto de lei subscrito pelos cidadãos a partir de requisitos estabelecidos constitucionalmente), além de facultar o aumento da participação da cidadania nos atos praticados pelo poder estatal em uma perspectiva pluralista de Estado Democrático de Direito, que preconiza a descentralização político-federativa, a autonomia dos entes federados e sua relevância quanto à participação direta na consecução de políticas públicas fundamentais ao aprimoramento das instituições democráticas.

PALAVRAS-CHAVE: federalismo, democracia, subsidiariedade, descentralização, Constituição.

ABSTRACT: This article is aimed to study the legal state model adopted by the federal Constitution of 1988, which contributes to increase the individual´s participation in decision-making spheres of power and the construction of a democratic society in Brazil. The arrangement allows most established role of citizens in state issues, especially local ones, considering the constitucional instruments available, such as the plebiscite (form of consultation prior to the act to be published by the Government), the referendum (which consultation takes place following the completion of the act) and the law or popular initiative (bill signed by citizens from certain requirements of the Constitucion), as well as help increase citizen participation in the acts of the state power in a pluralist perspective of The Democratic State of Law, which calls for federal political decentralization, autonomy granted to federal entities and their relevance in terms of direct participation in the achievement of public policies that are fundamental to improving democratic institutions.

KEYWORDS: federalism, democracy, subsidiarity, decentralization, Constitution

1 INTRODUÇÃO

A crise política, institucional e social que atualmente afeta os Estados nacionais, dentre eles, o Brasil, representa motivo de crescente preocupação. Aliado a isto, verifica-se a ausência de políticas governamentais eficazes para o combate aos problemas existentes e também o constante desgaste daquelas já instituídas, que não se mostram aptas ao enfrentamento dos problemas. Ainda pior, nesse contexto, o fato de que o principal ator social, o cidadão, retira-se cada vez mais do processo político e deliberativo, permanecendo em posição secundária e de menor importância na sociedade.

A análise da estrutura constitucional pode nos auxiliar a entender melhor como o modelo de Estado federativo repercute em nossa estrutura social, bem como o destaque ocorrido nas Cartas Constitucionais anteriores, além de ser cláusula pétrea na Carta vigente. Ressalte-se que, no Brasil, a proposta federativa tem forte influência do modelo norte-americano, não podendo se desprezar tal circunstância.

O modelo de Estado federativo adotado pela Constituição de 1988 pode contribuir para determinar o incremento da participação do indivíduo nas esferas decisórias de poder e a construção do espaço público democrático no Brasil, possibilitando maior atuação do cidadão nas questões estatais em uma perspectiva pluralista de poder.

A descentralização político-democrática objetiva a diminuição da distância entre o cidadão e os entes governamentais. Representa instrumento para o exercício e o reforço da democracia, ou seja, quanto mais elementos constitucionais forem disponibilizados para o seu exercício, mais probabilidade existe de o poder ser democrático e participativo, aumentando-se não somente os instrumentos de fiscalização, mas também o controle e a supervisão das suas atividades.

O arranjo federativo estabelecido pela Constituição de 1988 traz alguns institutos que podem ser citados como exemplos de incremento na participação democrática (democracia direta) atribuída ao cidadão, dentre eles, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (art. 14, I a III da CRFB/88), sendo, portanto, tais elementos fundamentais, porém não exclusivos, do ponto de vista da atuação direta do cidadão nos assuntos estatais em uma perspectiva de poder pluralista.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 PACTO FEDERATIVO E PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

O estudo do federalismo democrático vem ganhando o interesse crescente dos acadêmicos de ciências sociais. Pela via democrática, a forma de Estado federativa representa a realização da descentralização necessária para aproximar o indivíduo das esferas decisórias do poder político.

A formação federativa brasileira advém de uma proposta de Estado unitário (séc. XIX), instituída pela Constituição de 1824. Com a primeira Carta federativa (1891), a União cede poderes para viabilizar a instituição dos entes regionais, criando proposta de federação na qual o ente central detém a maior parte das competências constitucionais, enquanto as entidades subnacionais atuam de maneira complementar, dependendo, em diversos casos, do ente principal para a implementação das suas iniciativas, fato que repercute diretamente na participação do indivíduo nas esferas de poder.

A perspectiva descentralizadora diminui a distância entre o cidadão e os entes governamentais. A descentralização política representa instrumento fundamental para a ampliação do espaço público democrático. Celso Bastos (1997, p. 285) explica:

a federação se tornou, por excelência, a forma de organização do Estado democrático. Hoje, nos Estados Unidos, há uma firme convicção de que a descentralização do poder é um instrumento fundamental para o exercício da democracia.

O arranjo federativo instituído pela Constituição de 1988 repercute diretamente na autonomia atribuída aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, acarretando, em algumas situações, o afastamento do indivíduo da sede do poder decisório. Tal circunstância compromete o federalismo democrático, tendo em vista que o Poder Público não consegue, em certas situações, solucionar questões relevantes relacionadas ao administrado.


Nesse contexto, torna-se importante o estudo da subsidiariedade como elo nas relações estabelecidas entre os cidadãos e os entes federativos. Augusto Zimmermann (2005, pp. 200-201) esclarece:

Conferindo-se ao sistema político os objetivos de descentralização política ou meramente administrativa, o Estado procede à valorização do princípio da subsidiariedade, atuando preferencialmente para os fins da autonomia dos seus órgãos descentrais. Em outras palavras, apenas quando ao nível inferior não seja possível a realização de determinada ação, de igual ou melhor forma, é que o nível superior deve receber a competência para agir. Também por isso, todos os programas de descentralização democrática, incluindo aqueles de mera desestatização, ficam inevitavelmente ligados ao princípio disposto. Redimensionados os limites da ação estatal, alcançam-se assim os efeitos positivos do controle da sociedade sobre as práticas políticas preferivelmente situadas nas zonas periféricas, e não mais no poder central.

O princípio da subsidiariedade consubstancia aspecto relevante em uma perspectiva federativa pluralista e na consolidação do espaço público democrático. Assim, “devem ser atribuídas ao governo federal e ao estadual aquelas tarefas que não possam ser cumpridas senão a partir de um governo com esse nível de amplitude e generalização” (BASTOS, 1997, p. 285). José Alfredo de Oliveira Baracho (2003, pp. 30-31) explica melhor:

O princípio da subsidiariedade pode ser aplicável nas relações entre órgãos centrais e locais, verificando-se, também, o grau de descentralização. A descentralização é um domínio predileto de aplicação do princípio da subsidiariedade, sendo que a doutrina menciona as relações possíveis entre centro e periferia. A descentralização é um modelo de organização do Estado, pelo que o princípio da subsidiariedade pode ser invocado. A descentralização é um problema de poderes, seja financeiro ou qualquer outro que proponha efetivá-la, bem como de competências. O princípio da subsidiariedade explica e justifica, em muitas ocasiões, a política de descentralização. A compreensão do princípio da subsidiariedade, em certo sentido, procura saber como em organização complexa pode-se dispor de competências e poderes. Aceitá-lo é, para os governantes, admitir a ideia pela qual as autoridades locais devem dispor de certos poderes. O princípio da subsidiariedade intui certa ideia de Estado, sendo instrumento da liberdade, ao mesmo tempo que não propõe a absorção de todos os poderes da autoridade central. A modificação da repartição de competência, na compreensão do princípio da subsidiariedade, pode ocorrer com as reformas que propõem transferir competências do Estado para outras coletividades. Através da sua aplicação, todas as competências que não são imperativamente detidas pelo Estado devem ser transferidas às coletividades. Procura-se resolver a questão de saber quando o Estado e as demais coletividades devem ser reconhecidas na amplitude de suas competências. Deverá ser ela exercida em nível local, ao mesmo tempo em que se propõe determinar qual coletividade terá sua competência definida. Nem sempre o princípio da subsidiariedade dá resposta precisa a todas estas questões. Ele fixa apenas o essencial, quando visa orientar uma reforma, uma política, indicando direção, inspirada na filosofia da descentralização.

Francisco Mauro Dias (1995, p. 21) reforça a relevância da subsidiariedade, mencionando o exemplo francês:

As perplexidades da conjuntura e o despertar globalizado para a incapacidade de o Estado assumir a responsabilidade de resolver, que não subsidiariamente, seus grandes desafios impuseram ao então Primeiro Ministro de França, Senhor Édouard Balladur, a constituição, em 1994, de uma Comissão de Alto Nível, presidida por Alain Minc, para refletir sobre a amplitude dos problemas de natureza econômica e social que a sociedade francesa teria de confrontar, recenseando prospectivamente os desafios do ano 2000.

Em última análise, o reforço da proposta subsidiária pode contribuir para o próprio pluralismo estatal, na medida em que garante ao cidadão mecanismos de participação, os quais serão capazes de mitigar as diferenças a partir do instante em que os indivíduos estarão mutuamente envolvidos na construção da sociedade. Gisele Cittadino (2004, p. 87) explica:

reconhecer o pluralismo, portanto, é reconhecer a diferença. Apenas recorrendo à dimensão ético-política da democracia é possível, segundo Walzer, compatibilizar a participação em uma comunidade política democrática, que tenha a liberdade e a igualdade como princípios, com o pluralismo cultural, étnico e religioso. Em outras palavras, em face do pluralismo, não nos resta outra alternativa senão abdicar das respostas únicas, verdadeiras e definitivas para o problema da associação política e admitir o caráter parcial, incompleto e conflitivo do consenso entre indivíduos.

Ademais, se o poder estatal encontra-se próximo ao indivíduo, mais motivos haverá para que as crescentes demandas possam ser solucionadas e, melhor, para que se incremente a fiscalização dos poderes por órgãos (conselhos, por exemplo) locais onde os diversos setores da comunidade efetivamente participem.

Assim, constata-se que o aumento da participação democrática do indivíduo no processo político decisório, nos termos do arranjo constitucional federal vigente, implica a ampliação das esferas de participação popular no poder público, reforçando a perspectiva democrática a partir do instante em que, através da sua atuação, passa a se sentir partícipe direto dos desígnios da comunidade na qual interage.

2.2 DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICA

A democracia pressupõe a participação do cidadão nos atos praticados pelo poder público. Desta maneira, “o intervencionismo e o excesso de planejamento do poder central consubstanciam-se num fator de seriíssimos problemas ao sistema federativo pátrio, no correto ajustamento das respectivas competências e na distribuição dos recursos” (ZIMMERMANN, 2005, p. 210).


Luis Roberto Barroso (1982, p. 109) acusa, ainda na vigência da Carta Constitucional anterior, o problema da centralização no Brasil:

Refletindo fatores insuperáveis, provenientes de um contexto global, ao qual agrega as peculiaridades típicas do regime político que se instalou no Poder, o sistema federativo no Brasil procura subsistir em meio a circunstâncias adversas. Tal adversidade origina-se de duas fontes: em primeiro lugar, da própria Constituição Federal, que, fiel às inspirações dos que a impuseram, tolhe a autonomia dos estados e procura submeter todas as questões relevantes ao crivo do Poder Central; e, em segundo, no conjunto de elementos, circunstâncias e propósitos que, em injunções que se verificam à sombra dos textos legais, condicionam o desempenho das instituições do país, submetidas, ora às complexidades dos mecanismos econômicos, ora às ingerências pouco legítimas de mecanismos políticos.

Quanto ao quadro atual do federalismo no país e à importância de uma nova proposta federativa, Paulo Bonavides (2004, pp. 400-401) ensina:

É inexplicável a indiferença à questão federativa naquilo que entende como a necessidade de um remédio eficaz, de natureza institucional, e não simplesmente paliativa para os problemas federativos já presentes e em debate. Não poderão eles ser resolvidos nas dimensões de um federalismo clássico do modelo liberal. Não se deve redemocratizar o país sem cogitar, igualmente, a modalidade de federalismo que se vai perfilhar. Os vícios que mataram o federalismo das autonomias não poderão conviver com uma estrutura legitimamente democrática. Cedo, a massa de atribuições e prerrogativas concentradas nas esferas executivas e presidenciais da União, por decorrência do rompimento do antigo equilíbrio federativo, se abateriam sobre o novo organismo jurídico-democrático, destroçando-o por inteiro. A presente forma de federalismo se apresenta mais extinta que a democracia mesma; esta respira nos partidos do sistema único, ao passo que o federalismo padeceu graves golpes, a que já sucumbiu tanto na letra da Constituição como nas praxes políticas vigentes. Urge, por conseguinte, um novo quadro federativo para o Brasil.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou nesse sentido sobre o assunto:

Processo

ADI-MC 216

ADI-MC – Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade

Relator(a)

Celio Borja Sigla do órgão

STF Descrição

Votação: Por maioria. Resultado: Deferida. Caso Repiquinho. Total de páginas: 39. Análise: (DMY). Revisão: (NCS). Inclusão: 20.05.93, (MV). Alteração: 25/05/93, (MK). DSC_Procedência_Geográfica: PB – Paraíba

Ementa

Ação direta de inconstitucionalidade – Constituição estadual – Processo legislativo – A questão da observância compulsória, ou não, de seus princípios, pelos estados-membros – nova concepção de federalismo consagrada na Constituição de 1988 – perfil da federação brasileira – extensão do poder constituinte dos estados-membros – relevo jurídico do tema – suspensão liminar deferida. O perfil da federação brasileira, redefinido pela Constituição de 1988, embora aclamado por atribuir maior grau de autonomia dos estados-membros, e visto com reserva por alguns doutrinadores, que consideram persistir no Brasil um federalismo ainda afetado por excessiva centralização espacial do poder em torno da União federal. Se é certo que a nova Carta política contempla um elenco menos abrangente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, com isso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletividades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quanto aos princípios federais extensíveis e aos princípios constitucionais estabelecidos, os quais, embora disseminados pelo texto constitucional, posto que não é tópica a sua localização, configuram acervo expressivo de limitações dessa autonomia local, cuja identificação – até mesmo pelos efeitos restritivos que deles decorrem – impõe-se realizar. A questão da necessária observância, ou não, pelos estados-membros, das normas e dos princípios inerentes ao processo legislativo provoca a discussão sobre o alcance do poder jurídico da União federal de impor, ou não, as demais pessoas estatais que integram a estrutura da federação, o respeito incondicional a padrões heterônomos por ela própria instituídos como fatores de compulsória aplicação. Este tema, que se revela essencial à organização político-administrativa do Estado brasileiro, ainda não foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Da resolução desta questão central, emergirá a definição do modelo de federação a ser efetivamente observado nas práticas institucionais. Enquanto não sobrevier esse pronunciamento, impõe-se, como medida de cautela, a suspensão liminar de preceitos inscritos em Constituições estaduais, que não hajam observado os padrões jurídicos federais, de extração constitucional, concernentes ao processo legislativo.

Referência Legislativa
LEG-EST CES ANO-1989 ART-00033 INC-00018 ART-00034 PAR-00002, PB. Revisor

Celso de Mello


O federalismo institui, portanto, através da Constituição, poderes autônomos e descentralizados hábeis à promoção do exercício autônomo, nos termos da CRFB/88, das prerrogativas constitucionais promotoras da pluralidade de poderes verticalmente estatuídos.

Tem-se, desta forma, na organização político-administrativa federativa instituída pela Constituição brasileira de 1988, uma estrutura tendente à centralização. Sem embargo, “um poder central estatizante é inconveniente a uma autêntica federação, que pressupõe um equilíbrio entre as diversas esferas governamentais” (BASTOS, 1997, p. 285), sendo certo que a descentralização política é um processo garantidor de autoridade e recursos para os governos regionais e locais.

A mera descentralização administrativa consubstancia sistema municipalista que se distancia do princípio federalista, podendo, inclusive, recair no próprio Estado unitário descentralizado como critica Celso Ribeiro Bastos (1997, pp. 293-294):

O traço principal que marca profundamente a nossa já capenga estrutura federativa é o fortalecimento da União relativamente às demais pessoas integrantes do sistema. É lamentável que o constituinte não tenha aproveitado a oportunidade para atender ao que era o grande clamor nacional no sentido de uma revitalização do nosso princípio federativo. O Estado brasileiro na nova Constituição ganha níveis de centralização superiores à maioria dos Estados que se consideram unitários e que, pela via de uma descentralização por regiões ou por províncias, conseguem um nível de transferência das competências tanto legislativas quanto de execução muito superior àquele alcançado pelo Estado brasileiro. Continuamos, pois, sob uma Constituição eminentemente centralizadora, e se alguma diferença existe relativamente à anterior é no sentido de que esse mal (para aqueles que entendem ser um mal) se agravou sensivelmente.

A luta pela descentralização de poder no Brasil é histórica, advinda da própria proclamação da República (e também do federalismo!), em que o principal embate era a desconcentração do poder imperial para o novel Estado que se criava, principalmente nos aspectos nacional e regional, sendo, portanto, pleito antigo da sociedade brasileira que chega aos dias atuais.

Há problemas institucionais no que tange à sua efetivação. Como já visto, o poder central, durante as Constituições nacionais que se sucederam, foi prestigiado, via de regra, em clara demonstração de certo receio em se avançar para uma proposta de Estado em que o poder local tivesse mais voz (e vez!).

Todavia, não se deve atribuir exclusivamente ao pacto federativo as dificuldades inerentes à implementação de políticas públicas. Assim, para melhor entender o funcionamento dos sistemas federais, não é necessário compreender somente a estrutura constitucional vigente, mas sim as forças reais do sistema, os partidos políticos e as práticas e as estruturas do poder econômico que influenciam diretamente as escolhas institucionais no Estado

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2.3 ESPAÇO PÚBLICO DEMOCRÁTICO E INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DE EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA DIRETA

Outra questão fundamental é o entendimento do espaço público democrático e sua relação com o Estado federal. A delimitação do espaço público democrático passa a ser bastante relevante. A sua concretização consolida o sistema político e democrático. A sociedade civil deve ser parte ativa na sua idealização e realização práticas, sem o que passa a ter perigoso papel secundário no processo político. A esfera pública burguesa pode ser compreendida, assim, como o espaço das pessoas privadas reunidas em um espaço público. Elas desejam esta esfera pública regulamentada pela autoridade (como forma de proteção em uma perspectiva originariamente contratualista), mas diretamente contra a própria autoridade, a partir do momento que não desejam sofrer, principalmente, as consequências decorrentes das limitações de direitos advindas do poder público.

O Estado de Direito burguês pretende, com base na esfera pública em funcionamento, uma tal organização do poder público que garanta a sua subordinação às exigências de uma esfera privada que se pretende neutralizada quanto ao poder (HABERMAS, 2003, p. 104). Assim, para Habermas, “a ideia burguesa de Estado de Direito, ou seja, a vinculação de toda a atividade do Estado a um sistema normativo, na medida do possível sem lacunas e legitimado pela opinião pública, já almeja a eliminação do Estado” (2003, p. 102). Desta maneira, segundo este autor, “a esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das pessoas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietários e de meros seres humanos” (2003, p. 74).

Sobre o tema, José Ribas Vieira (1995, pp. 70-71) esclarece:

Essa compreensão define que o essencial da Constituição é viabilizá-la como processo estabelecedor para a aplicação de decisões coletivas. Essa postura sobre o perfil constitucional aproxima-a, logicamente, da visão habermasiana. Em seu último livro, Faktizitát und Geltung, conforme mencionamos anteriormente, (já há uma versão em língua inglesa mimeografada), Habermas ressalta que a esfera pública traduz uma “rede de comunicação de conteúdos e formas de postura, isto é, de opiniões”. Tal rede filtra ou elabora os fluxos de opiniões e gera opinião pública. Assim, o interessante da análise de Habermas sobre a opinião pública é no sentido de visualizar como a lei não é determinada exclusivamente pelo Parlamento, e sim pela organicidade dessa via política e sua articulação com o público. Na última obra citada de Habermas, ele aponta para duas formas de atores na formulação da opinião pública, a saber: os atores usufrutuários (os partidos políticos, associações de interesses e os meios de comunicação) e os sujeitos “autônomos” responsáveis pela geração e contribuição para reprodução das condições de possibilidade da esfera pública como rede comunicativa, integrantes, assim, da sociedade civil. É, por exemplo, nesse quadro dos Direitos Fundamentais, a partir de uma perspectiva jurídica procedimental, que aumenta a sua responsabilidade de alargar os maiores graus de liberdades públicas e de participação política da sociedade civil.

Ana Lúcia de Lyra Tavares (1995, p. 5), referindo-se à relevância da contribuição do espaço público para o ideal democrático, destaca:


O espaço público, tanto em seu aspecto físico, como procedimental, não escapa a idealizações, a configurações preconcebidas, particularmente no que tange à construção de esquemas de distribuição espacial e funcional do poder, visando ao aperfeiçoamento do sistema político e, nos países aqui focalizados, ao ideal democrático. Se estes esquemas emanam, notadamente, do Estado, não se pode esquecer, todavia, que nos contextos de efetiva prática da democracia a sociedade civil é, por igual, parte ativa na idealização dos mesmos.

Como consequência da omissão do Estado e da sua falta de iniciativa, combinadas com a inoperância do poder público no que tange ao atendimento das demandas sociais cada vez mais crescentes das sociedades de massas, observa-se que os problemas da comunidade tendem a ser mais complexos, contribuindo para o aparecimento do poder paralelo ao Estado, na medida em que os problemas sociais não conseguem ser solucionados satisfatoriamente. Continua Tavares (1995, p. 9):

A lentidão, não raro as omissões, no atendimento às demandas da sociedade civil, em decorrência dos entraves que se criam nas relações entre os poderes instituídos, ao mesmo tempo em que os fragilizam perante a população, dada a frustração que o seu desempenho insatisfatório suscita, concorrem para o fortalecimento de poderes sociais não instituídos e a criação de outros, até marginais, que acabam por atuar com desenvoltura no seio da sociedade.

Para maior efetividade em termos de participação do cidadão no processo político-democrático instituído em 1988, disponibilizam-se alguns instrumentos constitucionais na Carta vigente, dentre eles, como já visto, o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular.

O plebiscito consubstancia instrumento de consulta ao cidadão realizado anteriormente ao ato que se vai praticar (inc. I do art. 14 da CRFB/88). Diferentemente do plebiscito, há o referendo (inc. II do art. 14 da CRFB/88), que se caracteriza como consulta posterior ao ato veiculado. Na história recente do país, tivemos a oportunidade de nos manifestar em plebiscito em 1993, escolhendo a forma de governo republicana e o sistema presidencialista. Posteriormente, em 2005, o cidadão foi chamado a deliberar acerca do desarmamento, restando derrotada tal iniciativa.

Outro instrumento constitucional de participação democrática direta é a lei de iniciativa popular (inc. III do art. 14 c/c § 2º. do art. 61, ambos da CRFB/88), que caracteriza possibilidade legislativa conferida ao cidadão para apresentar, mediante proposta, projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2. da CRFB/88).

Como exemplos de projetos de lei de iniciativa popular, há a Lei n. 8.930/94 (Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez), que alterou a Lei n. 8.072/90, tornando-a mais gravosa; a Lei n. 9.840/99 (captação de sufrágio), “a qual possibilitou que a Justiça Eleitoral possa coibir com mais eficiência a compra de votos de eleitores” (LENZA, 2010, p. 449) e, finalmente, a “lei da ficha limpa” (Lei Complementar n. 135/10), recentemente aprovada pelo Congresso Nacional. Destaca-se, ainda, que para sua maior efetividade, melhor seria que as suas exigências constitucionais fossem facilitadas, além de se admitir a possibilidade de o cidadão propor projeto de Emenda à Constituição.

Fábio Konder Comparato (2010, pp. 58-59) explica:

As outras duas medidas institucionais de instauração da democracia entre nós são: 1. A livre utilização pelo povo de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação da iniciativa popular de projetos de lei e a criação da iniciativa popular de emendas constitucionais. 2. A instituição do referendo revocatório de mandatos eletivos (recall), pelos quais o povo pode destituir livremente aqueles que elegeu, sem necessidade dos processos cavilosos de impeachment. Salvo no tocante à iniciativa popular de emendas constitucionais, já existem proposições em tramitação no Congresso Nacional a este respeito, redigidas pelo autor destas linhas e encampadas pelo Conselho Federal da OAB: os Projetos de Lei n. 4.718 na Câmara dos Deputados e n. 1/2006 no Senado Federal, bem como a proposta de Emenda Constitucional 73/2005 no Senado Federal. Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a proposta de Emenda Constitucional n. 26/2006, apresentada pelo senador Sérgio Zambiasi, que permite a iniciativa popular de plebiscitos e referendos.

Para tornar mais efetiva a proposta feita por Komparato, ideal seria que o cidadão tivesse o poder de convocar tais instrumentos de participação direta como o plebiscito e o referendo. Entretanto, nos termos do inc. XV do art. 49 da CRFB/88 (“É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XV- autorizar referendo e convocar plebiscito”), verifica-se que tal atribuição é exclusiva do Congresso Nacional. Afinal de contas, que democracia direta é esta em que o povo delega ao Congresso Nacional o poder de decidir se haverá ou não consulta quanto a questões fundamentais? E a regra do art. 1º., parágrafo único da Constituição vigente (“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), desconsidera-se ?

Diante da difícil questão, Komparato (2010, pp. 58-59) conclui no referido artigo:

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia, organização e competência. Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder? É a pergunta que ora faço à presidente eleita.

Assim, o incremento da participação da cidadania nos assuntos estatais, o pluralismo político, o respeito à igualdade e às liberdades públicas contribuem para a formação do espaço público democrático, ressaltando-se que o amadurecimento político, o posicionamento consciente e livre no processo de participação nos debates e nas deliberações pela cidadania e pela sociedade organizada e, em última análise, na reconstrução do espaço público implicam uma base educacional condizente com um país que visa pleitear melhores posições no campo interno e internacional.


Conclui-se, portanto, que há certa dificuldade de se estabelecer um autêntico espaço público democrático no país, principalmente do ponto de vista da influência do processo histórico desigual de formação da sociedade brasileira, que repercute hodiernamente, além da ausência de vontade política das elites dominantes.

Nesse diapasão, a maior efetividade desses mecanismos constitucionais de democracia estará a cargo da sociedade organizada através de sua maior participação no espaço democrático. Todavia, parece inócua tal mobilização se não for apoiada pelas funções de poder da República, em especial o Poder Judiciário, que tem hoje a importante missão, em uma perspectiva neoconstitucional e pós-positivista, de colocar o cidadão como ator principal do processo social, com decisões arrojadas e justas, prestigiando o Estado de Direito e a dignidade da pessoa humana.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão da organização do Estado (aí incluído o brasileiro, objetivo do trabalho) encontra-se hoje na ordem do dia. Indaga-se: O Estado vem cumprindo o seu verdadeiro papel que dá sentido à sua criação? Justifica-se, na perspectiva contratualista, a submissão da população aos seus ditames em um contexto em que o Estado cada vez mais agoniza e perde espaço para poderes paralelos, como é o caso do tráfico de drogas nas favelas cariocas?

Estas questões devem ser entendidas como forma de aprimorar a vida em sociedades cada vez mais complexas. Pode-se concluir que o Estado brasileiro, apesar de significativos avanços, ainda padece de um melhor aperfeiçoamento em termos de pacto federativo. A nossa origem federativa, quase integralmente importada dos estadunidenses na primeira Constituição republicana de 1891, da noite para o dia decretou que um Estado inicialmente monárquico-imperial se transformaria em federativo, ou seja, de um poder centralizado no imperador passa-se a uma perspectiva descentralizada com entes federativos criados para o seu exercício autonomamente.

A federação consolidou-se e chega a 1988 com status de cláusula pétrea (inc. I do § 4º. do art. 60 da CRFB/88) no que tange à forma federativa de Estado. Claro que a organização originária e os aspectos histórico-sociológicos repercutirão em 1988. Tem-se, pois, que a Constituição cidadã, conforme preconizara Ulisses Guimarães, traz uma série de avanços em relação ao pacto federativo instituído. Todavia, observa-se que o poder central prevalece sobremaneira sobre os demais entes federativos (estados-membros, municípios e Distrito Federal), não só em termos de atribuições elencadas (arts. 21 a 24 da CRFB/88), como também em termos econômicos (arts. 153, 154, 149 e 195, todos da CRFB/88), carecendo, pois, de maior descentralização em termos de construção de perspectiva federativa autêntica e efetiva.

Nesse contexto, os poderes regional e local sobrevivem à sombra do poder federal, haja vista que se observa uma subsidiariedade invertida, quando, na verdade, o ideal seria que o poder estivesse mais próximo do cidadão (no município), depois os estados e o Distrito Federal e, por último, a União. A questão é: o Brasil estaria preparado para essa maior autonomia local? Tentou-se em 5 de outubro de 1988. Todavia, observe-se que, posteriormente, a Emenda Constitucional n. 25/2000 trouxe uma série de limitações aos municípios, tendo em vista os desmandos locais protagonizados por políticos descomprometidos com uma proposta séria e digna de país.

Dúvidas não há que o arranjo posto repercutirá na questão do espaço público democrático que, originariamente, era (e ainda é!) extremamente desigual, apesar de políticas compensatórias colocadas em vigor com sucesso, como o Bolsa Família, o Prouni e outros, em especial, no último mandato do presidente Lula (2007/2010).

Observa-se que, na luta por uma sociedade mais participativa e democrática, existe o histórico embate entre forças progressistas e aquelas, conservadoras, que insistem em não aceitar ou admitir que o progresso e a dignidade da pessoa humana cheguem às camadas mais pobres da sociedade brasileira. Parece que a Constituição não pode ser considerada como o único instrumento de viabilização dessas mudanças. O papel central estará a cargo da sociedade civil organizada, esta sim verdadeira protagonista das transformações sociais. No entanto, torna-se complicado discutir a questão das mudanças políticas atualmente prescindindo-se da análise jurídico-constitucional.

Assim, debruçando-se sobre a Carta vigente, visualizam-se importantes instrumentos de participação direta, como plebiscito, referendo e iniciativa popular, que podem ser muito úteis na consolidação do processo democrático. Esta última protagonizou uma das maiores vitórias da sociedade organizada – a Lei da Ficha Limpa – devendo também ser atribuído tal direito ao cidadão para fins de propositura de projeto de Emenda à Constituição, nos termos do art. 60, I a III da CRFB/88, que o exclui, além de ser facilitada para que a cidadania possa participar ainda mais. Relativamente ao plebiscito e ao referendo, entende-se que tais instrumentos representam elementos preciosos de consolidação da perspectiva democrática no Brasil, não podendo permanecer sob o crivo da “convocação e autorização” do Congresso Nacional. Ora, o cidadão que deve ser convocado e autorizado a participar da via democrática, na verdade, é mero coadjuvante de um processo no qual deveria ser ator principal, pois o Estado se justifica a partir do instante em que passa a aprimorar a vida do indivíduo, e não a coagi-lo ou a desconsiderá-lo em termos de opinião.

Logo, questões recentes e relevantes como desnacionalização de empresas nacionais, voto obrigatório, maioridade penal, reformas política e tributária, dentre outras, passaram ao largo da vontade da cidadania e são decididas em Brasília por parlamentares fisiológicos e lobistas corruptos, que têm por escopo, única e exclusivamente, o patrocínio dos interesses dos poderosos que se locupletam, comprometendo a vida digna dos integrantes da sociedade, especialmente, os excluídos.

O caminho é árduo, difícil, entretanto, constroem-se na América Latina (com todas as dificuldades inerentes aos seus 500 anos de exploração) boas perspectivas, elegendo-se governos mais progressistas e comprometidos com as populações mais carentes e com os movimentos sociais. Em termos de Brasil, elegeu-se, pela primeira vez, um operário (Luiz Inácio Lula da Silva), que atingiu mais de 80% de popularidade no final de seu governo, e uma mulher (Dilma Rousseff), ex-guerrilheira, que sofreu nos porões de uma ditadura que insiste em se esconder e em se proteger anos depois, algozes de toda uma geração que, calada e envergonhada, viu passar uma excelente oportunidade de construir um país livre, justo e solidário. Prova-se que o futuro se edifica através de lutas e, principalmente, de desejos e sonhos a serem conquistados.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

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ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.


Notas

1Procurador da Fazenda Nacional, mestre em Ciência Política / UFF, especialista em Direito Constitucional, professor de Direito Constitucional / Ciência Política da graduação e pós-graduação da Universidade Estácio de Sá / RJ, professor de Direito Constitucional do Centro de Estudos Jurídicos 11 de Agosto/RJ, pesquisador associado do Laboratório de Estudos sobre Democracia do IESP/UERJ.


A possibilidade de defesa dos direitos difusos através do mandado de segurança coletivo


A restrição contida no parágrafo único, do art. 21, da Lei nº 12.016/2009, além de não encontrar fundamento de validade na Constituição Federal, também não se coaduna com o microssistema processual coletivo vigente, cabendo ao Judiciário afastá-la, em razão de sua inconstitucionalidade.


A Lei nº 12.016/2009, conhecida como “a nova lei do mandado de segurança”, teve como principal inovação a regulamentação do mandado de segurança coletivo, ação que havia permanecido sem disciplina processual própria desde sua previsão na Constituição Federal de 1988.

Ao tratar dos direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo, o parágrafo único do art. 21 da referida lei assim estabeleceu, in verbis:

(…) Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser:

I – coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica;

II – individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.

Da leitura do dispositivo acima transcrito, verifica-se que o legislador infraconstitucional restringiu a utilização do mandado de segurança coletivo para a defesa dos direitos líquidos e certos que se enquadrassem no conceito de direitos coletivos e de direitos individuais homogêneos, deixando de dispor a respeito da proteção dos direitos difusos.

Antes de nos debruçarmos sobre a questão da possibilidade de utilização do mandado de segurança coletivo para a defesa dos direitos difusos, entendemos relevante delimitar as três espécies de direitos transindividuais, partindo daquelas previstas na Lei nº 12.016/2009 (direitos coletivos e direitos individuais homogêneos), para posteriormente estudarmos os direitos difusos.

Ressalte-se que a diferenciação entre as três categorias de direitos transindividuais é relevante, pois influi nos regimes de legitimação e da extensão subjetiva da coisa julgada. Por essa razão, é importante que o órgão jurisdicional responsável pela apreciação da causa identifique no caso concreto se está diante de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.

A doutrina, no entanto, não chegou a um consenso a respeito do método mais preciso para reconhecer a espécie de direito transindividual discutida na ação.

Segundo o ensinamento de Nelson Nery Junior é o tipo de pretensão material e de tutela jurisdicional que se procura obter através do ajuizamento da ação coletiva que classifica um direito como difuso, coletivo ou individual homogêneo[1].

Antonio Gidi, por outro lado, entende que o critério científico para identificar se se trata de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo não está atrelado à matéria, ao assunto abstratamente considerado, como, por exemplo, consumidor ou meio ambiente, mas sim ao direito subjetivo que foi violado[2].

Hermes Zaneti Junior, ao refletir a respeito do critério de identificação do direito coletivo objeto da demanda, conclui:

Ora, o CDC conceituou os direitos coletivos lato sensu dentro da perspectiva processual, com o objetivo de possibilitar a sua instrumentalização e efetiva realização. Do ponto de vista do processo, a postura mais correta é a que permite a fusão entre o direito subjetivo (afirmado) e a tutela requerida como forma de identificar, na ‘ação’, de qual direito se trata e, assim, prover adequadamente a jurisdição. Nesse particular a correta individuação, pelo advogado, (operador do direito que propõe a demanda) do pedido imediato (tipo de tutela) e da causa de pedir, incluindo os fatos e o direito coletivo aplicável na ação revela-se de preponderante importância.(…)[3].
(grifado no original)

É cediço que num caso concreto nem sempre é fácil distinguir a espécie do direito invocado, sendo possível que uma única situação fática possa ocasionar violações a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Nelson Nery Júnior exemplifica o que afirmamos acima com o acidente ocorrido no Rio de Janeiro com o Bateau Mouche IV, que poderia ensejar “ação individual por uma das vítimas do evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de obrigação de fazer movida por associação das empresas de turismo que têm interesse na manutenção da boa imagem desse setor da economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Público em favor da vida e segurança das pessoas, para que seja interditada a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direitos difusos)”[4].

A Súmula nº 2 do Conselho Superior do Ministério Público no Estado de São Paulo corrobora a ocorrência da situação acima descrita ao dispor que “em caso de propaganda enganosa, o dano não é somente daqueles que, induzidos a erro, adquiriram o produto, mas também difuso, porque abrange todos os que tiveram acesso à publicidade”[5].

Diante do exposto, entendemos que o método mais acertado para classificar a espécie de direito transindividual tutelado em uma ação coletiva é aquele que leva em consideração a causa de pedir juntamente com o pedido apresentado no caso concreto, inclusive porque, através dessa análise, será possível verificar também se existe apenas conexão entre duas ou mais ações coletivas ou se é caso de litispendência ou coisa julgada, o que impedirá o processamento das demandas coletivas ajuizadas posteriormente, evitando decisões judiciais contraditórias sobre a mesma questão[6].


1. Direitos coletivos

Os direitos coletivos, de acordo com a conceituação do Código de Defesa do Consumidor, são aqueles que possuem natureza indivisível e seus titulares são determinados ou determináveis, ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.


Assim dispõe o inciso II do parágrafo único do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

(…)

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base

O inciso I do parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 repete essa definição, permitindo a conclusão de que o Código de Defesa do Consumidor foi utilizado como fonte de inspiração para a redação dos incisos que tratam a respeito do objeto do mandado de segurança coletivo.

Genericamente, os direitos coletivos são reconhecidos como os direitos pertencentes aos grupos, classes ou categorias de pessoas. Como exemplo desses direitos, podemos citar os direitos dos condôminos de um edifício, os direitos dos alunos de uma escola, dos signatários de um contrato de adesão, dos acionistas de uma sociedade, dos contribuintes de determinado imposto, etc.

A natureza indivisível do direito coletivo é caracterizada pelo fato de que esse direito não pertence a ninguém particularmente, mas a todos em conjunto e simultaneamente.

Hugo Nigro Mazzilli, ao exemplificar uma situação de violação a um direito coletivo, detalha as características desse direito:

Exemplifiquemos com uma ação coletiva que vise à nulificação de cláusula abusiva em contrato de adesão. No caso, a sentença de procedência não irá conferir um bem divisível aos integrantes do grupo lesado. O interesse em ver reconhecida a ilegalidade da cláusula é compartilhado pelos integrantes do grupo lesado de forma não quantificável e, portanto, indivisível: a ilegalidade da cláusula não será maior para quem tenha dois ou mais contratos em vez de apenas um: a ilegalidade será igual para todos eles (interesse coletivo, em sentido estrito)[7].

Importante grifar que a relação jurídica base deve ser preexistente à lesão ou ameaça de lesão ao direito do grupo, categoria ou classe de pessoas. Portanto, não há que se falar em direito coletivo se a relação jurídica dos titulares nasceu com a ocorrência da lesão, como, por exemplo, no caso de publicidade enganosa. Neste caso, estamos diante de um direito difuso[8].

Kazuo Watanabe defende que somente os direitos de natureza indivisível podem ser considerados direitos coletivos, o que afasta a ideia de direitos individuais agrupados, característica dos direitos individuais homogêneos. Afirma, ainda, a existência de duas modalidades de direitos coletivos:

Tampouco foi considerado traço decisivo dos interesses ou direitos ‘coletivos’ o fato de sua organização, que certamente existirá apenas na primeira modalidade mencionada no texto legal, qual seja, os interesses e direitos pertinentes a grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si por uma relação jurídica base, e não na segunda modalidade, que diz com os interesses ou direitos respeitantes a grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas com a parte contrária por uma relação jurídica base.

Mesmo sem organização, os interesses ou direitos ‘coletivos’, pelo fato de serem de natureza indivisível, apresentam identidade tal que, independentemente de sua harmonização formal ou amalgamação pela reunião de seus titulares em torno de uma entidade representativa, passam a formar uma só unidade, tornando-se perfeitamente viável, e mesmo desejável, a sua proteção jurisdicional em forma molecular.

Nas duas modalidades de interesses ou direitos ‘coletivos’, o traço que os diferencia dos interesses ou direitos ‘difusos’ é a determinabilidade das pessoas titulares, seja através da relação jurídica base que as une (membros de uma associação de classe ou ainda acionistas de uma mesma sociedade) seja por meio do vínculo jurídico que as liga à parte contrária (contribuintes de um mesmo tributo, prestamistas de um mesmo sistema habitacional ou contratantes de um segurador com um mesmo tipo de seguro, estudantes de uma mesma escola, etc)[9].

Diante da característica da indivisibilidade do objeto somada à indeterminabilidade dos sujeitos, José Carlos Barbosa Moreira denominou as ações coletivas que visam à defesa dos direitos coletivos stricto sensu e dos direitos difusos de “litígios essencialmente coletivos”[10].


2. Direitos individuais homogêneos

O Código de Defesa do Consumidor define os direitos individuais homogêneos como sendo aqueles decorrentes de origem comum[11]. Tais direitos possuem objeto divisível e seus titulares são pessoas determinadas ou determináveis que compartilham prejuízos oriundos das mesmas circunstâncias de fato.


A Lei nº 12.016/2009, ao qualificar os direitos individuais homogêneos, acrescenta ao conceito trazido pelo Código de Defesa do Consumidor a expressão “decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante”, adaptando a definição para o mandado de segurança coletivo impetrado por organização sindical, entidade de classe ou associação e reforçando a adoção do entendimento contido na Súmula nº 630 do Supremo Tribunal Federal.

Analisando a redação do inciso II do parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009, J. E. Carreira Alvim afirma:

Para fins de mandado de segurança coletivo, em defesa de direito individual homogêneo, além da origem comum do direito, deve também a sua defesa resultar da atividade da entidade impetrante, ou da situação específica da totalidade dos seus membros ou associados, ou de apenas parte deles. Trata o inc. II do parágrafo único do art. 21 de situações jurídicas distintas, mas que, na prática, se identificam porque a atividade da impetrante condiciona a situação específica dos membros ou associados, e a situação específica destes é compatível com a atividade daquela. Assim, uma Associação de Pais e Mestres só pode ter como membros os pais de alunos e professores, e por objetivo a defesa dos seus interesses, que constitui o objetivo da sua atividade, só podendo defender coletivamente os interesses que se liguem às atividades de ensino e pesquisa. Assim, pode a Associação discutir grade curricular, carga horária, preço de mensalidades, salário de professores e tudo o mais eu se relacione com a atividade educacional, e, correlatamente, todos os objetivos constantes dos seus atos constitutivos ou estatutários (…)[12]. (grifado no original)

Na verdade, os direitos individuais homogêneos não deixam de ser direitos subjetivos individuais que, inclusive, podem ser tutelados através da ação individual. No entanto, em razão da dimensão subjetiva ampla e do apelo social destacado são tratados processualmente de forma coletiva[13], evitando o ajuizamento de diversas demandas sobre o mesmo objeto, que poderão receber provimentos jurisdicionais contraditórios.

Por força da característica da divisibilidade do objeto, José Carlos Barbosa Moreira denominou as ações que tenham por finalidade a defesa de direitos individuais homogêneos de “litígios acidentalmente coletivos” e justificou o emprego da ação coletiva para a tutela de direitos individuais nos seguintes termos:

(…) É claro que nada impede que os conflitos de interesses relacionados com cada uma das pessoas prejudicadas possam ser objeto de apreciação isolada, individual, em princípio, nada obsta a isso; mas, por vezes, acontece que o fenômeno tem dimensões diferentes quando olhado pelo prisma individual e quando olhado por um prisma global. Curiosamente, aquela proposição aritmética relativa às parcelas e à soma falha. Aqui, na verdade, há casos em que a soma é algo mais do que simplesmente o conjunto das parcelas, exatamente porque o fenômeno assume, no contexto da vida social, um impacto de massa (…)[14].

Nesse mesmo sentido foi o voto proferido pelo Ministro Cesar Asfor Rocha no julgamento do REsp 140097/SP, corroborando o entendimento de que os direitos individuais homogêneos são apenas acidentalmente coletivos, pois em sua essência são individuais, mas recebem tratamento processual em feixe durante o processo de conhecimento:

O que dá qualificação a esses direitos individuais homogêneos, em face de sua dimensão social, é o chamado impacto de massa, por ser grande o número de interessados e das graves repercussões na comunidade que possam ser provocadas pela potencialidade lesiva de um produto, núcleo comum das pretensões de todos. Tem-se, assim, na fase de conhecimento, um trato processual coletivista a direitos e interesses individuais[15]. (grifado no original)

Cabe, ainda, a respeito dos direitos individuais homogêneos, trazer ao lume o ensinamento de J.E. Carreira Alvim:

Os direitos individuais homogêneos não são coletivos na sua substância, ou essencialmente coletivos, porque a eles não se aplicam as qualificações de transindividuais nem indivisíveis, sendo, ao contrário, considerados coletivos apenas para efeito de sua defesa em juízo, de forma conjunta, pelo que apenas acidentalmente podem dizer-se coletivos[16]. (grifado no original)

A inspiração dessa proteção coletiva de direitos subjetivos individuais está nas class actions for damages norte-americanas, como afirma Kazuo Watanabe:

Essa modalidade de ação coletiva constitui, praticamente, uma novidade no sistema jurídico brasileiro, e representa a incorporação ao nosso ordenamento de ação bastante assemelhada à class action do sistema norte-americano. Assemelhada, mas não de todo idêntica, pois houve necessidade de adaptação às nossas peculiaridades geográficas, sociais, políticas e culturais[17].


Hermes Zaneti Junior ressalta a importância da possibilidade da tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos:

A importância desta categoria é cristalina. Sem sua criação pelo direito positivo nacional não existiria possibilidade de tutela ‘molecular’ de direitos com natural dimensão coletiva, decorrentes da massificação/padronização das relações jurídicas e das lesões (…)[18].

Segundo Eduardo Arruda Alvim e Angélica Arruda Alvim, “a possibilidade da tutela coletiva dos interesses individuais homogêneos trouxe, pelo menos, duas grandes vantagens. Por primeiro, permitiu que uma parcela expressiva da população, economicamente alijada do acesso ao Judiciário, pudesse beneficiar-se das ações coletivas. Mas não apenas isso. Possibilitou, ainda, que questões que isoladamente consideradas não têm grande repercussão, cheguem ao Judiciário, porque, tratadas em conjunto, apresentam relevância tal, que justifica que possam ser perseguidas pelos entes legitimados a tanto, beneficiando, com isso, a um imenso número de pessoas, que, sozinhas, muito possivelmente não bateriam às portas do Judiciário para dirimir questões individuais de pequena importância, se individualmente consideradas”[19].

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes destaca a relevância social, bem como as vantagens da tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos:

(…) A defesa coletiva de direitos individuais atende aos ditames da economia processual; representa medida necessária para desafogar o Poder Judiciário, para que possa cumprir com qualidade e em tempo hábil as suas funções; permite e amplia o acesso à Justiça, principalmente para os conflitos em que o valor diminuto do benefício pretendido significa manifesto desestímulo para a formulação da demanda; e salvaguarda o princípio da igualdade da lei, ao resolver molercularmente as causas denominadas de repetitivas, que estariam fadadas a julgamentos de teor variado, se apreciadas de modo singular[20].

No mesmo sentido do que foi anteriormente mencionado é o inciso III do art. 2º do Projeto de Lei nº 5.139/2009 (nova lei da ação civil pública), in verbis:

Art. 2º. A tutela coletiva abrange os interesses ou direitos:

(…)

III – individuais homogêneos, assim entendidos aqueles decorrentes de origem comum, de fato ou de direito, que recomendem tutela conjunta a ser aferida por critérios como facilitação do acesso à Justiça, economia processual, preservação da isonomia processual, segurança jurídica ou dificuldade na formação do litisconsórcio.

Para que os direitos individuais sejam tutelados de forma coletiva, é necessário o enquadramento dos mesmos no conceito de direitos individuais homogêneos, ou seja, esses direitos devem ser decorrentes de origem comum e possuir homogeneidade.

Esclarecedora a explicação de Kazuo Watanabe a respeito da configuração da origem comum dos direitos individuais homogêneos:

A origem comum pode ser de fato ou de direito, e a expressão não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. As vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos de imprensa e em repetidos dias de um produto nocivo à saúde adquirido por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões têm, como causa de seus danos, fatos de uma homogeneidade tal que os tornam a ‘origem comum’ de todos eles.[21]

Ada Pellegrini Grinover ensina que, para aferir se os direitos individuais são homogêneos, deve ser aplicado o critério utilizado nas class actions norte-americanas da “prevalência da dimensão coletiva sobre a individual”. “Inexistindo a prevalência dos aspectos coletivos, os direitos seriam heterogêneos, ainda que tivessem origem comum. Provavelmente, poder-se-ía afirmar, em linha de princípio, que essa origem comum (ou causa) seria remota e não próxima. A adotar-se esse critério, dever-se-ia concluir que, não se tratando de direitos homogêneos, a tutela coletiva não poderia ser admitida, por falta de possibilidade jurídica do pedido”. A autora cita como exemplo de causa próxima a queda de um avião que vitimou diversas pessoas, e, como exemplo de causa remota, um caso de dano à saúde imputado a um produto potencialmente nocivo, que pode ter tido como causa próxima as condições pessoais ou o uso inadequado do produto[22].

Diversamente dos interesses coletivos, a relação jurídica neste caso nasce em razão da lesão, bem como é possível individualizar o prejuízo de cada titular:

(…) O que importa é que sejam todos os interesses individuais ‘decorrentes de origem comum’. O vínculo com a parte contrária é consequência da própria lesão. Essa relação jurídica nascida da lesão, ao contrário do que acontece com os interesses ou direitos ‘difusos’ ou coletivos, que são de natureza indivisível, é individualizada na pessoa de cada um dos prejudicados, pois ofende de modo diferente a esfera jurídica de cada um deles, e isto permite a determinação ou ao menos a determinabilidade das pessoas atingidas. A determinabilidade se traduz em determinação efetiva no momento em que cada prejudicado exercita o seu direito, seja por meio de demanda individual, seja por meio de habilitação por ocasião da liquidação de sentença na demanda coletiva para tutela de interesses ou direitos ‘individuais homogêneos’ (art. 97, CDC)(…)[23].


Como exemplo de interesses individuais homogêneos, citamos os dos compradores de automóveis do mesmo lote com defeito de fabricação, os dos consumidores de determinado alimento que gerou intoxicação, os dos investidores de determinada aplicação financeira, os direitos das vítimas de um acidente de grandes proporções, etc.

Comparando os interesses individuais homogêneos aos interesses difusos, Hugo Nigro Mazzilli afirma que “tanto os interesses individuais homogêneos como os difusos originam-se de circunstâncias de fato comuns; entretanto, são indetermináveis os titulares de interesses difusos, e o objeto de seu interesse é indivisível; já nos interesses individuais homogêneos, os titulares são determinados ou determináveis, e o objeto da pretensão é divisível (isto é, o dano ou a responsabilidade se caracterizam por sua extensão divisível ou individualmente variável entre os integrantes do grupo)”[24]

.

A sentença proferida numa ação que tenha por objeto a tutela de direitos individuais homogêneos será sempre genérica, com o intuito de beneficiar, sem distinção, todos aqueles que sofreram o dano. No caso do mandado de segurança coletivo, no momento da execução da sentença, deverá o interessado demonstrar que se encontra na situação fática descrita na inicial do mandamus para que lhe sejam estendidos os efeitos da decisão proferida, permitindo o exercício de seu direito líquido e certo violado ou ameaçado de violação por ato de autoridade pública ou quem lhe faça as vezes.

3. Direitos difusos

De acordo com a definição contida no Código de Defesa do Consumidor, interesses ou direitos difusos são aqueles que possuem objeto indivisível e que têm como titulares sujeitos indeterminados, ligados por circunstâncias de fato[25].

Como exemplo de direitos difusos temos o direito ao meio ambiente equilibrado, a proteção contra a publicidade enganosa, etc. Tais direitos, apesar de pertencer a todos, não podem ser quantificados ou divididos entre os membros da coletividade, porque são indivisíveis. Seus titulares, que são indeterminados ou de difícil determinação, estão ligados entre si por força de circunstâncias fáticas e não em razão de uma relação jurídica.

Hugo Nigro Mazzilli ensina que os interesses difusos “são como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato conexas”[26].

Rodolfo de Camargo Mancuso acrescenta mais duas características aos interesses difusos, além da indeterminação dos sujeitos e da indivisibilidade do objeto: a) a litigiosidade interna, tendo em vista que em razão da impessoalidade desses interesses, os conflitos acabam se constituindo em discussões em torno de valores, idéias, opções, fazendo-se necessárias escolhas políticas. Dessa forma, para solucionar tais litígios deverá ser aferida qual a postura mais oportuna e conveniente dentre um leque de alternativas, aglutinadas nos diversos grupos sociais interessados; b) a tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço, que ocorre porque as relações se dão no plano fático (o plano da existência-utilidade), que é mutável, inclusive porque, neste plano, todas as posições são passíveis de ser defendidas:

Ao contrário do que se passa com os conflitos intersubjetivos de cunho individual, os interesses difusos, por definição, não comportam atribuição a um titular definido, em termos de exclusividade: eles constituem a reserva, o arsenal dos anseios e sentimentos mais profundos que, por serem necessariamente referíveis à comunidade ou a uma categoria como um todo, são insuscetíveis de apropriação a título reservado. Do fato de se referirem a muitos não deflui, porém, a conclusão de que sejam res nullius, coisa de ninguém, mas, ao contrário, pertencem indistintamente a todos; cada um tem título para pedir a tutela de tais interesses. O que se afirma do todo resta afirmado de suas partes componentes.

De outro lado não é possível ‘enquadrar’ tais interesses em contornos precisos, devido à própria extensão do objeto e à indeterminação dos sujeitos a eles afetos: garantia de emprego, defesa da ecologia, tutela do consumidor; defesa da qualidade de vida etc.

Essa notável extensão do objeto, aliada à indeterminação dos sujeitos, não permite que se espere ou que se exija um elevado grau de coesão, nos interesses difusos. E isso, por das razões: o campo próprio dos interesses difusos é justamente aquele plano subjacente à massa normativa já estabelecida; eles são ideais, são sentimentos coletivos ligados a valores parajurídicos (o ‘justo’, o ‘eqüitativo’,o ‘natural’), insuscetíveis de se apresentarem de forma coesa, uniforme para cada qual daqueles valores. Assim, haverá sempre posturas conflitantes, todas merecedoras de conhecimento, já que todas pretendem, em princípio representar o sentimento médio da coletividade em certo tempo e lugar (…)[27]. (grifado no original)

Não se pode olvidar que o fato de o sistema processual exigir que o direito estivesse sempre referido a um titular determinado ou ao menos determinável, impediu por muito tempo o acesso à justiça para a defesa dos direitos difusos, o que veio a ocorrer inicialmente, mas de forma contida, com a ação popular, alcançando, no entanto, a plena efetividade somente com a edição da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor.

Por fim, cabe trazer ao lume o pensamento de Kazuo Watanabe sobre a eficácia da tutela coletiva dos direitos difusos:

Na prática, os operadores do Direito têm fragmentado os interesses ou direitos ‘difusos’, e mesmo os coletivos, atribuindo-os apenas a um segmento da sociedade, como os moradores de um Estado ou de um Município. Assim agindo desnaturam por completo a ‘natureza indivisível’ dos interesses ou direitos transindividuais, atomizando os conflitos, quando o objetivo do legislador foi o de submetê-los à apreciação judicial na sua configuração molecular, para assim se obter uma tutela mais efetiva e abrangente (…)[28].


4. A possibilidade de defesa dos direitos difusos através de mandado de segurança coletivo

Desde sua previsão na Constituição de 1988, o mandado de segurança coletivo tem sido utilizado como meio célere e efetivo de defesa em face de atos ilegais ou abusivos praticados por autoridade pública ou quem lhe faça as vezes que resultem em violação aos direitos transindividuais, desde que esses direitos sejam líquidos e certos.


Cabe lembrar que o mandado de segurança coletivo constitui um direito fundamental estabelecido no inciso LXX do art. 5º da Constituição Federal. Assim, a norma que o consagrou possuía aplicabilidade imediata por força de expressa disposição da Lei Maior (art. 5º, § 1º, CF/88). Portanto, esse remédio constitucional voltado para a proteção dos direitos transindividuais passou a ser utilizado antes mesmo de sua regulamentação legislativa, ensejando a realização de esforços por parte da doutrina e da jurisprudência para fixar seus contornos.

Após muita controvérsia, haja vista que o tema dos direitos transindividuais e sua tutela jurisdicional ainda era muito recente no Brasil, firmou-se tanto na doutrina como na jurisprudência o entendimento no sentido da possibilidade da tutela de direitos difusos através do mandado de segurança coletivo.

No entanto, o legislador infraconstitucional, contrariando o posicionamento majoritário, adotou uma postura mais restritiva ao omitir no parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 os direitos difusos, vedando implicitamente a defesa dessa espécie de direito transindividual pela via célere do mandado de segurança.

A doutrina majoritária critica a exclusão dos direitos difusos na redação do parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 e afirma que a omissão do legislador infraconstitucional não impede a defesa desta espécie de direito transindividual via mandado de segurança coletivo, já que os únicos requisitos para a utilização deste instrumento constitucional processual, previstos no inciso LXIX do art. 5º da Constituição Federal, são a liquidez e certeza do direito tutelado e que este direito não seja amparável por habeas corpus ou habeas data. Ademais, por se tratar de ação prevista em norma constitucional, constituindo uma garantia fundamental, sua interpretação deve se dar de forma a conceder a maior amplitude e efetividade possível a este instituto[29].

Nesse sentido, Leonardo Carneiro da Cunha sustenta que deve ser feita uma interpretação conforme a Constituição do parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009, permitindo que os direitos difusos sejam tutelados pela via do mandado de segurança coletivo:

Como manifestação dessa garantia de acesso à justiça, é forçoso admitir todas as espécies de demandas e provimentos capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos transindividuais. E é decorrência do acesso à justiça a efetividade da tutela preventiva e repressiva de quaisquer danos provocados a direitos transindividuais, mediante o uso de todos os meios adequados. Em razão do acesso à justiça, não deve haver limitações ou restrições ao uso de ações coletivas. Sempre que um direito transindividual for ameaçado ou lesado será cabível a ação coletiva. A garantia de acesso à justiça marca o processo coletivo, valendo dizer que o mandado de segurança coletivo afigura-se cabível para a defesa de qualquer direito coletivo, seja ele difuso, coletivo ou individual homogêneo.

Impõe-se, enfim, conferir ao parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 uma interpretação conforme a Constituição para entender que o mandado de segurança coletivo também se destina à proteção de direito (“sic”) difusos[30]. (grifado no original)

Compartilham desse posicionamento Fredie Didier Júnior e Hermes Zaneti Junior, que fundamentam a possibilidade de tutela dos direitos difusos via mandado de segurança coletivo na aplicação do princípio da não taxatividade ou da atipicidade da ação e do processo coletivo, que dispõe que quaisquer formas de tutela serão admitidas para a efetividade dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, nos termos do art. 83 do Código de Defesa do Consumidor.

Afirmam, ainda, os referidos autores, que o parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 é flagrantemente inconstitucional:

Trata-se de violação do princípio da inafastabilidade (art. 5º, XXXV, CF/88), que garante que nenhuma afirmação de lesão ou de ameaça de lesão a direito será afastada da apreciação do Poder Judiciário. Esse princípio garante o direito ao processo jurisdicional, que deve ser adequado, efetivo, leal e com duração razoável. O direito ao processo adequado pressupõe o direito a um procedimento adequado, o que nos remete ao mandado de segurança, direito fundamental para a tutela de qualquer situação jurídica lesada ou ameaçada, que garante o direito. Afasta-se a possibilidade de o direito difuso ser tutelado por mandado de segurança, um excelente instrumento processual para a proteção de direitos ameaçados ou lesados por atos de poder.

(…)

Uma interpretação literal do art. 21 da Lei n. 12.016/2009 implicaria grave retrocesso social, com prejuízo a tutela constitucionalmente adequada (art. 5º, XXXV c/c art. 83 do CDC – princípio da atipicidade das ações coletivas). Cabe ao aplicador dar a interpretação conforme o texto normativo, para adequá-la ao microssistema da tutela coletiva e à Constituição Federal[31]. (grifado no original)

Vidal Serrano Nunes Júnior e Marcelo Sciorilli também entendem que é de duvidosa constitucionalidade a previsão restritiva contida no parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009, pois a Constituição Federal, ao denominar o instituto de mandado de segurança coletivo, tinha como objetivo criar um novo mecanismo processual para a tutela dos direitos transindividuais, ao lado da ação civil pública e da ação popular[32].

Cassio Scarpinella Bueno afirma que “é irrecusável que o mandado de segurança coletivo também pode, consoante o caso, buscar a tutela jurisdicional do que o nosso sistema convencionou rotular de ‘direitos’ (ou ‘interesses’) difusos. A solução do problema está, vale a pena insistir, nas vantagens da tutela jurisdicional coletiva sobre a individual e na verificação de quem, de acordo com o sistema brasileiro, é representante adequado para conduzi-los e atuá-los no plano processual”[33].


Eurico Ferraresi tece o seguinte comentário a respeito da disposição contida no parágrafo único do art. 21 e seus incisos:

Também nesse aspecto, a inovação foi infeliz. A tentativa de engessar o mandado de segurança coletivo não surtirá o efeito desejado, uma vez que a possibilidade de que ele venha a proteger direitos difusos decorre da sistemática processual civil brasileira[34].

Com a finalidade de corroborar a possibilidade de utilização do mandado de segurança coletivo para a tutela dos direitos difusos, o autor acima citado discorre sobre alguns dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente contidos no Capítulo VII, que tem como título: “Da Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos”.

Entre esses dispositivos está o parágrafo 2º do art. 212, que ampliou o objeto do mandado de segurança para alcançar a proteção dos direitos difusos e coletivos:

Art. 212. Para defesa dos direitos e interesses protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes. (…)

§ 2º Contra atos ilegais ou abusivos de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público, que lesem direito líquido e certo previsto nesta Lei, caberá ação mandamental, que se regerá pelas normas da lei do mandado de segurança.

Portanto, por força do parágrafo 2º do art. 212 do Estatuto da Criança e do Adolescente, não há dúvidas de que os direitos difusos podem ser tutelados pela via do mandado de segurança coletivo.

Ao final, ressalta o autor que “o mandado de segurança, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, estende-se, ainda, a outros temas que não necessariamente os atinentes à proteção da infância e da juventude, uma vez que o direito de ação independe do direito material. As esferas são autônomas. Se a Lei n. 8.069/1990 ampliou o mandado de segurança para a proteção de direitos difusos e coletivos, claro está que o instrumento abrangerá outras questões que não só aquelas previstas em seu texto, para que não haja ofensa à garantia da inafastabilidade da tutela jurisdicional”[35].

Importante mencionar, por fim, os posicionamentos doutrinários contrários à defesa dos direitos difusos através do mandado de segurança coletivo.

Humberto Theodoro Jr. defende que o legislador restringiu o objeto do mandado de segurança coletivo aos direitos coletivos e individuais homogêneos, não estendendo aos direitos difusos, porque “sem uma relação jurídica básica bem definida a unir a coletividade à autoridade coatora, seria sempre muito difícil submeter os direitos difusos à exigência constitucional de liquidez e certeza de que se deve obrigatoriamente revestir o direito subjetivo tutelado pelo mandado de segurança”[36].

Seguindo também essa corrente, que, como podemos inferir, é minoritária, Hely Lopes Meirelles, Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes sustentam que agiu corretamente o legislador ao não admitir a tutela dos direitos difusos através de mandado de segurança coletivo, pois essa espécie de direito transindividual deverá ser protegida pela ação civil pública[37].

CONCLUSÃO

Não há, em nosso entender, como restringir a utilização do mandado de segurança coletivo para a defesa dos direitos difusos, pois estamos diante de uma garantia fundamental que deve ser interpretada sempre no sentido de se conferir sua máxima efetividade.

Ademais, não pode o legislador ordinário criar limitações onde a Constituição Federal não o fez, ressaltando, ainda, que o parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009 viola o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no inciso XXXV, do art. 5º, da Constituição Federal, que garante a prestação jurisdicional adequada e efetiva para qualquer lesão ou ameaça a direito, como ensina Kazuo Watanabe:

A nós sempre nos pareceu que o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, hoje inscrito no inc. XXXV do art. 5º da Constituição Federal, não somente possibilita o acesso aos órgãos judiciários como também assegura a garantia efetiva contra qualquer forma de denegação da justiça. E isso significa, a toda evidência, a promessa de preordenação dos instrumentos processuais adequados à concretização dessa garantia. E essa promessa, evidentemente, é abrangente também dos tipos de provimentos e não apenas das espécies de procedimentos[38].

A restrição contida no parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009, além de não encontrar fundamento de validade na Constituição Federal, também não se coaduna com o microssistema processual coletivo vigente, que dispõe expressamente no art. 83 do Código de Defesa do Consumidor a respeito da possibilidade de utilização de todas as espécies de ações para a proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, o que confirma a admissão do mandado de segurança coletivo para a tutela dos direitos difusos.

Dessa forma, caberá ao Poder Judiciário afastar a restrição prevista no parágrafo único do art. 21 da Lei nº 12.016/2009, em razão de sua inconstitucionalidade, permitindo, assim, a defesa dos direitos difusos pela via do mandado de segurança coletivo.

Por fim, é importante deixar consignado que tramita no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado nº 222/2010 de autoria do Senador Valter Pereira que prevê a proteção dos direitos difusos via mandado de segurança coletivo no art. 21, § 1º, inc. I da lei nº 12.016/2009.



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Notas

[1] Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 1024.

[2] Coisa julgada e litispendência em ações coletivas, p. 21.

[3] Mandado de Segurança Coletivo: aspectos processuais controversos, p. 70.

[4] Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 1024.

[5] Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/conselho_superior/sumulas>. Acesso em 20/05/2011. No mesmo sentido a Súmula nº 6 deste mesmo órgão.

[6] Ver nesse sentido: WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 826-830.

[7] A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, p. 53.

[8] Neste mesmo sentido afirmam Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo, p. 75.


[9] Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 824.

[10] Ações Coletivas na Constituição Federal de 1988, p. 187-188.

[11] Assim dispõe o inciso III, do art. 81 do CDC, in verbis: “Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: (…) III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.

[12] Comentários á nova lei do mandado de segurança – Lei 12.016/09, p. 333-334.

[13] “Quando se fala, pois, em ‘defesa coletiva’ ou em ‘tutela coletiva’ de direitos homogêneos, o que se está qualificando como coletivo não é o direito material tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua defesa”. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 35.

[14] Ações Coletivas na Constituição Federal de 1988, p. 188-189.

[15] STJ, REsp 140097/SP, 4ªT., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, v.u., j. 04/05/2000, DJ 11/09/2000. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp>. Acesso em 19/05/2011.

[16] Comentários à nova lei do mandado de segurança – Lei 12.016/09, p. 333.

[17] Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 826. Na mesma obra, Ada Pellegrini Grinover corrobora o referido entendimento, p. 883.

[18] Mandado de Segurança Coletivo: aspectos processuais controversos, p.73.

[19] Coisa Julgada no Mandado de Segurança Coletivo e a Lei n. 12.016/2009, p. 286.

[20] Comentários à nova lei de mandado de segurança individual e coletivo, p. 141/142.

[21] Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 825

[22] Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 882-887.

[23] WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p.823.

[24]A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, p. 54.

[25] Assim dispõe o inciso I do art. 81 do CDC, in verbis: “Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.”

[26]A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, p. 50.

[27]Interesses Difusos: Conceito e legitimação para agir, p. 144-153.

[28]Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 742.

[29]Ver nesse sentido: Luiz Manoel Gomes e Rogério Favreto, Comentários à nova Lei do mandado de segurança: Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009, p. 191-193, Arlete Inês Aurelli, Legitimidade como condição para o exercício da ação de mandado de segurança, conforme a lei n. 12.016/2009, p. 127-128, Eduardo Arruda Alvim e Angélica Arruda Alvim, Coisa julgada no mandado de segurança coletivo e a Lei n. 12.016/2009, p. 303, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Comentários à nova lei de mandado de segurança individual e coletivo, p. 142-143, Mauro Luís Rocha Lopes, Comentários à nova lei do mandado de segurança, p. 156-158, e Hélio do Valle Pereira, O Novo Mandado de Segurança, p. 186-187.

[30]A Fazenda Pública em juízo, p. 488.

[31]Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo, p.128-129

[32]Mandado de segurança, ação civil pública, ação popular, habeas data, mandado de injunção, p. 90-92.

[33]A nova lei do mandado de segurança, p. 172-173.

[34]Do mandado de segurança: comentários à Lei n. 12.016, de 07 de agosto de 2009, p. 112

[35]Do mandado de segurança: comentários à Lei n. 12.016, de 07 de agosto de 2009, p. 113-114

[36]O mandado de segurança segundo a Lei n. 12.016, de 07 de agosto de 2009, p. 47. Teori Albino Zavascki compartilha do entendimento de que apenas os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos são tuteláveis pelo mandado de segurança coletivo. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 194.

[37]Mandado de Segurança e Ações Constitucionais, p. 131-132.

[38]Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 855-856.


Autor

Anna Luiza Buchalla Martinez

Procuradora da Fazenda Nacional. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES. Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

NBR 6023:2002 ABNT: MARTINEZ, Anna Luiza Buchalla. A possibilidade de defesa dos direitos difusos através do mandado de segurança coletivo. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3203, 8 abr. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21457>. Acesso em: 9 abr. 2012.


SINPROFAZ realiza AGO em Brasília

No sábado, 31/03, foi realizada Assembleia Geral Ordinária do Sindicato com transmissão ao vivo na área restrita do site. Contas de 2011 e planejamento para 2012 foram aprovados.


Justiça Fiscal: uma necessidade para o país

Por Allan Titonelli Nunes

Na atualidade temos debatido muito sobre o comportamento social, a moral, a ética, a conduta, entre outros temas congêneres, os quais, geralmente, ocupam a imprensa jornalística e televisiva sob o enfoque de corrupção, sonegação, mensalão, fraude, lavagem de dinheiro, etc.

Parte significativa dessas matérias se relaciona aos desvios inerentes ao processo político governamental e à política econômica e financeira.

Nesse pormenor, para a concretização dos interesses da sociedade, o Estado necessita captar, gerir e executar os recursos públicos. Logo, os objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado carecem da arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização daqueles.

Outrossim, para a construção de um país mais igualitário, diminuindo a desigualdade social existente, é primordial que todos contribuam, na medida de suas possibilidades. Da mesma forma, deve-se exigir que o Estado seja eficiente na utilização das verbas públicas, atendendo às exigências constitucionais e legais.

Considerando essa realidade, o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ) lançou uma campanha que tem como mote a construção de uma Justiça Fiscal, entendendo relevante que o debate sobre a reforma tributária, o combate à sonegação e a educação fiscal sejam colocados como prioridade política para o país.

O Brasil não pode continuar tributando essencialmente o consumo, o que enseja uma distorção na efetivação do princípio da capacidade contributiva, o qual determina que o cidadão deve ser tributado na medida de suas riquezas, devendo, portanto, os mais abastados contribuírem em uma proporção maior. Todavia, essa não é a realidade existente no país.

O Sistema Tributário Nacional é regressivo, visto que tributa exorbitantemente aqueles detentores de menor renda, e isso se justifica, em grande parte, pela opção do Legislador em tributar primordialmente o consumo. Assim agindo, o Estado Brasileiro não concretiza o princípio Constitucional da capacidade contributiva, que apesar de estar adstrito aos impostos, conforme preconiza o artigo 145, §1º, da CRFB/88, permeia todo o Sistema Tributário Nacional.

Isso sem falar no grande quantitativo de recursos desviados, fazendo com que as receitas públicas deixem de ser utilizadas na atividade fim do Estado: promover o bem comum.

Essa realidade acaba por gerar graves injustiças sociais e aumentar a desigualdade existente no país. A título de exemplo, podemos citar alguns dados estatísticos do contexto social Brasileiro.1 2 3 4

  • Quem ganha até 02 (dois) salários mínimos paga 49% (quarenta e nove por cento) dos seus rendimentos em tributos, mas quem ganha acima de 30 (trinta) salários paga 26% (vinte e seis por cento).
  • Cerca de 75% (setenta e cinco por cento) da riqueza do país está concentrada nas mãos dos 10% (dez por cento) mais ricos.
  • A carga tributária corresponde a 36% (trinta e seis por cento) do PIB – Produto Interno Bruto, enquanto países com a mesma renda per capita brasileira têm uma carga tributária de 20% (vinte por cento) do PIB – Produto Interno Bruto.
  • Hoje temos cerca de 84 (oitenta e quatro) milhões de pessoas vivendo no limite da pobreza, sendo que desse total 34 (trinta e quatro) milhões são considerados miseráveis (entendendo-se por pobres aqueles que sobrevivem com renda de até R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais) por mês, miseráveis até R$ 125,00 (cento e vinte e cinco reais) por mês)
  • A concentração de renda no Brasil é tão grande que ficamos entre os doze países mais desiguais do Mundo, atrás de Macedônia, Malásia, Camarões, Colômbia, Venezuela, Camboja entre outros.
  • Segundo o índice de desenvolvimento humano (IDH), somos o 70º (septuagésimo) num grupo de 177 (cento e setenta e sete) países. Ficamos atrás de Argentina, Chile, Panamá, Costa Rica, México, entre outros.

A perspectiva de se concretizar uma melhor distribuição de renda e maior prestação de serviços públicos por parte do Governo Federal, objetivando alcançar uma Justiça Fiscal enseja algumas ações, tais como: a) a adoção de medidas que simplifiquem o sistema tributário, eliminando-se os inúmeros tributos sobre o consumo e substituindo-os pelo imposto sobre o valor agregado, o que tornaria mais justa e equilibrada a tributação; b) a redução da carga tributária sobre o consumo (tributação indireta) e sobre os produtos essenciais; c) uma reforma tributária em consonância com os anseios do Pacto Federativo, proporcionando uma melhor repartição da competência tributária; d) concretização do mandamento constitucional que estabelece que as administrações tributárias dos entes federativos são “atividades essenciais ao funcionamento do Estado” e que “terão recursos prioritários para a realização de suas atividades”, como determina o artigo 37, XXII, da CRFB/88; e) regulamentação do IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas), previsto no artigo 153, VII, da CRFB/88; f) criação de um programa de educação fiscal; e g) criação de mecanismos comprometidos com uma maior transparência fiscal.


Notas

1 DISTRIBUIÇÃO DE RENDA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2009. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Distribui%C3%A7%C3%A3o_de_renda&oldid=17960329>. Acesso em: 26.02.2012.

2 ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2010. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=%C3%8Dndice_de_Desenvolvimento_Humano&oldid=18954440>. Acesso em: 26.02.2012.

3 FALCÃO. Rui. Justiça fiscal, para reduzir a pobreza e a desigualdade. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_Post=107463&a=112>. Acesso em: 26.02.2012.

4 FATTORELLI. Maria Lúcia. Dívida interna virou externa e caiu em mão estrangeira. Disponível em: <http://www.direito2.com.br/oab/2008/abr/10/fattorelli-divida-interna-virou-externa-e-caiu-em-mao>. Acesso em: 26.02.2012.


Allan Titonelli Nunes é procurador da fazenda nacional e presidente do SINPROFAZ


Os princípios de interpretação constitucional e sua utilização pelo Supremo Tribunal Federal


A partir da Constituição de 1988, promulgada sob o pós-positivismo, as normas constitucionais adquiriram status de normas jurídicas. Todos os ramos do Direito tiveram seus contornos revistos para adequá-los aos princípios e às normas constitucionais.


O momento atual do Direito, denominado de pós-positivismo, é caracterizado pela a valorização dos princípios, com sua incorporação, explícita ou implícita, pelas Constituições, bem como o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na Lei Maior. O Direito se reaproxima da ética e é consagrada a supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, ganha destaque a análise dos novos métodos utilizados para a interpretação das normas constitucionais, que, como veremos a seguir, tiveram como fundamento a idéia da efetividade da Constituição.

No entanto, é importante esclarecer que a nova interpretação constitucional não representa o afastamento dos métodos tradicionais de hermenêutica na busca do sentido e do alcance da norma jurídica visando sua aplicação aos casos concretos. Ela, na verdade, vem para complementá-los. Por isso, dedicamos a primeira parte do nosso trabalho à questão da interpretação dos textos normativos, abordando brevemente os métodos tradicionais de hermenêutica, para em seguida estudar os princípios de interpretação constitucional.

Para que o objeto do nosso trabalho não ficasse restrito à teoria, foram colacionadas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais foram utilizados os princípios de interpretação constitucional, demonstrando a importância do estudo dessa matéria no cenário jurídico atual.


1. A interpretação dos textos normativos

Todos os dispositivos legais são objeto de interpretação pelos operadores do Direito.

A interpretação transforma textos normativos em normas jurídicas1, viabilizando sua aplicação para as situações que se apresentarem em concreto.

Eros Roberto Grau, ao se debruçar sobre o tema da interpretação e aplicação do Direito, faz a seguinte consideração:

“A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em normas.

Daí, como as normas resultam da interpretação, o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, um conjunto de normas.

O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky].

O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem [Ruiz e Cárcova] “2.

Celso Ribeiro Bastos afirma que “a interpretação faz o caminho inverso daquele feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só é factível procurando atribuir o exato significado à norma”3.

Ainda com relação à interpretação e aplicação do Direito, é importante trazer à lume o pensamento de Carlos Maximiliano:

“A Aplicação não prescinde da Hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose. Em erro também incorre quem confunde as duas disciplinas: uma, a Hermenêutica, tem um só objeto – a lei; a outra, dois – o Direito, no sentido objetivo, e o fato. Aquela é um meio para atingir a esta; é um momento da atividade do aplicador do Direito. Pode a última ser o estudo preferido do teórico; a primeira, a Aplicação, revela o adaptador da doutrina à prática, da ciência à realidade: o verdadeiro jurisconsulto”4.

Paulo de Barros Carvalho consigna que “a aplicação do direito pressupõe a interpretação, e esse vocábulo há de ser entendido como a atividade intelectual que se desenvolve à luz de princípios hermenêuticos, com a finalidade de construir o conteúdo, o sentido e o alcance das regras jurídicas”5.

Importante grifar que mesmo o mais claro dos dispositivos legais deve ser objeto de interpretação, como ressalta Carlos Maximiliano:

“(…) Os domínios da Hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”6. (grifado no original)

Nesse sentido é o ensinamento de Celso Ribeiro Bastos, ao se opor ao brocardo jurídico in claris cessat interpretatio:

“(…) Todas as normas necessitam de interpretação, mesmo porque para afirmar que a interpretação cessa diante da clareza do dispositivo, é dizer, para concluir-se que esse dispositivo é claro, necessita-se da interpretação. (…)”7.

A finalidade mais relevante da produção da norma jurídica, resultante da interpretação do texto legal, é a sua aplicação num caso concreto e isso ocorrerá mediante uma decisão judicial ou administrativa, denominada por Eros Roberto Grau de “norma de decisão”8.


Cabe deixar consignado que não é somente na atividade jurisdicional que as normas de decisão anteriormente referidas são produzidas, sendo recorrentes também em âmbito administrativo. Por outro lado, deve-se atentar para o fato de que as normas de decisão produzidas na instância administrativa podem ser questionadas na via judicial, o que ensejará a construção de uma nova norma de decisão, agora pelo Poder Judiciário.

A produção da norma de decisão é o ponto máximo do processo de interpretação, momento em que ocorre a concretização do Direito com a solução do conflito apresentado numa situação concreta. Todos os operadores do Direito estão aptos a transformar um enunciado legal numa norma jurídica, utilizando-se, para tanto, das regras de hermenêutica, mas poucos possuem o poder-dever de produzir a norma de decisão.

“(…) Este, que está autorizado a ir além da interpretação tão-somente como produção das normas jurídicas, para dela extrair normas de decisão, é aquele que Kelsen chama de ‘intérprete autêntico’: o juiz”9.

A respeito dessa questão, observa André Ramos Tavares:

“A aplicação é o ‘momento’ em que se atribui, ao problema concreto, uma decisão oficial dotada de normatividade. Nesse sentido, a aplicação, como aqui trabalhada, há de ser apenas aquela realizada pelos órgãos estatais competentes para construir as normas individuais, normas de decisão. E, ademais, a aplicação depende, como mencionado, de um sujeito juridicamente autorizado/reconhecido (em nome do Legislativo, Executivo ou Judiciário) para adotar uma decisão com caráter preceptivo, que coloque o texto normativo e sua interpretação em contato com o problema que demanda uma solução juridicamente adequada”10. (grifado no original)

Cabe ressaltar que a interpretação realizada por aqueles a quem não foi atribuída a função de produzir uma norma de decisão, e, portanto, não tem como objetivo a solução de um conflito concreto, se funda na introdução hipotética de um conflito, baseado nas experiências do cotidiano forense. Essa forma de interpretação, denominada de discurso jurídico, não vincula terceiros, enquanto a norma de decisão produzida pelo juiz ou pela autoridade administrativa, em razão de sua natureza impositiva, é designada de discurso de Direito11.

A hermenêutica jurídica propõe métodos de interpretação que devem ser aplicados conjuntamente. São eles: o literal ou gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico.

O método literal ou gramatical recomenda que o intérprete analise a construção gramatical contida no preceito a partir da significação de cada palavra do texto, retirando daí o seu significado. De acordo com o método histórico, devem ser investigadas as origens da produção da norma, a realidade subjetiva e objetiva que se fazia presente naquele momento, os debates que a antecederam, alcançando, assim, a vontade do legislador. A orientação do método sistemático é no sentido de buscar a significação da norma dentro do ordenamento jurídico, utilizando-se, nesse momento, das regras de subordinação e de coordenação que regem a coexistência das regras, bem como comparando o dispositivo a ser interpretado com outros do mesmo repositório ou contidos em leis diversas, referentes ao mesmo objeto12. Por fim, o método teleológico privilegia a análise da razão de ser dessa norma, seu espírito e sua finalidade, o valor ou bem jurídico que o preceito busca proteger13.

Ainda no tocante ao método teleológico, cabe lembrar o teor do art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (denominada anteriormente de Lei de Introdução ao Código Civil), in verbis: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Carlos Maximiliano defende que os fatores sociais também devem influir no trabalho do intérprete:

“A interpretação sociológica atende cada vez mais às conseqüências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto; quanto possível busca uma solução benéfica e compatível com o bem geral e as idéias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana (…)”14. (grifado no original)

Como vimos, para a interpretação do Direito considera-se insuficiente a mera leitura do texto legal, que constitui apenas o momento inicial deste processo intelectivo. Deve haver sua contextualização com a totalidade do ordenamento jurídico, além do conhecimento a respeito de sua finalidade. Nesse mister, ganha cada vez mais importância a questão dos princípios, tanto expressos como implícitos, que conferem harmonia ao nosso sistema jurídico.

“Princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, ou, se se preferir, o verdadeiro alicerce deste. Trata-se de disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência. O princípio, ao definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, acaba por lhe conferir a tônica e lhe dar sentido harmônico”15.

De acordo com a definição de José Afonso da Silva, “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”16.

Portanto, a interpretação dos textos legais deve sempre levar em consideração os princípios. Segundo afirma Eros Roberto Grau, “a interpretação do direito é dominada pela força dos princípios”17:

“Os princípios atuam como mecanismo de controle da produção de normas pelo intérprete, ainda que o próprio intérprete produza as normas-princípio. Aqui não há, contudo, contradição, na medida que os princípios atuam como a medida do controle externo da produção de normas. Além disso, a escolha do princípio há de ser feita, pelo intérprete, sempre diante de um caso concreto, a partir da ponderação do conteúdo do próprio princípio; (…)”18. (grifado no original)

Nesse mesmo sentido é o ensinamento de Rizzatto Nunes:

“Nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas”19.


Prossegue o referido autor:

“Percebe-se, assim, que os princípios exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, uma vez que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral. Por terem essa qualidade, os princípios dão coesão ao sistema jurídico, exercendo excepcional valor aglutinante”20.

A partir do exercício de interpretação e aplicação, o Direito é concretizado, sendo inserido na realidade social. Ao interpretar um enunciado, o operador do Direito escolhe, dentre as várias possibilidades de interpretações, aquela que ele reputa mais adequada, mais justa diante do caso concreto. Em face dessa realidade, Eros Roberto Grau consigna que a interpretação/aplicação do Direito não é uma ciência, mas sim o exercício da prudência.

“Cogitam os que não são intérpretes autênticos, quando do direito tratam, da juris prudentia, e não de uma juris scientia; o intérprete autêntico, ao produzir normas jurídicas, pratica a juris prudentia, e não juris scientia.

(…)

Daí por que afirmo que a problematização dos textos normativos não se dá no campo da ciência: ela se opera no âmbito da prudência, expondo o intérprete autêntico ao desafio desta, e não daquela. São distintos, um e outro: na ciência, o desafio de, no seu campo, existirem questões para as quais ela (a ciência) ainda não é capaz de conferir respostas; na prudência, não o desafio da ausência de respostas, mas da existência de múltiplas soluções corretas para uma mesma questão [Adomeit]”21. (grifado no original)

O juiz, ao produzir a norma de decisão, completa a criação do legislador. Portanto, não é correto afirmar que o juiz cria o Direito. Na verdade, o juiz concretiza o Direito ao final de um processo intelectivo consistente em compreender o enunciado legislativo e os fatos trazidos à sua apreciação, produzir as normas possíveis para a solução do caso e escolher aquela que no seu entender é a mais adequada para aquela situação.

“O texto, preceito, enunciado normativo é alográfico. Não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A ‘completude’ do texto somente é realizada quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete”22. (grifado no original)

Traçadas as primeiras linhas a respeito da interpretação dos textos normativos que, repetimos, tem como finalidade precípua a aplicação do direito ao caso concreto, analisaremos no próximo item as técnicas específicas empregadas para a interpretação dos dispositivos constitucionais.


2. Os princípios de interpretação constitucional

A Constituição Federal de 1988 consolidou os ideais do pós-positivismo delineados no início do nosso trabalho. São eles: a) a valorização dos princípios, com sua incorporação, explícita ou implícita, pelo texto constitucional; b) o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na Lei Maior; c) a reaproximação do Direito e da ética e d) a consagração da supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana.

Importante registrar que, a partir de sua entrada em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, concretizou-se o entendimento de que a interpretação de qualquer dispositivo legal deveria partir da Constituição Federal e essa concepção causou impactos em todos os ramos do Direito, que passaram a ter seus contornos revistos para adequá-los aos ditames trazidos pela Lei Maior.

Adentrando ao objeto do nosso estudo, que é a interpretação dos enunciados contidos na Constituição Federal, cabe trazer à lume o ensinamento de José Afonso da Silva:

“A interpretação é um modo de conhecimento de objetos culturais. Quando esse objeto se compõe de palavras, tem-se a interpretação de um texto que é, ao mesmo tempo, um objeto de significações e um objeto de comunicação, cujo sentido se capta mediante análise interna e análise externa. Ou seja, o sentido do texto se reconstrói de duas perspectivas distintas e complementares: de dentro para fora, a partir da análise interna das muitas pistas neles espalhadas; de fora para dentro, por meio das relações contextuais. A Constituição é um texto, um texto normativo, um texto jurídico, por isso a sua interpretação, ou seja, a captação de seu sentido, a descoberta das normas que esse texto veicula, também se submete às relações de contexto. Ela é um texto que está no mundo, independente daqueles que a captam. A percepção que cada um tem dela é considerada separadamente dela própria. De igual modo, as intenções de seu autor – o constituinte – são consideradas separadas dela, porque ela é, em si mesma, um ser, um ser com seus próprios poderes e a sua dinâmica, um ser autônomo. A tarefa do intérprete é como a de alguém que penetra nesse ser autônomo, por meios da análise textual. E já se vê que a interpretação tem um aspecto objetivo, que se refere ao objeto a ser interpretado, e um aspecto subjetivo, que se refere às qualificações e ideologia do intérprete, porque este não é neutro no processo interpretativo, porque nele participa com a carga de experiência, de conhecimentos, cultura e ideologia que informam sua formação jurídica”23. (grifado no original)

Apesar de sua posição superior na estrutura do ordenamento jurídico, constituindo fundamento de validade para as regras hierarquicamente inferiores, a Constituição é uma lei e, portanto, seu texto também deve ser interpretado, utilizando-se para tanto das mesmas técnicas aplicadas às normas jurídicas em geral.

Luís Roberto Barroso destaca que as regras contidas na Constituição Federal não passam apenas pelo processo de interpretação, mas também pelo processo de construção:

“(…) Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou esquema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a alcançar situações que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas”24.


Com relação à linguagem utilizada no texto constitucional, afirma o referido autor:

“Já se deixou consignado, anteriormente, que uma das singularidades das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitucional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de interesse local, dignidade da pessoa humana). É justamente dessa abertura de linguagem que resultam construções como: (a) legitimados os fins, também estarão os meios necessários para atingi-los; (b) se a letra da norma assegura o direito a mais, está implícito o direito a menos; (c) o devido processo legal abriga a idéia de procedimento adequado e de razoabilidade substantiva (…)”25. (grifado no original)

Ademais, em razão das especificidades inerentes às regras constitucionais, dentre as quais citamos a superioridade hierárquica, a linguagem diferenciada e o seu caráter político, foram desenvolvidos princípios próprios de interpretação.

Importante grifar que a expressão “princípios” acima utilizada deve ser compreendida como premissas metodológicas que estão à disposição do intérprete na busca da adequada solução para uma questão jurídica. Além disso, esses princípios devem ser utilizados conjuntamente, da mesma forma como ocorre com os métodos interpretativos tradicionais.

Com relação aos princípios de interpretação constitucional, assinala Inocêncio Mártires Coelho:

“Quanto à sua função dogmática, deve-se dizer que embora se apresentem como enunciados lógicos e, nessa condição, pareçam anteriores aos problemas hermenêuticos que, afinal, ajudam a resolver, em verdade e quase sempre os princípios da interpretação funcionam como fórmulas persuasivas, das quais se valem os aplicadores do direito para justificar pré-decisões que, mesmo necessárias ou convenientes, sem o apoio desses cânones interpretativos se mostrariam arbitrárias ou desprovidas de fundamento.

Não por acaso já se proclamou que essa disponibilidade de métodos e princípios potencializa a liberdade do juiz, a ponto de lhe permitir antecipar as decisões – à luz da sua pré-compreensão sobre o que é justo em cada situação concreta – e só depois buscar os fundamentos de que precisa para dar sustentação discursiva a essas soluções puramente intuitivas, num procedimento em que as conclusões escolhem as premissas e os resultados selecionam os meios”26. (grifado no original)

A seguir, estudaremos os princípios de interpretação constitucional reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência.

2.1. Princípio da supremacia da Constituição

Esse princípio consagra a prevalência da norma constitucional, independentemente de seu conteúdo, sobre todas as outras regras existentes no sistema jurídico.

Por força da posição hierárquica superior ocupada pela Constituição, as leis, os atos normativos e os atos jurídicos em geral somente serão válidos se forem compatíveis com as normas constitucionais[27]. Ademais, é importante lembrar que a Constituição, além de regular a forma de produção das demais regras jurídicas, também delimita o conteúdo dessas regras.

Ainda em razão desse princípio, impõe-se que a interpretação de todo o ordenamento jurídico deve ser feita a partir da Constituição, como afirma Nelson Nery Júnior:

“O intérprete deve buscar a aplicação do direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema”28.

Cabe destacar que é o princípio da supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico que fundamenta o controle de constitucionalidade no plano concreto (controle difuso) e abstrato (controle concentrado).

“(…) É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma constitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta)”29. (grifado no original)

Impende, por fim, transcrever trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário 107869/SP, no qual foi mencionado expressamente o princípio ora estudado:

“O princípio da supremacia da ordem constitucional – consectário da rigidez normativa que ostentam os preceitos de nossa Constituição – impõe ao Poder Judiciário, qualquer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis ou atos estatais reputados em conflito com a Carta Federal.

A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado. Dentro dessa concepção, reveste-se de nulidade o ato emanado do Poder Público que vulnerar os preceitos inscritos na Constituição. Uma lei inconstitucional é uma lei nula, desprovida, consequentemente, no plano jurídico, de qualquer conteúdo eficacial.

(…)

A convicção dos juízes e tribunais, de que uma lei ou ato do Poder Público é inconstitucional, só pode levá-los, no plano decisório, a uma única formulação: o reconhecimento de sua invalidez e a recusa de sua aplicabilidade”30.


2.2. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público

De acordo com esse princípio, as leis e os atos normativos em geral são reputados constitucionais, somente perdendo sua validade e eficácia mediante a declaração judicial em contrário obtida no controle concentrado de constitucionalidade ou por força de Resolução do Senado Federal, na hipótese de a inconstitucionalidade ter sido reconhecida incidentalmente por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Importante salientar que um ato normativo apenas poderá ser declarado inconstitucional se sua desconformidade com a Constituição for patente e se constatar que não há nenhuma forma de interpretá-lo de maneira a torná-lo compatível com a Lei Maior.

No intuito de demonstrar a aplicação deste princípio pelo Supremo Tribunal Federal, colacionamos o acórdão proferido no julgamento do Inquérito 1864/PI:

“INQUÉRITO. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PARLAMENTAR FEDERAL. PAGAMENTO INTEGRAL DO DÉBITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. REMESSA DOS AUTOS AO JUÍZO FEDERAL COMPETENTE, PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO EM RELAÇÃO AOS CO-RÉUS. 1. O art. 9º da Lei n° 10.684/03 goza de presunção de constitucionalidade, não obstante esteja em tramitação nesta Corte ação direta de inconstitucionalidade, sem pedido de liminar. 2.Comprovado nos autos, através de ofício da Procuradoria Federal Especializada, o pagamento integral do débito imputado ao parlamentar federal indiciado, é imperativo o reconhecimento da extinção da pretensão punitiva estatal. 3. Denúncia não recebida em relação ao parlamentar, por estar extinta a punibilidade dos fatos a ele imputados, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei n° 10.684/03. 4. Os autos devem ser remetidos ao juízo federal competente da Seção Judiciária do Piauí, para regular prosseguimento em relação aos co-réus”31.

Segundo Luís Roberto Barroso, “o princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, notadamente das leis, é uma decorrência do princípio geral da separação dos Poderes e funciona como fator de autolimitação da atividade do Judiciário, que, em reverência à atuação dos demais Poderes, somente deve invalidar-lhes os atos diante de casos de inconstitucionalidade flagrante e incontestável”32.

Esse princípio, portanto, cria uma limitação para o Poder Judiciário no controle de constitucionalidade, prestigiando a independência e harmonia dos Poderes, pois confere maior efetividade aos atos normativos produzidos pelos Poderes Executivo e Legislativo.

2.3. Princípio da interpretação conforme a Constituição

De início, cabe frisar a dupla natureza da interpretação conforme a Constituição: a de princípio de interpretação e a de técnica empregada no controle de constitucionalidade[33]. Registre-se que, quando utilizada no controle de constitucionalidade, essa técnica é denominada de “declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”.

Como método de interpretação, esse princípio sugere que, diante de mais de uma interpretação possível da norma infraconstitucional, o intérprete escolha aquela que esteja em conformidade com a Constituição, “ainda que não seja a que mais obviamente decorra do seu texto”34.

Inocêncio Mártires Coelho ressalta que esse princípio concretiza uma regra de prudência política, que também pode ser entendida como política constitucional. No entanto, faz o autor o seguinte alerta:

“Essa prudência, por outro lado, não pode ser excessiva, a ponto de induzir o intérprete a salvar a lei à custa da Constituição, nem tampouco contrariar o sentido inequívoco da lei, para constitucionalizá-la de qualquer maneira. No primeiro caso porque isso implicaria interpretar a Constituição conforme a lei, e, assim, subverter a hierarquia das normas; no segundo, porque toda a conformação exagerada implica, no fundo, usurpar tarefas legislativas e transformar o intérprete em legislador, na exata medida em que a lei resultante dessa interpretação conformadora, em sua letra como no seu espírito, seria substancialmente distinta daquela resultante do trabalho legislativo.

Afinal de contas, em sede de controle de constitucionalidade, como todos sabem, os tribunais devem comportar-se como legisladores negativos, anulando as leis contrárias à Constituição, quando for o caso, e jamais como produtores de normas, ainda que por via interpretativa”35. (grifado no original)

No julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 581/DF, que teve por objeto a parte final do parágrafo 1º do inciso I do art. 3º da Lei nº 8.215/1991, que tratava da promoção por merecimento dos Juízes do Trabalho, o Supremo Tribunal Federal utilizou esse princípio para julgar parcialmente procedente a ação, declarando a constitucionalidade deste dispositivo nos termos da interpretação conferida pela Corte Suprema, afastando, por força da inconstitucionalidade, qualquer outra exegese que a contrariasse.

Neste julgamento, o Ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto, faz a seguinte consideração a respeito deste princípio:

“(…) o princípio da interpretação conforme a Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a partir de sua concreta incidência, a integridade do ato do Poder Público no sistema do direito positivo. Essa função conservadora da norma permite que se realize, sem redução do texto, o controle de sua constitucionalidade (…)”36.

Esse princípio reforça o conteúdo dos outros dois princípios de interpretação anteriormente mencionados, quais sejam, o da supremacia da Constituição e o da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público.

2.4. Princípio da unidade da Constituição

A orientação contida nesse princípio é no sentido da inexistência de hierarquia nem de contradição entre as normas previstas na Constituição. Determina, ainda, que a Constituição precisa ser compreendida em sua unidade, ou seja, o intérprete não pode obter o significado de um enunciado contido na Constituição de forma isolada, mas contextualizada dentro do ordenamento constitucional.


Ao se dedicar ao estudo desse princípio, Luís Roberto Barroso tece o seguinte comentário:

“A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga ‘o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador’.

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas (…)”37. (grifado no original)

Transcreve-se abaixo trecho do acórdão proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2650/DF, no qual há expressa menção ao princípio ora estudado:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 7º da Lei 9.709/98. Alegada violação do art. 18, § 3º, da Constituição. Desmembramento de estado-membro e município. Plebiscito. Âmbito de consulta. Interpretação da expressão “população diretamente interessada”. População da área desmembranda e da área remanescente. Alteração da Emenda Constitucional nº 15/96: esclarecimento do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios. Interpretação sistemática. Aplicação de requisitos análogos para o desmembramento de estados. Ausência de violação dos princípios da soberania popular e da cidadania. Constitucionalidade do dispositivo legal. Improcedência do pedido. 1. Após a alteração promovida pela EC 15/96, a Constituição explicitou o alcance do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios e, portanto, o significado da expressão “populações diretamente interessadas”, contida na redação originária do § 4º do art. 18 da Constituição, no sentido de ser necessária a consulta a toda a população afetada pela modificação territorial, o que, no caso de desmembramento, deve envolver tanto a população do território a ser desmembrado, quanto a do território remanescente. Esse sempre foi o real sentido da exigência constitucional – a nova redação conferida pela emenda, do mesmo modo que o art. 7º da Lei 9.709/98, apenas tornou explícito um conteúdo já presente na norma originária. 2. A utilização de termos distintos para as hipóteses de desmembramento de estados-membros e de municípios não pode resultar na conclusão de que cada um teria um significado diverso, sob pena de se admitir maior facilidade para o desmembramento de um estado do que para o desmembramento de um município. Esse problema hermenêutico deve ser evitado por intermédio de interpretação que dê a mesma solução para ambos os casos, sob pena de, caso contrário, se ferir, inclusive, a isonomia entre os entes da federação. O presente caso exige, para além de uma interpretação gramatical, uma interpretação sistemática da Constituição, tal que se leve em conta a sua integralidade e a sua harmonia, sempre em busca da máxima da unidade constitucional, de modo que a interpretação das normas constitucionais seja realizada de maneira a evitar contradições entre elas. Esse objetivo será alcançado mediante interpretação que extraia do termo “população diretamente interessada” o significado de que, para a hipótese de desmembramento, deve ser consultada, mediante plebiscito, toda a população do estado-membro ou do município, e não apenas a população da área a ser desmembrada (…)”38.

(grifos nossos)

Por força desse princípio interpretativo, afirma-se em casos de colisão de preceitos constitucionais que há conflito “aparente” de normas.

Esse conflito “aparente” de normas constitucionais foi apreciado no julgamento dos agravos regimentais interpostos por associações e sindicatos representativos de servidores municipais em face da suspensão de segurança concedida ao Município de São Paulo, suspendendo a eficácia das liminares proferidas pelo Tribunal de Justiça, que impediam a divulgação da remuneração bruta dos servidores no sítio eletrônico denominado “De Olho nas Contas”. Neste caso, o princípio da publicidade dos atos administrativos prevaleceu sobre o direito á intimidade, vida privada e segurança dos servidores municipais:

“SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos”39. (grifos nossos)

Para que seja mantida a unidade da Constituição, o intérprete poderá utilizar outros princípios instrumentais, como, por exemplo, o da concordância prática ou da harmonização, o da justeza ou correção funcional, e o da eficácia integradora, que abordaremos a seguir.


2.5. Princípio da concordância prática ou da harmonização

Segundo esse princípio, na hipótese de conflito entre bens e valores constitucionalmente protegidos, o intérprete deve preferir a solução que favoreça a realização de todos eles, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros.

A denominação “concordância prática” decorre da compreensão de que apenas é possível realizar essa coordenação dos bens e valores envolvidos num conflito no momento da aplicação do direito ao caso concreto. Neste diapasão, é possível concluir que a prevalência de um bem ou um valor será decidida diante de cada situação submetida ao Poder Judiciário, do que se depreende que cada caso poderá ser resolvido de forma diversa.

De acordo com o ensinamento de Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, essa técnica de ponderação de interesses, bens, valores e normas ocorre em três etapas: a) na primeira, o intérprete encontrará as normas aptas a solucionar o caso, identificando os possíveis conflitos entre elas; b) a segunda etapa é voltada para o exame dos fatos concretos e sua relação com as normas selecionadas na primeira etapa; e c) na terceira e última etapa há a concretização da ponderação, momento no qual serão decididos os pesos que devem ser conferidos aos elementos em conflito e, consequentemente, quais normas devem preponderar neste caso. Por fim, cabe definir a intensidade da prevalência das normas aplicadas sobre as demais, caso seja possível graduar essa intensidade40.

Eros Roberto Grau faz as seguintes considerações com relação aos eventuais conflitos que podem ocorrer entre princípios constitucionais, descrevendo pormenorizadamente os efeitos decorrentes do exercício da ponderação:

“Em conseqüência, quando em confronto dois princípios, um prevalecendo sobre o outro, as regras que dão concreção ao que foi desprezado são afastadas: não se dá a sua aplicação a determinada hipótese, ainda que permaneçam integradas, validamente (isto é, dotadas de validade), no ordenamento jurídico. As regras que dão concreção ao princípio desprezado, embora permaneçam plenas de validade, perdem eficácia – isto é, efetividade – em relação à situação diante da qual o conflito entre princípios manifestou-se.

E o que torna tudo mais complexo, portanto mais belo: inexiste no sistema qualquer regra ou princípio a orientar o intérprete a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles estabelecido, deve ser privilegiado, qual deve ser desprezado.

(…)

O momento da atribuição de peso maior a um determinado princípio é extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de uma das soluções corretas, no elenco das possíveis soluções corretas a que a interpretação jurídica pode conduzir – pondera-se o direito em seu todo, desde o texto da Constituição aos mais singelos atos normativos, como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato – as circunstâncias peculiares do problema considerado – e jurídicas – lingüísticas, sistêmicas e funcionais -, são então descortinadas. E, paradoxalmente, é precisamente o fato de o intérprete estar vinculado, retido, pelos princípios que torna mais criativa a prudência que pratica”41.

O método interpretativo ora estudado tem sido muito utilizado pelo Poder Judiciário. Entre os temas que demandam a ponderação de valores estão, por exemplo, a liberdade de expressão e o direito à informação colidindo com o direito à honra, à imagem e à inviolabilidade da vida privada; a questão da relativização da coisa julgada, que gera o conflito entre o princípio da segurança jurídica e valores relevantes como a justiça, os direitos da personalidade, etc.

Visando elucidar o que foi dito acima, colacionamos o acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 363889/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos”42.

Impende transcrever a crítica formulada por Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos a respeito da utilização deste princípio de interpretação:

“(…) No estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial. Tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer. A existência de ponderação não é um convite para o exercício indiscriminado de ativismo judicial. O controle de legitimidade das decisões obtidas mediante ponderação tem sido feito através do exame da argumentação desenvolvida. Seu objetivo, de forma bastante simples, é verificar a correção dos argumentos apresentados em suporte de uma determinada conclusão ou ao menos a racionalidade do raciocínio desenvolvido em cada caso, especialmente quando se trate do emprego da ponderação”43. (grifado no original)

Dessa forma, quando a situação concreta exigir a utilização da técnica da ponderação, para verificar se a solução escolhida dentre as várias interpretações possíveis é, de fato, a mais adequada, torna-se imprescindível o exame da argumentação adotada.


A argumentação adquire relevância na interpretação constitucional em razão do caráter aberto de muitas normas, o que implica numa margem maior de subjetividade por parte do intérprete.

Cabe destacar, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, em razão de sua magnitude dentro do direito constitucional brasileiro, sempre prevalecerá sobre todo o ordenamento jurídico, não se submetendo à técnica de ponderação.

Trazemos, por fim, o pensamento de Rizzatto Nunes a respeito da aplicação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana:

“Está mais do que na hora de o operador do Direito passar a gerir sua atuação social pautado no princípio fundamental estampado no texto magno. Aliás, é um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o princípio da dignidade da pessoa humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas”44. (grifado no original)

2.6. Princípio da justeza ou da correção funcional

Por força desse princípio, o intérprete dos enunciados constitucionais não pode aceitar significados que subvertam ou perturbem o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo Poder Constituinte originário. Neste contexto, podemos afirmar que uma das premissas do processo de interpretação das normas constitucionais é o princípio da separação de poderes, consagrado no art. 2º da Lei Maior.

No julgamento do RE 358315/MG, cujo acórdão transcrevemos abaixo, é possível verificar a aplicação desse princípio:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. ANÁLISE SOBRE O FURTO E O ROUBO. CONCURSO DE PESSOAS. PROPORCIONALIDADE ENTRE AS RESPECTIVAS PENAS. Sob o pretexto de ofensa ao artigo 5º, caput, da Constituição Federal (princípios da igualdade e da proporcionalidade), não pode o Judiciário exercer juízo de valor sobre o quantum da sanção penal estipulada no preceito secundário, sob pena de usurpação da atividade legiferante e, por via de conseqüência, incorrer em violação ao princípio da separação dos poderes. Ao Poder Legislativo cabe a adoção de política criminal, em que se estabelece a quantidade de pena em abstrato que recairá sobre o transgressor de norma penal. Recurso Extraordinário conhecido e desprovido”45.

A preocupação com a preservação do princípio da separação de poderes também é retratada no trecho do acórdão proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 388312/MG:

“(…) Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal Federal, não cabe ao Poder Judiciário autorizar a correção monetária da tabela progressiva do imposto de renda na ausência de previsão legal nesse sentido. Entendimento cujo fundamento é o uso regular do poder estatal de organizar a vida econômica e financeira do país no espaço próprio das competências dos Poderes Executivo e Legislativo (…)”46.

2.7. Princípio da eficácia integradora

De acordo com a orientação contida nesse princípio, na solução de problemas jurídicos-constitucionais, deve o intérprete preferir os critérios que favoreçam a integração política e social.

Ao analisar a premissa interpretativa ora estudada, Inocêncio Mártires Coelho faz a seguinte ressalva:

“Em que pese a indispensabilidade dessa integração para a normalidade constitucional, nem por isso é dado aos aplicadores da constituição subverter-lhe a letra e o espírito para alcançar esse objetivo a qualquer custo, até porque, à partida, ela se mostra submissa a outros valores, desde logo reputados fundamentais – como a dignidade humana, a democracia e o pluralismo, por exemplo, – que precedem a sua elaboração, nela se incorporam e, afinal, seguem dirigindo a sua interpretação”47.

5.2.8. Princípio da força normativa da Constituição

A recomendação desse cânone interpretativo é que seja escolhida, entre as interpretações possíveis, aquela que confira maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.

As normas constitucionais, da mesma forma que as normas jurídicas em geral, possuem o atributo da imperatividade e, portanto, devem ser observadas, sob pena de ativação de mecanismos próprios para seu cumprimento forçado. Cabe principalmente ao Poder Judiciário assumir essa função de concretizador das normas constitucionais, conferindo a essas normas a máxima efetividade que delas pode ser extraída.


Os trechos dos acórdãos abaixo colacionados são bastante elucidativos deste princípio interpretativo:

“ (…) A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. – O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional – transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. – A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. – A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes (…)”48. (grifos nossos)

“(…) 1. O artigo 196 da CF impõe o dever estatal de implementação das políticas públicas, no sentido de conferir efetividade ao acesso da população à redução dos riscos de doenças e às medidas necessárias para proteção e recuperação dos cidadãos. 2. O Estado deve criar meios para prover serviços médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, além da implementação de políticas públicas preventivas, mercê de os entes federativos garantirem recursos em seus orçamentos para implementação das mesmas. (arts. 23, II, e 198, § 1º, da CF). 3. O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional. (…)”49.

Importante registrar por fim, que o Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que em casos excepcionais o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública implemente políticas públicas e direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes50.

2.9. Princípio da máxima efetividade ou da eficiência

Este princípio está intimamente ligado ao princípio da força normativa da Constituição, acima descrito, e dispõe que deve ser atribuído a um enunciado contido na Constituição o significado que lhe conceda maior efetividade.

“(…) Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador”51. (grifado no original)

Celso Ribeiro Bastos define esse cânone interpretativo da seguinte forma:

“O postulado é válido na medida em que por meio dele se entenda que não se pode empobrecer a Constituição. O que efetivamente significa esse axioma é o banimento da idéia de que um artigo ou parte dele possa ser considerado sem efeito algum, o que equivaleria a desconsiderá-lo mesmo. Na verdade, neste ponto, acaba por ser um reforço do postulado da unidade da Constituição. Não se pode esvaziar por completo o conteúdo de um artigo, qualquer que seja, pois isto representaria uma forma de violação da Constituição”52.


Transcrevemos a seguir algumas decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais restaram reveladas a preocupação em buscar a máxima efetividade de um princípio ou de uma regra constitucional:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA, INSTITUÍDA PELO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. FIGURA DO PEQUENO TRAFICANTE. PROJEÇÃO DA GARANTIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). CONFLITO INTERTEMPORAL DE LEIS PENAIS. APLICAÇÃO AOS CONDENADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI 6.368/1976. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA (INCISO XL DO ART. 5º DA CARTA MAGNA). MÁXIMA EFICÁCIA DA CONSTITUIÇÃO. RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO-POSITIVA. INEDITISMO DA MINORANTE. AUSÊNCIA DE CONTRAPOSIÇÃO À NORMAÇÃO ANTERIOR. COMBINAÇÃO DE LEIS. INOCORRÊNCIA. EMPATE NA VOTAÇÃO. DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RECORRIDO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do art. 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente “generosa”. 2. Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu art. 5º, a Constituição não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal. Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma. (…)”53.

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. IPTU. ENTIDADE ASSISTENCIAL. IMÓVEL VAGO. IRRELEVÂNCIA. JURISPRUDÊNCIA DO STF. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO DESPROVIDO. 1. A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, da CF alcança todos os bens das entidades assistenciais de que cuida o referido dispositivo constitucional. 2. Deveras, o acórdão recorrido decidiu em conformidade com o entendimento firmado por esta Suprema Corte, no sentido de se conferir a máxima efetividade ao art. 150, VI, “b” e “c”, da CF, revogando a concessão da imunidade tributária ali prevista somente quando há provas de que a utilização dos bens imóveis abrangidos pela imunidade tributária são estranhas àquelas consideradas essenciais para as suas finalidades. Precedentes: RE 325.822, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 14.05.2004 e AI 447.855, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, DJ de 6.10.06. (…)”54.

“Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória”55.

2.10. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade

O princípio em questão não está direcionado apenas à interpretação das normas constitucionais, sendo, na verdade, um princípio geral de Direito, precedendo e condicionando a positivação jurídica. Sua essência está relacionada com a ideia de equidade, prudência, proibição de excessos e, principalmente, de justiça, razão pela qual não é fácil conceituá-lo, sendo mais fácil constatar que esse princípio está sendo atendido através dos sentidos e da intuição.

A expressão “razoabilidade” está ligada à razão. É a adequação entre motivos, os fins e os meios dos atos realizados pelo Poder Público que também devem estar de acordo com os valores fundamentais consagrados na Constituição.

Já a proporcionalidade consiste na ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido. Sua concepção abrange também a adoção da medida adequada para o fim pretendido, analisando-se, para tanto, se não há outra medida menos gravosa para o atingimento dessa finalidade.

Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos assim descrevem esse princípio:

“Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o


Consultor Tributário: Fazenda tem vantagem no contencioso administrativo

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A Portaria PGFN/RFB 09/2011 versus precatório judicial

Foi publicada no dia 19 de outubro de 2.011, a Portaria PGFN/RFB número 9, que regulamentou o pagamento ou abatimento do REFIS instituído pela Lei 11.941/09, através de precatórios expedidos contra a União Federal. A Portaria permitiu que os débitos, objeto do parcelamento através da Lei 11.941/09, já consolidados pela Receita Federal possam ser pagos…


Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência


Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio, e são assegurados pela Lei n.º 8.906/94 aos membros da Advocacia-Geral da União.


Resumo: O presente trabalho tem como objetivo fornecer argumentos jurídicos aptos a justificar a titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência, bem como criticar o entendimento firmado no Parecer GQ – 24.

Palavras-chave: Honorários advocatícios de sucumbência. Membros da Advocacia-Geral da União. Titularidade.

Abstract: Union, by law and in compliance with the principle of decentralization in the Constitution, is not qualified to perform actions directly under block funding of the Brazilian Public Health System (SUS) called attention to secondary and tertiary care outpatient and inpatient. Nevertheless, it is increasing the number of court decisions that impose to Union an obligation to perform these actions. It was demonstrated, through analysis of current case law, as judicial decisions disrupt the way the SUS is structured, with respect to the actions planned for the mentioned block funding. On the other hand, it was explained as the Judiciary, to consider the principle of decentralization, in its decisions, can become an ally in implementing the system in order to ensure achievement, more effective health actions in the block care of ambulatory and tertiary care hospitals.

Keywords: Brazilian Public Health System (SUS). Principle of Decentralization. Block Funding Attention of Middle and High Complexity Hospital Outpatient. Public Policy. Lawsuits

Introdução

O objeto da presente estudo reside no exame da titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.

I – Da ausência de suspeição ou impedimento.

De início, cumpre analisar eventual suspeição ou impedimento dos Advogados da União no exame de questões que se encontram umbilicalmente relacionados com o interesse da Instituição.

A Advocacia-Geral da União encontra assento no art. 131 da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

A referida norma está inserida na segunda sessão do Capítulo IV do Titulo IV da Constituição Federal, com a seguinte denominação: “Das Funções Essenciais à Justiça” . Infere-se, assim, que a Advocacia-Geral da União é uma Instituição que exerce, segundo o texto constitucional, “funções essenciais à justiça”. A propósito, convém transcrever as fecundas lições do eminente Uadi Lammêgo Bulos1 sobre a matéria:

Por isso, o Judiciário só funciona por provocação, ou seja, se o agente exigir que ele atue, donde resulte a importância dos protagonistas da dinâmica processual, titulares das funções essenciais à Justiça.

A Carta Magna os enumerou, taxativamente:

  • Ministério Público (arts. 127 a 130);
  • Advocacia Pública (arts. 131 e 132);
  • Profissional da Advocacia (art. 133); e
  • Defensoria Pública (arts. 134 e 135).

Todos esses organismos desencadeadores da atividade jurisdicional atuam por meio de seus agentes públicos ou privados, isto é, promotores, procuradores, advogados e defensores públicos.

Dessa maneira, a inércia da jurisdição é compensada pelo dinamismo dos protagonista das funções essenciais à Justiça.

Em verdade, o papel constitucional dos promotores, procuradores, advogados e defensores públicos é relevantíssimo, porque, de modo genérico, compete-lhes agir em defesa dos interesses do Estado-comunidade, e não do Estado-pessoa.

O arquétipo prefigurado na Constituição da República distancia-os da caricatura usual de que ocupam posição de superioridade se comparados aos cidadãos comuns. Ao invés, encontram limites ao exercício de suas atribuições, pois quem tem o poder e a força do Estado não pode exercer em benefício próprio a autoridade que lhe foi conferida.

A Advocacia-Geral da União, como função essencial à Justiça, tem a atribuição privativa de representar judicial e extrajudicialmente a União, bem como exercer as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo. Ao examinar a questão, o Pleno do Supremo Tribunal Federal não hesitou em reconhecer a referida exclusividade, ao atestar a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 3º Região, no julgamento da RCL 8025, veja-se:

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, em julgar preliminarmente, o Tribunal afirmou a ilegitimidade da representação judicial do advogado constituído pelo Presidente do Tribunal Regional federal da 3ª Região. Em seguida, o Tribunal rejeitou a questão de ordem no sentido de intimar a Advocacia Geral da União para que, querendo, se manifeste nos autos. E no mérito, o Tribunal, por maioria julgou procedente a reclamação, para anular a eleição de Presidente e determinar que outra se realize, nos termos do voto do relator.


Nesse contexto, a Lei Complementar n.º 73/1993 – Lei Orgânica da Advocacia -Geral da União, em seus arts. 2º, II, b e art. 11, inciso III, dispõe, respectivamente:

Art. 2º A Advocacia-Geral da União compreende:

II – órgãos de execução

b) a Consultoria da União, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, da Secretaria-Geral e das demais Secretarias da presidência da república e do Estado-Maior das Forças Armadas;

Art. 11. Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:

III – fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União;

Da leitura das normas acima reproduzidas, torna-se possível concluir que a Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, como órgão setorial da Advocacia-Geral da União, tem a atribuição de, exclusivamente, exercer assessoramento jurídico da sua Pasta.

Feitos esses esclarecimento, convém agora analisar os deveres dos Advogados da União, com previsão na já mencionada Lei Complementar e na Lei n.º 8.112/90, que assim prescreve:

. Lei Complementar n.º 93/1993:

Art. 29. É defeso aos membros efetivos da Advocacia-Geral da União exercer suas funções em processo judicial ou administrativo:

I – em que sejam parte;

II – em que hajam atuado como advogado de qualquer das partes;

III – em que seja interessado parente consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o0 segundo grau, bem como cônjuge ou companheiro;

IV – nas hipóteses da legislação processual.

Art. 30. Os membros efetivos da Advocacia-Geral da União devem dar-se por impedidos:

I – quando hajam proferido parecer favorável à pretensão deduzida em juízo pela parte adversa;

II – nas hipóteses da legislação processual.

. Lei n.º 8.112/90:

Art. 116. São deveres do servidor:

I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;

II – ser leal às instituições a que servir;

Art. 117. Ao servidor é proibido:

IX – valer-se co cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil:

Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:

I – de que for parte;

II – quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.

Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:

V – interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.

À primeira vista, poder-se-ia alegar a suspeição ou impedimento de todos Advogados da União no exame da presente matéria. Este, contudo, não é o melhor entendimento. As normas infraconstitucionais, como trivialmente sabido, devem ser interpretadas à luz do texto constitucional que, como visto, reserva à Advocacia-Geral da União a função de exercer, exclusivamente, o assessoramento jurídico do Poder Executivo. Aplicam-se aqui os princípios que norteiam a interpretação constitucional, dentre os quais se destacam: o da máxima efetividade e o da razoabilidade.

O primeiro impõe que à norma constitucional, sujeita à atividade hermenêutica, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade. Já o segundo indica que a validade dos atos emanados do poder público é aferida com fundamento em três máximas: adequação, necessidade e proporcionalidade. A adequação designa a correlação lógica entre motivos, meios e fins, de maneira que, tendo em vista determinados motivos, devem ser providos meios, para a consecução de certos fins. A necessidade ou exigibilidade denota a intervenção mínima, isto é, inexistência de meios menos gravoso para a obtenção do fim pretendido. Já a proporcionalidade denomina a ponderação entre o encargo imposto e o benefício trazido2.


Nesse contexto, o constituinte originário, ao conferir à Advocacia-Geral da União a exclusividade do assessoramento jurídico, bem como incluí-la no rol das “funções essenciais à justiça”, não previu qualquer exceção capaz de afastar a sua atuação, de sorte que não seria razoável que a Instituição deixasse de examinar a constitucionalidade e regularidade dos projetos de atos normativos e consultas de seu interesse.

Em reforço à tese até aqui desenvolvida, não se pode olvidar que, quando o constituinte originário exigiu a citação prévia do Advogado-Geral da União nas causas em que o Supremo Tribunal Federal vier apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, para defender o texto ou ato impugnado, não fez qualquer restrição em relação à sua atuação. Assim, ainda que a eventual impugnação seja de norma referente à Instituição, a sua participação se faz necessária3.

Mas não é só. Em última análise, se fosse admitida o afastamento dos Advogados da União para exame de matéria dessa natureza, para que estranhos à carreira a realizassem, além de ferir de morte o art. 133 da Constituição Federal, estar-se-ia dando ensejo ao desvio de função, prática que destoa dos princípios da legalidade e moralidade, que norteiam a atuação da Administração, de tal modo que os atos por eles praticados estariam eivados do vício de nulidade.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não destoa desse entendimento, consoante se pode verificar da leitura da ementa abaixo transcrita:

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI COMPLEMENTAR 11/91, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (ART. 12, CAPUT, E §§ 1º E 2º; ART. 13 E INCISOS I A V) – ASSESSOR JURÍDICO – CARGO DE PROVIMENTO EM COMISSÃO – FUNÇÕES INERENTES AO CARGO DE PROCURADOR DO ESTADO – USURPAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. – O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. (ADI 881 MC/ES, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 25.04.97.)

Como se pode observar, a exclusividade das atribuições reservadas pelo texto constitucional à Advocacia-Geral da União, para assessoramento jurídico do Poder Executivo, impõe que todas as consultas jurídicas sejam por ela examinadas, inclusive as referentes à própria Instituição.

II – Questão preliminar: Honorários e Subsídio.

Antes de se adentrar no exame do direito dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários de sucumbência, afigura-se indispensável a análise de uma questão preliminar, qual seja, a sua compatibilidade com o regime de subsídio.

O vocábulo subsídio foi inserido na Constituição Federal pela Emenda da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/98), que introduziu o § 4º no art. 39, in verbis:

§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.

A referida Emenda também alterou o art. 135 da Constituição Federal, que passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 135. Os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e III deste Capítulo serão remunerados na forma do art. 39, § 4º.

Como se vê, com o advento da Emenda Constitucional nº 19/98, a carreira da Advocacia-Geral da União passou a ter uma nova disciplina remuneratória, que veio a se materializar com o advento da Medida Provisória nº 305, de 29.06.2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006 .

O subsídio, pois, caracteriza-se como nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Esse rigor, entretanto, é relativizado por outras normas constitucionais, que não foram atingidas pela Emenda, como é o caso, por exemplo, do art. 39, § 3º.

Outro não é o entendimento da eminente Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 que, ao examinar a questão, assinala:

No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no art. 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX. Com isto, o servidor que ocupe cargo público (o que exclui os que exercem mandato eletivo e os que ocupam emprego público, já abrangidos pelo art. 7º) fará jus a: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo a 50% à do normal, adicional de férias.


Como se pode observar, a regra do art. 39, § 4º, da Constituição Federal não é absoluta. Por outro lado, sobreleva anotar que o seu alcance se limita aos valores pagos pela administração pública. Os honorários advocatícios de sucumbência, diferentemente das vantagens ali mencionadas, são verbas de natureza particular, eis que são pagos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora, ou seja, não saem dos cofres públicos. Nessa linha, são os ensinamentos de Ivan Barbosa Rigolin5:

V – Ao que parece viceja, cá e lá, o entendimento de que os honorários de sucumbência constituem algo como “benefício aos servidores públicos”, pagos pelo poder Público, e talvez aí resida toda a origem do impasse que pode estar acontecendo.

Honorários advocatícios de sucumbência jamais foram benefício a servidor público, porque não são pagos com dinheiro público, não saem dos cofres públicos, mas do bolso dos derrotados em ações judiciais contra o poder Público. Não têm origem em recursos públicos, mas particulares – e muitos particulares. Quem os pagou já o sentiu.

Como se isso não bastasse, deve-se destacar que, se a intenção do constituinte fosse a de proibir o advogado público, o que se admite apenas por hipótese, teria a consagrado expressamente, com o fez em outra passagem do texto constitucional, como é o caso do art. 128, II, a da Constituição Federal, in verbis:

Art. 128. O Ministério Público abrange:

II – as seguintes vedações:

a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;

Ora, não foi esse o tratamento dispensado à Advocacia-Geral da União, não havendo qualquer restrição a respeito. A Lei Complementar n.º 73/1993, a seu turno, não traz qualquer proibição dessa natureza.

Registre-se, por relevante, que o texto original da Lei Complementar n.º 73/93 aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado à sanção presidencial, previa em seu art. 65 a vedação ao recebimento dos honorários6. Contudo, a aludida norma foi vetada pelo Presidente da República por interesse público, a fim de garantir a premiação do êxito, nos seguintes termos:

Quanto ao pro labore, percebido pelos Procuradores da Fazenda Nacional, por força da lei 7711 de 22 de dezembro de 1988, limita-se à sucumbência dos devedores vencidos nas execuções fiscais (honorários advocatícios). Desses honorários, 50 % destinam-se à implementação e modernização das procuradorias da Fazenda Nacional (informatização, custeio de taxas e custos de execuções fiscais, despesas de diligências, pro labore de peritos técnicos, avaliador e contadores judiciais, além de despesas de penhora, remoção e depósito de bens). Esse sistema de incentivo tem funcionado com múltiplo êxito para os cofres da União, sendo o principal fator de crescimento da arrecadação, apesar do decrescente números de Procuradores da Fazenda nacional em todo País7.

Resta, portanto, muito claro que o regime de subsídio não constitui óbice ao pagamento dos honorários de sucumbência aos membros da Advocacia-Geral da União, cuja titularidade restará demonstrada a seguir.

III – Lei n.º 8.906/94 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

A título de contextualização, cumpre realizar um breve histórico sobre a evolução legislativa dos honorários de sucumbência. De início, a Lei n.º 4.215/63, em seu art. 998, os previu. Em seguida, o Código de Processo Civil – Lei n.º 6.355/1973, no art. 209, também os consagrou. Nesse período, entretanto, tais honorários, a princípio, eram da titularidade da parte e não do advogado, bem como tinham natureza eminentemente indenizatória.

Em 1994, sobreveio a Lei n.º 8.906 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – EOAB, que trouxe profunda alterações à matéria, modificando sobremaneira o regime até então vigente. Os honorários deixaram de ser meramente indenizatórios, para assumir status de remuneração. Nesse contexto, esclarecedores os comentários de Yussef Said Cahali10:

A Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil), embora contendo dispositivos notoriamente polêmicos, teve o mérito contudo de enunciar claramente a quem pertencem os honorários advocatícios da sucumbência. Assim, ao estabelecer, em seu art. 23, que os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, o novel legislador buscou superar a aparente antinomia existente entre o artigo 20 do Código de Processo Civil e o artigo 99 do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963), geradora de um inconciliável dissídio doutrinário e jurisprudencial.

Uma das grandes inovações trazidas pelo referido diploma legal, indubitavelmente, foi a de reservar ao advogado, em seu Capítulo VI, a titularidade dos honorários de sucumbência. A propósito, não é desnecessário afirmar que os honorários têm natureza alimentar, consoante a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Vale, por todos, transcrever ementa do Supremo Tribunal Federal nesse sentido:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO DE FUNDAMENTO EM AGRAVO REGIMENTAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR. AGRAVO IMPROVIDO. I – É incabível a inovação de fundamento em agravo regimental, porquanto a matéria arguida não foi objeto de recurso extraordinário. II – O acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência da Corte no sentido de que os honorários advocatícios têm natureza alimentar. III – Agravo regimental improvido. (AI 732358, Rel. Min. Ricardo Lewandoswski, Primeira Turma, DJ 21.08.2009. Destacou-se)


Posteriormente, foi publicada a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, asseverou que as normas previstas no Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam à Administração Pública direta da União, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, consoante se pode verificar da leitura do seu art. 4º, in verbis:

Art. 4º As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista.

Em razão da sucessão de leis no tempo tratando da mesma matéria, deve-se destacar que não merecer prosperar o argumento segundo o qual, em razão do disposto no art. 20 do Código de Processo Civil, os honorários de sucumbência pertenceriam à parte e não ao advogado, eis que a Lei n.º 8.906/94, por ser posterior, a revogou tacitamente. Essa é a inteligência do art. 2º, I, do Decreto-Lei n.º 4.65711, de 4 de setembro de 1942 – Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro.

Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. HONORÁRIOS. INTERPRETAÇÃO ANTERIOR À LEI N. 8.906/94.TITULARIDADE DA PARTE VENCEDORA.

1. Verifica-se que o acórdão recorrido analisou todas as questões atinentes à lide, só que de forma contrária aos interesses da parte. Logo, não padece de vícios de omissão, contradição ou obscuridade, a justificar sua anulação por esta Corte. Tese de violação do art. 535 do CPC afastada.

2. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que antes do advento da Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dosAdvogados do Brasil), a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência era da parte vencedora e, não, do seu respectivo advogado.

3. Recurso especial provido. (REsp 859944/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE 19.08.2009)

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. DÉBITO DE NATUREZA ALIMENTÍCIA. ACÓRDÃO DECIDIDO POR FUNDAMENTOS DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE NA VIA RECURSAL ELEITA. TITULARIDADE, EM PRINCÍPIO, DO ADVOGADO DA PARTE VENCEDORA, PERMITIDA CONVENÇÃO EM SENTIDO CONTRÁRIO. POSSIBILIDADE DA EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO DISTINTO PARA A VERBA DE SUCUMBÊNCIA. DIREITO AUTÔNOMO DO ADVOGADO.

1. A questão em torno da natureza da verba recebida a título de honorários de sucumbência — se possui ou não caráter alimentício — foi decidida pela Corte de origem por fundamentos de índole eminentemente constitucional, insuscetíveis de apreciação em sede de recurso especial.

2. A análise de matéria constitucional, em sede de recurso especial, é alheia à competência atribuída a esta Superior Corte de Justiça, a teor do disposto no art. 105, III, da Constituição Federal.

3. A Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), ao contrário da legislação anterior que disciplinava a matéria, modificou a titularidade das verbas recebidas a título de honorários de sucumbência, passando-as da parte vencedora para o seu respectivo advogado.

4. Até prova em contrário, os honorários sucumbenciais são devidos ao advogado da parte vencedora, “tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor”, independentemente da juntada de cópia do contrato de prestação de serviços advocatícios.

5. Recurso especial parcialmente provido. (Resp 659293/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 24.04.2006)

A questão foi também examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.194-4, que teve como objeto, dentre outras normas, o parágrafo único do art. 21 e o parágrafo 3º do art. 24, ambas da Lei n.º 8.906/94. Na oportunidade, por maioria, assinalou-se que o recebimento dos honorários de sucumbência é disponível, de sorte a permitir o ajuste contratual entre o advogado e o cliente sobre as referidas verbas. Calha, por relevante, transcrever passagens do voto do Ministro Maurício Corrêa nesse sentido:

22. Toda argumentação da requerente cai por terra ante o disposto nos artigos 22 e 23 do Estatuto da Advocacia, que, encerrando a discussão acerca da titularidade da verba em face da redação do artigo 20 do CPC, assegurou expressamente que o advogado tem direito aos honorários de sucumbência. Em que pese a constitucionalidade de tais preceitos ter sido objeto também desta ação direta, a questão não pôde ser apreciada em virtude da ilegitimidade ativa da requerente por impertinência temática. Pertencendo a verba honorária ao advogado, não se há de falar em recomposição do conteúdo econômico-patrimonial da parte, criação de obstáculo para o acesso à justiça e, muito menos, em ofensa a direito adquirido da litigante.

23. Ainda que se entenda que os honorários se destinavam a ressarcir a parte vencedora pela despesas havidas com a contratação de profissional de advocacia e nessa perspectiva pertencesse ao litigante, segundo uma das exegeses admitidas do artigo 20 do CPC, restaria clara sua revogação pelos artigos 22 e 23 do superveniente estatuto da OAB (LICC, artigo 2º, § 1º)

Uma vez assentado o direito dos advogados aos honorários de sucumbência, convém agora examinar se eles também se estendem aos membros da Advocacia-Geral da União. Frise-se, por oportuno, que as alterações promovidas pela Lei n.º 9.527/97, mencionadas alhures, referem-se tão somente ao Capítulo V do Título I da Lei n.º 8.906/94, vale dizer, aplicam-se apenas aos advogados empregados. Nessa linha, convém reproduzir as informações prestadas pelo Senado Federal ao Supremo Tribunal Federal, na ADI n.º 3.396 que analisa a constitucionalidade do art. 4º da Lei n.º 9.527/97:


Apesar de submetidos a um mesmo estatuto, no caso, o Estatuto da Advocacia, criado pela Lei n.º 8.906, de 1994, os advogados que ocupam cargo público em órgãos da Administração Direta, Autarquias e Fundações instituídas pelo Poder Público, sujeitam-se a um regime especial de trabalho. Trata-se do Regime Jurídico Único previsto na Lei n.º 8.112, de 1990, e nesta condição estão submetidos a um regime de direitos e deveres específicos, o qual não se confunde com o regime das empresas privadas, este aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista, que normalmente se submetem aos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Paralelamente a isso, não se pode esquecer que a exegese das leis é orientada pelo processo sistemático, porquanto as leis não são conglomerados de normas desconexas entre si. Ao revés, apresentam-se de modo coordenado, em feixes orgânicos, procurando formar unidade de sentido. Os seus elementos mantêm vínculo de inter-relação e interdependência12. Dessarte, os arts. 22 a 26 da Lei n.º 8.906/94, presentes no Capítulo VI, que versam sobre os honorários advocatícios, devem ser interpretados à luz do disposto no art. 3º, § 1º, do mesmo Diploma Legal, in verbis:

Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),

§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional. (Destacou-se)

Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.

§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.

§ 2º Na falta de estipulação ou de acordo, os honorários são fixados por arbitramento judicial, em remuneração compatível com o trabalho e o valor econômico da questão, não podendo ser inferiores aos estabelecidos na tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB.

§ 3º Salvo estipulação em contrário, um terço dos honorários é devido no início do serviço, outro terço até a decisão de primeira instância e o restante no final.

§ 4º Se o advogado fizer juntar aos autos o seu contrato de honorários antes de expedir-se o mandado de levantamento ou precatório, o juiz deve determinar que lhe sejam pagos diretamente, por dedução da quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este provar que já os pagou.

§ 5º O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de mandato outorgado por advogado para defesa em processo oriundo de ato ou omissão praticada no exercício da profissão.

Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

Sublinhe-se que as normas inseridas no Capítulo VI do Estatuto da Advocacia, em nenhum momento, restringem sua aplicação aos membros da Advocacia-Geral da União. Na atividade hermenêutica, como é cediço, não cabe ao intérprete definir o que o legislador não definiu, nem mesmo acrescer ao texto legal condição nela não existente. Assim, não há razão para se restringir o alcance das normas acima mencionadas.

Como se vê, em homenagem ao método sistemático de interpretação, ressoa inequívoco o direito dos Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional e Procuradores Federais aos honorários advocatícios de sucumbência nas causas em que a Fazenda Pública se sagre vencedora.

IV – Do Parecer GQ – 24.

Sem embargo das considerações até aqui lançadas, cumpre assinalar que a questão já foi examinada pela Advocacia-Geral da União, por meio do PARECER nº GQ – 24, vinculante, que adotou para os fins do art. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73/93, o Anexo PARECER Nº AGU/WM-08-94. Na oportunidade, restou assentado que os arts. 22 a 25 da lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam aos membros da Instituição, veja-se:

EMENTA: A disciplina do horário de trabalho e da remuneração ínsita à Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, é específica do advogado, na condição de profissional liberal e empregado, sem incidência na situação funcional dos servidores públicos federais, exercentes de cargos a que sejam pertinentes atribuições jurídicas.

(…)

4. É induvidoso que os servidores dos órgãos da Administração Federal direta, das autarquias e das fundações públicas federais,a cujos cargos correspondam as atividades de advocacia, se submetem ao regime instituído pela Lei 8.906 (cfr. O § 1º do art. 3º), mas são regidos pelas normas estipendiárias e pertinentes às cargas horárias e específicas dos servidores públicos federais.

9. Há que se realçar a prevalência de comando ínsito à Lei Complementar n. 73, de 1993, estratificado no sentido de que a remuneração dos membros da Advocacia-Geral da União se fixa em “lei própria”, condição que se não considera atendida com as normas concernentes ao Estatuto da Advocacia, em comento.

13. A mantença das regras a que são submetidos especificamente os advogados, servidores federais estatutários, decorrente se sua compatibilização coma lei nova, se justifica pelo fato de esse pessoal encontrar-se inserido no contexto do funcionalismo federal, regido por normas editadas unilateralmente pelo Estado, a fim de estabelecer o regramento da relação jurídica que se constitui entre ele e o servidor, de modo a que o Poder Público disponha de um sistema administrativo capaz de atender à sua finalidade, consistente em proporcionar à coletividade maior utilidade pública, essência das realizações da Administração. Face a esse desiderato, é atribuída ao Estado a faculdade de estabelecer e alterar, de forma unilateral, as regalias originárias do funcionalismo, adequando-as às suas peculiaridades e necessidades, inclusive as orçamentárias, mas sem inobservar os comandos constitucionais. Tanto assim é essa especificidade que o art. 61 da Carta insere na competência privativa do Presidemte da República a iniciativa de leis que cuidem sobre aspectos de regime jurídico do servidor público deferal, incluída a remuneração.

14. Essa linha de raciocínio aproveita à inaplicabilidade do regramento dos adicionais de sucumbência aos mesmo servidores: as características dessas normas (arts. 22 a 25 da Lei n. 8.906) indicam o alcance, tão-só, das atividades de advocacia desenvolvidas pelos profissionais liberais e advogados empregados, no que couber. Induzem a essa lição inclusive o aspecto de que os honorários, incluído os de sucumbência, pertencem ao advogado, que pode, de forma autônoma, executar a sentença, nesse particular (art. 23), direito que se não compatibiliza com a isonomia de vencimentos preconizada nos arts. 39, § 1º, e 135 da Constituição. Em relação a esse honorários a que façam jus os advogados empregados, há também disciplina específica no art. 21 do mesmo Diploma Legal, inexistindo a dos servidores estatutários do Estado, cujas peculiaridades também reclamariam normas especiais.

15. O Estatuto da Advocacia se estende aos servidores da área jurídica federal. Porém, por imperativo seu, impõe-se a observância do “regime próprio a que se subordinam” (art. 3º, § 1º), que, via de regra, não prevê esse adicional retributivo. Para contemplar esse pessoal, haveria de ser regulado em lei, em vista do princípio da legalidade esculpido no art. 37 da Constituição.

III

16. O exposto admite se acolha o resultado interpretativo de que os advogados submetidos ao regime jurídico instituído pela Lei n. 8.112, de 1990, continuam sujeitos ao disciplinamento vigente à época da edição do novo Estatuto da Advocacia, no que respeita à carga horária e à remuneração, porquanto não foram alcançados, no particular, pela lei nova.


A referida manifestação fundamenta-se, basicamente, no disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93, que exige lei própria para fixação do vencimento e remuneração dos membros das carreiras da Advocacia-Geral da União.

O grande problema é que esse argumento poderá trazer graves consequências, especialmente se o utilizarmos para o exame de importantes leis afetas à Advocacia-Geral da União, publicadas nos últimos anos, senão vejamos:

a) O subsídio dos cargos das carreiras da Advocacia-Geral da União foi instituído pela Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006. Sucede, todavia, que os referidos atos normativos não se enquadram no conceito de “lei própria”, eis que disciplinam, a um só tempo, as carreiras de Procurador da Fazenda Nacional, Advogado da União, Procurador Federal, Defensor Público, de Procurador do Banco Central do Brasil, Policial Federal e da reestruturação dos cargos da Carreira de Policial Rodoviário Federal. Em razão disso, indaga-se: estaria a Lei n.º 11.358 violando o disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?

b) De igual modo, o último aumento remuneratório das carreiras da Advocacia-Geral da União deu-se, por meio da Medida Provisória n.º 440, de 2008, convertida na Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008. Todavia, assim como o exemplo anterior, as referidas normas não se enquadram no conceito de “lei própria”, uma vez que abrangem inúmeras carreias do Poder Executivo Federal, tratando não só de remuneração, bem como de reestruturação. Pergunta-se: estaria a Lei n.º 11.890, de 24 de dezembro de 2008 contrariando o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 e, por via reflexa, o art. 131 da Constituição Federal?

c) Se o parágrafo único do art. 26 da Lei Complementar n.º 73/93 exige que o vencimento e a remuneração das carreiras sejam tratados em “lei própria”, estariam os Advogados Públicos Federais isentos do pagamento da contribuição anual à OAB, prevista no art. 46 da Lei n.º 8.906/1994, porquanto se trata de matéria que, em última análise, encontra-se umbilicalmente relacionada à remuneração e vencimentos dos membros da carreira?

Por outro lado, deve-se destacar que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.652-6, que examinou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 1413 do Código de Processo Civil, o Ministro Relator Maurício Corrêa assinalou, em seu voto, que os advogado públicos sujeitam-se às prerrogativas, direitos e deveres do advogado, estando submetidos à disciplina própria da profissão, nos seguintes termos:

2. Com efeito, seria mesmo um absurdo concluir que o legislador tenha pretendido excluir de ressalva os advogados sujeitos a outros regimes jurídicos, além daquele instituído pelo Estatuto da OAB, como ocorre, por exemplo, com os profissionais da advocacia que a exercem na condição de servidores públicos. Embora submetidos à legislação específica que regula tal exercício, também devem observância ao regime próprio do ente público contratante. Nem por isso, entretanto, deixam de gozar das prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão, artigos 3º, § 1º; e 18.

Ora, se os honorários de sucumbência não pertencem aos membros da Advocacia-Geral da União, em razão dos argumentos aduzidos no Parecer GQ – 24, a quem são devidos? À União? Com base em que fundamento legal? A propósito, desconhece-se, s.m.j., qualquer lei que autorize a União a receber tais verbas. Não é preciso gastar rios de tinta para perceber que essa realidade viola, no mínimo, o princípio da legalidade administrativa, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal.

Outro ponto que deve ser levantado é o de que o referido Parecer vinculante foi elaborado sob uma realidade jurídica distinta dos dias atuais, de sorte a não mais tratar a contento as questões afetas à matéria, notadamente se levarmos em consideração que, posteriormente, à sua publicação, consoante já mencionado, sobreveio a Lei n.º 9.527/97 que, dentre outras providências, afastou a incidência das normas presentes no Capítulo V do título I à Adminsitração Pública direta da União, às autarquias, às fundações públicas instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, esvaziando, assim, parte do seu conteúdo.

Além disso, foi publicada a Medida Provisória n.º 305, de 2006, convertida na Lei n.º 11.358, de 19 de outubro de 2006, que criou o subsídio dos cargos da carreira da Advocacia-Geral da União, conforme relatado no item 42, a, desta manifestação.

Por derradeiro, mas não menos importante, assinale-se, a título de informação, que os membros de boa parte das Procuradorias dos estados14 e dos municípios recebem honorários de sucumbência.

Por todo o exposto, sugere-se, com fundamento no art. 4º, X, da Lei Complementar n.º 73/93, que o Parecer GQ – 24 seja revisado pela Advocacia-Geral da União.

Conclusão

Ao término dessa exposição, torna-se possível sintetizar algumas das suas proposições mais importantes:

  • as atribuições de assessoramento jurídico ao Poder Executivo Federal são exclusivas da Advocacia-Geral da União. Ainda que as consultas tenham por objeto causas de interesse afetas à própria Instituição, seus membros não poderão se eximir de examiná-las, sob o fundamento de eventual suspeição ou impedimento;
  • Os honorários advocatícios de sucumbência são compatíveis com regime de subsídio;
  • A Lei n.º 8.906/94 confere aos membros da Advocacia-Geral da União o direito aos honorários de sucumbência;
  • Todavia, o Parecer GQ – 24, aprovado pelo Presidente da República, adota entendimento diametralmente oposto, no sentido de que os arts. 22 a 25 da Lei n.º 8.906/94 não se aplicam às carreiras da Advocacia-Geral da União, haja vista que a matéria deveria ser tratada em “lei própria”, em observância ao disposto no parágrafo único do art. 26 da lei Complementar n.º 73/93;
  • A fundamentação utilizada no referido Parecer, s.m.j., dificulta a defesa da constitucionalidade de leis que versam sobre matérias de considerável importância para Instituição. Assim sendo e levando-se em consideração o advento de novas normas sobre a matéria, assim com os questionamentos e informações mencionados alhures, recomenda-se, com fundamento no art. 4, X, da Lei Complementar n.º 73/93, a sua revisão.

Referências bibliográficas.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

CAHALI, Yussef Said. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94.


MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003.

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Honorários Advocatícios e Pode Público. Boletim de Direito Administrativo: BDA. São Paulo: NDJ, Ano XXII, n.º 3, março de 2006.

Guedes, Jefferson Guarús; Hauschild, Mauro Luciano (Coordenação).Nos limites da história: a construção da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos. Brasília: UNIP, UNAF, 2009.

Sítios Eletrônicos pesquisados:

http://www.stf.jus.br.

http://www.stj.jus.br.

http://www.casacivil.planalto.gov.br.


Notas

  1. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. 2ª Ed. P. 1143.
  2. Guilherme Peña de Moraes. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Pág. 122/123.
  3. Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
    § 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
  4. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2003. 16ª ed. P.450.
  5. In BDA – Boletim de Direito Administrativo – Março/2006. P. 276.
  6. Art. 65 (VETADO). A lei especial objeto do art. 26 desta Lei Complementar deve disciplinar a remuneração dos integrantes dos órgãos previstos no art. 2º., dos titulares de seus cargos efetivos e de confiança, bem como a dos dirigentes, vedando-lhes a participação na arrecadação de tributos, contribuições sociais e multas, o recebimento de honorários de sucumbência e a percepção de valor pro labore.
  7. Passagem extraída da obra: “Nos Limites da história: a contrução da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos/ Coordenação de Jefferson Garús Guedes e Mauro Luciano Hauschild. Brasília: 2009. Pgs. 75/76.
  8. Art. 99. Se o advogado fizer juntar aos autos, até antes de cumprir-se o mandado de lavramento ou precatório, o seu contrato de honorários, o juiz determinará lhe sejam estes pagos diretamente, por dedução de quantia a ser recebida pelo constituinte, salvo se este prover que já os pagou.
    § 1º Tratando-se de honorários fixados na condenação, tem o advogado direito autônomo para executar a sentença nessa parte podendo requerer que o precatório, quando este for necessário, seja, expedido em seu favor.
    § 2º Salvo aquiescência do advogado, o acordo feito pelo seu cliente e a parte contrária não lhe prejudica os honorários, quer os convencionais, quer os concedidos pela sentença.
  9. Art. 20 A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.
  10. Direito Autônomo do Advogado aos Honorários da Sucumbência – Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de outubro de 1994 – nº 19/94, pp. 376/378.
  11. Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
    § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
  12. Uadi Lammêgo Bulos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Editora Saraiva, 2008. 2ª Edição. P. 335.
  13. 13 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participaram do processo:
    Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.”
    No exame da referida ADI, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, julgou procedente o pedido formulado na inicial da ação para, sem redução de texto, emprestar à expressão “ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB”, interpretação conforme a carta, a abranger advogados do setor privado e do setor público.
  14. É o caso dos estados do Espírito Santo, de São Paulo e Minas Gerais. Poderia estender a lista, mas para não tornar a leitura cansativa, limito-me a tais exemplos.

Autor

Paulo Fernando Feijó Torres Junior

Advogado da União em Brasília (DF).

NBR 6023:2002 ABNT: JUNIOR, Paulo Fernando Feijó Torres. Titularidade dos membros da Advocacia-Geral da União aos honorários advocatícios de sucumbência. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3106, 2 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20765>. Acesso em: 16 jan. 2012.


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Parecer PGFN/CRJ/Nº 492/2010

Autor: Luana Vargas Macedo, Procuradora da Fazenda Nacional.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

FORÇA – PERSUASIVA OU VINCULANTE – DOS PRECEDENTES JUDICIAIS DO STF/STJ. DESTINO DOS RECURSOS INTERPOSTOS CONTRA DECISOES FUNDADAS NESSES PRECEDENTES. APRESENTAÇÃO, OU NÃO, PELA PGFN, DE RECURSO E DE CONTESTAÇÃO. RAZÕES DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. REQUISITOS

  1. O precedente judicial, oriundo do STF/STJ, formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostenta uma força persuasiva especial e diferenciada, de modo que os recursos interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem possuem chances reduzidas de êxito. Assim, critérios de política institucional apontam no sentido de que a postura de não mais apresentar qualquer tipo de recurso (ordinários/extraordinários), nessas hipóteses, é a que se afigura como a mais vantajosa, do ponto de vista prático, para a PGFN, para a Fazenda Nacional e para a sociedade. Nessa mesma linha, também não há interesse prático em continuar contestando pedidos fundados em precedentes judiciais formados sob a nova sistemática.
  2. Diante da força persuasiva inferior que marca os precedentes judiciais, oriundos do STF/STJ, não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, não há parâmetros suficientemente seguros para se afirmar se os recursos interpostos contra as decisões que os aplicarem tendem, ou não, a obter êxito, sendo certo que fatores das mais diversas ordens poderão influenciar/ determinar o resultado do julgamento desses recursos. Assim, razões de política institucional apontam no sentido de que não é conveniente a adoção, pela PGFN, da postura de deixar de interpor qualquer espécie de recurso contra decisões judiciais proferidas em consonância com tais precedentes, já que não se pode antever se a adoção dessa postura traria mais vantagens do que desvantagens.
  3. Em se tratando, especificamente, de RE/RESP´s interpostos contra acórdãos proferidos em consonância com jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, o seu seguimento tem sido repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ); daí que, nesses casos, pode-se afirmar, com a segurança necessária, que os recursos extremos interpostos contra essas decisões possuem reduzida viabilidade de êxito, de modo que a PGFN não possui interesse prático em continuar insistindo na sua interposição.
  4. De igual modo, também é possível afirmar a baixa utilidade em continuar interpondo agravo regimental contra decisões monocráticas, proferidas por Relatores nos TRF´s, no STJ e no STF que, com respaldo em jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, seguida pela respectiva Turma, negam seguimento, nos termos do art. 557 do CPC, a recursos (agravos de instrumentos, apelações, RESP´s e RE´s).
  5. A aplicação prática das orientações ora sugeridas depende da verificação, pelo Procurador da Fazenda Nacional que atua no caso concreto, quanto ao atendimento dos requisitos listados por este Parecer; ainda como consideração de ordem prática, vale o registro de que a não apresentação, pela PGFN, de contestação/recurso, nas hipóteses sugeridas neste Parecer, deve, sempre, ser precedida de justificativa processual, a ser apresentada administrativamente pelo Procurador da Fazenda Nacional.

I Definição do objeto do presente Parecer

  1. O escopo do presente Parecer consiste, basicamente, em definir a postura a ser adotada pelas unidades da PGFN diante de decisões judiciais, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com jurisprudência oriunda do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nessas hipóteses, a PGFN deverá continuar interpondo recursos?
  2. Para que bem se resolva a questão acima mencionada, reputa-se relevante que, antes, sejam analisados, de forma sucessiva, os seguintes temas: (i) a força dos precedentes judiciais oriundos do STF e do STJ; (ii) destino dos recursos eventualmente interpostos contra decisões judiciais proferidas em consonância com esses precedentes. Examinados esses dois temas, será, então, possível retomar a questão acima referida para, finalmente, enfrentá-la em toda sua plenitude.

II A força dos precedentes judiciais oriundos do STF e do STJ

  1. Como se sabe, pertence à tradição do ordenamento jurídico brasileiro a regra segundo a qual os precedentes judiciais oriundos dos seus Tribunais Superiores possuem força apenas persuasiva, e não vinculante. Nesse ponto, a ordem jurídica pátria, identificada com o sistema da Civil Law (ou românico-germânico), distancia-se dos ordenamentos ligados à Commom Law (ou anglo-saxões), em que, de ordinário, vigora o sistema do stare decisis, caracterizado pela força vinculante dos precedentes judiciais provenientes de alguns dos seus Tribunais. Assim, no Brasil, com a ressalva das Súmulas Vinculantes e das decisões tomadas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade das leis, às quais foi conferido efeito vinculante, as demais orientações provenientes do STF ou do STJ não possuem esse efeito, de modo que, a rigor, a definição dada, por esses Tribunais, a determinada controvérsia jurídica tem caráter apenas persuasivo, não possuindo o condão de verdadeiramente vincular os demais órgãos do Poder Judiciário na resolução de demandas futuras que tratem dessa mesma controvérsia.
  2. Apesar disso, tem-se verificado, especialmente nos últimos anos, a paulatina e crescente introdução, no sistema processual civil brasileiro, de mecanismos destinados a, a um só tempo, conferir mais racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e promover a unidade da interpretação do direito, especialmente mediante o substancial incremento da força persuasiva dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais Superiores. Trata-se do fenômeno da “verticalização” das decisões do STF e do STJ ou da “commonlawlização”1 da ordem jurídica pátria, que tem o precedente judicial como o seu protagonista. As razões que justificam esse movimento foram bem sintetizadas pelo Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEXEIRA:
    1. a necessidade de tornar a Justiça mais ágil e eficiente, afastando milhares de ações desnecessárias e recursos meramente protelatórios, que, na maioria reproduzindo peças lançadas em computador, estão a congestionar os tribunais, agredindo o princípio da celeridade processual e tornando a jurisdição ainda mais morosa, com críticas gerais;
    2. não justificar-se a multiplicidade de demandas e recursos sobre teses jurídicas absolutamente idênticas, já definidas inclusive na Suprema Corte do País, sabido ainda que o descumprimento das diretrizes dessas decisões promana, em percentual muito elevado, da própria Administração Pública;
    3. a necessidade de prestigiar o princípio isonômico, o direito fundamental à igualdade perante a lei, eliminando o perigo das decisões contraditórias, muitas delas contraditórias inclusive a declarações de inconstitucionalidade, em incompreensível contra-senso;
    4. a imprescindibilidade de resguardar o princípio da segurança jurídica, assegurando a previsibilidade das decisões judiciais em causas idênticas.”2
    5. Dentre os dispositivos legais veiculadores de mecanismos processuais que, ao reforçar a importância dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais Superiores, pretendem atingir as finalidades mais acima elencadas, podem ser citados o art. 475, §3º (inexistência de remessa necessária quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em Súmula de Tribunal Superior), o art. 518, §1º (Súmula “impeditiva de recursos”), o art. 557 (inadmissão monocrática de recurso contrário à súmula ou à jurisprudência dominante do STF ou do STJ) e o art. 557, §1º (provimento monocrático de recurso em consonância com súmula ou jurisprudência dominante do STF ou do STJ), todos do CPC e, por fim, o art. 103-A da CF/88 (Súmula Vinculante), introduzido pela Emenda Constitucional n. 45, de 30 de novembro de 2004 (Emenda da “Reforma do Judiciário”). 

  1. Entretanto, embora esses mecanismos processuais tenham, inegavelmente, contribuído para o incremento da força persuasiva dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais Superiores, a experiência acabou demonstrando que os mesmos não eram suficientes para, efetivamente, atingir as finalidades acima elencadas (mais uma vez: conferir mais racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e promover a unidade da interpretação do direito); assim, apesar da existência desses mecanismos, na prática, não raras as vezes, demandas múltiplas, referentes à mesma controvérsia jurídica, continuavam recebendo tratamento distinto pelos órgãos do Poder Judiciário, inclusive quando sobre aquela controvérsia já havia pronunciamento oriundo dos Tribunais Superiores. Essa situação refletia um inegável déficit de autoridade das decisões oriundas do STF/STJ, os quais, apesar de constitucionalmente destinados a proferir a última palavra em termos de interpretação constitucional/infraconstitucional, na prática, tinham seu relevante papel de intérpretes máximos diminuído em razão do indiscriminado desrespeito aos seus precedentes judiciais.
  2. Finalmente, com a introdução, no sistema processual civil pátrio, da sistemática de julgamento por amostragem dos recursos extremos repetitivos (Recurso Especial e Recurso Extraordinário), tal qual delineada pelos arts. 543-B e 543-C do CPC3, a força persuasiva dos precedentes judiciais oriundos do STJ/STF chegou a um nível bastante elevado, abaixo, apenas, da força – no caso, vinculante – de que os mesmos se revestem quando resultam em Súmulas Vinculantes ou quando provém de julgamentos realizados, pela Suprema Corte, em sede de controle concentrado de constitucionalidade das leis.
  3. Com efeito, diferentemente do que prevê o art. 103-A da CF/88, segundo o qual essas Súmulas terão “efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, não há, no modelo de julgamento por amostragem dos recursos extremos repetitivos, qualquer comando prevendo que, uma vez definida, pelos Tribunais Superiores, determinada questão jurídica na forma dos arts. 543-B e 543-C do CPC, essa definição deverá ser, necessariamente, seguida pelos demais órgãos do Poder Judiciário nas futuras demandas a respeito dessa mesma questão. Tampouco há, no novo modelo de julgamento, qualquer regra estabelecendo que os recursos eventualmente interpostos contra as futuras decisões judiciais proferidas no mesmo sentido da definição antes firmada pelo STJ/STF serão, necessária ou automaticamente, inadmitidos4.
  4. Entretanto, apesar de não ser, propriamente, vinculante, e de não ensejar a inadmissão automática dos recursos interpostos contra os futuros acórdãos que o aplicarem, é certo que os precedentes judiciais formados sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostentam uma força persuasiva especial e diferenciada, capaz, a um só tempo, de distingui-los dos outros precedentes judiciais, também oriundos do STF/STJ, mas que não resultaram de julgamentos submetidos a tal sistemática, e de tornar a sua aplicação praticamente impositiva às futuras demandas que tratem da mesma questão jurídica nele tratada, podendo essa aplicação ser superada, apenas, em hipóteses absolutamente remotas e excepcionais.
  5. E de onde advém essa sobredita força persuasiva especial e diferenciada dos precedentes judiciais formados sob a nova sistemática de julgamento? A resposta, segundo aqui se entende, é a de que a força persuasiva especial e diferenciada desses precedentes judiciais advém, basicamente, de dois fatores (que guardam entre si verdadeira relação de interdependência): primeiro, do procedimento, também especial e diferenciado, conferido ao julgamento dos recursos extremos repetitivos, tal qual delineado nos arts. 543-B e 543- C do CPC; segundo, da própria lógica do novo instituto, ou, ainda, da sua razão-de-ser.
  6. A respeito do primeiro fator acima referido, cabe registrar que ao novo modelo de julgamento, por amostragem, dos recursos extremos repetitivos, previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, foi conferido um rito processual absolutamente especial e destacado, inédito no sistema processual civil brasileiro, composto por fases e dotado de características bastante peculiares, tais como: (a) a possibilidade de que, diante da relevância da matéria, o STF/ STJ autorizem a manifestação de terceiros (pessoas, órgãos e entidades, com interesse na controvérsia), a respeito da repercussão geral, nos recursos extraordinários repetitivos5, e a respeito do mérito, nos recursos especiais repetitivos6; (b) possibilidade de que o STF/STJ solicitem, aos Tribunais estaduais e federais, informações a respeito da controvérsia7; (c) prévia oitiva do Ministério Público acerca da controvérsia, no processamento dos recursos especiais repetitivos8; (d) julgamento do recurso extremo paradigma pelo Pleno, no STF9, e pela Seção ou pela Corte Especial, no STJ10.
  7. Percebe-se que a feição dada ao julgamento dos recursos extremos repetitivos, previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, imprime aos precedentes judiciais dele decorrentes, inegavelmente, um grau de legitimidade excepcional, na exata medida em que, de um lado, a sua formação conta – ou pode contar – com a participação de múltiplos agentes (do Ministério Público e, mesmo de integrantes da sociedade, na figura de terceiros interessados na controvérsia), e, de outro lado, o seu julgamento é realizado pelos órgãos colegiados máximos ou qualificados do STF/STJ. De fato, nenhum outro precedente judicial, ainda que oriundo do STF/STJ, e mesmo que tenha dado origem a Súmula (não Vinculante), resulta de um procedimento tão legitimador quanto aquele previsto nos arts. 543-B e 543- C do CPC, pertinente ao julgamento dos recursos extremos repetitivos.
  8. Justamente por resultarem de procedimento tão especial e legitimador, os precedentes judiciais formados nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC revestem-se de um nível de definitividade e certeza diferenciado, quando comparado àquele ostentado pelos precedentes oriundos de julgamentos, ainda que do STF/STJ, não submetidos à nova sistemática. Com isso se quer dizer que a alteração, pelo STF/STJ, do entendimento contido em precedente judicial formado nos moldes da nova sistemática, embora possível, parece pouco provável, e, ao que tudo indica, apenas ocorrerá em casos excepcionais e extremos, quando, por exemplo, novos dados possam ser agregados à questão jurídica tratada no precedente de modo a demonstrar que a definição nele contida já não mais se apresenta como a melhor tecnicamente, ou, então, como a mais justa11; por outro lado, e diversamente, sabe-se que os precedentes oriundos do STF/STJ, não submetidos à nova sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, têm se mostrado especialmente sujeitos a oscilações e alterações determinadas pelos mais diversos fatores (p. ex., mudanças de entendimento decorrentes da alteração na composição das turmas julgadoras desses Tribunais).
  9. Nessa linha, pode-se afirmar, então, que: o procedimento especial e legitimador previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC faz com que os precedentes judiciais dele decorrentes ostentem um nível bastante elevado de certeza e definitividade; esses atributos, por sua vez, estando presentes em tais precedentes, são capazes de lhes elevar a força persuasiva, o que significa que a sua observância, pelos órgãos jurisdicionais inferiores, embora não seja obrigatória, dado o seu caráter não vinculante, certamente será a regra.
  10. Já no que pertine ao segundo fator acima referido, impende assinalar que a própria lógica do novo instituto, explicada, primordialmente, a partir das suas finalidades (como antes referido: conferir racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e unidade na interpretação do direito), impõe que os precedentes judiciais dele resultantes se revistam de uma força persuasiva realmente diferenciada, superável apenas excepcionalmente.
  11. De fato, a lógica subjacente à nova sistemática de julgamento certamente restaria desvirtuada caso o precedente judicial formado sob as suas vestes pudesse ser, simplesmente, e sem qualquer distinção, ignorado quando do julgamento das demandas futuras que tratem da mesma questão jurídica nele tratada, como se fosse um precedente judicial “normal” (ou seja, que não se sujeitou a tal sistemática especial), prestando-se a definir o destino, apenas, do conjunto restrito de recursos repetitivos que estavam sobrestados na origem aguardando o julgamento do recurso paradigma. Assim, quando determinada tese jurídica é apreciada, debatida e, enfim, decidida mediante o diferenciado e especial procedimento previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, o precedente daí decorrente, conforme visto acima, ostenta tamanho grau de certeza e definitividade que o seu descumprimento indiscriminado, pelos demais órgãos jurisdicionais e pelos próprios Tribunais Superiores, nos casos futuros e idênticos que lhes sejam submetidos, seria ir “na contramão” das próprias finalidades que alimentam e movem o novo sistema, e que lhe justificam a razão-de-ser.

  1. E esse descumprimento indiscriminado retiraria, do novo instituto, muito da sua utilidade, eis que demandas idênticas e múltiplas, que tratassem de controvérsia jurídica já detidamente analisada e definitivamente resolvida pelo STF/STJ, em julgamento realizado sob a sistemática prevista no art. 543-B e 543-C do CPC, continuariam recebendo tratamentos divergentes e, nessa linha, anti-isonômicos, pelos órgãos jurisdicionais inferiores. E mais: os recursos interpostos nos autos dessas demandas repetitivas e múltiplas continuariam aportando ao STJ/STF, contribuindo, dessa forma, para o abarrotamento desses Tribunais e, conseqüentemente, para a – tão indesejada – elevação dos índices de morosidade e de ineficiência na entrega da prestação jurisdicional.
  2. Assim, dos dois fatores acima referidos decorre a constatação de que o precedente judicial formado sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, a despeito de não possuir caráter vinculante, apresenta um “plus” em sua força persuasiva, sendo esta mais elevada do que a dos precedentes judiciais, ainda que oriundos do STF/STJ, não resultantes de julgamentos sujeitos à nova sistemática.

III Destino dos recursos interpostos contra decisões judiciais que aplicarem precedentes oriundos do STF/STJ.

  1. Diante do panorama acima delineado, parece correto se afirmar que, sob o critério da qualidade da força de que se revestem, existem, na ordem jurídica brasileira, três “espécies” de precedentes judiciais oriundos do STF/STJ: (i) precedentes do STF que ensejaram a edição de Súmula Vinculante ou que foram proferidos em sede de controle concentrado de constitucionalidade – possuidores de força vinculante; (ii) precedentes oriundos de julgamentos realizados nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC – possuidores de uma força persuasiva “qualificada”, explicada a partir dos dois fatores acima referidos; (iii) precedentes oriundos de julgamentos não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC – possuidores de uma força persuasiva “ordinária”, ou seja, comum.
  2. Os primeiros – que ensejaram Súmula Vinculante ou que tenham sido proferidos em sede de controle concentrado – possuem, como se sabe, o condão de vincular os demais órgãos do Poder Judiciário na resolução de demandas pendentes e futuras que versem sobre a mesma controvérsia jurídica nela tratada, de modo que os recursos eventualmente interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem serão, necessariamente e por força de lei, rejeitados.
  3. Os segundos, por sua vez, – formados nos moldes dos art. 543- B e 543-C do CPC -, ostentam força persuasiva bastante elevada, de modo que os recursos eventualmente interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem possuem chances remotas, bastante reduzidas, de êxito; e essa reduzida viabilidade de êxito se faz presente não apenas em relação aos recursos extremos (recursos extraordinário e especial) contrários ao precedente judicial formado sob a nova sistemática, verificando-se, também, em relação aos recursos ordinários (p. ex. apelação e agravo de instrumento) que ostentarem tal condição. É que, atualmente, o CPC alberga mecanismos processuais capazes de obstar, desde o início, o processamento dessas duas espécies de recursos (extremos e ordinários), sempre que os mesmos afrontarem a jurisprudência dos Tribunais Superiores. É o caso, por exemplo, do art. 557 do CPC, que estabelece que o Relator, no Tribunal a quo ou mesmo no Tribunal Superior, negará seguimento a recurso (apelação, agravo de instrumento, recurso extraordinário e recurso especial) contrário a “jurisprudência dominante” do STF/STJ.
  4. Por fim, quanto aos terceiros – não submetidos aos arts. 543- B e 543-C do CPC – , a realidade tem demonstrado que os mesmos ostentam uma força persuasiva inferior, evidenciada pelo inegável histórico de desrespeito indiscriminado a esses precedentes pelos órgãos jurisdicionais inferiores; trata-se do já antes referido fenômeno do “déficit de autoridade das decisões oriundas do STF/STJ”. Embora não se pretenda, neste Parecer, perquirir as – complexas e multifacetadas- causas desse fenômeno, não se pode deixar de referir que uma delas parece estar relacionada à própria instabilidade da jurisprudência do STF/STJ, ou seja, ao baixo grau de definitividade e certeza de que se revestem os seus precedentes, o que, certamente, estimula ou encoraja, ainda que de forma indireta, os órgãos jurisdicionais inferiores a julgarem em sentido diverso do encampado por esses Tribunais Superiores, sempre que assim determinar o seu entendimento pessoal sobre a questão levada a juízo.
  5. Assim, diante da força persuasiva inferior que marca os precedentes judiciais, oriundos do STF/STJ, não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, não há parâmetros minimamente seguros e estáveis para se afirmar se os recursos eventualmente interpostos contra as decisões que os aplicarem (se os aplicarem) tendem, ou não, a obter êxito12; aqui, fatores das mais diversas ordens poderão influenciar/determinar o resultado do julgamento do recurso, como, por exemplo, a jurisprudência firmada, no âmbito do próprio órgão julgador do recurso, a respeito da questão jurídica definida no precedente, o grau de estabilidade do entendimento firmado nesse precedente (o que, por sua vez, depende do fato de tal entendimento ser pacífico e reiterado ou isolado, ser recente ou antigo, ter sido proferido por Turma ou pelo órgão plenário do Tribunal), dentre vários outros.
  6. Entretanto, como verdadeira exceção ao afirmado no parágrafo anterior, tem-se verificado, na prática, de forma repetitiva, a adoção, pelos Presidentes e Vice-Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, da postura de, por ocasião do juízo de admissibilidade recursal, inadmitir recursos especial e extraordinário interpostos contra decisões proferidas em consonância com a jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ13 (formada, ou não, nos moldes da nova sistemática), invocando-se, para tanto, o disposto na Súmula 83 do STJ14. A mesma conduta tem sido assumida, pelo Presidente/Vice-Presidente do E. STJ, ao efetuar o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários interpostos contra acórdãos proferidos com respaldo em jurisprudência pacífica e reiterada daqueles dois Tribunais Superiores.
  7. Assim, nessa hipótese específica, pode-se afirmar, com um grau aceitável de segurança, – obtida mediante a análise da conduta reiteradamente assumida pelos Presidentes/Vices dos TRF´s e do STJ -, que os recursos extremos interpostos contra acórdãos fundados em jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ tendem a ser inadmitidos, independentemente do fato de tal jurisprudência derivar, ou não, do procedimento previsto no art. 543-B e 543-C do CPC.

IV Postura da PGFN diante de decisões desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com precedentes judiciais oriundos do STF/STJ

  1. Uma vez analisados, nas linhas anteriores, a força dos precedentes judiciais oriundos do STF/STJ e o destino dos recursos eventualmente interpostos contra decisões que os aplicarem, já se faz possível retomar a questão que efetivamente constitui o objeto do presente Parecer, a saber: qual deve ser a postura, adotada pela PGFN, diante de decisões judiciais, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com jurisprudência oriunda do STF/ STJ? Nessas hipóteses, a PGFN deverá continuar interpondo recursos?
  2. Preliminarmente, registre-se que a questão acima referida somente tem pertinência para aquelas hipóteses em que a decisão judicial, desfavorável à Fazenda Nacional, tenha sido proferida em consonância com precedente judicial, do STF/STJ, relativo à questão jurídica que ainda não foi objeto de Ato Declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, de Súmula ou Parecer do Advogado-Geral da União, de Parecer aprovado pelo PGFN ou por Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional, elaborados no mesmo sentido do pleito formulado pelo particular, ou, ainda, que não se enquadre em uma daquelas previstas no art. 18 da Lei n. 10522/2004. É que, em todas essas hipóteses, a postura da PGFN diante de decisões, desfavoráveis à Fazenda Nacional, que apliquem o precedente judicial – relativo à questão jurídica objeto de: Ato Declaratório do PGFN ou elencada no art. 18 da Lei 10522/2004; de Súmula ou Parecer do AGU; ou de Parecer aprovado pelo PGFN ou por Procurador-Geral Adjunto da PGFN – não poderá ser outra senão a de deixar de interpor recursos contra as mesmas, por força do que diretamente preconizam, respectivamente, o art. 19, incisos I e II, da Lei n. 10.522/2004, os arts. 43 e 40 da LC n. 73/03, e os arts. 72 e 73 do Regimento Interno da Fazenda Nacional (aprovado pela Portaria 257/2009).
  3. Feito esse registro inicial, impende esclarecer que a resposta ao questionamento acima lançado (recorrer ou não) irá variar, sensivelmente, conforme se esteja diante de decisão respaldada em precedente judicial (i) do qual resultou Súmula Vinculante ou que seja decorrente de julgamento proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade, (ii) oriundo de julgamento realizado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ou (iii) oriundo de julgamento, proferido pelo STF/STJ, mas não realizado nos moldes daquela nova sistemática.

  1. Caso se esteja diante de decisão judicial, desfavorável à Fazenda Nacional, proferida em consonância com o precedente judicial de que trata a alínea “i” acima referida, a resposta à questão objeto do presente parecer não apresenta qualquer dificuldade: é que, justamente como decorrência da qualidade da força que emana dos precedentes formados em sede de controle concentrado de constitucionalidade e das Súmulas Vinculantes, que a torna apta, segundo preconizam os arts. 102, §2º e 103-A da CF/88, a vincular a atuação de todos os órgãos da Administração Pública, a PGFN já se abstém de apresentar recursos contra decisões judiciais respaldadas nesses dois tipos de precedentes do STF. E mais: pela mesma razão, além de não interpor recursos, a PGFN também não apresenta contestação/impugnação contra pedidos respaldados em Súmula Vinculante ou em precedente formado em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
  2. Diversamente, maiores dificuldades exsurgem ao se buscar definir a postura a ser adotada pela PGFN caso a mesma esteja diante de decisão judicial, desfavorável à Fazenda Nacional, proferida em consonância com os precedentes judiciais de que tratam as alíneas “ii” e “iii” acima referidas, eis que os mesmos, como antes visto, ostentam força apenas persuasiva, e não vinculante. É precisamente dessas duas hipóteses que tratarão, de forma sucessiva, os dois próximos itens do presente Parecer (itens “a” e “b”).
  1. Apresentação, ou não, de recursos contra decisões proferidas em consonância com precedente judicial formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC.
  1. Nos tópicos anteriores, foi visto, em síntese, que o precedente judicial formado sob a sistemática de julgamento prevista nos arts. 543- B e 543-C do CPC possui uma força persuasiva especial, que o diferencia daqueles não submetidos a tal sistemática; daí que os recursos eventualmente interpostos contra futuras decisões judiciais proferidas em consonância com esse precedente possuem chances reduzidas de êxito. Foi visto, também, que tanto os recursos ordinários, quanto os recursos extremos (RE e RESP), se contrários a precedente judicial formado sob a nova sistemática de julgamento, estarão, em regra, fadados ao insucesso, tendo em conta a existência de mecanismos processuais aptos a encerrar o processamento de ambos.
  2. Assim, as cores de que se reveste o sistema processual civil vigente conduzem à constatação de que o recurso eventualmente interposto contra decisão proferida com respaldo em precedente judicial formado sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostenta pouca ou nenhuma utilidade prática. E é justamente diante dessa constatação que se mostra pertinente questionar se a PGFN deverá continuar interpondo recursos em tais hipóteses.
  3. Nesse ponto, vale esclarecer que se, até o presente momento, todos os temas lançados ao longo deste Parecer foram analisados sob um prisma estritamente técnico, sempre à luz das regras e princípios postos no ordenamento jurídico vigente, a questão de que ora se cuida, por outro lado, será examinada e resolvida a partir de considerações mais afetas à política institucional e à estratégia de defesa; com isso, afastase, de certo modo, e, é claro, na medida do possível, da Dogmática Jurídica estrita, em que o direito posto confere uma só solução válida às questões que lhe são apresentadas, para, então, adentrar no campo da Política, em que se faz escolhas racionais dentre opções legítimas e possíveis.
  4. E deste modo será feito, em primeiro lugar, por se entender que a própria natureza e conteúdo da questão objeto da presente análise assim exigem: de fato, a interposição, ou não, de recursos, pela PGFN, em que a viabilidade de êxito, embora existente, seja remota, é questão cuja resolução não se encontra previamente definida em regras existentes no Direito posto, devendo ser resolvida, assim, à luz de critérios de conveniência e oportunidade, aferíveis pela própria instituição; e, em segundo lugar, por se adotar aqui, como verdadeira premissa, o entendimento de que o conjunto de normas que conferem, à PGFN, a atribuição privativa para defender, judicialmente, os interesses da Fazenda Nacional, da qual decorre o dever de fazê-lo de forma correta e plena, não conduz – ao contrário do que sustentado ou imaginado por alguns – à obrigatoriedade de interposição de recursos em todo e qualquer caso, permitindo, antes, que a interposição, ou não, de recursos, mormente em situações, como a ora analisada, em que os mesmos possuem remota viabilidade de êxito, advenha de uma opção de política institucional, pautada em critérios racionais.
  5. Assim, admitindo-se, como aqui se admite, que a resolução da questão ora sob análise deva advir de uma opção de política institucional, a ser tomada pela PGFN, propõe-se, desde logo, que essa opção caminhe no sentido de não mais se apresentar recurso, quer ordinários (p.ex. apelação e agravo de instrumento), quer extraordinários (RE e RESP), contra as decisões judiciais, desfavoráveis à Fazenda Nacional, que se mostrarem consentâneas com precedente judicial formado sob a nova sistemática de julgamento prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC.
  6. E a racionalidade dessa opção se sustenta, primordialmente, na ausência de interesse, por parte da instituição, em continuar apresentando recursos contra decisões proferidas com respaldo em precedente formado sob a nova sistemática. Entretanto, cabe, aqui, fazer um breve parênteses para esclarecer que o interesse de que ora se cuida não diz respeito, propriamente, ao “interesse recursal”, ou seja, não se encaixa, a rigor e tecnicamente, na categoria processual de pressuposto recursal, cuja inexistência conduz à inadmissão do recurso interposto.
  7. De fato, tecnicamente, afirma-se que inexiste interesse recursal, sob o aspecto da utilidade (que, ao lado da necessidade, constitui uma das modalidades de interesse recursal), quando o provimento, ainda que em tese, do recurso interposto não é capaz de trazer ao recorrente situação mais vantajosa, do ponto de vista prático. Nas palavras de FREDIE DIDIER JR. e de LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, respaldadas em lição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “para que o recurso seja admissível, é preciso que haja utilidade – o recorrente deve esperar, em tese, do julgamento do recurso, situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que aquela em que o haja posto a decisão impugnada”15.
  8. Ora, na hipótese aqui analisada, pode-se afirmar que existe interesse, sob o ponto de vista técnico/jurídico, – aqui entendido, pois, como um dos pressupostos de admissibilidade recursal -, por parte da PGFN, em interpor recurso contra decisão proferida em desfavor da Fazenda Nacional e em consonância com entendimento plasmado pelo STF/STJ sob a sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C, eis que, a rigor, o julgamento desse recurso poderá lhe ensejar, na prática, uma situação mais favorável do que aquela trazida pela decisão recorrida. O que ocorre, aqui, é que, provavelmente (mas não necessariamente; lembre-se: os precedentes judiciais formados sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC não possuem força vinculante) esse recurso será improvido, ou seja, terá seu mérito julgado improcedente, mas essa expectativa de improvimento do recurso não leva à conclusão de que falta interesse em interpô-lo, sob o ponto de vista jurídico. Noutras palavras: não se pode dizer, ao menos não tecnicamente, que a parte não possui interesse recursal por que antevê que, provavelmente, seu recurso será improvido.
  9. Feita essa observação, breve e simples, mas necessária, passase a esclarecer em que sentido se pode afirmar, tal qual se fez em linhas anteriores, que a PGFN não possui interesse em continuar recorrendo contra decisões judiciais proferidas em consonância com precedente oriundo da nova sistemática.
  10. Na verdade, na situação aventada, o que a PGFN não possui é interesse prático em continuar interpondo recursos; é uma ausência de interesse que resulta da ponderação, feita à luz de critérios de política institucional, ligados a razões de conveniência e oportunidade da própria Administração, entre as vantagens práticas possivelmente decorrentes da adoção da postura de continuar interpondo recursos na situação acima referida (em que há remota ou quase nula viabilidade de êxito do recurso eventualmente manejado) e as vantagens práticas possivelmente decorrentes da adoção da postura de não mais recorrer na referida situação. É dessa ponderação, ou desse juízo político, que desponta a constatação de que não interessa à instituição continuar interpondo recursos, ordinários ou extraordinários, contra decisões proferidas em consonância com orientação firmada, pelo STF/STJ, em julgamento realizado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, eis que as vantagens decorrentes da adoção dessa postura superam, em muito, as vantagens que poderiam advir da adoção da postura contrária.

  1. De fato, a adoção da postura ora sugerida se encontra pautada em uma série de vantagens ou benefícios práticos, que podem ser examinados a partir de duas perspectivas primordiais: uma primeira, de feição mais restrita, em que analisados os benefícios que tal opção pode trazer à PGFN e à Fazenda Nacional; uma segunda, bem mais ampla, em que analisados os benefícios possivelmente gerados por essa opção em relação à efetividade do novo instituto previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC e, também, em relação à própria sociedade, ainda que, nesse último caso, de forma reflexa.
  2. Assim, sob a primeira perspectiva acima referida, mais restrita, voltada para a própria instituição, os benefícios decorrentes da adoção, pela PGFN, da postura de não mais recorrer contra decisões, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com precedente judicial formado sob a nova sistemática prevista, são, basicamente, os seguintes:
    (i) otimização na utilização dos recursos da instituição – trata-se, possivelmente, do benefício mais evidente. Ao deixar de insistir na defesa de teses jurídicas já definitivamente resolvidas pelo STF/STJ, em sentido desfavorável à Fazenda Nacional, a PGFN evita o desperdício dos seus recursos, sobretudo os humanos (p. ex. o tempo de trabalho de Procuradores e servidores) e os materiais (p. ex. estrutura das unidades da PGFN e sistemas de informação utilizados na elaboração de peças processuais), em demandas que possuem pouca, ou nenhuma, potencialidade de lhe trazer resultados positivos, “liberando” esses recursos para que os mesmos possam ser utilizados em demandas que possuam real viabilidade de êxito. Noutras palavras: os esforços (recursos humanos/intelectuais e materiais) da PGFN serão inteiramente concentrados naquelas teses jurídicas, de interesse da Fazenda Nacional, cuja definição ainda se encontra pendente no Judiciário, bem como nas teses jurídicas nascentes.
    (ii) aumento da credibilidade da instituição junto ao Poder Judiciário, imediatamente, e junto à sociedade, mediatamente – ao deixar de apresentar recursos sobre teses já resolvidas pelo STF/STJ, em sentido desfavorável à Fazenda Nacional, a PGFN passará a concentrar sua defesa em torno de teses mais críveis, o que, certamente, terá reflexos positivos em relação ao conceito, ou à imagem, que o Poder Judiciário, imediatamente, e a própria sociedade (no caso, os contribuintes), mediatamente, possuem em relação à instituição. O Poder Judiciário, num primeiro momento, e os próprios contribuintes, num segundo momento, saberão que as teses jurídicas que ainda estiverem sendo defendidas judicialmente pela PGFN são viáveis e críveis, e que essa defesa se dá de forma estratégica, consciente e direcionada, o que, certamente, elevará o “respeito” de ambos em relação à atuação da instituição.
    (iii) estímulo ao pensamento crítico dos Procuradores que integram os quadros da PGFN – ao deixar de apresentar recursos sobre teses já resolvidas pelo STF/STJ, passando-se a concentrar os esforços – antes esparsos, desperdiçados em processos inúteis – em demandas que tratem de teses jurídicas ainda em real disputa no Poder Judiciário, a PGFN estimulará os seus Procuradores a atuarem com ainda mais raciocínio crítico e compreensão acerca da matéria recorrida. Abandona-se, assim, a atuação mecanizada e repetitiva e passa-se para uma atuação que demandará a utilização de toda a capacidade intelectual dos Procuradores da Fazenda. Com isso, certamente, o grau de “engajamento” ou de “adesão” dos quadros da PGFN em relação às causas judiciais de interesse da Fazenda Nacional será ainda maior.
    (iv) minoração da condenação em honorários advocatícios – ao deixar de insistir na interposição de recursos sobre questões jurídicas já definidas pelo STF/ STJ, a PGFN estará dando ensejo à minoração do quantum das condenações em honorários advocatícios, sofridas pela Fazenda Nacional, nas demandas judiciais que tratem dessas questões.
  3. Note-se que os benefícios acima listados não são estanques, mas, antes, se interconectam, se retro-alimentam, enfim, se complementam. E, todos, juntos, parecem conduzir ao mesmo resultado: o aumento no grau de eficiência da instituição; atende-se, aqui, e de forma direta, ao princípio constitucional da eficiência administrativa. De fato, na medida em que se otimiza a utilização dos recursos da PGFN, em que se aumenta a sua credibilidade junto ao Poder Judiciário e aos contribuintes e em que se estimula uma atuação ainda mais crítica por partes dos Procuradores que integram seus quadros, a tendência é a obtenção de resultados mais exitosos nas demandas judiciais de interesse da Fazenda Nacional.
  4. De outra ponta, sob a segunda perspectiva acima mencionada, mais ampla e mais complexa, voltada, imediatamente, para o novo instituto do julgamento por amostragem de recursos extremos repetitivos e, mediatamente, para a sociedade como um todo, tem-se que os benefícios decorrentes da adoção, pela PGFN, da postura de não mais recorrer contra decisões que tratem de questão já definitivamente resolvida pelo STF/STJ, em sede de julgamento realizado nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC, são, basicamente, os seguintes:
    (i) maior efetividade do novo instituto – ao optar por deixar de recorrer nessas situações, a PGFN contribui para a consecução das finalidades subjacentes à nova sistemática de julgamento prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, as quais, como visto, consistem em conferir mais racionalidade e celeridade à entrega da prestação jurisdicional e promover unidade na interpretação do direito, mediante o incremento da força dos precedentes judiciais. E, na medida em que a Administração Pública (aí se incluindo, por óbvio, a PGFN) ostenta a condição de uma das maiores litigantes do país, reconhecidamente responsável por uma parcela significativa do número de demandas repetitivas que abarrotam o Poder Judiciário, percebe-se que essa atitude cooperativa, de sua parte, assume papel realmente decisivo na consecução dessas finalidades e, conseqüentemente, na obtenção da efetividade do novel instituto; sem essa atitude cooperativa, parece questionável, inclusive, se será viável, na prática, que o novo instituto realmente atinja as suas finalidades.
    (ii) alinhamento aos novos rumos tomados pela ordem jurídica brasileira – além disso, ao adotar tal postura cooperativa em relação à obtenção das finalidades do novo instituto previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, a PGFN estará se alinhando, a um só tempo, à nova feição assumida pelo processo civil brasileiro (influenciada, como visto anteriormente, por uma nítida tendência de “verticalização” das decisões do STF e do STJ ou de “commonlawlização” da ordem jurídica pátria) e aos escopos declaradamente pretendidos pelo “II Pacto Republicano”, dentre os quais se inclui “o aprimoramento da prestação jurisdicional, mormente pela efetividade do princípio constitucional da razoável duração do processo e pela prevenção de conflitos”. Na verdade, a PGFN, como órgão de Estado, integrado ao Poder Executivo, estará se juntando a outros órgãos vinculados aos demais Poderes, como, por exemplo, ao Conselho Nacional de Justiça, em prol da concretização dos ideais que marcam os novos rumos tomados pela ordem jurídica brasileira.
    (iii) desoneração da sociedade em relação aos custos envolvidos quando o Estado está em juízo – ao deixar de recorrer em matérias já definitivamente resolvidas pelo STF/STJ, a PGFN se afasta, gradualmente, da condição de uma dos maiores litigantes do país e, assim fazendo, atinge, de forma reflexa, a própria sociedade, que deixará de arcar com os altos gastos que necessariamente são despendidos quando o Estado vai a juízo.
    (iv) respeito ao cidadão brasileiro – ao adotar a postura ora sugerida, a PGFN dará ensejo a que o jurisdicionado alcance com maior celeridade a prestação jurisdicional solicitada ao Poder Judiciário, contribuindo, assim, para que seja reduzido o tempo do processo.
  5. Aduzidos os benefícios possivelmente decorrentes da opção, aqui proposta, de não mais recorrer contra decisões que tratem de questão jurídica já resolvida pelo STF/STJ, em sede de julgamento submetido à nova sistemática, impende elencar, por outro lado, e por honestidade intelectual, algumas vantagens que se pode imaginar como decorrentes da adoção da postura de insistir na interposição de recursos nas situações ora aventadas. E uma das possíveis vantagens parece se fundar no argumento de que a insistência na interposição de recursos, nessas situações, faria com que a PGFN continuasse tendo a possibilidade de reverter, a seu favor, a tese jurídica resolvida pelo STJ/STF; diversamente, adotando-se a postura de não mais recorrer, a PGFN estaria renunciando, de forma apriorística, à possibilidade de reversão da tese.

  1. Esse argumento, entretanto, não impressiona, e isso por duas razões primordiais. Em primeiro lugar, por que, uma vez analisada e definida determinada questão jurídica, pelo STF/STJ, em julgamento submetido à especial e diferenciada sistemática de julgamento prevista nos arts. 543- B e 543-C do CPC, as chances desses Tribunais Superiores alterarem seu entendimento são bastante remotas, conforme, inclusive, restou demonstrado em tópicos anteriores deste Parecer; daí que a possibilidade de reversão, pela PGFN, de entendimento firmado por esses Tribunais Superiores em sede de julgamento submetido à nova sistemática é, em igual medida, bastante remota. Note-se que, muito embora em tempos anteriores não fosse incomum a oscilação da jurisprudência dos Tribunais Superiores, a realidade atual tem demonstrado que o mecanismo previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC alterou de forma substancial esse antigo cenário, conferindo uma maior estabilidade às orientações firmadas pelo STF/STJ em julgamentos realizados sob as suas vestes. Prova disso é que, até o presente momento, passados quase três anos da entrada em vigor do art. 543-B, e um ano e quatro meses da entrada em vigor do art. 543-C, ambos do CPC, nem o STF, nem o STJ, alteraram qualquer dos entendimentos por eles firmados em julgamentos submetidos aos referidos dispositivos legais.
  2. Na verdade, na medida em que a orientação firmada pelos Tribunais Superiores em sede de precedente judicial formado sob a sistemática dos arts. 543-B e 543-C do CPC possui reduzidas chances de ser revertida, percebe-se, então, que a defesa, por parte da PGFN, daquelas teses jurídicas que ainda estiverem em disputa no Judiciário deverá ser ainda mais robusta e perfeita tecnicamente, assim como a sua participação na formação da jurisprudência dos Tribunais Superiores deverá ser cada vez mais ativa, numa linha crescente em relação ao que já ocorre atualmente. Ou seja, após a introdução, na ordem jurídica pátria, da nova sistemática de julgamentos dos recursos extremos repetitivos, o foco, por parte da PGFN, deverá recair, em regra (sendo certo que poderá haver exceções, conforme será visto no parágrafo seguinte), não nas teses jurídicas já definidas pelo STF/ STJ, – buscando-se, insistentemente, a sua reversão -, mas, sim, naquelas teses jurídicas pendentes de definição, que ainda não foram apreciadas nos termos dos arts. 543-B e 543-C do CPC, envidando-se todos os esforços, especialmente junto aos Tribunais Superiores, no intuito de que as mesmas, quando e se submetidas à nova sistemática, sejam julgadas e definitivamente resolvidas em favor da Fazenda Nacional.
  3. Em segundo lugar, por que, conforme será ainda melhor analisado posteriormente, em momento mais oportuno, nada impede que a PGFN, diante de precedentes judiciais contrários à Fazenda Nacional, formados sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, pondere a viabilidade, no caso concreto, de revertê-los e, considerando viável tal reversão, oriente as unidades descentralizadas que, sobre aquele específico tema, continuem interpondo recursos. Isso seria feito caso a caso, de modo que a regra seria a não interposição de recursos a respeito de questões jurídicas já definidas pelo STF/STJ em sede de julgamentos submetidos à nova sistemática, enquanto que a exceção à regra, por sua vez, seria a apresentação de recursos nos casos em que, apesar da definição dada pelos referidos Tribunais, a PGFN considerasse viável a sua reversão.
  4. Outra vantagem que se pode imaginar como decorrente da adoção da postura de insistir na interposição de recursos nas situações ora aventadas parece se sustentar no entendimento de que os interesses da Fazenda Nacional estariam melhor protegidos, inclusive contra possíveis falhas daqueles que a presentam em juízo, se houvesse a obrigatoriedade de recorrer em todo e em qualquer caso (ressalvadas as hipóteses em que a matéria definida pelo STF/STJ seja objeto de Ato Declaratório, de Súmula Vinculante ou tenha sido decidida em sede de controle concentrado de constitucionalidade). Rejeita-se esse argumento por várias razões, sendo que a primeira delas decorre já da premissa, assumida pelo presente Parecer logo ao início deste item, segundo a qual se considera que as regras que conferem à PGFN atribuição para – bem e corretamente – defender a Fazenda Nacional em juízo não conduzem à obrigatoriedade de apresentação de recursos em qualquer hipótese; muito pelo contrário, parece incompatível com a ideia de “defender corretamente” a obsoleta prática de “defender de forma acrítica e indiscriminada”.
  5. Assim, entende-se, aqui, que a postura que ora se propõe é capaz de tornar a atuação judicial da PGFN mais efetiva, com potencialidade de trazer resultados mais exitosos à Fazenda Nacional. A verdade é que a nova feição assumida pelo processo civil brasileiro, as mudanças que ainda estão por vir (todas voltadas para um processo mais racional e célere), bem como o grau de desenvolvimento em que se encontra a comunidade jurídica e o próprio corpo social, parecem realmente exigir uma mudança no paradigma de atuação da Administração Pública, impondo que esta atuação se modernize, tornese mais ágil e menos burocratizada, mais qualitativa e menos quantitativa, mais crítica e menos mecanizada.
  6. Além disso, o alegado risco de que falhas ocorram por parte dos Procuradores da Fazenda Nacional, caso adotada a postura ora sugerida, não parece ser suficiente, por si só, para afastar a adoção dessa postura. Primeiro, por que tais falhas, – que, certamente, poderão ocorrer-, serão a exceção, e não a regra; segundo, por que o prejuízo delas decorrentes será muito pequeno diante do imenso rol de benefícios decorrentes da adoção da postura ora sugerida; e terceiro, porque nada impede, –antes, tudo recomenda -, que sejam criados mecanismos, além dos que já existem, a fim de evitar a ocorrência dessas falhas ou de minorar os prejuízos delas decorrentes.
  7. Assim, os argumentos que, pretensamente, fundamentam a adoção da postura de continuar recorrendo contra decisões proferidas em consonância com entendimento plasmado pelo STF/STJ, em julgamento realizado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, sustentam-se em bases pouquíssimo sólidas. Por outro lado, há vários benefícios efetivos que demonstram ser mais vantajosa, não apenas para a própria instituição e para a Fazenda Nacional, mas, também, ainda que reflexamente, para a sociedade como um todo, a adoção da postura ora sugerida, de não mais recorrer nas hipóteses acima aventadas. Daí por que se diz, tal qual feito anteriormente, que a PGFN não possui interesse, sob o ponto de vista prático, em continuar recorrendo em tais situações.
    a.1) Apresentação, ou não, de contestação/impugnação em face de pedidos respaldados em precedente judicial oriundo de julgamento submetido à nova sistemática, formulados nos autos de demandas judiciais ajuizadas contra a Fazenda Nacional
  8. Uma vez adotada a postura, na linha do que foi sugerido acima, de não mais apresentar recursos (apelação, agravo de instrumento, RE, RESP, etc) contra decisões judiciais proferidas em consonância com precedente judicial formado sob as vestes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, desponta, naturalmente, a questão de saber se postura semelhante cabe ser adotada, pela PGFN, em relação aos pedidos eventualmente respaldados nesses precedentes, formulados em demandas judiciais ajuizadas contra a Fazenda Nacional. Ou seja: esses pedidos continuarão sendo objeto de contestação/impugnação por parte da PGFN16?
  9. O primeiro ponto que merece ser observado a fim de que se resolva a questão aqui analisada é o de que a apresentação de contestação/ impugnação, pela PGFN, na hipótese ora aventada, teria pouca ou nenhuma utilidade, na medida em que: (i) diante da força persuasiva especial e diferençada de que se revestem os precedentes judiciais formados nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, muito provavelmente os pedidos formulados com base nesses precedentes seriam acolhidos pela sentença; (ii) essa sentença, proferida em consonância com entendimento firmado pelo STF/STJ à luz da nova sistemática, sequer seria objeto de recurso por parte da PGFN, justamente face à orientação de não mais recorrer nesses casos; (iii) por fim, ainda que o magistrado de 1º grau, ignorando ou superando o precedente judicial formado sob a nova sistemática (o que, apesar de pouco provável, é possível dada a força não vinculante desses precedentes), proferisse sentença favorável à Fazenda Nacional, o recurso interposto pela parte autora contra essa sentença seria provido num momento subseqüente, se não já pelo Tribunal de 2º grau, certamente pelo Tribunal Superior de onde emanou o precedente. A atitude do magistrado de não aplicar o precedente apenas retardaria, para o autor, o seu êxito na ação e, para a Fazenda Nacional, a sua sucumbência.

  1. Dito isso, faz-se um brevíssimo parênteses para pontuar que continuar contestando/impugnando, nessas hipóteses, além de se revestir de pouca utilidade, revelaria uma postura um tanto quanto contraditória por parte da PGFN: é que, num primeiro momento, a contestação/ impugnação seria apresentada, expondo argumentos voltados a infirmar a pretensão deduzida pela parte autora, enquanto que, num segundo momento, quando essa pretensão fosse acolhida na sentença, – o que, a toda a evidência, seria a regra -, não haveria apresentação de recurso de apelação no intuito de reverter o entendimento nela firmado. Assim, o Procurador da Fazenda Nacional apresentaria contestação/impugnação já sabendo, de antemão, que não iria interpor recurso na hipótese, praticamente certa, de a contestação/impugnação antes apresentada não ter sucesso e a pretensão deduzida pelo autor ser acolhida na sentença.
  2. O segundo ponto que merece ser levado em conta, aqui, é o de que a análise da presente questão (contestar/impugnar, ou não, pedidos fundados em precedente judicial formado sob a roupagem dos arts. 543-B e 543- C do CPC), do mesmo modo que se fez quando da análise da questão enfrentada no item anterior do presente parecer (recorrer, ou não, contra decisões judiciais proferidas em consonância com esses precedentes), há de ser realizada a partir de considerações mais afetas à política institucional, ligadas a razões de conveniência e oportunidade aferíveis pela própria instituição, e não, propriamente, a partir de considerações estritamente técnicas.
  3. E assim deve ser feito pelas mesmas razões antes expostas quando da análise da questão enfrentada no item anterior do presente Parecer (item “a”), ou seja: primeiro, por que o deslinde da presente questão também não se encontra previamente definido nas regras existentes no Direito posto; segundo, por se adotar aqui, como verdadeira premissa, o entendimento de que o conjunto de normas que conferem, à PGFN, a atribuição privativa para defender, judicialmente, os interesses da Fazenda Nacional não conduz à obrigatoriedade de apresentação de contestação/impugnação em todo e qualquer caso (assim como não conduz à obrigatoriedade de interposição de recursos em todo e qualquer caso), permitindo, antes, que a decisão entre apresentar, ou não, contestação/impugnação, mormente em hipóteses como a presente, em que a mesma possuiria pouca utilidade, advenha de uma opção de política institucional, pautada em critérios racionais.
  4. Sendo assim, dada a pouca utilidade em se apresentar contestação/ impugnação contra pedidos respaldados em precedente judicial formado nos moldes da nova sistemática (primeiro ponto), bem como diante da constatação de que o deslinde da questão ora analisada deve se pautar em critérios de política institucional (segundo ponto), sugere-se a adoção, pela PGFN, da postura de não mais impugnar/contestar esses pedidos; é que a PGFN não possui interesse (prático) em fazê-lo.
  5. Com efeito, a adoção da postura de não mais apresentar contestação/impugnação, nessas hipóteses, mostra-se como a mais vantajosa, do ponto de vista prático, não apenas para a própria instituição e para a Fazenda Nacional, mas, também, para a sociedade como um todo. E as vantagens de que ora se cuida são, basicamente, aquelas mesmas já antes expostas no tópico anterior deste Parecer, decorrentes da postura de não mais apresentar recursos contra decisões judiciais fundadas em precedentes judiciais formados nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC; a diferença, aqui, é que essas vantagens certamente serão maximizadas caso a PGFN, além de não mais recorrer, também adote a postura de não mais contestar/impugnar, sempre que estiver diante de entendimento firmado pelos Tribunais Superiores no seio da nova sistemática prevista no CPC, acerca de determinada questão jurídica.
  6. De fato, a adoção conjugada dessas duas posturas fará com que cheguem ao seu grau máximo aqueles benefícios antes expostos, a saber, (i) a otimização na utilização dos recursos da instituição, (ii) o aumento da credibilidade da instituição junto ao Poder Judiciário, imediatamente, e junto à sociedade, mediatamente, (iii) o estímulo ao pensamento crítico dos Procuradores que integram os quadros da PGF, (iv) a minoração da condenação em honorários advocatícios, (v) mais efetividade ao novo instituto previsto nos arts. 543-B e 543-C do CPC, (vi) alinhamento da PGFN aos novos rumos tomados pela ordem jurídica brasileira e, enfim, (vii) desoneração da sociedade em relação aos custos envolvidos quando o Estado está em juízo; (viii) respeito ao cidadão brasileiro.
  7. E essa maximização será ainda mais sentida em relação ao benefício referido no item “iv” acima, qual seja, a minoração da condenação em honorários advocatícios. É que a PGFN, ao deixar de apresentar contestação/ impugnação na hipótese ora aventada, estará deixando de resistir, por completo, à pretensão deduzida na demanda (o que reduz o seu grau de dificuldade a patamares mínimos), atuando, assim, de forma cooperativa em relação ao autor e ao próprio Poder Judiciário; e isso, certamente, será levado em conta pelo magistrado ao avaliar o cabimento, ou não, de condenação em honorários advocatícios17.
  8. Assim, por essas razões é que se diz que a PGFN não possui interesse, sob o ponto de vista prático, em continuar apresentando contestação/impugnação contra pedidos respaldados em precedente judicial formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC.
    b) Apresentação, ou não, de recursos contra decisões proferidas em consonância com precedente judicial, oriundo do STF/STJ, mas não formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC.
  9. Conforme visto anteriormente, diversamente do que ocorre com os precedentes, oriundos do STF/STJ, formados nos moldes dos arts. 543- B e 543-C do CPC, aqueles não submetidos à nova sistemática ostentam uma força persuasiva inferior, de modo que não se mostra possível afirmar, com um grau aceitável e suficiente de segurança, se os recursos eventualmente interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem tendem, ou não, a lograr êxito. Foi visto, ainda, que, apesar disso, em se tratando, especificamente, de recursos extremos (RE e RESP) interpostos contra decisões proferidas em consonância com jurisprudência pacífica e reiterada do STF/STJ, o seu seguimento tem sido repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ), por ocasião do juízo de admissibilidade recursal. Diante desse quadro, questiona-se: qual deve ser a postura da PGFN diante de decisões, desfavoráveis à Fazenda Nacional, proferidas em consonância com precedente judicial, oriundo do STF/STJ, mas não resultante de julgamento realizados nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC? Nessas hipóteses, deve-se continuar recorrendo?
  10. Diga-se, desde já, que as razões que embasam a adoção da postura sugerida no item “a” deste tópico (não mais apresentar qualquer espécie de recurso – ordinários e extremos – contra as decisões proferidas em consonância com precedente formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC) não parecem estar presentes na situação examinada no presente item, de forma a conduzir à adoção da postura, por parte da PGFN, de não mais recorrer, em qualquer caso, contra decisões que aplicarem precedentes, do STF/STJ, não submetidos à nova sistemática de julgamento.
  11. Com efeito, ainda que pacífica a jurisprudência, no âmbito do STF/STJ, em torno de determinada questão jurídica, não há parâmetros suficientemente seguros para se afirmar se a mesma tende, ou não, a ser alterada por esses Tribunais Superiores, ou mesmo seguida pelos órgãos jurisdicionais inferiores; relembre-se, aqui, o que se disse anteriormente acerca da instabilidade dessa jurisprudência, bem

Desconstruindo o mito da não-incidência do imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória

Autor: Augusto Cesar de Carvalho Leal, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília – UnB. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – O objetivo deste trabalho acadêmico é a desconstrução do mito da não-incidência do Imposto de Renda sobre toda e qualquer verba de natureza indenizatória, a partir da demonstração de que tais verbas sujeitam-se a dois regimes jurídicos distintos, o da indenização-reposição e o da indenização-compensação, sendo que, neste último, ocorre claro acréscimo patrimonial, condição necessária e suficiente para a realização do critério material da regra-matriz de incidência daquele tributo. Palavras-chave: Imposto de Renda. Acréscimo Patrimonial. Verbas indenizatórias. Indenização-Reposição. Indenização-Compensação.

INTRODUÇÃO

Evidenciam-se nebulosas a doutrina e a jurisprudência pátrias no que concerne à incidência de imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória.

Nesse diapasão, em geral, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial, apresentam-se pouco consistentes, sob o prisma da coerência científica, os resultados do cotejo entre o critério material da regra-matriz de incidência do imposto de renda e cada uma das infinitas possibilidades de verbas de natureza indenizatória, cada qual com peculiar matiz fático-jurídico.

O que se nota, inicialmente, é a generalizada e irrefletida resistência ao reconhecimento da incidência do imposto de renda sempre que se repute gozar uma específica verba de natureza indenizatória.

Assim, para significativa parte da doutrina e da jurisprudência, basta que uma verba ostente o status de indenizatória para que, na prática, seja, de maneira superficial, colocada sob um manto sagrado completamente intransponível aos efeitos jurídicos da regra-matriz de incidência do imposto de renda, não obstante uma análise jurídica mais profunda demonstre, cabalmente, que pode ou não incidir imposto de renda em parcelas com caráter de indenização.

Elucidando ainda mais o problema estabelecido, é extremamente comum entre os tribunais e os doutrinadores brasileiros a redução da investigação acerca da incidência ou não do imposto de renda à conclusão acerca da natureza indenizatória ou não de uma dada verba.

Ganha corpo, nessa esteira, o lugar-comum de que verbas indenizatórias não sofrem tributação pelo imposto de renda.

Com isso, o critério para a decisão hermenêutica de incidência ou não do imposto de renda passa a ser a natureza indenizatória ou remuneratória da parcela, e não a ocorrência de acréscimo patrimonial, aspecto material da regra-matriz de incidência daquele tributo.

Essa premissa encontra-se tão fortalecida na prática forense contemporânea, e mesmo em parte do meio acadêmico, que, nesses círculos, o processo interpretativo relativo à existência da obrigação tributária concernente ao imposto de renda ignora a verificação da ocorrência do fato gerador do imposto (acréscimo patrimonial) para se limitar à verificação, como condição sine qua non para a tributação, da eventual qualidade nãoindenizatória da parcela.

Eis a emergencial necessidade de sistematização que motiva o presente estudo sobre a incidência do imposto de renda sobre verbas indenizatórias, realizado com o escopo de contribuir para a diminuição da perniciosa confusão na análise da matéria, provocada pela superficialidade com que o tema é frequentemente tratado.

Consigne-se que a falta de profundidade com que, não raramente, o imposto de renda, em seus diversos aspectos, é tratado não passou despercebida pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, que afirmou:

quanto ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, talvez pela complexidade do seu regime de incidência, ou pelo número às vezes até extravagante dos enunciados prescritivos que integram sua estrutura, a verdade é que a exação tem espantado os especialistas, afastando-os de um contato mais direto e radical com tão nobre forma de imposição tributária1.

É esse mito da não-incidência do imposto de renda sobre toda e qualquer verba indenizatória que o presente estudo busca, sob uma perspectiva teórica, desconstruir.

Isso será feito a partir da demonstração de que o regime jurídicotributário das indenizações não é uno, havendo, na verdade, dois regimes legais diversos a que podem se submeter as parcelas indenizatórias conforme a natureza do ato ilícito a elas subjacente.

Mais especificamente, pretende-se esclarecer que, a depender da caracterização do ato ilícito como danos emergentes, lucros cessantes ou danos morais, a correlata parcela indenizatória enquadrar-se-á em um dos dois regimes jurídico-tributários distintos existentes, que serão apresentados ao longo deste trabalho.

Tais regimes são o da indenização-reposição e o da indenizaçãocompensação, cada um acarretando conseqüências diversas na esfera da tributação pelo imposto de renda.

Enquanto as verbas indenizatórias que se enquadram no primeiro regime não sofrem a incidência do imposto de renda, por não acarretarem acréscimo patrimonial, as abrangidas pelo segundo regime são tributadas, na medida em que aumentam o patrimônio material daquele que aufere a indenização.

Espera-se que este estudo colabore com a desmistificação do pensamento de que a caracterização de uma verba como indenizatória, por si só, afasta a incidência do imposto de renda.

Mais do que isso: deseja-se promover, no seu lugar, uma atitude hermenêutica de preocupação com a investigação da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, fato gerador do imposto de renda, como verdadeiro fator decisivo para a tributação, que, portanto, pode vir a ocorrer ainda que sobre verbas indenizatórias, desde que essas se enquadrem no conceito, neste trabalho desenvolvido, de indenização-compensação.

1 DO ACRÉSCIMO PATRIMON IAL COMO CRITÉRIO MATERIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA

É assente na doutrina que o fato jurídico tributário pode ser representado por um verbo e seu complemento, que se encontram dispostos no critério material da regra-matriz de incidência tributária. No caso do imposto de renda, pode-se afirmar que o critério material do tributo, à luz do seu arquétipo constitucional, consiste em “auferir renda”.

Para elucidar o que significa “auferir renda”, para fins da tributação em análise, no direito brasileiro, importantíssima a contribuição do Professor Paulo de Barros Carvalho, para quem:

Acerca do conceito de “renda”, três são as correntes doutrinárias predominantes:

  1. ´teoria da fonte´, para a qual ´renda´ é o produto de uma fonte estável, susceptível de preservar sua reprodução periódica, exigindo que haja riqueza nova (produto) derivada de fonte produtiva durável, devendo esta subsistir ao ato de produção;
  2. ‘teoria legalista’, que considera ‘renda’ um conceito normativo, a ser estipulado pela lei: renda é aquilo que a lei estabelecer que é; e
  3. ‘teoria do acréscimo patrimonial’, onde ‘renda’ é todo ingresso líquido, em bens materiais, imateriais ou serviços avaliáveis em dinheiro, periódico, transitório ou acidental, de caráter oneroso ou gratuito, que importe um incremento líquido do patrimônio de determinado indivíduo, em certo período de tempo. Prevalece, no direito brasileiro, a terceira das teorias referidas, segundo a qual o que interessa é o aumento do patrimônio líquido, sendo considerado como lucro tributável exatamente o acréscimo líquido verificado no patrimônio da empresa, durante período determinado, independentemente da origem das diferentes parcelas. É o que se depreende do art. 43 do Código Tributário Nacional.2

E prossegue o eminente doutrinador:

Nessa linha de raciocínio, a hipótese de incidência da norma de tributação da ‘renda’ consiste na aquisição de aumento patrimonial, verificável pela variação de entradas e saídas num determinado lapso de tempo. É imprescindível, para a verificação de incrementos patrimoniais, a fixação de intervalo temporal para a sua identificação, dado o caráter dinâmico ínsito à idéia de renda. Nesse sentido, Rubens Gomes de Sousa escreveu ser insuficiente o processo de medição de riqueza pela extensão do patrimônio, sendo necessário distinguir o capital do rendimento pela atribuição, ao primeiro, de um caráter estático, e ao segundo, de um caráter dinâmico, ligando-se à noção de renda um elemento temporal. ‘Capital seria, portanto, o montante do patrimônio encarado num momento qualquer de tempo, ao passo que renda seria o acréscimo do capital entre dois momentos determinados3.


Posiciona-se no mesmo sentido José Artur Lima Gonçalves ao sustentar que:

o conteúdo semântico do vocábulo ‘renda’, nos termos prescritos pelo Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, compreende o saldo positivo resultante do confronto entre certas entradas e certas saídas, ocorridas ao longe de um dado período. É, em outras palavras, acréscimo patrimonial4.

De fato, a regra-matriz de incidência do imposto de renda é veiculada pelo art. 43 do Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

  1. de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
  2. de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001) (grifo nosso).

Por sua vez, Mary Elbe Queiroz leciona que:

o imposto de renda incide sobre as rendas e proventos de qualquer natureza que constituam acréscimos patrimoniais, riquezas novas, para o beneficiário (os excedentes às despesas e custos necessários para auferir os rendimentos e à manutenção da fonte produtora e da sua família), sobre os quais ele haja adquirido e detenha a respectiva posse ou propriedade e estejam à sua livre disposição econômica ou juridicamente 5.

Percebe-se, portanto, que o principal traço distintivo para se identificar se há ou não a incidência do imposto sobre a renda é o acréscimo patrimonial, porquanto o Brasil adotou o conceito de renda-acréscimo6.

Assim, configura fato tributável pelo imposto de renda o acréscimo no patrimônio, a riqueza nova.

2 DO ACRÉSCIMO PATRIMONIAL COMO AUMENTO DE RIQUEZA

Claro está que a materialidade do imposto de renda encontra-se vinculada à ocorrência de um acréscimo patrimonial.

Para que se construam, desde já, alicerces firmes para a posterior conclusão no sentido de que pode haver incidência de imposto de renda sobre verbas indenizatórias, cumpre que se esclareça que o acréscimo patrimonial relevante para fins de tributação é, necessariamente, aumento de riqueza, elevação quantitativa do patrimônio estritamente econômico, material, não havendo que se falar, aqui, em expressões como “patrimônio jurídico” ou “patrimônio moral”.

Assim, antecipe-se que não se revela tecnicamente precisa, à luz da sistematização ora feita, não obstante se conheça a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, a tese da não-incidência de imposto de renda sobre a indenização por danos morais, sob o argumento de que a indenização por danos morais apenas recompõe o dano causado ao “patrimônio moral”.

Ora, para fins de tributação pelo imposto de renda, o acréscimo patrimonial relevante é aquele que ocorre no patrimônio material, o aumento de riqueza, justamente por configurar-se fato revelador de capacidade contributiva.

Sob esse prisma, anteriormente à ocorrência do dano moral, a sua vítima detinha um patrimônio X. Após a ocorrência do dano moral, desconsideradas outras atividades econômicas, continuará tendo um patrimônio X. Isto é, não houve decréscimo do patrimônio – no sentido econômico, material -, nenhuma riqueza tendo sido subtraída diretamente em virtude do dano moral.

Com a percepção de uma indenização por dano moral de valor Y, entretanto, o patrimônio, antes de valor X, passará a ser quantificado em X + Y, o que denota o acréscimo patrimonial, critério material da regramatriz de incidência do imposto de renda.

Não sem motivo Silvio Rodrigues esclarece que muito se discutiu, no âmbito do Direito Civil, se o dano puramente moral poderia ser indenizado justamente porque ele não tem repercussão de caráter patrimonial7.

Logo, devem ser repelidos argumentos no sentido de que toda indenização escaparia do campo de incidência do imposto de renda, na medida em que sempre representariam a reposição de uma subtração patrimonial, ao menos do “patrimônio jurídico”, ou do “patrimônio moral”.

É com esse intuito que se desenvolve a inequívoca perspectiva de que a análise da existência ou não de acréscimo patrimonial relevante para fins de imposto de renda sempre decorrerá da análise da comparação econômica quantitativa entre dois momentos distintos do patrimônio estritamente material do contribuinte, do cotejo da sua riqueza em duas diferentes datas.

Corroborando, nesse ponto, o que se afirma, confira-se que Leandro Paulsen conclui, após analisar argumentos de Marçal Justen Filho e de João Dácio Rolim, que “o acréscimo patrimonial significa riqueza nova, de modo que corresponde ao que sobeja de todos os investimentos e despesas efetuados para a obtenção do ingresso, o que tem repercussão na apuração da base de cálculo do imposto”8.

Nem poderia ser diferente, já que a tributação somente incide sobre fatos eminentemente econômicos, reveladores de riqueza, de capacidade contributiva, pelo que inapropriado cogitar que o acréscimo patrimonial, critério material do imposto de renda, estender-se-ia ao monitoramento do que ocorre no patrimônio meramente jurídico ou moral.

Na linha desse pensamento, preciosa a lição de Paulo de Barros Carvalho:

Ao recordar, no plano da realidade social, daqueles fatos que julga de porte adequado para fazer nascer a obrigação tributária, o político sai à procura de acontecimentos que sabe haverão de ser medidos segundo parâmetros econômicos, uma vez que o vínculo jurídico a eles atrelado deve ter como objeto uma prestação pecuniária. Há necessidade premente de ater-se o legislador à procura de fatos que demonstrem signos de riqueza, pois somente assim poderá distribuir a carga tributária de modo uniforme e com satisfatória atinência ao princípio da igualdade. Tenho presente que, de uma ocorrência insusceptível de avaliação patrimonial, jamais se conseguirá extrair cifras monetárias que traduzam, de alguma forma, valor em dinheiro. Colhe a substância apropriada para satisfazer os anseios do Estado, que consiste na captação de parcelas do patrimônio de seus súditos, sempre que estes participarem de fatos daquela natureza. Da providência contida na escolha de eventos presuntivos de fortuna econômica decorre a possibilidade de o legislador, subsequentemente, distribuir a carga tributária de maneira eqüitativa, estabelecendo, proporcionalmente às dimensões do acontecimento, o grau de contribuição do que deles participam.9

A propósito, mesmo no âmbito do Direito Civil o conceito de patrimônio é concebido à luz de uma visão estritamente econômica, material, como bem lembra o festejado civilista Francisco Amaral:

patrimônio, provavelmente de patris munium, é o complexo de relações jurídicas economicamente apreciáveis de uma pessoa. Reúne os seus direitos e obrigações, formando uma unidade jurídica, uma universalidade de direito. Apresenta três elementos característicos: a unidade do conjunto de direito e de obrigações, sua natureza e pecuniária, e sua atribuição a um titular. Compreende os créditos e os débitos de uma pessoa. No primeiro caso, temos o ativo, conjunto de direitos que formam o patrimônio (direitos reais, direitos pessoais e direitos intelectuais); no segundo, temos o passivo, o conjunto de obrigações (dívidas). Para a doutrina moderna, porém, o passivo não integra o patrimônio; é apenas uma carga, um ônus sobre ele. Dele não participam os direitos personalíssimos (vida, liberdade, honra etc.), os direitos de família puros, as ações de estado e os direitos públicos que não têm valor econômico, variando o seu valor conforme a possibilidade de realizar-se a condição10.

Segundo Orlando Gomes, “toda pessoa tem direitos e obrigações pecuniariamente apreciáveis. Ao complexo desses direitos e obrigações denomina-se patrimônio”11.

À luz desta vertente, correspondente à teoria clássica, cada pessoa titulariza apenas um patrimônio e tal instituto está adstrito aos direitos e obrigações economicamente apreciáveis.


Verifica-se, destarte, que o patrimônio, no âmbito do Direito Civil, é o conjunto de direitos e obrigações com valor econômico direto, imediato.

Está excluída, portanto, da idéia de patrimônio stricto sensu a violação a direitos que, por não terem um inerente valor econômico, não representem, por si sós, riqueza.

É por isso que não procede, à guisa de exemplo, a afirmação de que a indenização por danos morais e outras análogas recompõem o patrimônio.

Isso porque, no momento do dano moral, não há qualquer repercussão no patrimônio stricto sensu, na medida em que este é composto apenas por direitos de expressão econômica direta e imediata, dele não fazendo parte, como visto, os direitos personalíssimos, como a imagem e a honra de uma pessoa.

De fato, num segundo momento, qual seja, no momento da indenização, em que se pretende compensar, por meio de uma quantia em dinheiro, o abalo moral sofrido, há repercussão no patrimônio stricto sensu.

Presencia-se, então, o fenômeno da patrimonialidade intermédia de que trata Francisco Amaral, típica daquelas relações jurídicas que resultam da lesão de direito personalíssimo e que exprimem o direito à respectiva indenização.

De qualquer forma, isso apenas comprova o que se afirma: tal indenização representa acréscimo de riqueza, e não mera reposição, porquanto o dano moral nenhuma repercussão, muito menos subtração, causou no patrimônio stricto sensu.

3 DA INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO E DA INDENIZAÇÃO-COMPENSAÇÃO

O ponto fulcral do presente estudo encontra-se na percepção de que a natureza jurídica das indenizações não é una. A compreensão da existência de duas espécies de indenização, a indenização-reposição e a indenização-compensação, com conseqüências jurídicas diversas, é de instrumental importância para que se visualize quão equivocadamente vem sendo proclamada, na doutrina e na jurisprudência, a não-incidência de imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória.

Para tanto, faz-se necessário definir indenização e dano.

Para Silvio Rodrigues12, indenizar significa ressarcir um prejuízo, um dano experimentado pela vítima.

É essa noção de indenização enquanto ressarcimento de um dano que, analisada sem maior reflexão, leva ao equivocado entendimento de que toda indenização apenas restabelece o patrimônio, pelo que não seria tributada pelo imposto de renda.

Ocorre que não se deve perder de vista que o dano ressarcido pela indenização pode ser, efetivamente, um dano material que cause decréscimo do patrimônio (dano emergente), ou pode ser um dano material que não cause subtração patrimonial, mas, apenas, a perda da oportunidade de aumentá-lo (lucros cessantes), ou, mesmo, pode ser um dano a um direito personalíssimo, sem qualquer repercussão no patrimônio (danos morais).

Quanto aos danos morais, já se disse que Silvio Rodrigues, dentre inúmeros outros, é contundente no sentido de que “não têm repercussão de caráter patrimonial”13. Assim, como o mesmo jurista esclarece, o dinheiro que se paga à vítima, a título de danos morais, não repõe o valor subtraído do patrimônio pelo dano, pois o dano moral nenhuma repercussão patrimonial, econômica, tem.

Para o civilista Silvio Rodrigues, no sentido da doutrina de excelência, o dinheiro que se paga à vítima, a título de danos morais, “provocará na vítima uma sensação de prazer, de desafogo, que visa compensar a dor, provocada pelo ato ilícito.”14 Isso decorre da completa impossibilidade de se repor à vítima a sua perda moral. Assim, tenta-se compensar – ante a impossibilidade de se repor – o prejuízo moral sofrido, tenta-se atenuá-lo, por meio de entrega de riqueza à vítima.

No que concerne aos danos materiais, muito contribui Washington de Barros Monteiro ao esclarecer que tais danos

se enquadram em duas classes, positivos e negativos. Consistem os primeiros numa real diminuição no patrimônio do credor e os segundos, na privação de um ganho que o credor tinha o direito de esperar. Os antigos comentadores do direito romano designavam esses danos pelas conhecidas expressões damnum emergens e lucrum cessans. Dano emergente é o déficit no patrimônio do credor, a concreta redução por este sofrida em sua fortuna (quantum mihi abfuit). Lucro cessante é o que ele razoavelmente deixou de auferir, em virtude do inadimplemento do devedor (quantum lucrari potui).15

Aduz-se de forma cristalina, portanto, que, no âmbito dos danos materiais, somente os danos emergentes causam efetiva subtração do patrimônio, pelo que sua indenização, de fato, tem natureza de mero restabelecimento patrimonial, de mera reposição da riqueza retirada ilicitamente da vítima. Os lucros cessantes, de forma diametralmente oposta, não causam efetiva subtração do patrimônio, pelo que sua indenização não tem natureza de mero restabelecimento patrimonial, pois não repõe uma riqueza préexistente retirada ilicitamente da vítima.

Que fique claro: a indenização por lucros cessantes apenas compensa a perda da oportunidade de que a vítima viesse a obter novas riquezas.

É o que Sérgio Cavalieri Filho nos ensina:

[…] pode-se dizer que, se o objeto do dano é um bem ou interesse já existente, estaremos em face do dano emergente; tratando-se de bem ou interesse futuro, ainda não pertencente ao lesado, estaremos diante de lucro cessante.

Consiste, portanto, o lucro cessante na perda do ganho esperável, na frustração da expectativa de lucro, na diminuição potencial do patrimônio da vítima. Pode decorrer não só da paralisação da atividade lucrativa ou produtiva da vítima, como por exemplo, a cessação dos rendimentos que já vinha obtendo da sua profissão, como, também, da frustração daquilo que era razoavelmente esperado16 (grifo nosso).

Constata-se, sob esse enfoque, que o lucro cessante é também a diminuição potencial do patrimônio, isto é, a subtração de uma expectativa de ganho e, por isso mesmo, de algo que ainda não se incorporou ao patrimônio. Se é potencial, por óbvio, é porque de minoração do patrimônio não se trata.

Por isso, a indenização por danos morais e por lucros cessantes enquadram-se como indenização-compensação, em contraposição à indenização por danos emergentes, que se enquadram como indenizaçãoreposição.

Com efeito, a indenização-reposição representa uma entrega de riqueza à vítima de um dano quantitativamente correspondente a uma riqueza pré-existente, que tenha sido imediatamente retirada de seu patrimônio em decorrência do ato danoso.

Representa indenização-reposição, a título ilustrativo, aquele montante pago à vítima de um abalroamento exatamente correspondente à diminuição do valor do seu carro decorrente do dano. Como se faz intuitivo, os danos emergentes sempre são indenizados por meio de indenização-reposição.

Por outro lado, a indenização-compensação representa uma entrega de riqueza à vítima de um dano quantitativamente não correspondente a uma riqueza pré-existente, que tenha sido imediatamente retirada de seu patrimônio em decorrência do ato danoso.

A indenização-compensação apenas compensa um sofrimento causado por um dano moral (do qual, como minuciosamente demonstrado, não decorre nenhuma subtração de riqueza pré-existente) ou compensa os lucros cessantes, isto é, o que se perdeu a oportunidade de ganhar em razão do dano sofrido (o qual não causou qualquer subtração da riqueza préexistente, pois os lucros cessantes correspondem a uma mera expectativa de ganho, e não a valores já incorporados no patrimônio à época do ato danoso).

Como inexorável conseqüência lógica da desenvolvida distinção entre espécies de indenização, temos que a incidência do imposto de renda sobre verbas de natureza indenizatória não pode, sob pena de afronta ao arquétipo constitucional do aludido tributo, ser tratada de maneira generalizada, indiscriminada, afastando-se a tributação sempre que esteja sob os holofotes hermenêuticos uma indenização.

4 DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE A INDENIZAÇÃOCOMPENSAÇÃO E DA NÃO-INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE A INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO

Em razão das premissas até aqui solidamente construídas, não se faz necessário avançar ainda mais longe para se visualizar que somente a indenização-reposição repõe, efetivamente, uma perda patrimonial, escapando do campo de incidência do imposto de renda.


Por conseguinte, a indenização-compensação, que indeniza um dano que não ocasionou à vítima a diminuição da riqueza pré-existente, mas mero abalo moral ou perda da oportunidade de obter novos ganhos (mera expectativa, não representando valores já incorporados, à época, ao patrimônio da vítima), exsurge como indubitável acréscimo patrimonial.

Assim, a indenização-compensação (por danos morais ou por lucros cessantes), à luz da melhor técnica, realiza, sim, o critério material da regramatriz de incidência do imposto de renda.

Para fortalecer essa idéia, imagine-se, à guisa de exemplo, a situação de um trabalhador autônomo que, por conduta ilícita de outrem, fica impedido de exercer o seu ofício por alguns dias. O que ele receberia a título de remuneração, caso tivesse trabalhado normalmente, seria, naturalmente, tributado pelo imposto de renda.

Parece intuitivo, nessa ilustração, que a mera circunstância dele perceber essas quantias de forma diferida, atrasada, como lucros cessantes, não retira a sua condição de acréscimo patrimonial, e, por isso mesmo, não as transmuda em verbas não-tributadas ou isentas.

Importante advertir que poderia fomentar nefastas práticas de fraude contra a ordem tributária cultivar-se o entendimento de que o recebimento, a título de indenização por lucros cessantes, de uma verba, que, não fosse o ato ilícito, seria evidentemente remuneratória, é capaz de excluir essa mesma verba da tributação pelo imposto de renda.

Poder-se-ia vislumbrar, com grande facilidade, a proliferação de simulações de atos ilícitos e de respectivas indenizações por lucros cessantes com o escopo de evitar a tributação pelo imposto de renda de verbas originalmente remuneratórias.

Ressalte-se que, embora significativa parte da doutrina ainda careça de maior aprofundamento técnico-científico na análise do imposto de renda, como bem destacou o Professor Paulo de Barros Carvalho, a tese aqui exposta encontra eco doutrinário. Nessa esteira, Leandro Paulsen informa que:

há doutrina consistente no sentido de que não se deveria confundir o patrimônio moral – irrelevante para fins de tributação – com o patrimônio econômico – revelador de capacidade contributiva – e destacando que nem tudo o que se costuma denominar de indenização, mesmo material, efetivamente corresponde a simples recomposição de perdas.17

Já se colacionou, no presente trabalho, o art. 43 do Código Tributário Nacional, veículo formal da regra-matriz de incidência do Imposto de Renda, do qual se assimila que é tributado o acréscimo patrimonial sobre o qual se possui disponibilidade jurídica. É bom ressaltar que não existem locuções e adjacências no conceito legal: a norma não preceitua que seria tributável apenas o acréscimo patrimonial que não seja indenizatório.

Com esse enfoque, colhe-se, mais uma vez, a doutrina de Mary Elbe Queiroz:

Impende considerar que os valores que constituem mera recomposição patrimonial, como as indenizações ou os valores expressamente previstos na lei como isentos, não são computados na apuração da respectiva base de cálculo. As indenizações deverão ser consideradas quando revelarem acréscimo patrimonial e não se encontrarem expressamente abrangidas por norma isencional18(grifo nosso).

Tanto é verdade que o montante advindo de pagamento de indenização pode estar, se acarretar acréscimo patrimonial, no espectro possível de tributação pelo imposto de renda que foi necessária a edição de lei específica contemplando diversas verbas tidas como indenizatórias que se resolveu, por opção política, tornar isentas. É o que ocorreu com a Lei 7.713/88.

A não-tributação de verbas indenizatórias pelo imposto de renda depende, com isso, de que elas não representem acréscimo patrimonial (hipótese de não-incidência pura e simples) ou de que, caso gerem riqueza nova, estejam abrangidas por isenção legal.

Outrossim, apesar da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ainda estar contaminada com a visão pouco refletida e generalizante irradiada por parcela significativa da doutrina, a fértil semente dos fundamentos expostos no presente estudo já foi lançada jurisprudencialmente pelo Ministro Teori Albino Zavascki em precedente importantíssimo como divisor de águas para uma imersão daquele tribunal superior numa maior profundidade técnico-científica no trato da matéria.

Nesse sentido, alguns elucidativos acórdãos da 1ª Turma e da 1ª Seção do STJ, de sua relatoria, no sentido de que, mesmo que uma verba tenha natureza indenizatória, sofrerá a incidência do imposto de renda se resultar acréscimo patrimonial:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ROMPIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO NO PERÍODO DE ESTABILIDADE PROVISÓRIA. NATUREZA. REGIME TRIBUTÁRIO DAS INDENIZAÇÕES. PRECEDENTES.

  1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte.
  2. O pagamento de indenização pode ou não acarretar acréscimo patrimonial, dependendo da natureza do bem jurídico a que se refere.
    Quando se indeniza dano efetivamente verificado no patrimônio material (= dano emergente), o pagamento em dinheiro simplesmente reconstitui a perda patrimonial ocorrida em virtude da lesão, e, portanto, não acarreta qualquer aumento no patrimônio. Todavia, ocorre acréscimo patrimonial quando a indenização (a) ultrapassar o valor do dano material verificado (= dano emergente), ou (b) se destinar a compensar o ganho que deixou de ser auferido (= lucro cessante), ou (c) se referir a dano causado a bem do patrimônio imaterial (= dano que não importou redução do patrimônio material).
  3. O direito a estabilidade temporária no emprego é bem do patrimônio imaterial do empregado. Assim, a indenização paga em decorrência do rompimento imotivado do contrato de trabalho, em valor correspondente ao dos salários do período de estabilidade, acarreta acréscimo ao patrimônio material, constituindo, por isso mesmo, fato gerador do imposto de renda. Todavia, tal pagamento não se dá por liberalidade do empregador, mas por imposição da ordem jurídica. Trata-se, assim, de indenização abrigada pela norma de isenção do inciso XX do art. 39 do RIR/99 (Decreto 3.000, de 31.03.99), cujo valor, por isso, não está sujeito à tributação do imposto de renda. Precedente da 1ª Turma: EDcl no Ag 861.889/SP.
  4. Recurso especial a que se nega provimento.

(grifo nosso – REsp 886.563/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 02/06/2008)

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ROMPIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO. CUMPRIMENTO DE CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ISENÇÃO.

  1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte.
  2. O pagamento de indenização por rompimento de vínculo funcional ou trabalhista, embora represente acréscimo patrimonial, está contemplado pela isenção do art. 6º, V, da Lei 7.713/88 (“Ficam isentos do imposto de renda (…) a indenização e o aviso prévio pagos por despedida ou rescisão de contrato de trabalho, até o limite garantido por lei […]).
    […]
  3. O direito a estabilidade temporária no emprego é bem do patrimônio imaterial do empregado. Assim, a indenização paga em decorrência do rompimento imotivado do contrato de trabalho, em valor correspondente ao dos salários do período de estabilidade, acarreta acréscimo ao patrimônio material, constituindo, por isso mesmo, fato gerador do imposto de renda. Todavia, tal pagamento não se dá por liberalidade do empregador, mas por imposição da ordem jurídica. Trata-se, assim, de indenização prevista em lei e, como tal, abarcada pela norma de isenção do imposto de renda. Precedente: REsp 870.350/SP, 1ª Turma, DJ de 13.12.2007.
  4. O pagamento feito pelo empregador a seu empregado, a título de adicional de 1/3 sobre férias tem natureza salarial, conforme previsto nos arts. 7º, XVII, da Constituição e 148 da CLT, sujeitando-se, como tal, à incidência de imposto de renda. Todavia, o pagamento a título de férias vencidas e não gozadas, bem como de férias proporcionais, convertidas em pecúnia, inclusive os respectivos acréscimos de 1/3, quando decorrente de rescisão do contrato de trabalho, está beneficiado por isenção (art. 39, XX do RIR, aprovado pelo Decreto 3.000/99 e art. 6º, V, da Lei 7.713/88).
    Precedentes: REsp 782.646/PR, AgRg no Ag 672.779/SP e REsp 671.583/SE.

  1. Agravo regimental a que se nega provimento.

(grifos nossos – AgRg no Ag 1008794/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/06/2008, DJe 01/07/2008)

Em síntese: o imposto de renda não incide na indenização-reposição, uma vez que, nela, não há, de fato, que se falar em acréscimo patrimonial, pois apenas se recompõe a riqueza que foi subtraída do patrimônio material em razão do dano emergente.

Por outro lado, bastante claro que incide imposto de renda sobre a indenização-compensação, pois, nessa, há nítido aumento de riqueza, porquanto o patrimônio material não havia sido diminuído pelos lucros cessantes (apenas se deixou de ganhar, mas não se diminuiu a riqueza que existia) ou pelos danos morais (mero abalo moral, sem reflexo econômico-financeiro).

5 O DEBATE, NO ÂMBITO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ACERCA DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE OS JURO S DE MORA COMO EXEMPLO DA FALTA DE CLAREZA JURISPRUDENCIAL SOBRE A DISTINÇÃO DE REGIMES DA INDENIZAÇÃO-REPOSIÇÃO E DA INDENIZAÇÃO- COMPENSAÇÃO

Muito se discute, no seio do Superior Tribunal de Justiça, se incide ou não imposto de renda sobre juros de mora. Interessante destacar que, em exemplo rico da crítica que se faz acerca do freqüente afastamento, generalizado e irrefletido, das verbas indenizatórias da tributação pelo imposto de renda, o ápice da discussão travada naquele tribunal superior está na natureza indenizatória ou não dos juros de mora.

Observa-se, assim, que os precedentes que têm como premissa a natureza jurídica indenizatória dos juros de mora afastam, só por isso, a incidência do imposto de renda, sem maiores perquirições sobre a ocorrência ou não de acréscimo patrimonial.

Por outro lado, os precedentes que sustentam a incidência do imposto de renda sobre os juros de mora apresentam como razão de ser da referida decisão a ausência, no contexto dos autos, de natureza indenizatória dos juros moratórios.

Ora, o que salta aos olhos é que a discussão central para a decisão sobre a incidência ou não do imposto de renda é ser ou não indenizatória a verba em debate, como se a materialidade do tributo dissesse respeito à natureza não-indenizatória da parcela, e não à ocorrência de acréscimo patrimonial.

Relega-se a último plano, destarte, estranhamente ignorada, a investigação da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, verdadeira materialidade que se extrai do arquétipo constitucional do imposto de renda, que independe da natureza indenizatória do pagamento alcançado pelo campo de incidência do tributo.

Assim, prevalece na egrégia 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, por algum tempo, foi, nesse ponto, acompanhada pela 2ª Turma da mesma Corte Superior, o entendimento de que a natureza dos juros moratórios depende da natureza do principal: se o principal tiver natureza remuneratória, os juros de mora terão a mesma natureza e, por isso, sofrerão a incidência do imposto de renda; se, todavia, o principal tiver natureza indenizatória, igualmente indenizatória será a natureza dos juros moratórios, e, por isso, e somente por isso, não sofrerão a tributação pelo imposto de renda.

À guisa de ilustração, colaciona-se o seguinte aresto:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO DE RENDA. MAGISTRADO. AUXÍLIO-MORADIA. ART. 25 DA MP 1.858-9/1999. NATUREZA INDENIZATÓRIA. NÃO-INCIDÊNCIA. REDUTOR SALARIAL. CARÁTER REMUNERATÓRIO. INCIDÊNCIA. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. ACESSÓRIOS SEGUEM A SORTE DO PRINCIPAL.

    1. Indenização é a prestação em dinheiro, substitutiva da prestação específica, destinada a reparar ou recompensar o dano causado a um bem jurídico, quando não é possível ou não é adequada a restauração in natura do bem jurídico atingido. Não tem natureza indenizatória, portanto, o pagamento – ainda que imposto por condenação trabalhista – correspondente a uma prestação que, originalmente (= independentemente da ocorrência de lesão), era devida em dinheiro. O que há, em tal caso, é simples adimplemento, embora a destempo e por execução forçada, da própria prestação in natura (REsp 674.392/SC, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 6.6.2005).
    2. As verbas trabalhistas recebidas em cumprimento de decisão judicial, a título de redutor salarial, mantiveram sua natureza original de prestação remuneratória, razão pela qual sobre elas deve incidir o
    3. Conforme dispõe o art. 25 da Medida Provisória 1.858-9/1999, os valores pagos a funcionários públicos a título de auxílio-moradia não constituem acréscimo patrimonial, possuindo natureza indenizatória, razão pela qual não podem ser objeto de incidência do Imposto de Renda.
    4. Os juros de mora e a correção monetária são frutos acessórios da utilização da importância principal, assim, seguem a sorte desta. Se a obrigação principal for tributável, também o serão a correção monetária e os juros de mora sobre ela incidente. Do mesmo modo, caso o principal tenha natureza indenizatória, não estará sujeito ao Imposto de Renda, bem como os juros moratórios e a atualização monetária dele decorrentes também não estarão.
    5. Recurso especial parcialmente provido.
      1. Os valores recebidos pelo contribuinte a título de juros de mora, na vigência do Código Civil de 2002, têm natureza jurídica indenizatória. Nessa condição, portanto, sobre eles não incide imposto de renda, consoante a jurisprudência sedimentada no STJ. 2. Recurso especial improvido.
      1. o critério material do imposto de renda é realizado pelo acréscimo patrimonial;
      2. o conceito de acréscimo patrimonial é exclusivamente econômico, estando atrelado a um aumento real de riqueza, tendo-se em mente que a tributação sempre incide sobre fatos reveladores de capacidade contributiva;
      3. o conceito de indenização está ligado à reposição ou compensação por um dano, que pode ser de natureza material ou moral;
      4. apenas os danos materiais provocam efetiva diminuição de riqueza, uma vez que os danos morais, por si sós, representam abalo do chamado “patrimônio moral” do sujeito de direito, mas, não, de seu patrimônio material, econômico, o relevante para fins de tributação;
      5. os danos materiais assumem o caráter de danos emergentes, que consubstanciam efetivo decréscimo do patrimônio material existente anteriormente ao dano, ou o caráter de lucros cessantes, que não acarretam decréscimo do patrimônio existente no momento que precede o dano, mas a perda da oportunidade de vir a obter um aumento de riqueza;
      6. nesse contexto, as indenizações dividem-se em indenizaçãoreposição, que efetivamente restabelece o patrimônio material que havia sido diminuído por um dano emergente, e indenização-compensação, que não restabelece o patrimônio material, uma vez que o dano indenizado não ocasionou a diminuição da riqueza antes existente, tendo como finalidade, em verdade, compensar a riqueza que se deixou de ganhar em decorrência do dano (lucros cessantes) ou o abalo moral sofrido (danos morais);
      7. em razão disso, o imposto de renda apenas não incide na indenização-reposição, porquanto, nela, não há, de fato, que se falar em acréscimo patrimonial, pois apenas se recompõe a riqueza que foi subtraída do patrimônio material em razão do dano emergente;
      8. por outro lado, bastante claro que incide imposto de renda sobre a indenização-compensação, uma vez que, nela, há nítido aumento de riqueza, pois o patrimônio material não havia sido diminuído pelos lucros cessantes (apenas se deixou de ganhar, mas não se diminuiu a riqueza que existia) ou pelos danos morais (mero abalo moral, sem reflexo econômico-financeiro);
      9. os juros moratórios, se entendidos como verba indenizatória, configuram indenização-compensação, pelo que sempre incidirá o imposto de renda;

      1. o debate jurisprudencial travado no Superior Tribunal de Justiça, entretanto, elege a definição da natureza indenizatória ou remuneratória dos juros de mora como a questão decisiva para a controvérsia, sem sequer levar em consideração a possibilidade de ocorrência de acréscimo patrimonial ainda que tal verba seja tida como indenizatória;
      2. por esse motivo, o estudo-de-caso da jurisprudência daquele tribunal superior concernente ao imposto de renda sobre juros de mora serve como emblemático exemplo do mito da não-incidência desse imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória, o que reforça a fragilidade científica dos julgamentos predominantes no Poder Judiciário brasileiro acerca da tributação ou não de verbas que, a despeito de serem qualificadas como indenizatórias, podem acarretar obtenção de riqueza nova;
      3. destarte, com o escopo de promover maior consistência científica – e conseqüente respeito ao ordenamento jurídico tributário – na doutrina e na jurisprudência brasileira sobre o tema, fazse necessária a desconstrução do mito da não-incidência do imposto de renda sobre toda e qualquer verba indenizatória, substituindo-o pela preocupação com a qualificação da verba como indenização-reposição ou indenização-compensação, admitindo-se, no último caso, ao contrário do primeiro, a plena validade da tributação pelo imposto de renda.

(grifo nosso – REsp 615.625/MT, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 07/11/2006 p. 234)

A 2ª Turma, embora já tenha, como dito, seguido tal entendimento, vem adotando tese ainda mais radical, no sentido de que os juros de mora, após o Código Civil de 2002, sempre têm natureza indenizatória, o que, por si só, independentemente da análise concreta acerca da ocorrência ou não de acréscimo patrimonial, justificaria a não-incidência do imposto de renda.

Esclareça-se a tese em comento com a verificação do seguinte precedente:

TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – ART. 43 DO CTN – IMPOSTO DE RENDA – JUROS MORATÓRIOS – CC, ART. 404: NATUREZA JURÍDICA INDENIZATÓRIA – NÃOINCIDÊNCIA.

(grifos nossos – REsp 1037452/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 10/06/2008)

Após o conhecimento dos ilustrativos precedentes, reitere-se: o Superior Tribunal de Justiça, em inúmeras situações, dentre as quais a da incidência de imposto de renda sobre juros moratórios, vem negando a ocorrência da materialidade do tributo em questão a partir da exclusiva premissa de que a verba tem natureza indenizatória. Vem aplicando, portanto, o, com a devida vênia, inadequado entendimento de que toda indenização apenas recompõe o patrimônio.

Como se demonstrou ao longo do presente estudo, tal premissa não é verdadeira, sob o prisma técnico-científico.

Cabe ir além da genérica assertiva de que uma dada verba possui natureza indenizatória para se indagar sobre de que espécie de indenização estamos diante.

Isto é, não basta, para se decidir sobre a incidência ou não de imposto de renda sobre uma verba, concluir sobre o seu status de indenização, devese concluir se a verba em questão representa indenização-reposição ou indenização-compensação. Isso porque, como proclamado à exaustão, somente a indenização-reposição não acarreta acréscimo patrimonial, e, portanto, escapa do âmbito de incidência do imposto de renda.

Assim, ainda que o Superior Tribunal de Justiça, de fato, se pacificasse sobre a natureza indenizatória dos juros de mora, deveria, com o escopo de consolidar uma jurisprudência tecnicamente coerente, enquadrá-los como indenização-reposição ou indenização-compensação. Somente reputandoos indenização-reposição é que se mostra apropriado seja rechaçada a cobrança do imposto de renda sobre os juros de mora.

Ocorre que a indenização-reposição é aquela própria dos danos emergentes, que causam a subtração de riqueza pré-existente, e, por isso, apenas recompõem a riqueza que foi retirada, restabelecendo o patrimônio. Todavia, esse não é o caso dos juros moratórios.

Explica-se: para os autores civilistas que reconhecem a natureza indenizatória dos juros de mora, esse teria, no que tange à obrigação de pagar, a função de indenizar o tempo que o credor passa, em razão do atraso do devedor, sem poder usufruir da quantia devida como principal.

Nessa direção, como consigna o Professor Washington de Barros Monteiro, “dividem-se os juros em compensatórios e moratórios. Correspondem os primeiros aos frutos do capital mutuado ou empregado. Os segundos representam indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação”19. (grifos nossos)

Assim, se imaginarmos os juros moratórios como indenização, devese compreender que apenas o seu principal, se indenizatório for, é que poderá representar reposição patrimonial, repondo uma riqueza subtraída, pelo dano, do patrimônio do agora credor.

Deve-se perceber que os juros moratórios apenas surgem a partir da mora do devedor no pagamento do principal. Ora, os juros de mora consistem em riqueza que nunca antes fez parte do patrimônio do credor.

Importante que se repita: caso o principal seja uma indenizaçãoreposição, este, sim, irá devolver ao patrimônio do credor uma riqueza que lhe foi subtraída pelo dano causado pelo devedor.

Os juros de mora não: seja o seu principal verba de natureza remuneratória ou indenizatória, o fato é que os juros de mora acarretam entrega de riqueza nova ao credor, riqueza que não corresponde a qualquer valor pré-existente do seu patrimônio.

É por isso que, na hipótese dos juros de mora serem compreendidos como indenização, independentemente da natureza do seu principal, não cabe, por uma questão de coerência técnico-científica, enquadrá-los como indenização-reposição, pois não apresentam as características próprias dos danos emergentes.

Para que não restem dúvidas, propõe-se um questionamento retórico: os juros de mora corresponderiam, quantitativamente, a que riqueza pré-existente do patrimônio do credor? Responde-se: a nenhuma.

Assim, uma eventual natureza indenizatória dos juros de mora somente seria plausível concebendo-os como uma indenização-compensação, dada a sua proximidade conceitual com os lucros cessantes, já que os juros de mora teriam por desiderato compensar o credor pelo decurso do tempo em que não pôde usufruir do valor principal, investindo-o, por exemplo, e obtendo renda nova.

Sob essa ótica, em razão da frustração da expectativa do credor de utilizar, num dado período, o dinheiro a ele devido (valor principal) como melhor lhe aprouvesse, e até obter novas riquezas, por meio do seu investimento, é que se vislumbra a natureza indenizatória dos juros de mora.

Portanto, os juros de mora, concebidos como indenização, guardam estrita similitude com a indenização por lucros cessantes, já que aqueles não recompõem uma riqueza pré-existente subtraída em razão da mora, mas, sim, como os últimos, compensam a perda da oportunidade do credor de usar o dinheiro, naquele período, como bem entendesse, investindo-o e, até, vindo a obter novas riquezas.

O magistério de Orlando Gomes consiste em importante contribuição para esse entendimento, porquanto qualifica os juros de mora como uma presunção de indenização mínima, baseada em uma estimativa daquilo que o capital renderia caso estivesse em poder do credor:

Nas dívidas pecuniárias, as perdas e danos abrangem os juros moratórios, custas honorários de advogado, pena convencional e atualização monetária. É intuitiva a razão dessa especificidade. A privação do capital em conseqüência do retardamento na sua entrega ocasiona prejuízo que se apura facilmente pela estimativa de quando renderia, em média, se já estivesse em poder do credor” 20 (grifo nosso).

Com esteio nesse pensamento, infere-se que os juros moratórios têm o caráter de lucros cessantes, representando algo que o credor deixou de ganhar. É o que se presume que seria o rendimento mínimo do credor se dispusesse do capital.


O pensamento de Sérgio Cavalieri Filho robustece ainda mais a conexão entre os juros de mora e a definição de lucro cessante. Lembremos, conforme já tratado neste estudo, que, para ele, o lucro cessante é a perda do ganho esperável, o que corresponde, na exata medida, ao que Orlando Gomes vislumbrou nos juros de mora: a privação de um ganho esperável.

Por todo o exposto é que se conclui, de forma contundente, que se os juros moratórios indenização forem, independentemente da natureza do seu principal, sempre se enquadrarão como indenização-compensação, tais quais os lucros cessantes, pelo que, também sempre, incidirá imposto de renda sobre eles.

Logo, os juros moratórios vistos como indenização, independentemente do principal, somente corroboram a ocorrência de acréscimo patrimonial, materialidade constitucional do imposto de renda, não havendo que se falar em afastamento da tributação de tal imposto em razão de um genérico status de indenização.

Nesse diapasão, o estudo-de-caso da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça concernente ao imposto de renda sobre juros de mora serve como emblemático exemplo do mito da não-incidência desse imposto sobre toda e qualquer verba indenizatória, o que reforça a fragilidade científica dos julgamentos predominantes no Poder Judiciário brasileiro acerca da tributação ou não de verbas que, a despeito de serem qualificadas como indenizatórias, podem acarretar obtenção de riqueza nova.

6 CONCLUSÃO

Em busca de clareza e objetividade, consigna-se, de maneira sucinta, que as conclusões que se extraem do presente trabalho acadêmico são as de que:

Notas

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 593. 2 CARVALHO, op. cit., p. 599.
3 CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit., p. 600.
4 GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 179.
5 QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. São Paulo: Manole, 2004. p. 89.
6 Entre as teorias que visam a explicar o conceito de renda, pode-se destacar a “[…] teoria da rendaacréscimo patrimonial, que vê a renda como todo ingresso, desde que passível de avaliação em moeda, independentemente de o ingresso ter sido consumido ou reinvestido, considerando na apuração da renda líquida a dedução dos gastos para obtenção dos ingressos e para manutenção da fonte. […] Segundo Hugo de Brito Machado, o CTN adotou o conceito de renda-acréscimo, pois, segundo esse professor, sem acréscimo não há renda nem proventos. Cf. QUEIROZ, Mary Elbe. Op. Cit., p. 69-70.
7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1998. p.189.
8 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 56.
9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva. p. 181-182.
10 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 337.
11 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 184.
12 RODRIGUES, Silvio. op. cit., p.185.
13 RODRIGUES, op. cit., p.189.
14 RODRIGUES. op. cit., p.191.
15 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 341-342.
16 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 72.
17 PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 51.
18 QUEIROZ, Mary Elbe. Op. cit., p. 122.
19 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 345.
20 GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 188.

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Proteção do contribuinte e fazenda contra atos contraditórios e modificação de jurisprudência em direito tributário

Autor: Tiago da Silva Fonseca, Procurador da Fazenda Nacional. Mestrando em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da UFMG.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

Resumo – Para garantir a segurança jurídica do contribuinte, a instituição ou majoração das obrigações tributárias dependem de lei expressa, as leis tributárias que agravam a sua situação não retroagem e têm a eficácia diferida para pelo menos noventa dias da publicação da norma. A efetivação da segurança jurídica vai além das limitações constitucionais expressas ao poder de tributar. A doutrina e a jurisprudência passam a desenvolver teses a partir de princípios implícitos que também são necessários para afirmar a segurança jurídica, como a confiança legítima e a boa-fé objetiva. A necessidade de previsibilidade e de estabilidade, bem como a garantia de expectativas, devem ser estendidas à Administração Tributária. Como a doutrina majoritária afasta a aplicação da confiança das pretensões fazendárias, é mister que se recorra a fontes alternativas de proteção do Fisco.

1 Introdução

O Estado de Direito está fundado em três valores estruturantes: a liberdade, a igualdade e a segurança jurídica. A Constituição, como dimensão básica que subordina o Estado de Direito, vai, de forma imediata ou mediata, buscar a concretização e efetivação desses valores estruturantes em todas as suas normas.

A segurança jurídica requer a previsibilidade, a estabilidade, a fiablidade, a clareza, a racionalidade, a transparência dos atos dos Poderes constituídos do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), de modo que o cidadão tenha um mínimo de precisão e determinabilidade da ordem jurídica a que está submetido.

A expectativa de durabilidade e permanência da ordem jurídica e dos atos estatais, com a devida proteção do cidadão para os casos de mudanças normativas necessárias para o desenvolvimento das atividades dos poderes públicos, garante não só as situações jurídicas assentadas, mas também permite a paz social. Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida1.

No Direito Tributário, a segurança jurídica do contribuinte é garantida precipuamente pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, submetidas sobretudo através da legalidade, irretroatividade das leis que instituam ou agravem obrigações tributárias e não-surpresa. Quando os princípios constitucionais tributários expressos são insuficientes para concretizar a segurança jurídica do contribuinte, torna-se necessário proteger expectativas legitimamente criadas, através dos princípios da confiança e boa-fé subjetiva.

As idéias de previsibilidade, estabilidade, clareza, transparência, fiabilidade e racionalidade, todavia, transbordam os contornos da segurança jurídica, que é garantia do cidadão e contribuinte, para orientar a atuação e para também atender às expectativas da Administração Tributária. Se o contribuinte é resguardado contra atos contraditórios pelas limitações constitucionais ao poder de tributar, pela confiança legítima e boa-fé objetiva, a Fazenda deve exigir que as declarações e comportamentos dos particulares não configurem abuso de direito ou violação ao dever de lealdade.

Outrossim, as modificações de jurisprudência que impliquem em impactantes perdas fiscais devem constatar se a Fazenda atuava nos limites de entendimento pacificado anterior, sendo surpreendido por reviravolta de jurisprudência consolidada. Nesse caso, os efeitos da nova norma judicial devem ser modulados, em observância a princípios como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal e o planejamento estatal.

2 A previsibilidade e esta bilidade da relação tributária: a confiança legítima dos contribuintes e a garantia da Fazenda contra o abuso de direito

A previsibilidade necessária à segurança jurídica em matéria tributária é garantida, sobretudo, pela legalidade. De acordo com a definição legal expressa no art. 3º do Código Tributário Nacional, tributo é a prestação pecuniária compulsória, que não constitua sanção de ato ilícito, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Entretanto, ainda que a atividade seja plenamente vinculada, a aplicação da lei não consiste na mera subsunção da norma ao fato. A complexidade social faz com que mesmo a lei tributária, que conta com a predominância de conceitos determinados e não de tipos fluidos, seja insuficiente para regular corretamente casos situados numa “zona cinzenta” e não numa “zona de certeza”.

No conceito de discricionariedade proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, a lei consigna um limite de aplicação, dentro do qual pode existir um conjunto de interpretações legítimas, consistindo a aplicação da lei ao caso concreto na escolha de uma única alternativa pelo aplicador (seja o Poder Executivo ou Judiciário):

Discricionariedade é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente2.

Logo, é possível que o aplicador escolha uma alternativa que, não obstante esteja inserida no limite estabelecido pela lei, crie norma formalmente legítima, mas que materialmente vá de encontro ao Direito, considerando que a legitimidade jurídica não se restringe à legalidade.

Nessa perspectiva, a aplicação legítima da lei tributária depende de outros princípios que garantem a previsibilidade para o contribuinte, como a proteção da confiança legítima e da boa-fé objetiva.

O princípio da confiança legítima é criação do Direito Europeu, como instrumento de manutenção e atendimento das expectativas criadas no passado frente às alterações normativas do futuro. Preservar o passado, pela confiança legítima, faz todo o sentido em países como Alemanha, Portugal, Espanha e França, que só consagraram constitucionalmente o princípio da irretroatividade para leis penais e sancionadoras e não para as leis em geral, como no Brasil.

Na Europa, especialmente na Alemanha, o princípio da confiança legítima surge como justificação de vinculação de declarações, acordos, contratos e expectativas contra modificações futuras, nas relações de Direito Civil, para as quais não havia nenhuma previsão contra a irretroatividade.

O princípio certamente ganhou maior repercussão a partir do modelo de Claus-Wilheim Canaris, que associou a necessidade de preservação da confiança à teoria da aparência e à proibição do venire contra factum proprium. Como substrato ético-jurídico, a confiança legítima garantiria as situações aparentes, contra mudanças contraditórias, constituídas mediante declarações, documentos idôneos ou comportamentos concludentes. A estabilização das situações por meio da confiança se daria de forma positiva, mantendo-as conforme as expectativas criadas, ou de forma negativa, modificando-as com a contraprestação de indenização por danos.

A confiança legítima a ser protegida depende de três requisitos:

  1. ação ou omissão de uma parte, apta a gerar expectativas em outra, que representa uma situação de acordo com uma declaração, documento ou comportamento;
  2. boa-fé daquele que confiou;
  3. mudança contraditória da situação representada, gerando a imputação da responsabilidade pela confiança para aquele que agiu de forma contrária às expectativas que induziu.

Incorporando as teorias alemãs, a doutrina civilista portuguesa também é rica de estudos acerca da confiança nas relações entre particulares. Carneiro da Frada3 dá à confiança papel de destaque na estrutura normativa, situando-a em patamar posterior ao dos princípios e valores, como instrumento de justiça corretiva. Os atos contraditórios em prejuízo à confiança alheia seriam causa para a responsabilidade civil, devendo o defraudador restaurar a situação representada ou indenizar aquele que confiou, como forma de restauração do equilíbrio da relação. Menezes Cordeiro, diferentemente de Carneiro da Frada, que situa a confiança num campo axiológico, defende a sua força regulativa, como ponte entre a boafé subjetiva e objetiva, ao mesmo tempo em que está assentada em ambas.

No sentido proposto por Niklas Luhmann, a confiança é meio para redução da complexidade social, uma vez que antecipa o futuro, que determina as ações do presente como se o futuro fosse certo. Assim, a confiança torna-se instrumento para garantir a coerência e previsibilidade do presente, ante os antecedentes alternativos do passado e das diversas possibilidades do futuro. A confiança fundamenta as ações de uma parte tomando por base as ações que espera de outra, que toma decisões acreditando que as suas expectativas darão origem às conseqüências esperadas. É uma forma importante para organizar as relações, para não tornar caótico os sistemas em que é garantida a liberdade e a autonomia particular de todos os indivíduos.


A sua generalidade fez com que a confiança, portanto, deixasse de ser uma garantia das relações civis, para alcançar relações onde o Estado seria uma das partes. O princípio da proteção da confiança no Direito Público passou a garantir os cidadãos em face de declarações e comportamentos contraditórios ou expectativas criadas pelo Estado. Sobretudo, quando o Estado age de forma discricionária, em que há várias alternativas legítimas e possíveis, dentro dos limites fixados pela lei. Mas mesmo quando o Estado age de forma vinculada, em que sobressai a atuação de acordo com a estrita legalidade, podem ocorrer situações que escapam ao princípio, já que a criação da norma concreta não se limita à mera subsunção da norma ao fato, de modo a surgir a necessidade de se recorrer ao princípio da confiança, como forma de se fazer ou de se preservar a justiça.

No Direito Administrativo, Hartmut Maurer noticia leading case do Tribunal Administrativo Superior de Berlim, vinculando a declaração e comportamento do Estado em favor da confiança legítima do administrado:

A primeira invasão nessa concepção jurídica firme resultou por meio de uma decisão do Tribunal Administrativo Superior de Berlim de 14.11.1956 (DVBL. 1957, 503). Tratava-se do seguinte caso: a demandante, uma viúva de um funcionário, transladou da República Democrática Alemã de então para Berlim-Leste depois de lhe haver sido prometido, por ato administrativo, a concessão de rendimentos de pensão. Um ano depois a autoridade competente comprovou que os pressupostos jurídicos para a concessão, porém, não existiam, os rendimentos de pensão, portanto, haviam sido concedidos falsamente. Em consequência, ela retratou o ato administrativo, suspendeu os pagamentos e exigiu da demandante a restituição dos rendimentos pagos a mais. Isso correspondia, sem mais, à jurisprudência de então. O Tribunal Administrativo Superior de Berlim decidiu, todavia, a favor da demandante. Ele comprovou que, no caso concreto, deveria ser observado não só o princípio da legalidade, mas também o princípio da proteção à confiança. A demandante confiou na existência do ato administrativo e, em conformidade com isso, alterou decisivamente suas condições de vida. Como, no caso concreto, seu interesse da confiança preponderava, o ato administrativo não deveria ser retratado. O Tribunal Administrativo Federal confirmou a sentença do Tribunal Administrativo Superior de Berlim (BVerwGE 9, 251) e, na época posterior, desenvolveu, em numerosas decisões, uma doutrina de retratação ampla e diferenciada4.

A confiança legítima no Direito Administrativo funciona como garantia do administrado, que planeja a sua atuação conforme declarações e comportamentos do Estado, diante do poder da Administração Pública em criar normas ou em anular atos inválidos e revogar atos que se tornam incovenientes ou inoportunos.

Entre nós, Almiro Couto e Silva5 cuidou do tema da confiança do administrado diante de atos contraditórios da Administração com grande entusiasmo. Destaca o autor que as expectativas dos administrados devem ser preservadas contra modificações prejudiciais do direito positivo ou contra anulação de atos pelo Estado, ainda que ilegais, como os praticados pelos chamados “funcionários de fato”. Logo, a confiança do particular deve funcionar como limite de revisão de atos administrativos, ainda que eivados de ilegalidade.

No Direito Tributário, a proteção da confiança legítima é, para Misabel Derzi, princípio autônomo e não desdobramento de outros princípios, como legalidade, irretroatividade, propriedade, direito de personalidade, dignidade da pessoa humana ou igualdade. A confiança seria uma implícita limitação constitucional ao poder de tributar. A Administração Tributária é parte diferenciada da relação obrigacional, tendo em vista que tem a prerrogativa de constituir o crédito que vai exigir, administrativa ou judicialmente. Tal prerrogativa deixa a parte credora numa posição de vantagem em relação à devedora. Para equilibrar a relação que, apesar de ser uma relação obrigacional ex lege, não deixa de ser um vínculo obrigacional, a Constituição já delimita e direciona a atuação da Administração Tributária, através dos princípios expressos como limitações constitucionais ao poder de tributar.

A confiança seria mais uma dessas limitações constitucionais, cuja proteção se torna imperiosa quando a legalidade, a irretroatividade e a anterioridade não são suficientes para garantir a previsibilidade para o contribuinte. Partindo da premissa pela qual onde há domínio de informações não há confiança, portanto, o princípio seria meio de defesa atribuído somente ao contribuinte e nunca à Fazenda Pública.

Para Niklas Luhmann, “a confiança se apóia na ilusão6. Se existe certeza não há necessidade de confiança. A confiança deve servir como garantia para aquele que não tem a totalidade ou, pelo menos, a maior quantidade de informações, que representa uma situação, que age de acordo com a escolha de uma das probabilidades futuras, que acredita na expectativa que foi gerada ou fomentada.

Ainda na doutrina de Misabel Derzi, a confiança tem três características elementares: a permanência dos estados, a antecipação do futuro e a simplificação. Mas a autora não reconhece a confiança, onde existe supremacia sobre os eventos:

Onde há supremacia sobre os eventos/acontecimentos, a confiança não é necessária. Essa constatação é importante nesta tese: a confiança e proteção da confiança não se colocam do ponto de vista do Estado, como ente soberano. Isso porque, nas obrigações ex lege, o Estado tem supremacia sobre os eventos/acontecimentos que ele mesmo provoca, ou seja: as leis, as decisões administrativas e as decisões judiciais na modelação e cobrança dos tributos7

Como lado mais fraco do vínculo obrigacional tributário, o contribuinte que realiza um planejamento fiscal fundado não só nas leis e normas vigentes, mas também nas declarações e comportamentos da Administração Tributária, deve ser reparado se houver uma mudança repentina ou ato contraditório por parte do Fisco, em respeito à sua confiança.

Assim, a confiança do contribuinte deveria ser protegida, como acoplador estruturante e estabilizador do sistema jurídico e da relação tributária, especialmente nos casos de termos fixados com prazos legais (ex: isenções), mudanças de normas agravadoras dos deveres dos contribuintes, mudanças de atos administrativos (lançamentos) que onerem de forma mais intensa os contribuintes, declarações e respostas da Administração Tributária.

É evidente que qualquer reparação do contribuinte por ato contraditório da Administração Tributária depende da comprovação dos requisitos da responsabilidade pela confiança, isto é, depende da demonstração de um ato capaz de gerar expectativas legítimas, de boa-fé do particular e de investimentos decorrentes da declaração ou comportamento anterior.

Pela teoria da confiança, as declarações, documentos, normas e comportamento do Fisco o vincula perante o contribuinte, criando deveres que, se violados, geram a pretensão de reparação, seja através da manutenção da situação de acordo com as expectativas representadas, seja através de criação de regimes de transição conforme o grau de confiança gerada e de investimentos dispendidos, seja através de indenização por perdas e danos. Se adotarmos como modelos de reparação as teorias de responsabilidade civil, a indenização deve corresponder às perdas conseqüentes da quebra de confiança.

Existe considerável resistência da doutrina majoritária em admitir a confiança da Fazenda Pública em relação ao contribuinte, ainda que o particular aja de modo contraditório ou viole expectativas geradas no Fisco, em processos administrativos ou judiciais. Isso porque as declarações, documentos e comportamentos do contribuinte não lhes criam deveres perante a Fazenda Pública, porquanto os deveres na relação jurídica obrigacional tributária devem estar necessariamente previstos pela lei.

Ainda que reconheçamos a inaplicação do princípio da proteção da confiança em favor da Fazenda Pública, por estar a Administração Tributária em posição de vantagem na relação jurídica ou por considerar que as declarações e comportamentos dos contribuintes não criam deveres que sempre decorrem de lei, é mister que se reconheça a necessidade de garantia de estabilidade e previsibilidade tanto para o credor como para o devedor tributário.

Reprimir o abuso de direito e garantir expectativas de uma parte contra mudanças contraditórias de outra são preocupações do Direito em geral e não são máximas a serem aplicadas em casos isolados ou em relações jurídicas específicas.

A teoria do abuso de direito está fundada na evolução do conceito de direito subjetivo, que deixou de ser o poder irrestrito dado ao titular, isentando-o de quaisquer responsabilidades por danos decorrentes do exercício. O direito subjetivo passou a incorporar elementos como a liberdade, a consideração social, a cooperação, a função social, dentre outros.

Em estudo sobre a boa-fé, Menezes Cordeiro dá notícia dos primeiros julgados reconhecendo o exercício abusivo de direito, nos tribunais da França:

As primeiras decisões judiciais do que, mais tarde, na doutrina e na jurisprudência, viria a ser conhecido por abuso de direito, datam da fase inicial da vigência do Código de Napoleão. Assim, em 1808, condenouse o proprietário duma oficina que, no fabrico de chapéus, provocava evaporações desagradáveis para a vizinhança. Doze anos volvidos, era condenado o construtor de um forno que, por carência de precauções, prejudicava um vizinho. Em 1853, numa decisão universalmente conhecida, condenou-se o proprietário que construira uma falsa chaminé, para vedar o dia a uma janela do vizinho, com quem andava desavindo. Um ano depois, era a vez do proprietário que bombeava, para um rio, a água do próprio poço, com o fito de fazer baixar o nível do vizinho. Seguir-se-iam, ainda, numerosas decisões similares, com relevo para a condenação, em 1913, confirmada pela Cassação, em 1915, por abuso do direito, do proprietário que erguera, no seu terreno, um dispositivo de espigões de ferro, destinado a danificar os dirigíveis construídos pelo vizinho8.


Assim, ocorre o abuso de direito quando o titular exerce o seu poder seja sem utilidade própria, ou com a intenção de prejudicar alguém, ou de maneira injusta, ou com fins diversos daqueles atribuídos pela lei. O abuso de direito viola normas, éticas ou jurídicas, e acaba neutralizando e aniquilando o direito ilegitimamente exercido, transformando o ato abusivo em ilícito. Nas palavras de Menezes Cordeiro:

A admissão do abuso de direito tem sido fundada na necessidade de respeitar os direitos alheios, na violação, pelo titular-exercente, de normas éticas, na ocorrência por parte do mesmo titular, de falta e não consideração do fim preconizado pela lei, aquando da concessão do direito9.

Assim, ainda que não haja confiança legítima do Fisco a ser protegida na relação tributária, não é dado ao contribuinte agir de modo contraditório, violando expectativas criadas ou atuando em contrariedade aos fins dos direitos subjetivos que lhes são garantidos.

Os Tribunais pátrios já vêm admitindo casos de abuso de direito de contribuintes em face do Fisco, especialmente tipificados no postulado do venire contra factum proprium. As linhas de proibição do venire contra factum proprium, normalmente, têm o propósito de concretizar a doutrina da confiança. Todavia, podem ser abrangidos na figura da proibição do venire contra factum proprium comportamentos contraditórios originadores ou independentes da confiança, especialmente nos casos de relações jurídicas que se projetam no tempo e que requerem estabilidade e previsibidade.

Estão abrangidas no tipo venire contra factum proprium as situações em que o titular manifesta a intenção de não exercer um direito e depois exerce ou indica não tomar determinada atitude, mas acaba por assumíla. As declarações e comportamentos contraditórios podem impedir a constituição ou modificar direitos subjetivos, retirando do titular o poder potestativo de exercício.

Ainda que as construções acerca do abuso de direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium, tenham se dado no âmbito das relações privadas, proibir e coibir declarações e comportamentos contraditórios é função do Direito, que deve manter a estabilidade e previsibilidade dos vínculos entre os particulares, bem como entre as pessoas e o Estado.

Nesse contexto, Menezes Cordeiro dá conta daquela que foi considerada a primeira aplicação da proibição do venire contra factum proprium em situações de Direito Penal:

Ponto de partida foi a decisão do LG Kaiserlautern 14-Jul.-1995, JZ 1956, 182-183: o R. cometera o crime de estupro – § 182 StGB, na versão em vigor na altura – tendo posteriormente renovado várias vezes as relações com a ofendida, de catorze anos; em defesa, vem dizer que, na primeira vez, desconhecia a idade da ofendida e, que, nas vezes subseqüentes, embora tivesse obtido esse conhecimento, faltava já o requisito da virgindade, por parte da mesma ofendida. O LG Kaiserlaustern não aceitou este argumento, decidindo que o R. não podia recorrer à falta de um requisito que ele próprio suprimira10.

No Direito Tributário, a aplicação do instituto jurídico é até menos controversa, já que não é difícil vislumbrar condutas contraditórias, por parte dos contribuintes, capazes de imputar severos prejuízos à Fazenda Pública.

Utilizamos o parcelamento previsto na Lei 11.941/2009 como exemplo. A Lei 11.941/2009, de dificílima implementação por parte da Administração Tributária, previa nove modalidades de parcelamento. Não obstante, estabelecia iniciativas que em muito dificultavam a consolidação dos parcelamentos, tais como a inclusão no benefício de saldos remanescentes de débitos em outros Programas (REFIS, PAES, PAEX, etc), a inclusão de débitos decorrentes de aproveitamento indevido de créditos de IPI, a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido próprios.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) constataram que vários contribuintes efetuaram opções por modalidades de parcelamento em desconformidade com seus débitos. Diante disso, decidiram que, no momento da consolidação final do parcelamento, em que seria apurado o valor total da dívida a partir de todos os abatimentos, bem como o valor específico de cada parcela, seria dada a opção aos contribuintes para retificar as declarações feitas no momento da adesão.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 03, de 29 de abril de 2010, determinou que os contribuintes que possuíssem pedido de parcelamento validado nos termos da Lei 11.941/2009, deveriam se manifestar sobre a inclusão ou não da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento para as quais havia feito a adesão. A manifestação dos contribuintes consistia em etapa preliminar para a consolidação do parcelamento e servia como fundamento para justificar a suspensão de exigibilidade dos débitos abrangidos pelo benefício.

A Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 11, de 24 de junho de 2010, por seu turno, determinou que os contribuintes que antes haviam se manifestado pela não inclusão da totalidade de seus débitos nas modalidades de parcelamento previstas pela Lei 11.941/2009 deveriam indicar, de modo pormenorizado, quais os débitos seriam efetivamente incluídos no programa de regularização fiscal.

Como efeito imediato das Portarias, seja para os contribuintes que fizeram a opção por incluir todos os débitos no parcelamento, seja para aqueles que fizeram a opção por não incluir todos os débitos, mas que indicaram os que deveriam ser parcelados, todos os débitos inscritos no parcelamento ficaram com a exigibilidade suspensa. Ou seja, para os débitos incluídos no parcelamento, passaram a ser expedidas as certidões de regularidade fiscal, a ser obstados os ajuizamentos de créditos inscritos em dívida ativa, a ser suspensos os atos de cobrança administrativa, a ser interrompidos os procedimentos de execução judicial, inclusive com a liberação de penhoras realizadas em momento posterior ao da adesão.

Diante desse breve histórico das etapas de consolidação do parcelamento previsto na Lei 11.941, suponhamos que um contribuinte tenha feito a opção por não incluir a totalidade de seus débitos no benefício e tenha indicado aqueles que efetivamente pretendia parcelar. Para os débitos incluídos no parcelamento, o contribuinte obteve certidões positivas com efeitos de negativas e teve bens anteriormente penhorados (dinheiro, imóveis, veículos, etc) liberados nas execuções fiscais nas quais era executado. Suponhamos que na oportunidade de retificação das opções, na etapa final de consolidação do parcelamento, o contribuinte desista de parcelar tais débitos, requerendo o aproveitamento dos pagamentos efetuados para outras dívidas.

Ora a suposição é um típico exemplo de venire contra factum proprium. É perfeitamente possível destacar uma conduta original do contribuinte (a declaração de inclusão de débitos no parcelamento), uma conduta posterior contraditória (a retificação da declaração, incluindo outros débitos) e os prejuízos decorrentes da mudança de comportamento (expedição de certidões, suspensão das execuções fiscais, liberação de bens penhorados).

A declaração e o comportamento contraditório do contribuinte cria para a Fazenda Nacional a pretensão de reparação dos danos provocados pela quebra das expectativas, incluindo a extinção do seu direito subjetivo de proceder à retificação abstratamente permitida.

Portanto, ainda que não haja confiança da Administração Tributária, pois não há criação de obrigações tributárias sem lei anterior que as institua, a previsibilidade e estabilidade da relação jurídica obrigacional e a coerência dos atos e declarações dos contribuintes perante o Fisco devem ser preservados. E um importante meio de garantia consiste na proibição do abuso do direito e de seus tipos objetivos, como o venire contra factum proprium.

3 As modificações de jurisprudência em Direito Tributário

Em tese onde expõe com precisão os possíveis efeitos de modificações de jurisprudência em Direito Tributário contra a segurança jurídica, a previsibilidade e a estabilidade das relações entre Fisco e contribuintes, Misabel Derzi alerta que, frente aos atos do Poder Judiciário, os princípios consagrados expressamente nas limitações constitucionais ao poder de tributar são escassos para proteger as expectativas legitimamente geradas nos contribuintes.

A tese da necessidade de proteção da confiança contra modificações de jurisprudência em Direito Tributário que agravem a situação dos contribuintes parte da conclusão de Carnelutti de que toda a decisão judicial veicula uma resposta particular e uma resposta geral. A resposta particular pode declarar a existência ou não de uma relação jurídica, pode constituir ou modificar direitos, pode condenar nos mais diversos tipos de obrigações. Já a resposta geral é dada a partir da análise da pretensão e da fundamentação de sua procedência ou improcedência.

Assim, a resposta particular, ou seja, o dispositivo da decisão, visa a pacificar e compor os conflitos de interesses do caso concreto e está voltada para situações que ficaram no passado. O mesmo não acontece com a resposta geral, que cria a expectativa de que aquele órgão julgador vai fundamentar o mesmo grupo de casos com as mesmas razões. Logo, a resposta geral, ou seja, a fundamentação da decisão, cria uma expectativa normativa voltada para o futuro e não para o passado.


A sentença seria, portanto, ato pluridimensional, já que é prolatada no presente, que julga conflitos de interesses ocorridos no passado, mas que cria expectativas para o futuro, de que casos semelhantes deverão ter a mesma solução, isto é, deverão ter idêntica resposta judicial.

Nessa perspectiva, se é dada uma resposta geral a uma pergunta geral, está criada uma jurisprudência. Posteriormente, se for dada uma resposta geral diferente para aquela mesma pergunta geral, está modificada a jurisprudência original. É para essa mudança repentina de entendimento, própria dos Tribunais Superiores, que modifica norma judicial anterior que gerou expectativas nos jurisdicionados, que deve estar assegurada o princípio da proteção da confiança.

A modificação de atos e normas, seja do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário, é imanente à rotina e ao exercício das prerrogativas do Estado. Normalmente, as mudanças de atos e normas acompanham e se adaptam às mudanças do mundo dos fatos. A tese de Misabel Derzi não questiona a possibilidade de mudanças de jurisprudência, tampouco defende uma higidez permanente ou imutabilidade dos julgados. Apenas busca conciliar as mudanças com as expectativas criadas nos contribuintes que pautaram as suas condutas e empreenderam os seus planejamentos nas declarações e comportamentos anteriores do Poder Judiciário.

Os princípios constitucionais da irretroatividade e não-surpresa se referem às leis e não aos atos do Poder Judiciário. Fragilizadas as limitações constitucionais ao poder de tributar para preservar a justiça no caso concreto, caberia ao princípio da confiança legítima proteger as expectativas normativas criadas pelo Poder Judiciário. Pelo princípio da irretroatividade, regra geral, as leis novas regulam situações futuras e não alcançam situações estabilizadas no passado. Para a jurisprudência, como não vale a irretroatividade, através da confiança legítima as modificações teriam efeito parecido. Assim se expressou a professora mineira:

Dois fatos foram muito importantes, como vimos, para a aplicação análoga do princípio da irretroatividade das leis às mutações jurisprudenciais: a aceitação de que o juiz não apenas aplica mas também cria Direito; e a constatação de que a jurisprudência consolidada é uma norma vinculativa, abstrata, genérica, similar às normas legais. Sem se confundir com as leis, a modificação de jurisprudência consolidada, que se impunha como norma observada por todos, é novo encontro do Direito, parecido com o advento de uma nova lei11.

Vale ressaltar, todavia, que a tese de proteção pela confiança contra modificações de jurisprudência somente garante expectativas dos contribuintes, já que a autora rechaça o alcance do princípio para a defesa de pretensões fazendárias.

Mas o Fisco também está exposto aos mesmos efeitos gravosos, decorrentes da modificação drástica de jurisprudência tributária em seu desfavor. A Administração Tributária também cria expectativas a partir de um entendimento consolidado dos Tribunais e, a partir disso, orienta toda a sua atividade de administração, fiscalização e cobrança de créditos tributários.

Ademais, na relação triangular processual, o Fisco e o contribuinte ocupam vértices opostos mas eqüidistantes do juiz, sendo que as suas decisões vinculam de modo idêntico ambas as partes. Na relação processual, não há privilégios da Administração, nem supremacia dos acontecimentos ou domínio de informações. Na relação processual, vigoram os princípios da imparcialidade do juiz, da igualdade, do contraditório, da liberdade das partes. Para as situações excepcionais em que a Fazenda Pública detém de prerrogativas processuais (como os prazos privilegiados e a ciência dos atos judiciais mediante vista dos autos), todas as ressalvas já estão determinadas pela lei, que é interpretada restritivamente. Portanto, na defesa do mérito das pretensões, vige a isonomia processual entre Fazenda e contribuintes.

Na prática, o que se vê é que essa diferença de forças, entre a Fazenda e contribuinte, geralmente é compensada ou ao menos minimizada pela observância dos princípios formadores do processo. O Poder Judiciário, para cumprir o seu encargo de efetivar a igualdade entre as partes, assume a responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar aquelas que existem entre Fazenda e contribuinte, no sentido empregado por Cândido Rangel Dinamarco:

A leitura adequada do art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, mostra que ele inclui entre os deveres primários do juiz a prática e preservação da igualdade entre as partes, ou seja: não basta agir com igualdade em relação a todas as partes, é também indispensável neutralizar desigualdades. Essas desigualdades que o juiz e o legislador devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo – fraquezas de toda ordem, como pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas fraquezas, fontes terríveis de desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala12 (grifos do autor).

Então, as expectativas da Fazenda perante entendimentos pacificados nos Tribunais não devem ser preteridas ou jogadas à própria sorte ou ao total desamparo. Se a confiança não serve para acolher pretensões fazendárias, é necessário recorrer a outros princípios, tais como a boa-fé, o equilíbrio financeiro e orçamentário, a proporcionalidade, a razoabilidade, a solidariedade fiscal, o planejamento estatal.

Utilizamos o RE 240.785/MG, ainda em tramitação no Supremo Tribunal Federal, como exemplo. O ICMS, que faz parte do preço das mercadorias e serviços sobre os quais recai o imposto estadual, sempre foi glosado como elemento da base de cálculo do PIS e COFINS, que incidem sobre o faturamento e receita bruta das sociedades devedoras.

A inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS é balizada inclusive por jurisprudência pacificada13 e sumulada14 no Superior Tribunal de Justiça, a quem compete decidir conflitos de interesses fundados em normas infraconstitucionais.

Os diversos precedentes em seu favor criam para a Fazenda Nacional a expectativa normativa de que os Tribunais Superiores dêem para a mesma pergunta geral (o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS?) a mesma resposta geral (por ser parte integrante do preço e por incidir o PIS e COFINS sobre faturamento e receita bruta da empresa, o ICMS faz parte da base de cálculo do PIS e COFINS).

Se vencida no STF a tese contrária e modificada a jurisprudência, é imperioso que a Corte proponha a modulação de efeitos da decisão. Se não em razão da confiança nos atos do Poder Judiciário, a modulação pode ter por base, além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99: a boa-fé do Fisco, ao agir em conformidade com a lei e com precedentes judiciais em seu favor; a perda de parte significativa de arrecadação, atentando contra o planejamento, a adequação e equilíbrio das despesas e receitas públicas; a socialização dos deveres e prejuízos decorrentes da solidariedade fiscal.

Contudo, reconhecendo a força vinculante ou persuasiva da jurisprudência dos Tribunais Superiores, admitimos que a quebra de expectativas a partir de modificação de jurisprudência, criando ou majorando obrigações para os contribuintes, ou causando graves prejuízos à atuação da Administração Tributária e aos cofres públicos, deve ser compensada pela modulação de efeitos da nova norma judicial criada.

4 Conclusão

A relação jurídica obrigacional tributária não prescinde da previsibilidade e estabilidade necessárias para a vida em sociedade e perseguidas como um dos fins mais relevantes para o Direito. Não obstante a Constituição brasileira ser uma das mais meticulosas na discriminação dos princípios tributários, há situações concretas em que a justiça fiscal pode escapar às normas constitucionais expressas.

Um cenário de justiça fiscal pressupõe uma correta divisão de bens, deveres e direitos, um dever genérico de não prejudicar, uma relação de lealdade e não de desconfiança entre Fisco e contribuintes. Como já advertiu Niklas Luhmann, a desconfiança tem um potencial imensamente destrutivo, para qualquer sistema. No Tributário, a desconfiança exige que a Administração Tributária aumente progressivamente a exigência e controle de informações dos contribuintes, criando uma infinidade de obrigações acessórias que acabam por aumentar a resistência ao tributo e por incentivar práticas evasivas e sonegatórias.

Nesse sentido, se por um lado a segurança jurídica do contribuinte deve ser otimizada pelos princípios da legalidade, irretroatividade, não surpresa e confiança legítima, a previsibilidade e estabilidade para a Administração Tributária devem ser aperfeiçoadas através da coibição do abuso de direito, especialmente no que tange às declarações e comportamentos contraditórios ou ao venire contra factum proprium.

Do mesmo modo que a atuação contraditória do contribuinte, a modificação de jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, sem alteração relevante das leis, pode causar graves prejuízos à Administração Tributária, requerendo a devida modulação de efeitos da decisão.


Além das razões de interesse público e excepcional interesse social, já previstas pela Lei 9.868/99 como causas de restrição de efeitos ou de definição temporal da eficácia da decisão em sede de controle de constitucionalidade pelo STF, outros princípios podem ser invocados para justificar a modulação de efeitos, de modo a favorecer às legítimas expectativas do Fisco.

Notas

1 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 256.
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 936
3 FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
4 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. p. 70.
5 COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
6 LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996, p. 53.
7 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 328.
8 CORDEIRO, Antônio Manuel Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007. p. 671.
9 CORDEIRO, op. cit., p. 680-681.
10 CORDEIRO, op. cit., p. 753.
11 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. p. 550.
12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 208-209.
13 REsp 496.969/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 14/03/2005; REsp 668.571/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 13/12/2004;Resp 572.805/SC, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 10/05/2004; Ag 666.548/RJ, Rel. Min. Luiz Fuz, DJ de 14/12/2005.
14 Súmula 68: A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS. Súmula 94: A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do FINSOCIAL.

Referências bibliográficas

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.
FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2002.
CORDEIRO, Antônio Manuel Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007.
COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (lei n. 9.784/99), RBDP, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
LUHMANN Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996.
MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.


Uma análise crítica acerca da idéia de serviço consagrada na súmula vinculante 21 do STF

Autor: Aldemario Araujo Castro, Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela UFAL. Mestre em Direito pela UCB.

Veículo: Revista da PGFN, ano 1 número 1, jan/jun. 2011

RESUMO – A Súmula Vinculante 31 do Supremo Tribunal Federal afirma que “é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. Adotou-se uma noção historicamente superada de serviço, identificado como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”, e transportou-se para o direito tributário um dos mais restritivos sentidos da noção de serviço, considerando, de forma indevida, uma suposta obrigatoriedade da tributação acolher as construções do direito privado sem modificações. O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, com notas caracterizadoras inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, uma categoria aberta para apreender em sua descrição as transformações da realidade econômico-social. A locação de bens móveis enquadra-se no tipo demarcado pelo vocábulo serviço e pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

I INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal adotou a Súmula Vinculante n. 31 com a seguinte redação: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.

O verbete em questão consagra o entendimento inaugurado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121 e reiterado em vários outros precedentes (RE 455613 AgR; RE 553223 AgR; RE 465456; RE 450120 AgR; RE 446003 AgR; AI 543317 AgR; AI 551336 AgR e AI 546588 AgR).

Em princípio, a edição da aludida súmula seria o desdobramento normal ou natural de uma série de julgados no mesmo sentido. Ocorre que a edição de uma súmula vinculante, a mais radical manifestação do Judiciário, justamente porque obriga os demais órgãos do Poder e a Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, deve ser cercada de importantes e inafastáveis cautelas.

No caso em análise, é possível afirmar que o Supremo Tribunal Federal não atuou com a sua costumeira prudência. Com efeito, os inúmeros precedentes citados simplesmente repetem a definição adotada na decisão “original” no RE n. 116.121. Essa decisão, por sua vez: a) “inverteu” uma longa tradição jurisprudencial de mais de 30 (trinta) anos; b) transportou para o direito tributário uma noção tradicional acerca da idéia de serviço construída (ao longo do tempo) nos domínios do direito privado e c) não levou, na devida conta, toda uma aguda e estratégica reflexão acerca da evolução e da crescente importância dos serviços como atividade econômica1.

Esse escrito pretende explorar os dois últimos aspectos destacados e aparentemente desconsiderados ou subdimensionados pelo Excelso Pretório ao adotar o enunciado vinculante com o número trinta e um.

II OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA SÚMULA VINCULANTE STF N. 31

Como foi destacado, a origem da Súmula Vinculante STF n. 31 remonta ao julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.1212. Essa decisão marca uma importante mudança de rumos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, observada, quanto ao assunto, por cerca de 30 (trinta) anos.

Vingou, no julgamento do RE n. 116.121, uma espécie de interpretação “fechada” ou “estática”. Prevaleceu o argumento de observância inafastável, no direito tributário, das definições do direito civil, como pode ser observado na ementa3 e nos votos e manifestações dos Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Moreira Alves, todos invocando os termos do art. 110 do Código Tributário Nacional4. Como conseqüência, sagrou-se vitorioso o raciocínio extremamente restritivo (e equivocado) de que a prestação de serviço envolve tão-somente esforço humano (conforme o Ministro Marco Aurélio5) ou obrigações de fazer (consoante o Ministro Celso de Mello6 e o Ministro Sepúlveda Pertence7).

Dois questionamentos fundamentais emergem da leitura cuidadosa do acórdão lavrado em decorrência do ajustado pela Corte Maior no RE n. 116.121:

  1. existe uma necessária relação de dependência do direito tributário para com os domínios do direito privado (institutos, conceitos e formas)?
  2. as transformações econômicas, sociais e tecnológicas afetam (ou atualizam) as categorias8 manuseadas para delimitar a tributação? Importa destacar, e é fácil de perceber ou aquilatar, a importância dos questionamentos e de suas respostas para além da temática específica da tributação da locação de bens móveis.

III AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO TRIBUTÁRIO E OS DEMAIS RAMOS DO DIREITO

Costuma-se afirmar com freqüência e considerável aceitação que o direito tributário é um direito de sobreposição. Nesse sentido, certas categorias científicas (institutos, conceitos e formas, notadamente) presentes nos vários ramos do direito, em especial no campo do direito privado, deveriam ser respeitados e aproveitados na seara tributária tal como conformados na sua “origem”9.

Impõe-se, no entanto, afirmar e reafirmar que não se coaduna com a ordem jurídica brasileira, assim como atualmente assentada, a aludida premissa do direito de sobreposição. Nessa linha, podem ser identificados três equívocos fundamentais na formulação. São eles: a) desconsideração de importantíssimas normas jurídicas integrantes do sistema constitucionaltributário; b) interpretação incorreta de normas definidoras de diretrizes interpretativas inscritas no Código Tributário Nacional e c) desprezo pelo difícil, e ao mesmo tempo rico, processo de construção e assimilação de categorias a serem utilizados pelas diversas normas jurídicas para representar parcelas da realidade de interesse da tributação.

O primeiro equívoco destacado decorre do “esquecimento” do disposto no art. 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição10. Na norma em questão, o constituinte autorizou expressamente o legislador tributário a definir os fatos geradores e bases de cálculo dos impostos. Por conseguinte, o legislador tributário não está obrigado a buscar nos domínios do direito privado ou de qualquer outro ramo do direito os conteúdos das categorias necessárias para operacionalizar a tributação pelos impostos e, por extensão, pelos demais tributos previstos na Constituição. Um importantíssimo e emblemático exemplo do exercício dessa possibilidade pode ser observado nas definições de renda e proventos de qualquer natureza presentes no art. 43 do Código Tributário Nacional11.

O segundo equívoco envolve certas interpretações dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional. O aludido art. 10912 fixa uma diretriz hermenêutica relacionada com a pesquisa dos conteúdos dos conceitos, ou seja, com a busca da abrangência desses últimos. A norma estabelece um balizamento para o desenvolvimento, e não para a conclusão, do processo de interpretação. Assim, em função desse comando legal, o legislador tributário não se encontra impedido de construir categorias (conceitos, definições, institutos ou formas) paralelas e especiais em relação aos já existentes no seio do direito privado. Ademais, a leitura inversa do art. 110 do Código Tributário Nacional confirma essa última afirmação. Ali está dito que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados constitucionalmente para a conformação de competências impositivas. Portanto, se os institutos, conceitos e formas não são de direito privado13 ou, sendo de direito privado, não são delimitadores constitucionais de competência tributária, podem ser alterados pelo legislador tributário.

Registre-se que o art. 110 do Código Tributário Nacional viabiliza interpretações particularmente extremadas, denunciando uma visão muito particular das relações entre o direito privado e o direito tributário. Já se afirmou que os conteúdos dos conceitos manuseados no campo tributário “são aqueles que estavam contidos na lei privada em vigor na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988”14. Tal premissa não pode vingar. Não é esse o sentido ou o propósito do comando veiculado pelo art. 110 do Código Tributário Nacional. Pretende-se, com aquele dispositivo, limitar a ação do legislador tributário, afastando a manipulação artificial ou arbitrária de categorias jurídico-científicas com a finalidade de alargar indevidamente o espaço da tributação. O preceito em destaque não está vocacionado para barrar as repercussões legislativas, inclusive tributárias, das mutações sociais, econômicas, tecnológicas e congêneres, que independem da “vontade” do legislador e são dados ou elementos inexoravelmente postos pela realidade subjacente ao fenômeno tributário.

O terceiro dos vícios cogitados consiste numa peculiar forma de se encarar e trabalhar com as categorias jurídico-científicas representativas da realidade de interesse da tributação. O legislador tributário pode se utilizar de conceitos, institutos ou formas (categorias) denotativos de faixas da realidade com conteúdo econômico desenvolvidos no âmbito do direito privado. Nessas hipóteses, tais categorias não precisam ser reconstruídas no espaço tributário, porque já consolidados no direito privado mais antigo, de maturação mais longa. Assim, tais categorias serão tomadas com os contornos presentes no campo do direito privado. Ocorre que o legislador tributário pode reformular conceitos de direito privado15, não havendo óbice jurídico para tal labor. Ao contrário, esse rumo está expressamente autorizado pela Constituição, particularmente na dicção do art. 146, inciso III, alínea “a”. Tais categorias serão aplicadas, a partir do conhecido e festejado critério da especialidade, paralelamente às de direito privado, observando os limites já mencionados16.


Diante do que foi apresentado, é perfeitamente viável afirmar que as categorias jurídico-científicas, representativas de parcelas da realidade e utilizadas na operacionalização da tributação, não estão necessariamente adstritas aos processos de formação oriundos de outros quadrantes do direito, particularmente do direito privado17.

Portanto, sustenta-se18 ter o Supremo Tribunal Federal militado em profundo equívoco técnico-científico quando fincou seu entendimento acerca da abrangência da noção de serviço, para efeitos da tributação pelo imposto sobre serviços (ISS) da locação de bens móveis, em um suposto e necessário transplante das concepções civilistas para o campo tributário.

IV A NOÇÃO CONSTITUCIONAL DE SERVIÇO COMO TIPO

IV.1 Do conceito ao tipo

O principal condicionamento da tributação no Brasil, na perspectiva de quais fatos com densidade econômica serão alcançados pelas exigências fiscais, consiste na delimitação constitucional dos âmbitos materiais de incidência, a serem observados por ocasião da instituição dos principais tributos.

Com efeito, a Constituição, com sua natural força de conformação de toda a ordem jurídica a ela subordinada, expressamente aponta faixas da realidade, com significado econômico, sobre as quais pode ser manejada a criação ou instituição das exigências pecuniárias de natureza tributária. O Texto Maior aponta ou identifica as tais faixas ou parcelas da realidade econômica por intermédio de termos ou vocábulos especiais. Eis alguns dos mais relevantes: importação, exportação, renda, proventos, produtos, mercadorias, serviços, faturamento, receita, propriedade, crédito, câmbio, seguro, títulos ou valores mobiliários, doação, folha de salários, rendimentos e lucro.

Esses termos ou vocábulos especiais funcionam, como antes destacado, como categorias jurídico-científicas representativas da realidade e essenciais para a operacionalização da tributação. Normalmente, até mesmo por influência do art. 109 do Código Tributário Nacional, são caracterizados como conceitos (institutos ou formas).

Ocorre que o conceito é uma categoria científica com sentido bem definido e viabilizador de uma concepção singular do fenômeno da tributação 19 20 21. O conceito, também denominado, e com propriedade, de conceito classificatório ou de classe, pretende capturar os componentes da realidade mediante a identificação de suas características ou traços essenciais. Assim, presentes as características ou traços definidos no conceito, têm-se o objeto ou dado da realidade conceituado. Os conceitos, como é fácil de perceber, viabilizam, por excelência, o raciocínio pela via da subsunção (do “tudo ou nada”). De duas uma: ou se está diante do objeto conceituado (por conta da presença das características fixamente enumeradas) ou não se trata daquela “coisa” conceituada22.

A utilização dos conceitos, notadamente de forma exagerada e acrítica, enseja conseqüências profundamente negativas. Afinal, o conceito cristaliza ou “eterniza” determinados traços ou características frente a uma realidade econômica, social e tecnológica em contínua mutação. No campo jurídico, particularmente no tributário, um conceito, construído num determinado contexto histórico, permite sua projeção (eventualmente indevida) para aplicação em outras circunstâncias históricas completamente distintas, quando suprimidas ou acrescentadas características ao dado ou objeto da realidade a ser representado.

Por conseguinte, o conceito (o conceito classificatório ou de classe) não se mostra como a categoria jurídico-científica adequada para representar as parcelas da realidade de interesse da tributação inscritas no Texto Maior. São duas as razões básicas para tal afirmação. A primeira, consiste no fato de que o texto constitucional está voltado naturalmente para capturar as realidades econômicas mutáveis. A Constituição não se pretende uma “trava” à consecução de seus próprios objetivos, somente realizáveis com o adequado financiamento, via tributação, das despesas necessárias. A segunda razão, aponta para a conformação da tributação necessariamente sob os imperativos da capacidade contributiva dos cidadãos. Nesse sentido, as manifestações de capacidade contributiva sob novas formas de desenvolvimento de atividades econômicas tradicionais não podem, nem devem, escapar da tributação23.

Portanto, a tributação atual ou moderna, mergulhada numa realidade econômica e social complexa e em frenética mutação, precisa recorrer às várias categorias jurídico-científicas possíveis (e disponíveis): conceitos (determinados e indeterminados), cláusulas gerais e tipos. Somente a riqueza de todas as categorias mencionadas pode dar conta da apreensão adequada da realidade para fins de tributação. Limitar o fenômeno tributário aos conceitos significa condenar a atividade tributária a uma miopia inaceitável, considerando a necessidade de financiamento das despesas públicas por intermédio de novas manifestações econômicas que demonstram, de forma inequívoca, capacidade contributiva.

Por outro lado, o tipo mostra-se como “um sistema elástico de características”, marcado pela abertura, pela gradação, pela flexibilidade e facilitador ou viabilizador da apreensão dos fenômenos econômicos mais importantes para a tributação, justamente aqueles descritos pelo constituinte. Nesse rumo, o tipo funciona como uma categoria alternativa ao conceito e visceralmente mais adequada para lidar com as flutuações intensas da realidade econômica 24 25 26. Portanto, os vocábulos constitucionais delimitadores da realidade econômica tributável são, em verdade, tipos.

Erroneamente, o tipo foi introduzido no direito tributário brasileiro com o sentido de algo “fechado” ou “hermético”. Daí surgiram as expressões “tipo tributário” e “princípio da tipicidade fechada ou cerrada”. Em verdade, o “tipo fechado” mostra-se como uma contradição em termos 27 28. Se é tipo é aberto. Se é fechado é conceito. Não existe o “tipo fechado”, assim como não existem o “frio quente” ou o “branco preto”.

Sintomaticamente, constatam-se inúmeras e crescentes reflexões jurídico-tributárias voltadas para colher da realidade econômico-social de fundo, embora sem o recurso expresso à idéia de tipo, a extensão, em cada momento histórico, dos termos manuseados pelo constituinte29. Mantémse, assim, o diálogo dialético da Constituição com a realidade social. Esse diálogo, aliás, é uma das essências e sentidos da Constituição. O Texto Maior decididamente não pode operacionalizar o direito divorciado da realidade econômico-social e de sua evolução.

IV.2 O serviç o como tipo constitucional-tributário

Entre os vários tipos constitucionais-tributários, o serviço aparece como um dos mais ricos e complexos. Justamente porque as mudanças no campo econômico produziram um considerável alargamento do que se entende por serviço, adotada como ponto de partida a idéia de serviço como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”30.

O sentido do vocábulo absorveu de tal forma a complexidade da realidade econômica e a representação de uma gama tão ampla de atividades que a famosa revista The Economist chegou a consignar serviço como “qualquer coisa vendida que não cai em seus pés”31.

Observa-se, ademais, que no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços (AGCS ou GATS, na sigla em inglês) houve uma deliberada esquiva de se definir, na atualidade, o que significa, com razoável nível de precisão, a idéia de serviço. O caminho trilhado buscou uma delimitação dos modos de prestação de serviços (em quatro grandes blocos).

A ampliação da idéia de serviço para além de uma “obrigação de fazer” ou da “energia humana voltada para determinado fim” não é arbitrária. Corresponde o aludido alargamento a um fenômeno presente na realidade sócio-econômica em contínua evolução, perfeitamente capturado pela idéia de tipo. Por outro lado, tal amplitude está consagrada na ordem jurídica brasileira pelo menos no Código de Defesa do Consumidor32 e na Lei de Licitações e Contratos Administrativos33. Nesses diplomas legais, o sentido de serviço gravita em torno das idéias de atividade e de utilidade dessa última resultante. Na própria Constituição observa-se a definição de que a soma das atividades de venda de mercadorias e de serviços abarca todos os bens ou “coisas” oferecidas no mercado34, surgindo daí uma noção extremamente ampla, mas não arbitrária, de serviço.

A noção em questão, vista como tipo, pode ser atualmente enunciada, somente para efeitos práticos, como “a realização de atividade econômica voltada para produzir alguma utilidade para terceiro”. Assim, não escapa da caracterização como serviço a locação de bens móveis.

Registre-se, ademais, que o termo serviço foi incorporado na ordem jurídica brasileira para retratar, de forma ampla, os negócios com bens imateriais. Como que numa antevisão da crescente complexidade do setor de serviços, a história da introdução do imposto sobre serviços (ISS) no Brasil demonstra claramente a pretensão de gravar globalmente os negócios jurídicos voltados para a circulação de bens imateriais.

Com efeito, na maioria dos países existe um só tributo (normalmente imposto) que incide sobre a venda de bens (materiais – mercadorias ou imateriais – serviços). No Brasil, como exceção, a circulação de bens foi apartada em dois tributos: o antigo imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM) e o imposto sobre serviços (ISS). O primeiro foi atribuído aos Estados e o segundo aos Municípios. A separação realizada no Brasil buscou tão-somente contemplar os vários entes da Federação com tributos próprios, concorrendo para a autonomia financeira dos mesmos. Não existia a menor pretensão de deixar lacunas entre o antigo ICM e o ISS com a circulação, comércio ou venda de atividades econômicas não abrangidas por nenhum dos dois tributos35.


A cláusula constitucional “de qualquer natureza”, presente no art. 156, inciso III36, aponta no sentido antes destacado. Busca, inequivocamente, flagrar as mutações substanciais no sentido do que entende ou designa por serviço. O constituinte ao utilizar a expressão destacada já sinalizava para uma compreensão acerca da fluidez e mutabilidade da noção de serviço. Ademais, a expressão não está relacionada com a lista de serviços, eis que esse papel, de especificar os serviços tributáveis, foi expressamente conferido à lei complementar de caráter nacional.

V CONCLUSÕES

Ao editar a Súmula Vinculante n. 31 o Supremo Tribunal Federal insistiu em profundo e lamentável equívoco, já manifestado por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121. Com efeito, adotou uma noção historicamente superada e estática de serviço, identificado tãosomente como “obrigação de fazer” ou “atividade humana em benefício alheio”. Ademais, buscou, também de forma reprovável, transportar para a Constituição e para o direito tributário um dos sentidos (mais restritivo) da noção de serviço, considerando de forma indevida uma suposta obrigatoriedade do universo tributário acolher as construções do direito privado sem modificações.

O vocábulo serviço inscrito na Constituição não pode ser tomado como um conceito, uma categoria fechada e imóvel, notadamente no tempo, de notas e características inafastáveis. A noção constitucional de serviço deve ser vista como um tipo, justamente uma categoria aberta para apreender em sua descrição os movimentos e transformações da realidade econômico-social.

Em suma, o termo serviço, assim como tantos outros lançados no Texto Maior com o objetivo de recortar partes da realidade econômica a serem operacionalizados pela tributação, aparece como um tipo moldado pelos imperativos das mutações observadas do contexto histórico subjacente.

Por conseguinte, a locação de bens móveis enquadra-se no tipo constitucional-tributário demarcado pelo termo ou vocábulo serviço e, na medida da previsão em lei complementar específica, pode ser gravada pelo imposto sobre serviços.

Essa conclusão aponta para a necessidade, mais cedo ou mais tarde, de revisão ou cancelamento da Súmula Vinculante n. 31, nos termos do art. 103-A da Constituição37.

Notas

1 Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, “ao longo das últimas décadas, o setor de serviços vem apresentando maior dinamismo e as maiores taxas de crescimento na economia global. Em termos gerais, representa mais de 60% da riqueza mundial, empregando ao menos um terço da mão-de-obra do planeta e respondendo por mais de 20% do comércio internacional”. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272. Acesso em: 30 out. 2010.
2 Os demais precedentes são meras reproduções, na voz de cada relator, do julgado original.
3 “TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional”.
4 “O precedente do Supremo Tribunal Federal que melhor elucida essa orientação é relativo justamente à incidência do ISS sobre a locação de guindastes, que veio a representar uma mudança na sua jurisprudência em relação à posição acolhida quando do julgamento do RE n. 112.947-6. Após trinta anos de cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, foi reconhecida a inconstitucionalidade de tal prática ao ser julgado o RE n. 116.121-3, acolhendo-se a tese do ‘império do Direito Privado’”. VELLOSO (2005:81).Art. 110 do Código Tributário Nacional: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
5 “Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento”.
6 “… eis que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer … Cabe advertir, neste ponto, que a locação de bens móveis não se identifica, e nem se qualifica, para efeitos constitucionais, como serviço, pois esse negócio jurídico – considerados os elementos essenciais que lhe compõem a estrutura material – não envolve a prática de atos que consubstanciam um praestare ou um facere”.
7 “Não me convenci, data venia, de que o contrato em discussão, o contrato de locação de máquinas, de guindastes, contenha obrigação de fazer”.
8 O termo “categoria” será utilizado para designar as várias fórmulas lingüísticas, com conformações científico-metodológicas diversas, representativas da realidade e fundamentais para a operacionalização da tributação (conceitos, tipos, institutos, formas, noções, idéias, etc).
9 “Necessariamente, pelo princípio da capacidade contributiva, o direito tributário deve incidir sobre fatos com relevância econômica e, considerando que esses fatos já são juridicizados por outros ramos do direito (renda, mercadoria, faturamento, importação, transmissão, doação, etc), o direito tributário sempre incide sobre outras linguagens normativas. É o chamado direito de sobreposição, segunda a concepção clássica de Gian Antonio Michelli./Com exceção dos tributos vinculados, as hipóteses de normas tributárias têm por conteúdo situações previamente reguladas pelo direito privado, que abordam atividades economicamente apreciáveis realizadas por sujeitos de direito privado, que, sob a óptica da tributação, passam a ser contribuintes./O ISS, por sua vez, tem por base as obrigações de fazer, oriundas do direito privado, conforme veremos a seguir./[…] É tradicional a classificação civilista das obrigações, separando-as em obrigações de dar, de fazer e de não-fazer. Orlando Gomes afirma, inclusive, que são apenas esses três modos da conduta humana que podem se constituir objeto da obrigação./[…] A distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer é relevante para o ISS, pois este sendo um imposto que incide sobre ‘prestação de serviço’, pela própria definição só pode ter como base as obrigações de fazer”. CARVALHO (2008:639-640).
10 “Cabe à lei complementar: […] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
11 “O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”.
12 “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.
13 Esse dispositivo (o art. 110 do CTN) está impregnado da falsa concepção de que o direito privado é o berço de todo o direito e consegue construir, de forma global ou total, categorias representativas de toda a realidade a ser operacionalizada pelo direito.
14 “Isto é assim porque, se assim não fosse, uma simples alteração de lei ordinária federal sobre o direito privado poderia afetar competências tributárias que somente podem ser modificadas ou excluídas através de emenda constitucional. Por exemplo, qualquer nova definição de imóvel ou mercadoria, por lei ordinária federal voltada para as relações de direito privado, embora essa lei seja válida porque promulgada no exercício da competência da União para reger esse ramo do direito, poderia atingir indevidamente as competências tributárias dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, caso em que não teria extensão ao direito tributário por falecer tal competência àquele tipo de lei”. OLIVEIRA (2004:185).
15 Não custa registrar a possibilidade do legislador tributário construir o conteúdo de “noções” ou “idéias” inexistentes ou em processo de formação no direito privado ou em outros quadrantes do direito.
16 As considerações desse tópico aproveitam reflexões do autor presentes no artigo intitulado Aplicação no Direito Tributário da Desconsideração da Personalidade Jurídica prevista no Novo Código Civil.
17 “Não há um primado do direito privado, pois, sem dúvida, é viável que o Direito Tributário – e primordialmente o Direito Constitucional Tributário – adote conceitos próprios. A possibilidade de o Direito Tributário elaborar conceitos específicos decorre, em última análise, do fato de ser direito positivo. Seus preceitos, por inserirem normas jurídicas no ordenamento, são hábeis, como quaisquer enunciados jurídicos-positivos, a inovar no sistema jurídico, seja pela ab-rogação, derrogação e criação ab initio de normas. Os conceitos conotados por seus enunciados podem identificar-se com aqueles consagrados em dispositivos já vigentes. Mas essa realidade não é necessária. Nem mesmo a necessidade de se proceder à exegese rigorosamente jurídica do texto constitucional implica a inexorável incorporação, pela Constituição, de conceitos jurídicos infraconstitucionais, …” VELLOSO (2005:87).


18 Com todas as vênias de estilo devidas à Corte Suprema, que não é infalível. Lembra-se, aliás, a afirmação atribuída a Nelson Hungria no sentido de que o STF “apenas tem o privilégio de errar por último”.
19 “Esta obra apesar de afirmar que o pensamento tipológico não é adequado à Ciência do Direito Tributário e do Direito Penal, campos onde o espaço reservado aos tipos é muito pequeno, é revolucionária apenas no sentido técnico-formal./Do ponto de vista material, a tese não destrói, mas afirma clássicos princípios jurídicos, os quais, não obstante, são melhor atendidos por meio dos conceitos determinados do que por meio das estruturas flexíveis e fluídas do pensamento de ordem, que são os tipos. Ela não rompe com a Ciência do Direito, pois, retificadas as questões terminológicas entre tipo e conceito, reconhece a importância do pensamento lógico-sistemático”. DERZI (2007:32). 20 “No entanto, tal posicionamento [tipicidade fechada fundada em conceitos] acaba construindo uma idéia de legalidade que se sobrepõe à sua própria finalidade, que é garantir o sentido material do Estado de Direito”. RIBEIRO (2009:82).
21 “No entanto, se Misabel de Abreu Machado Derzi reconhece a inexistência de uma estrutura tipológica fechada, parte de outro pressuposto teórico para entronizar o valor segurança jurídica no Direito Tributário. Segundo a referida autora, neste ramo da ciência jurídica, assim como no Direito Penal, em razão da necessidade exacerbada de segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos classificatórios sobre a estrutura tipológica. Como se vê, o reconhecimento da inexistência do tipo fechado, o que, aliás, é feito com extrema competência, leva aos mesmos resultados encontrados pela teoria que o entronizou: o fechamento dos conceitos de direito utilizados pelo legislador tributário”. RIBEIRO (2009:83-84).
“A concepção de Misabel Derzi, do ponto de vista substancial, se aproxima da de Alberto Xavier, embora tenham esses autores desenvolvido argumentos diferentes. Misabel proclama que o tipo é aberto mas o expulsa, juntamente com o conceito indeterminado, do campo tributário, onde prevalece apenas o conceito determinado fechado, ou os converte em conceitos determinados. Xavier diz que o tipo é fechado e o assimila ao conceito determinado. O resultado é o mesmo: ambos engessam no conceito fechado a possibilidade de aplicação do direito tributário”. TORRES (2006:9).
22 “Só um conceito geral abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas ‘a, b, c’, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características ‘a, b e c’. Diz-se, então, que há subsunção. Para o conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: ‘cada X é A ou não-A’. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão ‘ou um, ou outro’, Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não”. DERZI (2007:52-53).
23 “A ideia de cidadania está vinculada a um conjunto de direitos e deveres de que gozam ou a que estão submetidos os indivíduos pertencentes a uma comunidade. Pressupõe a igualdade de todos os cidadãos perante tal estatuto, impondo o dever de contribuir para o suporte financeiro do Estado e o direito de participação política./Ao lado do reconhecimento da supremacia da liberdade e dos direitos fundamentais frente aos demais valores constitucionais, é de se reconhecer que todos os direitos têm custos públicos./O custo de um Estado que tem como premissa a liberdade e como valor fundamental a dignidade da pessoa humana deve ser suportado por todos os seus membros. Essa é a ideia de cidadania fiscal, que se materializa no dever fundamental de pagar impostos./O imposto é assim entendido como a contribuição indispensável dos membros da comunidade para o Estado, a fim de que este possa atingir os seus objetivos, constitucionalmente delineados”. CAMPOS (2009:28). O Procurador da Fazenda Nacional Gustavo Caldas escreve sob a influência direta e declarada do jurista português Casalta Nabais, notadamente na destacada obra O dever fundamental de pagar impostos.
24 “Em geral, aborda-se a oposição entre o conceito classificatório de classe e o moderno, de tipo. Enquanto o conceito classificatório é seletivo e rígido, excluindo ou incluindo o objetivo que, de acordo com suas propriedades, pertença ou não ao conjunto, o tipo é um conjunto não delimitado, fluido que não trabalha com a relação de exclusão ‘ou … ou’ mais sim com um ‘até um certo grau’ ou ‘mais ou menos’ “. DERZI (2007:44-45).
25 “Tipo é a ordenação dos dados concretos existentes na realidade segundo critérios de semelhança. Nele há abstração e concretude, pois é o encontrado assim na vida social como na norma jurídica. Eis alguns exemplos de tipo: empresa, empresário, trabalhador, indústria, poluidor. O que caracteriza o tipo ‘empresa’ é que nele se contêm todas as possibilidades de descrição de suas características, independentemente de tempo, lugar ou espécie de empresa. O tipo representa a média ou a normalidade de uma determinada situação concreta, com as suas conexões de sentido. Segue-se, daí, que a noção de tipo admite as dessemelhanças e as especificidades, desde que não se transformem em desigualdade ou anormalidade. Mas o tipo, embora obtido por indução a partir da realidade social, exibe também aspectos valorativos. O tipo, pela sua própria complexidade, é aberto, não sendo suscetível de definição, mas apenas de descrição. A utilização do tipo contribui para a simplificação do direito tributário. A noção de tipo é largamente empregada também nas ciências sociais: Max Weber utilizou o conceito de tipos ideais. Jung fez circular a idéia dos tipos psicológicos”. TORRES (2006:2-3).
26 “Por essas razões, a indeterminação da linguagem humana da qual se serve o Direito, sempre dotada de caráter plurissignificativo, bem como a necessidade de adequação da lei à realidade fática, cada vez mais surpreendente, imprevisível e inexplicável com base nas lições extraídas do passado, fazem com que o legislador, inclusive o tributário, privilegie a utilização de tipo em detrimento dos conceitos abstratos, cada vez menos capazes de estabelecer conexões de sentido com o mundo dos fatos”. RIBEIRO (2009:96).
27 “Por outro lado, a idéia de uma tipicidade fechada também encarna uma impropriedade metodológica, revelando uma contradição em termos. Senão vejamos. […] De fato, segundo o posicionamento adotado pelo citado autor alemão [Karl Larenz] nas últimas edições de sua obra clássica [Metodologia da Ciência do Direito], a estrutura tipológica é sempre aberta, ao contrário do conceito abstrato, que em situações ideais apresenta-se fechado”. RIBEIRO (2009:83).
28 “Há quem fale em tipos abertos ou fechados. O tipo fechado não se distingue do conceito classificatório, pois seus limites são definidos e suas notas rigidamente assentadas./No entanto, como nova metodologia jurídica, em sentido próprio, os tipos são abertos, necessariamente abertos, com a características que apontamos. Quando o direito ‘fecha’ o tipo, o que se dá é a sua cristalização em um conceito de classe./Neste contexto, a expressão ‘tipo fechado’ será uma contradição e uma impropriedade”. DERZI (2007:58).
29 O Ministro GILMAR MENDES, ao votar no RE n. 357.950, demonstra a plena licitude da determinação ou densificação das noções constitucionais mais gerais utilizadas no campo da tributação: “Porém, como o Texto constitucional, inevitavelmente, adota esses conceitos de uso comum, precisamos, de fato, ter uma abertura para uma compreensão mais ampla desses institutos, sob pena de, em algum momento, incidirmos naquilo que muito se censura, de fazer-se a interpretação da Constituição de forma clara, segundo uma determinada lei ou determinada concepção dominante num dado momento histórico. […] Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição. Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade, […] As disposições legais a ela relativas têm, portanto, inconfundível caráter concretizador e interpretativo. E isto obviamente não significa a admissão de um poder legislativo ilimitado. Nesse processo de concretização ou realização, por certo serão admitidas tão-somente normas que não desbordem os múltiplos significados admitidos pelas normas constitucionais concretizadas”. No julgamento do HC n. 96.772, pelo Supremo Tribunal Federal, observa-se a manifestação, com feliz precisão, do Ministro CELSO DE MELLO no sentido da “legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea”.
30 O tributarista MARCO AURÉLIO GRECO aponta com propriedade o rumo dos debates e das considerações mais modernas acerca da idéia de “serviço”. Procura, o ilustre jurista, justamente afastar uma noção limitada e atrasada historicamente que restringe a noção de serviço a uma “obrigação de fazer” ou a uma “atividade humana em benefício alheio”. Eis as importantes palavras de MARCO AURÉLIO GRECO: “No passado recente, informado pela idéia de ‘causalidade’, um elemento fundamental para definir relevâncias era dado pela noção de atividade realizada. Daí apontarem-se tipos de atividades, suas características, qualidade etc., a partir das quis definiam-se os respectivos regimes e valores. À atividade ‘tal’ correspondia uma remuneração ‘qual’, certa atividade tinha valor maior ou menor do que outra atividade; maior a atividade, maior a remuneração; e assim por diante./ Esta visão levou à formulação da noção de serviço como um tipo de atividade que representaria determinado esforço humano exercido por alguém. A idéia de atividade é tão nítida a ponto de vivermos, no âmbito tributário, sob um regime de lista de atividades (‘serviços’). A lista é muito útil para identificar a matéria tributável e resolver eventuais conflitos de competência tributária, mas reafirma o critério básico, qual seja, apoiar-se na natureza de certas atividades. Neste contexto, a respectiva remuneração é tributariamente vista como a contraprestação da atividade exercida. Em suma, paga-se porque alguém ‘faz’ algo./O mundo moderno tem mostrado que a atividade não é mais o único elemento relevante para fins de definição dos valores das negociações realizadas. Se olhar do ângulo do produtor levou à identificação da atividade exercida como elemento relevante (inclusiva para fins de tributação), olhar do ângulo do cliente leva ao surgimento de uma outra figura que é a utilidade./Muito freqüentemente, as pessoas dispõem-se a pagar determinada remuneração não pela natureza ou dimensão da atividade exercida pela outra pessoa, mas, principalmente, pela utilidade que vão obter. O valor não está mais apenas na atividade do prestador, mas também na utilidade obtida pelo cliente./Diante desta realidade, utilizar o conceito de serviço (como expressivo de uma atividade) para fins de qualificação da matéria tributável é também deixar à margem da tributação significativa parcela da atividade econômica exercida no mercado e que é formada pelo fornecimento de utilidades, no mais das vezes imateriais e que resultam de atividades novas, não alcançadas pelo conceito tradicionalmente utilizado./ Isto mostra a insuficiência do conceito tradicional de serviço para alcançar tributariamente estas novas realidades em que, muitas vezes, o beneficiário não está buscando a atividade do outro, mas sim a utilidade que irá obter.” GRECO (2000:96-97).


31 Referência localizada em página do site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna. php?area=5&menu=2272 . Acesso em: 30 out. 2010.
32 “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3o., parágrafo segundo, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990).
33 “Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;” (art. 6o., inciso II, da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993).
34 Eis um exemplo emblemático: “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:” (art. 173, parágrafo primeiro).
35 Nesse sentido, as palavras de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES são elucidativas: “O ISSQN onera a circulação de bens que não são mercadorias, isso é, que não sejam bens materiais ou incorpóreos. O imposto municipal onera a circulação de bens materiais, de bens incorpóreos, considerandos serviços. Recai, assim o ISSQN, sobre a prestação, a título oneroso, realizada por uma pessoa em favor imposto oneradas pelo imposto são representadas como de venda de bens imateriais (fornecimento de trabalho a terceiros, locação de bens móveis e cessão de direitos)”. MORAES (1993:285-286). Não é outra a lição de CELSO RIBEIRO BASTOS: “Esses serviços devem ser entendidos no sentido econômico, ou seja, bens imateriais que se encontram na circulação econômica, em oposição aos bens materiais ou corpóreos. Abrangem, assim, além do fornecimento de trabalho, a locação de bens móveis, hospedagem e guarda de bens”. BASTOS (1991:271).
36 “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.
37 “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

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