Por Pablo Bezerra Luciano
Tive a oportunidade de sugerir aqui na ConJur uma outra concepção do dever de fundamentação das decisões judiciais imposto pela Constituição, como decorrência necessária do princípio do contraditório (clique aqui para ler). Na ocasião questionei a invocação pela jurisprudência, como fatores de justificação do decisionismo judicial, de normas como a do artigo 93, IX, da Constituição, que estipula o dever de fundamentação, e a do artigo 131 do Código de Processo Civil (CPC), que estipula o livre convencimento do julgador adstrito aos elementos colhidos nos autos.
Agora retomo o tema do artigo anterior, numa abordagem, digamos, mais alvissareira, considerando que está a tramitar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 8.046/2010, o qual, pretendendo substituir o atual CPC, traz algumas alterações de relevo no trato legislativo sobre o tema da fundamentação das decisões judiciais, sobretudo no que tange à ideia bastante disseminada de que o julgador, para decidir, não precisa se pronunciar sobejamente sobre os argumentos trazidos pelas partes.
Em explicitação do dever de fundamentação das decisões judiciais, o projeto inova ao enumerar as hipóteses em que não se atenderá o referido postulado nos incisos do parágrafo único de seu artigo 476. Assim, no futuro, caso seja aprovado o novo CPC na atual redação, não será considerada fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que: “I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Em rigor a proposta de norma do parágrafo único do projeto seria inteiramente desnecessária. O contraditório, por si, já seria suficiente para se entender que o julgador não está livre para decidir como lhe for mais aprazível ou conveniente. Porém, a realjuridik vem demonstrando que não suficientes as balizas abstratas do contraditório e do devido processo legal para obstar a tese jurisprudencial de que o juiz poderia escolher qualquer fundamentação para decidir ou deixar de analisar todos os argumentos trazidos pelas partes, conquanto que decida fundamentadamente.
De fato, num ordenamento jurídico de matiz pretensamente democrático como o brasileiro, cuja Lei Maior assegura aos litigantes o contraditório, e que reconhece como essenciais à Justiça as instituições do Ministério Público, da advocacia e da defensoria pública, dedicando-lhes todo um capítulo dentro de um título dedicado à organização dos poderes, já se mostra estranha a consagração do entendimento de que os julgadores não precisam se manifestar sobre as questões trazidas pelas partes, conquanto que decidam de forma fundamentada.
Disseminado por todo o Judiciário brasileiro, esse entendimento é capitaneado pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que decidido na sessão de julgamento de 23 de junho de 2010 na Questão de Ordem no Agravo 791.292: “O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão.”[1]
A situação começa a se complicar ainda mais quando se percebe que esse mesmo ordenamento jurídico traz a generosa promessa de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, a significar que toda manifestação do poder político, para ser tida como legítima, há de assegurar ao interessado a possibilidade de influir na decisão estatal. Sim, porque quando se estatui o direito ao devido processo legal, automaticamente se está conferindo ao interessado o direito de que seus argumentos sejam considerados.
Isso porque a própria ideia de processo implica num conjunto de atos teleologicamente orientados a preparar a decisão estatal. Essa decisão, obviamente, não pode estar pronta antes da série de atos, que inclui, no caso do processo judicial, o pedido, a defesa e a produção de prova. Tampouco essa decisão pode existir abstratamente, sem referibilidade aos elementos de fato e de direito constantes dos autos, pois em tal caso o processo, como método, seria uma formalidade inteiramente dispensável. Não obstante, não são raras as decisões judiciais pautadas, exclusivamente, na leitura do pedido constante da petição inicial, em tabula rasa de tudo aquilo que figura antes e depois do pedido.
Intolerável se torna a tese de que o julgador não precisaria decidir com base no que foi debatido nos autos pelas partes, quando ao nível legal, em especificação do contraditório, do devido processo legal, e da ideia de que a Justiça não se faz sem a colaboração da Advocacia, do Ministério Público e da Defensoria Pública, estatui-se que é elemento essencial da sentença a fundamentação, na qual “o juiz analisará as questões de fato e de direito” (CPC, art. 458, II).
Como se nota, não há na norma legal em vigor qualquer limitação sobre o objeto da cognição judicial. Não há uma franquia a que o julgador escolha aleatoriamente uma ou outra questão de fato e de direito para decidir. Não há autorização para se decidir conforme argumentou a parte autora, ignorando o que disse a defesa; nem há autorização para decidir conforme argumentou o réu, ignorando o que disse o autor. Isso porque, ambos, autor e réu, são titulares de posições processuais ativas, dignas da mesma atenção de um julgador que atenda ao postulado da imparcialidade constante do item 1 do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969.
Não há também no artigo 458 do atual CPC qualquer autorização a que as fundamentações sejam concisas. Bem pelo contrário, a norma do artigo 165 exclui qualquer possibilidade de se dar por suficiente uma fundamentação “concisa” ao dispor que “as sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no artigo 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso”. Aliás, o disposto no artigo 459 do CPC, ao estipular que as sentenças dos casos de “extinção do processo sem julgamento do mérito” podem ser sucitamente fundamentadas, automaticamente leva à conclusão que as sentenças de mérito devem ser sobejamente fundamentadas. Ou seja, nos termos expressos da lei, apenas decisões que não sejam sentenças ou acórdãos de mérito podem ser sucintamente fundamentadas.
Embora prevaleça nos tribunais de hoje de forma extremamente esmagadora a tese de que o juiz pode escolher qualquer fundamento para decidir, analisando as questões de fato e de direito que tiver vontade, os pósteros podem almejar um processo judicial conforme aos postulados constitucionais e com os próprios termos do atual Código de Processo Civil.
Assim, a menos que se declare inconstitucional a inovação do Projeto de CPC — aliás, não faltarão vozes nesse sentido — tornar-se-á expressamente ilegal a jurisprudência que libera o julgador a não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão ofertada. Não se ignora, é claro, que, sem uma mudança de mentalidade do sistema judiciário, corre-se o risco de que a alteração legislativa se torne mais uma daquelas tantas normas que só constam no papel. Mas só o fato de estar tramitando no Congresso Nacional um Projeto de Lei com uma norma desse teor não deixa de ser algo promissor.
É verdade que, de um certo modo, não deixa de ser decepcionante que o legislador esteja por aprovar uma norma como a do parágrafo único do artigo 476 do Projeto, que decorre tão naturalmente e de forma tão imediata dos princípios constitucionais do processo. Ficará, provavelmente, a impressão de que, só por força da norma legal, os juízes passarão a ter a obrigação de abordar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, determinar uma decisão. E não será difícil imaginar inúmeras pendências recursais sobre a eficácia prospectiva ou retroativa da norma… Passaremos a interpretar a Constituição a partir da legislação, quando o correto seria o sentido inverso.
Apesar de tudo isso, o saldo da alteração ventilada é positivo. A norma do parágrafo único do artigo 476 do Projeto, caso aprovada, será uma tentativa de o Legislativo devolver ao Judiciário a ideia de que a legitimidade do poder não se constrói unicamente pela força da autoridade, mas, sobretudo, pela força da deliberação. Trata-se de proposta de norma ditada pela absoluta necessidade de colocar um fim numa aposta autodestrutiva do Judiciário em um decisionismo sem limites, que até pode resultar em números vistosos em termos de produtividade, mas que gera externalidades bastante perniciosas, como a sensação de frustração que sofre a parte perdedora de não ter sido ouvida, apesar de ter contratado advogado, da defesa feita e das provas produzidas. Generalizando-se essa sensação corre-se o risco seríissimo de a sociedade passar a desacreditar no Judiciário e aí pouco poderá ser feito para reconstruir o prestígio perdido.
Notas
[1] Na ocasião, o Min. Marco Aurélio ficou vencido, ao considerar de que é dever do “Judiciário emitir entendimento explícito sobre todas as causas de defesa, sobre todos os pedidos formulados pela parte. O órgão judicante não está compelido a fazê-lo apenas quando o que articulado se mostre incompatível com o entendimento já adotado no pronunciamento judicial. Lembro-me de que certa vez me deparei, em nota de rodapé de uma publicação do Código de Processo Civil, com um precedente que considerei perigosíssimo. Segundo assentado, o juiz não é um perito e, portanto, não precisa se manifestar sobre todas as matérias de defesa veiculadas pela parte. Digo que o juiz é um perito na arte de proceder e na de julgar e que não existe prestação jurisdicional aperfeiçoada se não se examinarem, até para declarar a improcedência, todos os pontos enfocados pela parte”. Firme nessa convicção, entretanto, o Min. Marco Aurélio quase sempre é vencido.
Pablo Bezerra Luciano é procurador do Banco Central e presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil.
Revista Consultor Jurídico, 19 de junho de 2013