André Emmanuel Batista Barreto Campello1
Resumo
O presente texto buscou analisar e tecer reflexões acerca do fenômeno jurídico, dentro da perspectiva do poder simbólico traçada por PIERRE BOURDIEU, vislumbrando-se o Direito como uma forma de manifestação do poder simbólico, ao se constatar que as limitações às diversas formas de interpretação jurídica, representam, por si só, forma de controle social.
Palavras chave: Direito. Introdução. Crítica. Poder Simbólico. Pierre Bourdieu.
1 INTRODUÇÃO
Neste ensaio pretende-se iniciar a caminhada na construção de uma introdução ao problema do fenômeno jurídico, à luz da perspectiva dada por PIERRE BOURDIEU, vislumbrando o direito como uma forma de manifestação do poder simbólico, ao se constatar que as limitações às diversas formas de interpretação jurídica, representam, por si só, forma de controle social.
Em um primeiro momento analisa-se o direito como uma forma de controle social, verificando a sua natureza e como este se realiza por meio do poder simbólico.
Portanto, neste capítulo será estudado o Direito enquanto fenômeno social que tem por escopo o controle comportamental de uma coletividade com o escopo da manutenção do status quo.
A seguir, no capítulo seguinte pretendeu-se, à luz dos ensinamentos de Pierre Bourdieu, tecer reflexões acerca do monopólio do Estado da jurisdição e, portanto, da interpretação definitiva do direito, apontando suas razões e consequ?ências.
Ao final, na conclusão, busca-se consolidar o tema, sem esgotá-lo apresentando as perspectivas para novos caminhos.
2 O DIREITO COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL
2.1 O Direito é um fenômeno social
Não se pode conceber um Direito sem sociedade, ou mesmo uma sociedade sem normatização que venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar a condutas dos indivíduos e grupos que lhes integram.
Seria possível até afirmar que, para que exista sociedade, faz-se necessário a existência de Direito, sendo este, portanto, uma necessidade daquela:
A sociedade sem o Direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O Direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o direito representa um grande esforço, para adaptar o mundo exterior às suas necessidades da vida.2
Evidente que não se fala aqui de que qualquer sociedade, para existir, terá necessariamente possuir uma codificação (fenômeno tipicamente ocidental) para reger a sua vida social, mas tal coletividade deverá estar regida por conjunto de normas que lhe conceda estabilidade e que permita o desenvolvimento de atividades econômicas e relativa segurança para os indivíduos e para as relações surgidas entre estes, a fim de evitar que a força (individual), por si só, seja o único elemento que defina o resultado das querelas da sociedade.
Neste sentido, algumas palavras de IHERING: “[…] Dessa forma, a preponderância do poder inclina-se paras o lado do direito, e a sociedade pode ser designada, por consequ?ência, como o mecanismo de auto-regulação da força conforme o direito.”3
Presume-se que os indivíduos, de uma dada sociedade, ao edificarem o Direito que irá reger as suas relações sociais e limitar a satisfação das suas necessidades, aceitam como legítimo tanto o poder que cria as normas, quanto válidas (e também) aceitáveis o conteúdos destas, pois, do contrário existiria, no mínimo, um contexto de subversão política, já que, estaria, em questionamento, a própria obediência ao estatuto social criado pelo poder político constituído.
Neste ponto, adequa-se, perfeitamente, a percepção de BOURDIEU acerca do poder simbólico e a noção de que ele pressupõe que os dominados se submetem espontaneamente ao controle porque possuem alguma crença neste comando:
[…] como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.4
Pelo que foi apresentado, para a continuação deste ensaio, necessária a formulação de questões acerca de alguns aspectos:
(1) Se o Direito é um fenômeno social, como poderia este controlar a própria sociedade que o engedrou?
(2) Qual o fundamento de legitimidade para que o Direito possa se impor sobre uma determinada sociedade?
(3) Como o Estado consegue impor um Direito sobre uma sociedade?
Em verdade, uma introdução ao estudo do Direito deve partir precisamente daquilo que o Direito é: um instrumento de controle do comportamento dos indivíduos de uma sociedade a fim de manutenção de uma determinada estrutura social e rede de relações entre indivíduos, analisando-se a ciência do Direito e os significados deste fenômeno social.
2.2 O primeiro ponto de análise deve ser a compreensão da construção da “Ciência do Direito”
Ora, a construção de uma ciência jurídica, teria, por óbvio, uma faceta simbólica manifesta: a de apresentar ao espectador uma aparência de lógica, de autonomia, de sistema fechado, que serviria para isolar (para fins de estudo?) o fenômeno jurídico dos demais eventos sociais, ou das demais disciplinas, de modo que se pudesse construir e compreender o Direito, pelos seus próprios princípios, nos seus próprios termos. Bourdieu assim enfrenta o tema:
A ciência jurídica tal como concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna.5
Portanto, construir uma teoria pura, para o fenômeno jurídico, seria algo “natural”, dentro desta lógica da absoluta autonomia da ciência jurídica, tendo em vista que, se o direito constitui um sistema que se auto-explica, deveria conter categorias lógicas próprias. Bourdieu tece interessante crítica sobre a construção de uma teoria pura para o Direito:
A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento.6
A respeito do tema, deve ser lida também uma interessante crítica de Maman à construção kelseniana:
Muito mais para explicar, do que para compreender o fenômeno jurídico, constroem-se modelos teóricos que são pura ficção científica. Veja-se Kelsen e sua pretensa neutralidade axiológica e epistemológica. A neutralidade axiológica já não era colocada bem mesmo no Círculo de Viena. E a compreensão da realidade jurídica em termos de força material organizada está no neokantismo. A norma fundamental como pressuposto jurídico leva ao positivismo, que não é senão o represamento da decisão. Assim, toda a construção de Kelsen é uma construção dogmática que deve ser interpretada silogisticamente, segundo uma lógica superada […]. Kelsen lisonjeia o comodismo dos aplicadores do direito, com a lei, numa interpretação racional, abstrata, pré-moldada, podemos resolver todos os problemas. Abre caminho para a cibernética e a solução do computador.7
Esta concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando-se com o mundo das normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais que atribuem significado ao próprio ordenamento, repercutiu no ensino jurídico, que almeja apenas treinar/instruir “técnicos jurídicos”.
Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro operador do Direito a percepção de que este fenômeno social é alimentado, retro-alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam submetidos àquelas normas.
Bourdieu explica que esta construção de um discurso homogêneo para a “ciência jurídica” advém inclusive de formação jurídica também homogênea que os operadores do direito adquirem: uma tecnologia que lhes permitirá, pela vias do direito, trabalhar com os conflitos sociais:
A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.8
As normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos movimentos destes agentes sociais. Ao isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo.
Portanto, o direito procura construir uma simbologia própria, para pela utilização delas por operadores do direito “aptos” e “treinados” para tanto, ou seja, controlar e manter dentro das expectativas do aceitável, os potenciais conflitos sociais que possam emergir das diversas interações entre os agentes socais.
O direito cria um discurso, baseado na forma, a fim limitar não apenas a atuação de agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas, mas para tanto, para conseguir manter a eficácia destas regras (ou princípios), faz-se necessária a adesão daqueles que irão suportar o seu peso, e isto se concretiza pela perda do discernimento (dos destinatários das normas) que estão sob prescrições arbitrárias e que não estão aptos a questioná-las ou delas discordar:
É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais cerca quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento.9
2.3 Pelo distanciamento dos seus destinatários o Direito busca exercer o controle social
Como se daria este distanciamento? De modo brilhante, eis a percepção de Bourdieu:
A maior parte dos processos lingu?ísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em um sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado [são] próprios para exprimirem a generalidade e atemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético […]10
Ou seja, na construção das normas jurídicas, pretende-se apresentar aos seus destinatários um aspecto de impessoalidade e abstração, que, em verdade, apenas existiriam na edificação do discurso cristalizado na lei e que serviriam para, diante do leito/súdito da norma transmitir-lhe a crença de que a sua natureza (ou a sua finalidade) coincidiriam com a forma como foi redigida.
Neste sentido, Ferraz Jr.:
[…] o jurista da era moderna, ao construir os sistemas normativos, passa a servir aos seguintes propósitos, que são também seus princípios: a teoria instaura-se para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível. Por meio de leis, fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental, que deve ser captada como tal. As leis têm um caráter formal e genérico, que garante a liberdade dos cidadãos no sentido de disponibilidade. Nesses termos, a teoria jurídica estabelece uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria bordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítimas da utilidade privada. Sobretudo, esboça-se uma teoria da regulação genérica e abstrata do comportamento por normas gerais que fundam a possibilidade da convivência dos cidadãos.11
A melhor forma de observar este distanciamento, pela forma como se redige as disposições normativas, é vislumbrar que o próprio ordenamento, pelo art. 11 da lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, prescreve a forma da redação legislativa:
Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I – Para a obtenção de clareza:
- usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando;
- usar frases curtas e concisas;
- construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis;
- buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;
- usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico;
II – Para a obtenção de precisão:
- articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;
- expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico;
- evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto;
- escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais;
- usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que a primeira referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu significado;
- grafar por extenso quaisquer referências a números e percentuais, exceto data, número de lei e nos casos em que houver prejuízo para a compreensão do texto;
- indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes;
III – Para a obtenção de ordem lógica:
- reunir sob as categorias de agregação – subseção, seção, capítulo, título e livro – apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;
- restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
- expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;
- promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens
Pelo discurso, pretende-se construir um mise-en-scène, desviando a atenção do leitor/súdito da norma para o verdadeiro desiderato do comando, gerando neste a crença na impessoalidade e neutralidade da norma jurídica:
Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização […] que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto há séculos.12
Logo, para exercer o controle da sociedade, não basta apenas deter o monopólio da produção do direito, necessário também que haja uma limitação ao ato de interpretar as normas jurídicas.
Se o discurso cristalizado no direito positivo busca o controle da sociedade, necessário analisar-se, a seguir, quem detém o monopólio sobre a atuação de dizer o Direito, de dar a última palavra acerca da relação entre os fatos e as normas: o atuar do Estado-Juiz.
3 OS LIMITES PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO
3.1 O direito positivado, cristalizado em normas escritas, que estão corporificadas nas espécies legislativas, podem, sem dúvidas, subverter o próprio sistema.
Como poderia isto acontecer?
A construção do direito passa necessariamente da atuação ativa daqueles que interpretam e se adaptam às normas jurídicas, pois estes irão adequar as suas condutas àquilo que entendem, que podem extrair, de um determinado enunciado cristalizado na legislação.
Por óbvio, resta evidente que existirá em uma sociedade multicultural como a nossa a possibilidade de infindáveis possibilidades de interpretação destas normas jurídicas, tendo em vista a pluralidade de valores, visões de mundo, de contextos sociais que alimentarão a leitura/interpretação realizada pelos destinatários das normas jurídicas.
Evidentemente que existe um risco (decorrente de insegurança) se o conteúdo das normas jurídicas forem criados livremente pelos seus próprios intérpretes.
Reside aí a insegurança jurídica, que não pode ser tolerada, sob pena de que, pela ausência de um dos pilares que justificam a sua existência, venha o Direito perder a sua legitimidade em face dos seus súditos.
Por esta razão, para limitar a pluralidade de interpretações, o Direito limita: (a) o espaço em que este debate se realizará; (b) os atores legitimados para validamente realizar a interpretação das normas; e (c) a sua duração, concedendo ao Estado-Juiz a última palavra sobre o tema debatido.
3.2 BOURDIEU, de forma brilhante, percebe que este debate jurídico realizado sobre a válida interpretação das normas jurídicas deve ocorrer em um campo próprio:
O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflicto directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as lei escritas e não escritas do campo- mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei […].13
E mais:
A constituição do campo jurídico é um princípio de constituição da realidade […]. Entrar no jogo, conformar-se com o direito para resolver o conflito, é aceitar tacitamente a adopção de um modo de expressão e de discussão que implica a renúncia violência física e às formas elementares de violência simbólica.14
3.3 Ao adentrar neste campo jurídico, os litigantes renunciam à possibilidade de solução própria individual do litígio, conferindo o poder de encontrar a interpretação adequada, ao caso concreto, para o Estado-Juiz, aceitando, portanto, as “regras do jogo”, para que possam ter acesso, de forma legítima, ao bem da vida que está sob disputa, mas, em regra, deverão as partes atuarem por meio de profissionais habilitados para tanto:
O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele (pelo recurso da força ou a um árbitro não oficial ou pela procura direta de uma solução amigável), ao estado de clientes de profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que garante o domínio dos meios vê recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo.15
3.4 O Direito não admite a eternização do debate e da disputa jurídica acerca dos bens da vida, pelo fato que, se assim ocorresse, a insegurança iria permear as relações humanas, tendo em vista que os conflitos não encontrariam fim, já que seria possível, aos litigantes, sempre reiterar (ou renovar) seus pontos de vista.
Para tanto, ao Estado-Juiz, é concedido o poder de pôr termo às disputas, apresentando a interpretação definitiva do fato, à luz do Direito:
Confrontação de pontos de vista singulares, ao mesmo tempo cognitivos e avaliativos, que é resolvida pelo veredicto solenemente enunciado de uma “autoridade” socialmente mandatada, o pliro representa uma encenação paradigmática da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem impor-se ao reconhecimento e, deste modo realizar-se, está em jogo o monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de divisão […], portanto, de distribuição legítima.16
Ou seja, o monopólio da jurisdictio, de interpretar o mundo, está contido nas mãos do Estado, que em regra não delega a particulares os seus atos de jurisdição, como fica bem evidente no tipo “Exercício ilegal das próprias razões” (art. 350, do Código Penal), em que a parte, julga e age, em busca da concretização do direito que entende ser seu.
Note-se que nesta figura, o bem jurídico a ser tutelado por esta norma é a “administração da justiça”:
Tutela-se a administração da justiça. As figuras típicas constantes do artigo 350 ofendem o normal desenvolvimento da atividade judiciária, comprometendo a eficiência e o respeito devido às suas funções.17
No momento em que um particular acusa outro, em um jornal, por exemplo, de este cometer uma conduta criminosa, ele, ao externar sua interpretação dos fatos, está, em tese, praticando o crime de calúnia (art. 138, do Código Penal); se o Estado-Juiz, ao publicar uma sentença condenatória criminal no Diário Oficial (art. 393, do Código de Processo Penal), afirmando que determinado indivíduo praticou um crime, estará decidindo e, pela sua prestação jurisdicional, aplicando uma sanção ao criminoso.
Neste sentido Bourdieu aprofunda o tema:
O veredicto do juiz, que resolve os conflitos ou as negociações a respeito de coisas ou de pessoas ao proclamar publicamente o que elas são na verdade, em última instância, pertence à classe dos actos de nomeação ou de instituição, diferindo assim do insulto lançado por um simples particular que, enquanto discurso privado – idios logos – , que só compromete o seu autor, não tem qualquer eficácia simbólica; ele representa a forma por excelência da palavraautorizada, palavra pública, oficial, enunciada em nome de todos e perante todos: estes enunciados performativos, enquanto juízos de atribuição formulados publicamente por agentes que actuam como mandatários autorizados de uma colectividade e constituídos assim em modelos de todos os actos de categorização […], são actos mágicos que são bem sucedidos porque estão à altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem.18
E conclui que o Direito seria o poder simbólico por excelência, já que ele diz o que são as coisas, controlando a sociedade, moldando os rumos da história:
O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas. O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este.19
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente ensaio tem por meta a construção de uma visão introdutória ao direito que vislumbre que o controle social realizado pelo direito tem como alicerce o poder simbólico deste instrumento de comando das condutas humanas. Inicialmente, buscou-se esmiuçar como este poder simbólico se constrói, partido da edificação de uma ciência do Direito, alijada de discursos não-jurídicos, passando pela criação de um quadro técnico apto a lidar com esta tecnologia jurídica e refletindo sobre a forma como é construído a sintática dos comandos legais, a fim de apresentar uma aparente neutralidade/abstração, com o escopo de impor ao leitor/destinatário das normas jurídicas uma falsa percepção sobre os seus desideratos.
Em um segundo momento pretendeu-se tecer uma reflexão de como os conteúdos do Direito são controlados pelo próprio estado, ao limitar o campo de debates, os atores deste debate e a duração do debate, com a apresentação, de uma “certeza” pelo Estado-Juiz.
De fato, como diz Bourdieu, o Direito é o poder simbólico por excelência, pelo fato de que as normas jurídicas são símbolos que controlam a conduta humana e que os membros de uma coletividade, seus súditos, a ele se submetem espontaneamente, cumprindo suas obrigações, seus deveres (e respeitando os direitos subjetivos alheios), sem questionamentos, sem subversão.
A adesão se baseia na crença, quase mítica (ou religiosa), sobre a natureza do conteúdo da norma, que é “verdadeira”, ou que “está correta”. Note-se que não há um debate com a Lei, pois esta não se apresenta para explicar, mas para mandar, comandar o seu leitor/destinatário.
Se existe algum debate, ele ocorre durante a aplicação da norma, sobretudo em uma relação processual, perante o Estado-Juiz, momento em que as partes, (em regra) representadas, deverão deduzir suas pretensões perante o magistrado, para este apresentar a interpretação definitiva do fato, perante o direito.
Note-se que em todos estes eventos, o destinatário da norma é alijado do debate, pois suas percepções pré-jurídicas (ou, até, não-jurídicas) não são ouvidas, seus valores, suas crenças pessoais, seu sentimento de “justiça”, são olimpicamente ignorados, posto que irrelevantes para o Direito.
Portanto, neste ensaio, pretendeu-se construir uma introdução ao direito partindo do pressuposto de que os símbolos jurídicos, e suas análises, são imprescindíveis para adequada compreensão do fenômeno jurídico e das relações humanas dele decorrentes.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
FERRAZ JR.. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
IHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Vol. 1. Tradução de José Antônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Rio, 1979.
MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
Notas
1 Procurador da Fazenda Nacional. Ocupou os cargos de Advogado da União/PU/AGU. Procurador Federal/PFE/INCRA/PGF e Analista Judiciário – Executante de Mandados/TRT 16ª Região. Conciliador Federal – Seção Judiciária do Maranhão. Professor de Direito Tributário da Faculdade São Luís. Ex-professor substituto de Direito da UFMA.
2 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9. ed., Rio de Janeiro. Forense, 1994, p.298.
3 IHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. V. 1, tradução de José Antônio Faria Correa, Rio de Janeiro. Ed. Rio, 1979, p.160.
4 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed, Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007, p.14-15.
5 BOURDIEU, Op.cit., p.209
6 Ibidem.
7 MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. 2. ed. São Paulo. Quartier Latin, 2003. p. 45.
8 BOURDIEU, Op. cit., p.242.
9 BOURDIEU, Op.cit., p.243.
10 BOURDIEU, Op.cit., p.215-216.
11 FERRAZ JR.. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo. Atlas, 2008. p. 44-45.
12 BOURDIEU, Op.cit., p.216.
13 BOURDIEU, Op.cit., p.229.
14 Ibidem.
15 BOURDIEU, Op.cit., p. 233.
16 BOURDIEU, Op.cit., p.236.
17 PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 4: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 734.
18 BOURDIEU, Op.cit., p. 236-237.
19 BOURDIEU, Op.cit., p. 237.